Mostrando postagens com marcador Criticidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Criticidade. Mostrar todas as postagens

28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.

15 novembro 2019

República: valorizar o ideal, reconhecer e resolver os problemas

Os brasileiros – e isso é algo específico do Brasil – têm um triste hábito: gostam de falar mal de si mesmos.

Por exemplo: hoje se comemora a gloriosa Proclamação da República, em seus 130 anos.

O evento em si mesmo foi um avanço; a República é um regime superior à monarquia. E, aliás, o 
presidencialismo também é superior ao parlamentarismo.

Além de ser um regime concreto, a República é um ideal sociopolítico de ordem e progresso, de inclusão e desenvolvimento, de justiça, respeito e tolerância.

Em vez de comemorarem-se esses valores todos, o que é que se faz no aniversário de 130 anos da República?

Afirma-se que ela é fracassada, que ela não presta, que ela traiu seus ideais... tudo isso dito de maneira “crítica” e “politizada”, supostamente com grande seriedade e profundidade.

Pelo jeito, é bonito falar mal da República. O problema é que o ideal que ela representa é simplesmente jogado fora com essa “criticidade” extremamente ácida. Ora, se a República não presta, não há porque a manter; se não há porque a manter, ela não será mantida.

Entre 1930 e 1937, críticas à República em tudo semelhantes às que se fazem (no dia de) hoje eram difundidas e repetidas. Qual foi o resultado? Revolução em 1930, guerra civil em 1932, golpe autoritário em 1937. A mesmíssima dinâmica entre 1961 e 1964, com os resultados que todos conhecemos. (Isto é, que deveríamos conhecer.)

Aliás, a mesma dinâmica ocorreu em outros países: França, Portugal, Espanha... nesses lugares, as críticas aos problemas concretos das repúblicas levaram ao envenenamento e à morte da República como ideal, resultando em regimes autoritários retrógrados, precedidos ou não por guerras civis. Em tais lugares, a muito, muito custo as liberdades foram reconquistadas, justamente no quadro de repúblicas (com a exceção da Espanha – mas lá a monarquia foi um presente do assassino e psicopata Francisco Franco ao seu pupilo, o futuro rei Juán Carlos II).

Em vez de os brasileiros alegre mas burramente repetirmos que a República é ruim, deveríamos fazer como os estadunidenses sempre fizeram: reconhecer os problemas e as deficiências, mas ao mesmo tempo reafirmar os valores e os ideais, para, a partir disso, buscar as soluções das dificuldades.

15 maio 2018

Gazeta do Povo: "200 anos de Marx: há algo a comemorar?"

Em homenagem aos 200 anos de nascimento de Marx, apresento abaixo minha pequena contribuição-retribuição aos desserviços intelectuais e práticos prestados por ele.

Esse texto foi publicado na Gazeta do Povo em 14.5.2018. O original encontra-se disponível aqui.

*   *   *

200 ANOS DE MARX: HÁ ALGO A COMEMORAR?


“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”
(Karl Marx)

“Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado”
“A ordem permanecerá retrógrada enquanto o progresso permanecer anárquico”
(Augusto Comte).


O dia 5 de maio marcou o bicentenário de nascimento de Karl Marx (1818-1883), o fundador do comunismo e, bem ou mal, pai espiritual de centenas de milhões de seguidores. Não há dúvida de que essa data incita à reflexão – especialmente quando os próprios marxistas celebram-na e afirmam que Marx teria contribuído decisivamente para o progresso da humanidade, em termos intelectuais e também práticos; nesse sentido, aliás, nas redes sociais houve marxistas que propuseram que os não marxistas e os antimarxistas tivessem “honestidade intelectual” para reconhecer essas contribuições. Ora, isso é altamente problemático: tanto a exigência de “honestidade intelectual” quanto a afirmação de que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade são largamente exageros, profundamente chocantes e, no fundo, ao contrário da honestidade intelectual exigida, essas afirmações são desonestas. No conjunto, essas afirmações integram um verdadeiro “mito Marx”, constituído por seus discípulos ao longo de pelo menos os últimos 170 anos.

Antes de mais nada: as virtudes habituais, ou seja, os comportamentos e as disposições de espírito que habitualmente se chamam de “virtudes” sempre foram chamadas por Marx de “preconceitos burgueses”; nesse sentido, a honestidade seria um dos mais claros desses preconceitos. Ocorre que, sendo um herdeiro do hegelianismo e, mais amplamente, da metafísica alemã, para Marx as opiniões mais incoerentes eram “resolvidas” por meio de pelo menos três expedientes complementares: (1) uma escrita rocambolesca; (2) o apelo às ideias de “contradição” e “lógica dialética”; (3) uma retórica violenta, agressiva e altamente irônica.

A escrita rocambolesca é um recurso bastante conhecido e fácil de entender: qualquer pessoa que deseje afetar profundidade pode escrever de maneira confusa, de modo a confundir os leitores e produzir com facilidade sofismas. Já a “contradição” é uma forma mais sutil, mas também mais desonesta, de iludir: quando um autor vê-se face a incoerências manifestas, basta afirmar que as incoerências referem-se a aspectos da própria realidade e que a realidade é “contraditoriamente” incoerente; ou, então, afirma-se que os aspectos díspares e incoerentes das “contradições” são “integrados” e “superados” na “lógica dialética”, que, por sua vez, é uma forma “superior” de racionalidade. Por fim, a retórica carregada, violenta e irônica é o recurso final para evitar qualquer forma de argumentação racional explícita; a ironia evita o confronto argumentativo, assim como a violência retórica evita a racionalidade e ainda dá permite ataques pessoais, ad hominem, aos adversários. (Esses traços, próprios do pensamento e da retórica de Marx, foram copiados em diferentes medidas por seus discípulos.)

Tudo isso para observar que Marx desprezava as virtudes habituais como sendo preconceitos, mas ao mesmo tempo aceitava – pelo menos em princípio – a argumentação racional e científica a respeito de suas obras, ou seja, a argumentação feita com honestidade “intelectual”. Entretanto, a aceitação da honestidade “intelectual” era feita apenas em princípio, de maneira retórica: Marx repudiava seus adversários apelando sistematicamente para os três aspectos acima (apelo às “contradições” e retórica violenta, irônica e confusa). Assim, da parte de Marx não havia nem respeito à honestidade em geral (“preconceito burguês”) nem respeito à honestidade “intelectual” em particular (rejeitada na prática).

“Um dos maiores pensadores da humanidade”: um título desses exige não apenas uma grande capacidade intelectual, como também contribuições efetivas e de vulto para o progresso da humanidade. Deixando de lado o fato de que o “progresso” conforme entendido por Marx é uma concepção altamente problemática (como também era a concepção-irmã de “ordem” – ambas definidas de maneira rasa) e que, após a atuação de Marx e dos marxistas a concepção do “progresso” sofreu danos gigantescos, ocorre que a atuação específica de Marx no que se refere a esses dois quesitos mínimos (grande capacidade intelectual e grandes contribuições efetivas para o progresso) não justificam sua inscrição no panteão intelectual e político da humanidade.

É necessário admitirmos que as inúmeras obras de Marx são de fato interessantes e estimulantes; a leitura de seus livros sugere muitas ideias, das quais muitas são úteis e realmente proveitosas. As chamadas “obras históricas” (como o 18 Brumário de Luís Bonaparte) são particularmente interessantes, ao sugerirem perspectivas para a Sociologia Política e para a História Social e Política. Entrementes, convenhamos: obras “interessantes”, “estimulantes” e “sugestivas” não é o mesmo que obras “geniais” ou “marcos inescapáveis da reflexão científica”. As obras “históricas” de Marx são interessantes – assim como o são, por exemplo, os livros de Alexis de Tocqueville (como A democracia na América): não há nada de “genial” aí. Observações similares podem ser feitas a respeito das obras “filosóficas” e das “econômicas” de Marx, bem como a respeito de sua atuação prática (no movimento dos trabalhadores).

Podem contra-argumentar que Marx teria sido genial na crítica ao capitalismo. Mas teria mesmo? A análise dos mecanismos sociais, políticos e econômicos da produção econômica não são e não foram exclusividade de Marx; propor um esquema geral para explicar diversos elementos da vida social também não foram exclusividade marxista. Exemplos de esquemas explicativos gerais e abrangente da realidade social do século XIX, em termos históricos? Basta ler-se as obras de Augusto Comte, de Tocqueville, de Herbert Spencer, de Bakunin, ou de muitos outros: não é que esses autores não tenham desenvolvido análises profundas, originais e muitas vezes brilhantes; ocorre que, não por acaso, o “mito Marx” obscurece-as.

Em sua explicação do “capitalismo”, Marx usou um conceito moral (a maldade do “capital”) para iniciar sua “crítica”. Além disso, “inverteu” Hegel e afirmou que os elementos econômicos (ou materiais, ou infra-estrutura, ou qualquer que seja o termo que o exegeta marxista de plantão deseje) determinam os elementos não-econômicos (a “super-estrutura” – a política, a filosofia, as artes, as religiões, a cultura). O que significa “determinar” aí é um problema epistemológico insolúvel desde a época de Marx; mas o sentido geral é claro: são as relações econômicas que devem ser levadas em consideração para explicar-se ou entender-se a política, as artes, a cultura, as religiões etc.; além disso, é necessário mudar as relações econômicas para que se “mude” a sociedade.

Há nessa crítica uma forte ambiguidade moral a respeito da própria moralidade; na verdade, duas ambiguidades. Por um lado, Marx reconhecia que o ser humano tem elementos altruístas e que pode agir altruisticamente: o problema é que tal ação altruísta só pode ocorrer quando o “capitalismo” (e, de maneira mais ampla, a luta de classes) deixar de existir; até lá, o ser humano será sempre egoísta, com a possível exceção daqueles que “lutam” pelo fim do capitalismo. Por outro lado, embora a crítica ao capitalismo baseie-se em uma avaliação moral, essa própria moralidade de fundo é escondida sob o rótulo de “análise objetiva”, ao mesmo tempo em que a moralidade comum, como vimos, é condenada como “preconceito burguês”: em outras palavras, “dialeticamente”, “contraditoriamente”, a moralidade é afirmada-negada.

Dito isso, a submissão da super-estrutura à infra-estrutura é moralmente degradante, politicamente irresponsável e intelectualmente errada. Uma coisa é dizer que há relações mais ou menos fortes entre a classe social que a pessoa integra e algumas de suas preferências morais, políticas e filosóficas; outra coisa é dizer que basta saber em que classe social a pessoa nasceu para deduzir daí o seu comportamento – e, mais importante ainda, para (des)valorizar as ações dessa pessoa. O sentido disso é este: para Marx, o fato de uma pessoa ter nascido na classe média torna-a uma “burguesa” e todos os seus atos, conscientes ou não, serão favoráveis à burguesia; há a possibilidade de essa pessoa “trair” a classe (ajudando os proletários, por exemplo), mas, exceto no caso da traição em favor do proletariado, todas as ações desse burguês serão pela exploração dos trabalhadores, da sua dominação política, da enganação sistemática a respeito de sua condição etc. Se, inversamente, um proletário age “contra” a sua classe social, esse comportamento ocorre porque ele ou é um traidor da classe ou, o que supostamente seria mais “correto” para o marxismo, esse proletário não teria “consciência de classe”: em outras palavras, ele seria um iludido. Aliás, mesmo a expressão “capitalismo”, cunhada por Marx, implica sempre, necessariamente, a exploração objetiva do proletariado pela burguesia: expressão marxista, ela junta uma suposta descrição (relações entre proletariado e burguesia) com uma forte mas escondida condenação moral (“o capitalismo é mal porque as relações são sempre de exploração”).

Dois aspectos centrais que se evidenciam dos comentários acima são a luta de classes e a utopia igualitarista. A luta de classes, para Marx, não era uma figura de expressão, ao menos para o “capitalismo”: as duas classes sociais do capitalismo (proletariado e burguesia) estão sempre, necessariamente, em conflito, seja ele às claras, seja ele encoberto. O conflito às claras não são meramente as greves; por si sós, elas apenas podem constituir o início do conflito franco: o conflito às claras é a revolução social, o enfrentamento armado dos proletários contra a burguesia; em outras palavras, é a guerra civil em bases de classe. O conflito encoberto são as outras relações sociais – que, dessa forma, são sempre ruins, negativas: um tratamento digno que porventura um burguês dispense a um proletário (como cidadão, como trabalhador, como ser humano) é apenas um fingimento, ou uma ilusão autoinduzida. As relações sociais entre as classes sociais só não são ruins quando são alianças (sempre temporárias) que possam conduzir à revolução social. A revolução, por seu turno, é rompimento com a história, é tabula rasa: há uma forte ambiguidade também aqui, em que a história e a historicidade são-e-não-são valorizadas. (Mas, se considerarmos a famosa frase segundo a qual “as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos”, veremos que, no fim das contas, a história não é valorizada.)

Nesses termos, não foi por acaso que há alguns anos uma professora de Filosofia da Universidade de São Paulo falou que “a classe média é uma merda”: Marilena Chauí evidenciou de maneira cristalina todo o seu marxismo e a moralidade a ele vinculada – mesmo que ela mesma, como intelectual e servidora pública, e pelo conjunto de sua situação social objetiva, seja uma burguesa, integrante da classe média.

Se o capitalismo é sempre, por definição, mal; se ele define-se pelo conflito inexpiável entre proletários e burgueses, como é que esse conflito pode, talvez, ter um fim? Por meio do fim das classes sociais. Novamente: o “fim das classes sociais” deve ser entendido de modo literal; em particular, deve-se acabar com a classe burguesa. Para Marx, o fim das classes sociais permitirá que o ser humano deixe de ser “proletário” ou “burguês”, sendo somente um “ser humano”. Com o fim das classes, as pessoas deixarão de ser definidas, entendidas e explicadas a partir de suas classes sociais, passando a ser puramente “indivíduos”. Com isso, os indivíduos perderão as limitações que as classes sociais impõe-lhes: aí surge a imagem idílica, mas irreal e completamente fantasiosa, de que o fim das classes (e do capitalismo) permitiria que cada pessoa trabalhasse pela manhã em uma fábrica, fosse à tarde pescar e à noite discutisse filosofia e que no dia seguinte fosse passear pelos campos pela manhã, fizesse esculturas à tarde e redigisse poemas épicos à noite – e assim sucessivamente.

Essa imagem pode parecer bonita e atraente, mas na verdade ela é profundamente falsa e errada. São pelo menos três os problemas relacionados a ela. Em primeiro lugar, ela despreza o trabalho e é irresponsável: a recompensa para os trabalhadores seria uma vida livre de qualquer responsabilidade, em particular sem a necessidade de trabalhar para sobreviver; o mundo ideal que o marxismo propõe para os trabalhadores é uma existência desvinculada de relações duradouras e de esforços constantes, que, “dialeticamente”, lembra os relatos dos aristocratas mais inúteis das monarquias. Deveria ser chocante esse contraste; mas o fato é que os marxistas (a começar pelo próprio Marx) nunca examina(ra)m atentamente o fato “contraditório” de que o ideal de vida para os trabalhadores consiste na negação radical do trabalho e, inversamente, na afirmação mais desbragada da inutilidade, da futilidade, da irresponsabilidade. Talvez os marxistas examinem, ou tenham examinado, essa incoerência: mas, por outro lado, não se vê nenhum marxista criticando a sua utopia, cujo papel político e intelectual é tão central; da mesma forma, a Sociologia do Trabalho, que é uma área acadêmica dominada pelo marxismo, a despeito de afirmar valorizar abstratamente o trabalho, sempre vê o trabalho concreto – por definição “capitalista” – como algo ruim e negativo, como fonte de alienação e nunca de realização pessoal e coletiva.

Em segundo lugar, a “utopia” marxista é falsa pelo simples fato de que o ser humano tem que trabalhar muito e continuamente para poder sobreviver. Como o Positivismo de Augusto Comte nota e ao contrário do que afirmam o marxismo e inúmeras filosofias da história que, na verdade, são anti-históricas, ao longo da história é possível que a carga de trabalho diminua, que a produtividade aumente, que as condições de trabalho melhorem e/ou tornem-se menos degradantes; ao contrário do que o marxismo afirma, a melhoria das condições de vida e de trabalho dependem do acúmulo histórico, não de revoluções (que, por seu turno, destroem os frutos acumulados do trabalho): mas, de qualquer maneira, o trabalho contínuo permanecerá sendo uma das características centrais de todas as sociedades. Assim, a utopia marxista é na verdade uma quimera, que nega a realidade, a permanência e a necessidade do trabalho e, no final das contas, degrada os próprios trabalhadores.

Em terceiro lugar, há um aspecto por assim dizer técnico referente ao trabalho. Um trabalhador qualquer só se torna habilidoso em suas atividades se realizar cotidiana e continuamente suas tarefas, ao longo de bastante tempo. Aliás, não importa que seja um trabalhador; um burguês, um intelectual, um artista têm que desenvolver suas habilidades da mesma forma. Esse desenvolvimento das habilidades requer tanto o trabalho prático, nas atividades laborais cotidianas, quanto o aprendizado de novas técnicas, novas teorias etc., em cursos de aperfeiçoamento. Em outras palavras, para que o trabalho seja bem feito é necessária a especialização dos trabalhadores (e dos burgueses, e dos intelectuais, e dos artistas); ela ocorre não somente em termos individuais, mas coletivos, e o resultado da especialização coletiva é a constituição, e a permanência, das classes sociais. Uma outra forma de entender a especialização é por meio da divisão social do trabalho – e, como os sociólogos não marxistas sabem há muito tempo, uma das consequências da divisão social do trabalho é a complementaridade das relações sociais: cada indivíduo e cada classe fornece às demais o que produz e recebe das demais o que não produz.

Esses erros intelectuais e defeitos morais perpassam as obras de Marx e as de seus herdeiros teóricos e práticos: as dezenas ou centenas de marxismos todas compartilham essas características. Elas não são erros menores ou secundários; esses problemas são centrais, mesmo que não sejam explícitos. Nesses termos, como é possível afirmar, com seriedade, que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade? O período em que ele viveu (o século XIX) já tinha elementos suficientes para que ele não incorresse em tais problemas: tanto isso é verdade que muitos outros pensadores fizeram “críticas” da época sem errarem como errou Marx.

Mas é necessário comentar as consequências práticas do marxismo. Nesse aspecto, é necessário falar bem menos: não porque não haja o que dizer, mas porque as suas consequências são desastrosas e elas são sobejamente conhecidas, ainda que os próprios marxistas façam o possível (mas também o imoral) para mudarem de assunto, para fingirem que não produziram desastres e para imputarem aos outros os seus próprios defeitos. (Embora, como observamos antes, um “defeito” seja uma categoria moral – e, para os marxistas, as categorias morais são apenas “preconceitos burgueses”, portanto desprezíveis.)

Comecemos pelo mais conhecido: os crimes de Lênin e Stálin, as invasões à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia em 1968, os grupos terroristas na Alemanha e na Itália entre as décadas de 1960 e 1990, as violências em Cuba, na Albânia, no Camboja, o apoio ao terrorismo árabe etc. Para tudo isso, sugerimos somente duas referências gerais: O passado de uma ilusão, de François Furet, e O livro negro do comunismo, de Jean-Louis Margolin e outros. Os regimes políticos inspirados no marxismo foram, e são, sempre autoritários, cerceadores das liberdades. A seu favor não é nem mesmo possível argumentar a diminuição das mazelas do “capitalismo” – por exemplo, com o chamado Estado de Bem-Estar Social: o Welfare State foi criado para preservar o capitalismo e evitar o comunismo, não o inverso; os propositores do Estado de Bem-Estar eram todos e sempre pessoas imbuídas de todos aqueles valores e preocupações que Marx chamava de “preconceitos burgueses”: isso se torna mais nítido quando se percebe que o Welfare consiste em larga medida em uma política de colaboração de classes, em vez de uma luta de classes. Ao mesmo tempo, a ação direta dos marxistas foi sempre no sentido de incentivar sublevações populares, revoluções, golpes etc. As ocasiões em que os comunistas desenvolveram ações realmente mais progressistas e construtivas foram aquelas em que eles afastaram-se das ortodoxias marxistas: basta ver a Social-Democracia na Alemanha, após a II Guerra Mundial.

De qualquer maneira, podemos reconhecer sem dificuldade que, independentemente das suas ações concretas, a popularidade do marxismo pode servir como uma espécie de “termômetro social” (uma proxy, como se diz nas Ciências Sociais): quanto mais popular o marxismo, presumivelmente piores serão as condições sociais. Evidentemente, disso não se segue que as soluções propostas pelo marxismo devam ser postas em prática.

De qualquer maneira, há um traço intelectual originado com Marx e transmitido pelo marxismo que se perpetuou ao longo do tempo e que se difundiu mundo afora, sendo muito ativo hoje no Brasil; esse traço consiste na combinação das “contradições dialéticas” com a atitude “crítica”. Já comentamos como é que o marxismo lida com as “contradições”; a mera inclusão dessa palavra em um discurso marxista basta para solucionar as maiores e mais gritantes incoerências. Um exemplo é o conceito de “tolerância intolerante”; embora de validade atual, ele foi elaborado no final dos anos 1960 pelo filósofo Herbert Marcuse, de origem alemã mas convenientemente radicado nos Estados Unidos. A tolerância intolerante consiste nisto: como a tolerância é uma virtude burguesa, ela na verdade é mais um preconceito burguês que serve apenas para beneficiar o capitalismo; dessa forma, os adeptos da tolerância intolerante devem ser tolerantes com aqueles que compartilham suas opiniões, mas devem ser intolerantes com quem discorda de suas opiniões; além disso, os adeptos da tolerância intolerante são, por definição, “progressistas” e, inversamente, aqueles que discordam são por definição “fascistas”. Evidentemente, a ideia de “tolerância intolerante” é incoerente e sua aplicação é profundamente autoritária; mas, para vestir uma roupagem “progressista”, basta dizer que ela é contraditória – e aí fica tudo bem.

A atitude “crítica” geralmente é apresentada em um primeiro momento como de “avaliação científica” de alguma realidade (geralmente, uma realidade social); mas o específico do que estamos comentando é que essa avaliação é sempre político-moral, com um viés negativo e um espírito destruidor. O conceito de “capitalismo”, por exemplo, é essencialmente crítico no sentido que estamos expondo: ele não consiste apenas em uma forma de descrever uma certa realidade, mas, além de dizer que a sociedade organiza-se de uma determinada forma, a palavra “capitalismo” também faz uma acusação de que o capitalismo é mal e é sempre dominador-e-explorador. Assim, a atitude “crítica” é uma atitude permanentemente contrária “a tudo que aí está”; ela serve para destruir, para negar, não para avaliar e propor.

É claro que há muitas situações em que é necessário de fato “criticar”: por exemplo, o trabalho escravo nos dias atuais deve ser efetivamente criticado sem remissão. Isso é uma coisa. Mas outra coisa, bem diversa, é sempre criticar, sempre destruir e, de qualquer maneira, sempre reclamar. Além de chatos, os intelectuais críticos são incapazes de propor soluções, de considerar que (de vez em quando!) há avanços, que situações antes ruins tornaram-se melhores, que o que estava menos mal está agora melhor; da mesma forma, os intelectuais críticos são incapazes de avaliar o que quer que seja sem apelar para a quimera comunista, mesmo que implicitamente. Como exemplos concretos de intelectuais marcadas por atitudes “críticas”, nesse sentido, podemos desde já duas intelectuais brasileiras que fazem grande sucesso: Marilena Chauí e Márcia Tiburi. A primeira é ortodoxamente marxista, enquanto a segunda seria uma marxista “pós-moderna”; mas é fácil perceber nos escritos e entrevistas de ambas a forte “criticidade”.

De maneira mais conspícua, podemos dar um outro exemplo de atitude “crítica”: a corrente teórica dos chamados “estudos pós-coloniais”. De acordo com os seus autores, a África, a Ásia e até a América Latina são dominadas desde o século XV até hoje pela Europa e pelo seu sucedâneo, os Estados Unidos – em uma palavra, pelo “Ocidente” –; como são dominadas política, econômica e intelectualmente pelo “Ocidente”, essas regiões devem sublevar-se contra a dominação e o status de “colônia”, desenvolvendo relações sociais, políticas, econômicas e intelectuais “alternativas”. Pouco importa a essa corrente que não há mais colônias ocidentais na Ásia, na África e na América Latina; que muitos dos problemas (embora não todos) por que essas regiões passam têm origem nelas mesmas; que muitos, quando não a totalidade, dos intelectuais “pós-coloniais” estuda, estudou ou trabalha nos mesmos países integrantes do Ocidente que criticam; que – e isto é o mais importante – as condições sociais, políticas, econômicas e intelectuais que permitirão a “emancipação” dessas regiões (liberdades de pensamento, de expressão, de reunião; emancipação das mulheres; trabalho livre etc.) foram criadas e são mantidas exatamente pelo mesmo Ocidente violentamente criticado. Aliás, embora o “Ocidente” tenha sérias responsabilidades sobre diversos problemas atuais – por exemplo, a interferência daninha da Europa em conflitos no Oriente Médio –, os intelectuais do pós-colonialismo fazem um completo e obsequioso silêncio a respeito do neocolonialismo exercido por países asiáticos sobre o resto do mundo (exemplos banais: penetração da China na África, na Ásia e na América Latina; imperialismo russo renovado na Europa, no Oriente Médio e na Ásia); ou das violências que países “colônias” sofrem de seus próprios governantes (como em Cuba e na Venezuela). Tudo isso apresentado sempre de maneira bastante “crítica”.

O que vimos indicando corresponde a traços do pensamento e das práticas do marxismo, mas também do próprio Marx; com a distância que 150 a 200 anos, é sem dúvida nenhuma fácil para nós fazermos essas críticas, mas convém notar que desde o século XIX, ou seja, desde quando o próprio Marx vivia, escrevia e atuava havia autores que indicavam que esses problemas poderiam ocorrer. O mais interessante é que muitas de tais críticas provieram não da “direita”, mas do próprio lado do marxismo – da esquerda anarquista. Tanto Bakunin (Escritos contra Marx) quando Proudhon (Os anarquistas julgam Marx) já denunciavam no século XIX que o marxismo conduziria ao autoritarismo, à alienação dos trabalhadores etc. – sem deixar de notar que o próprio Marx agia de maneira torpe, desonesta, de má-fé com seus adversários (mesmo os adversários anarquistas) (afinal, as virtudes habituais são “preconceitos burgueses”).

Todos esses problemas que indicamos são tanto de Marx quanto das tradições nele inspiradas. Como se vê, não são problemas pequenos ou secundários, mas são grandes e centrais. Fica assim a dúvida: o que há, de fato, para comemorar nos 200 anos de nascimento de Marx? Aliás, como é possível que marxistas exijam, com seriedade, que se tenha generosidade para com Marx no momento de sua avaliação, se essa generosidade sempre foi “criticamente” rejeitada por ele e pelos marxismos?

Embora longo, este artigo não pôde desenvolver outros temas, que deveriam ser abordados. Queríamos antes de mais nada indicar que é difícil, ou impossível, sustentar que Marx teria sido um gênio e um benemérito da humanidade; assim, este artigo lamentavelmente assumiu um aspecto... “crítico”. Mas é fato que uma avaliação minimamente completa de Marx teria que abordar pelo menos dois outros aspectos: (1) quais propostas e meios positivos para solucionar os problemas humanos e sociais? (2) Como entender o “progresso”, considerando que desde o século XX essa concepção é monopolizada pela esquerda e, em particular, pelos marxistas? Notamos antes que os danos causados pelos marxismos ao “progresso” (e à sua idéia-irmã, a de “ordem”) foram imensos; aqui só podemos sugerir a leitura de nosso artigo “Os conservadores à deriva no Brasil” (Gazeta do Povo, 1.4.2018). Já sobre a primeira questão, teremos que aguardar uma nova e mais propícia ocasião.

18 março 2017

Gazeta do Povo: "Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda"

Artigo de minha autoria, publicado em 18.3.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba.

O original pode ser lido aqui.


*   *   *

Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda

As discussões sobre o projeto “Escola sem Partido” têm sido marcadas por grandes mal-entendidos em parte acidentais, em parte propositais. Como não poderia deixar de ser, dificultam a compreensão dos sérios problemas ligados ao projeto.
Notemos à partida que o nome “Escola sem Partido” é enganoso. Ele foi proposto no Senado pela bancada evangélica, com apoio católico, supostamente para evitar o proselitismo político nas salas de aula. Mas, ao sair das generalidades, o projeto evidencia sua meta: ao afirmar uma preponderância das famílias na educação de crianças e adolescentes, deseja-se evitar que as escolas desempenhem o seu papel de esclarecimento e de transmissão do conhecimento. Mais especificamente: o que a bancada evangélica deseja é que nem a Teoria da Evolução nem temas de educação sexual sejam ensinados e que, em geral, todos os conhecimentos contrários ou polêmicos para a teologia (cristã) possam ser questionados e impedidos de serem apresentados. É a instrumentalização direta do Estado por denominações teológicas específicas para manipular os currículos. É o puro obscurantismo em ação.
A família é fundamental, não é todo-poderosa ou onisciente. A escola é a intermediária entre família e sociedade: transmite conhecimentos e também estabelece o convívio. Ela é uma etapa na vida coletiva e, assim, estabelece uma ruptura com a família. Caso vivêssemos presos ao âmbito familiar, nunca teríamos a vida política, ou o conceito de “público”, ou o Estado-nação, ou a noção de “humanidade” – apenas o despotismo paterno.
Por outro lado, muitos dos críticos do Escola sem Partido são – para dizê-lo com um eufemismo – ambíguos a respeito de suas motivações. É certo que o Escola sem Partido institui mais que um controle sobre os professores: quer um verdadeiro patrulhamento ideológico. Mas muitos dos que defendem a necessária e correta liberdade de cátedra defendem-na desejando, na verdade, manterem-se livres para o proselitismo político – sendo mais específico, o proselitismo político (quando não político-partidário) de esquerda.
O Escola sem Partido teve sua origem na chamada “direita”, em grupos liberais e neoliberais, dos moderados aos radicais. Tais grupos apresentam propostas desvairadas – o “Estado mínimo”, a intervenção militar –; mas, neste caso em particular, eles estão corretíssimos. Uma parte substancial do ensino fundamental e médio é política e ideologicamente enviesada, encarada como “espaço de disputa” política. A própria ideia de ensino “crítico” já evidencia a intensa politização do tema.
Nesse sentido, basta passar os olhos pelos livros de História e até de Geografia, quando não de Sociologia e mesmo de Filosofia. Noções como “luta de classes” e “burguesia versus proletariado” abundam. Isso vale para o ensino público e para o privado e, o que é pior, vige desde bem antes dos governos esquerdistas do Partido dos Trabalhadores.
Pode-se dizer que não existe ensino sem “ideologia”. De fato, o ensino não é nem tem como ser neutro. Mas não ser neutro não pode equivaler a doutrinação. O mesmo motivo que leva a rechaçar o projeto evangélico é aplicável à prática da esquerda. Se há valores a organizar o ensino fundamental e médio, que sejam universalistas e includentes – o humanismo, a ciência, a cidadania, a fraternidade e a preparação para o mercado –, e de maneira nenhuma o obscurantismo, a teologia e a revolução do proletariado.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

27 janeiro 2017

Historicidade para o progresso

Há uma frase de Karl Marx, repetida à exaustão, segundo a qual "as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos". Ela está logo no início do 18 Brumário de Luís Bonaparte e já assumiu o caráter de frase pop de todo indivíduo que quer exibir alguma atitude "crítica", "política", "engajada", "histórica" etc., incluindo aí intelectuais, professores universitários, doutores e assim por diante.

Em contraposição a essa frase de Marx, há uma outra, agora de Augusto Comte, muito mais interessante:

"Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado" (Augusto Comte, Apelo aos conservadores, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899, p. 135).

Progresso de verdade é isso - e pressupõe uma historicidade real. O resto é lenga-lenga para impressionar e causar sensação.

19 agosto 2011

Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

Para aquelas pessoas que fingem desconhecer o óbvio (evidentemente, quando se refere aos filhos e às religiões dos outros).

* * *

Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

19/08/2011 - 9h28

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Fernando* estava na aula de artes e tinha acabado de terminar uma maquete sobre as pirâmides do Egito. Conversava com os amigos quando foi expulso da sala aos gritos de “demônio” e “filho do capeta”. Não tinha desrespeitado a professora nem deixado de fazer alguma tarefa. Seu pecado foi usar colares de contas por debaixo do uniforme, símbolos da sua religião, o candomblé. O fato de o menino, com então 13 anos, manifestar-se abertamente sobre sua crença provocou a ira de uma professora de português que era evangélica. Depois do episódio, ela proibiu Fernando de assistir às suas aulas e orientou outros alunos para que não falassem mais com o colega. O menino, aos poucos, perdeu a vontade de ir à escola. Naquele ano, ele foi reprovado e teve que mudar de colégio.

Quem conta a história é a mãe de Fernando, Andrea Ramito, que trabalha como caixa em uma loja. Segundo ela, o episódio modificou a personalidade do filho e deixou marcas também na trajetória escolar. “A autoestima ficou muito baixa, ele fez tratamento com psicólogo e queria se matar. Foi lastimável ver um filho sendo agredido verbalmente, fisicamente, sem você poder fazer nada. Mas o maior prejudicado foi ele que ficou muito revoltado e é assim até hoje”, diz.

Antes de levar o caso à Justiça, Andréa tentou resolver a situação ainda na escola, mas, segundo ela, a direção foi omissa em relação ao comportamento da professora. A mãe, então, decidiu procurar uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência contra a docente. O caso aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Se for condenada, o mais provável é que a professora tenha a pena revertida em prestação de serviços à comunidade.

Já a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec), responsável pela unidade, abriu uma sindicância administrativa para avaliar o ocorrido, mas a investigação ainda não foi concluída. Por essa razão, a professora – que é servidora pública – ainda faz parte do quadro da instituição, “respeitando o amplo direito de defesa das partes envolvidas e o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Rio de Janeiro”, segundo nota enviada pelo órgão. A assessoria não informou, entretanto, se ela está trabalhando em sala de aula.

A história do estudante Fernando, atualmente com 16 anos, não é um fato isolado. A pesquisadora Denise Carrera conheceu casos parecidos de intolerância religiosa em escolas de pelo menos três estados – Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. A investigação será incluída em um relatório sobre educação e racismo no Brasil, ainda em fase de finalização.

“O que a gente observou é que a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana. Dessa forma, a gente entende que o problema está muito ligado ao desafio do enfrentamento do racismo, já que essas religiões historicamente foram demonizadas”, explica Denise, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), que reúne movimentos e organizações da sociedade civil.

Denise e sua equipe visitaram escolas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Ouviram de famílias, professores e entidades religiosas casos que vão desde humilhação até violência física contra alunos de determinadas religiões. E, muitas vezes, o agressor era um educador ou membro da equipe escolar.

“A gente observa um crescimento do número de professores ligados a determinadas denominações neopentecostais que compreendem que o seu fazer profissional deve ser um desdobramento do seu vínculo religioso. Ou seja, ele pensa o fazer profissional como parte da doutrinação, nessa perspectiva do proselitismo”, aponta a pesquisadora.

Alunos que são discriminados dentro da escola, por motivos religiosos, culturais ou sociais, têm o processo de aprendizagem comprometido. “Afeta a construção da autoestima positiva no ambiente escolar e isso mina o processo de aprendizagem porque ele se alimenta da afetividade, da capacidade de se reconhecer como alguém respeitado em um grupo. E, na medida em que você recebe tantos sinais de que sua crença religiosa é negativa e só faz o mal, essa autoafirmação fica muito difícil”, acredita Denise.

Para ela, a religião está presente na escola não só na disciplina de ensino religioso. “Há aqueles colégios em que se reza o Pai-Nosso na entrada, que param para fazer determinados rituais, cantar músicas religiosas. Criticamos isso no nosso relatório porque entendemos que a escola deve se constituir como um espaço laico que respeite a liberdade religiosa, mas não que propague um determinado credo ou constranja aqueles que não têm vínculo religioso algum”, diz.

*O nome foi alterado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

31 maio 2010

Criticidade de manual

Artigo publicado em 31.5.2010, no jornal Gazeta do Povo (Curitiba, n. 29 421, p. 2); o original pode ser lido aqui.


*   *   *

Criticidade de manual

Na realidade pedagógica brasileira inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e baseada em interesses facciosos.

A recente introdução da Sociologia no ensino médio, embora segundo alguns seja um avanço para a “reflexão social crítica”, também apresenta um sério risco de criar distorções intelectuais e políticas. A Sociologia, ao contrário de outras disciplinas, como a Matemática ou a Biologia, trata diretamente da organização da nossa sociedade; o que se ensinar em suas aulas terá consequências claras, embora não mecânicas nem imediatas, para a vida coletiva. Dessa forma, problemas em seu ensino resultam em sérios problemas sociais.

Deixemos claro, antes de mais nada, que não advogamos uma ciência “neutra”, asséptica, que se encastele nos bancos escolares e que, no fundo, não tenha serventia social alguma: o que nos preocupa, ao contrário, é que essa disciplina sirva para difundir preconceitos interessados, à direita e/ou à esquerda, isto é, dos marxistas, dos liberais ou dos católicos. Ao difundir preconceitos teóricos, essa disciplina pode legitimar perspectivas e rejeitar outras, ao sabor das conveniências e dos interesses.

Não afirmo que isso seja a regra: mas, por um lado, a implantação da Sociologia no Ensino Médio está apenas no início (ou seja, há tempo de sobra para tais distorções firmarem-se). Por outro lado, já temos à disposição exemplos clamorosos que confirmam os temores: basta ver a proposta de diretrizes para Sociologia do estado do Rio de Janeiro (cf. aqui: http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=1587〈=pt-br).

Vejamos outro exemplo, mais sutil e, por isso, mais daninho. No vestibular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) de 2009, víamos a seguinte questão na prova de Sociologia: “Sobre o tema conflito social, assinale o que for correto”; entre as várias opções, havia a seguinte: “08) Auguste Comte define o conflito como propulsor da mudança social em direção ao Estado positivo”. O formulador da prova considerava que essa afirmação está errada – mas, ao contrário do afirmado pelos preconceitos (interessados ou não) e repetido pelos manuais, isso é incorreto.

A perspectiva-padrão (e única) dos manuais é que a teoria comtiana é a favor do “consenso”, a partir de um organicismo, em que todos os indivíduos e instituições têm de ser pacíficos e obedientes à ordem social vigente; assim, ele seria o arquiconservador, a que se deve opor o “progressivismo” da revolução e dos “conflitos”. Ora, deixando de lado a ideologia partidária implícita nessa visão, o fato é que – como minha tese de doutorado em Sociologia Política foi, precisamente, sobre a teoria sociopolítica de Augusto Comte – posso afirmar com segurança que essa teoria não é 1) contra o “conflito”, 2) nem organicista, 3) nem a favor do status quo 4) nem “conservadora”.

Recentemente, colaborei na elaboração da apostila do Colégio Positivo para a disciplina de Sociologia no ensino médio, redigindo a parte relativa a Comte: sem dúvida que abordei o tema acima. Todavia, essa é apenas uma única apostila – mesmo que seja uma apostila adotada em centenas de escolas Brasil afora –; outra coisa é a realidade pedagógica brasileira, em que inúmeros temas são tratados de maneira rasteira, estereotipada e, como vimos, baseada em interesses facciosos; ainda outra coisa é a realidade dos vestibulares, que seguem os mesmos preconceitos e erros, seja voluntariamente, seja involuntariamente.

Como dissemos há pouco, o exemplo acima é sutil, mas seus efeitos intelectuais e práticos não o são. O resultado disso tudo é desastroso sob qualquer perspectiva: os alunos dos manuais são deseducados, os vestibulares incentivam o erro e, no meio do caminho, quem aprender corretamente os conceitos sociológicos poderá ser apenado devido aos estereótipos acadêmicos e políticos.