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02 dezembro 2019

Gazeta do Povo: Quais tradições dos conservadores?

O artigo abaixo foi publicado na Gazeta do Povo em 28.11.2019. O original pode ser lido aqui.

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Quais tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje?

Não é segredo para ninguém que os conservadores têm o poder no Brasil, hoje; esses conservadores identificam-se como tais, especialmente no que se refere aos “costumes” e, acima de tudo, em sua oposição à “esquerda”, no “antipetismo”. Mas, além da autoidentificação – isto é, de um certo rótulo autoimpingido – e da negação de uma perspectiva sociopolítica, o que é que define, de maneira afirmativa e substantiva, esses conservadores no Brasil?

Essa não é uma pergunta secundária ou desprezível; ela exige que se apresente de maneira clara os princípios que constituem uma determinada visão de mundo e a partir da qual se realiza uma atividade política. Mais do que isso, vale notar que um rótulo por si só não quer dizer muita coisa; no limite, é apenas uma casca para um conteúdo a ser determinado. Além disso, por si só, a oposição a algum grupo intelectual e sociopolítico não evidencia muita coisa, pois limita-se a negar e não a afirmar e, de qualquer maneira, essa mera oposição pode juntar grupos que, de outra forma, estariam em campos muito, muito diferentes.

Uma primeira resposta é esta: os conservadores valorizam a tradição. Mas qual tradição? No caso específico do Brasil, a resposta mais fácil é: a tradição católica. Isso ainda não resolve o problema; deixando de lado a distinção entre a “igreja conservadora” e a “igreja progressista”, o fato é que existe um catolicismo do alto clero e outro do baixo clero, sem contar as inúmeras clivagens representadas pelas ordens – os jesuítas são diferentes dos franciscanos, que são diferentes dos carmelitas, que são diferentes dos mais recentes carismáticos etc. Também há diferentes possíveis “aplicações” da religião, no sentido de que alguns católicos, como católicos, são mais favoráveis à ação política, outros buscam constituir um corpo de laicato, outros preferem ações “de base”, outros são mais litúrgicos e assim por diante.

No conservadorismo brasileiro atual há uma dificuldade adicional da maior importância quando se define o conservadorismo pela tradição católica: o fato simples e direto de que uma parcela minoritária, mas numericamente crescente e politicamente agressiva, não é católica, mas evangélica. Embora católicos e evangélicos definam-se genericamente como “cristãos”, os elementos que os separam são muito mais numerosos que os que os unem. Para começar, excetuando-se talvez a Assembleia de Deus, os demais evangélicos que despontam na política e que mobilizam o atual conservadorismo brasileiro – gozando em particular da simpatia da família Bolsonaro e de alguns ministros de Estado – são igrejas relativamente novas, ou seja, são qualquer coisa menos “tradicionais”. Em segundo lugar, enquanto o catolicismo brasileiro desde sempre é fortemente influenciado pelas determinações da Santa Sé e tem um caráter transnacional, os evangélicos brasileiros têm uma origem associada a pregadores norte-americanos e não manifestam o esforço católico de “unidade na diversidade”. Existem diversos outros elementos, é certo; mas o que vale notar aqui é que católicos e evangélicos, tão heterogêneos entre si, unem-se apenas graças à afirmação de um vago “cristianismo” – que esvazia as doutrinas e as igrejas de seus conteúdos específicos – e, de modo mais importante, no antipetismo e na oposição à “esquerda”.

As diferentes origens de católicos e evangélicos levam-nos também a refletir sobre quais seriam as tradições brasileiras a que eles fazem referência. Afinal, o que seria uma “tradição”? Podemos entendê-la como hábitos persistentes, existentes desde há muito tempo; ora, o conservadorismo brasileiro afirma que seria necessário “retomar as tradições”, do que se depreende que determinados hábitos longevos foram suspensos; em tal suspensão, o peso moral e histórico das tradições diminui, não há dúvida. Mas isso nos leva a refletir sobre quais seriam os hábitos longevos próprios ao Brasil. Sendo bastante polêmico, aqui a escravidão durou bem mais de 350 anos, enquanto a liberdade de todos os cidadãos tem pouco mais de 130; enquanto vigeu, sem dúvida a escravidão foi “tradicional”. O apoio-controle do Estado sobre a Igreja Católica, específico do padroado, durou também vários séculos, enquanto a laicidade do Estado não tem nem 130 anos. No caso particular da laicidade, vale notar que enquanto o catolicismo foi a religião oficial de Estado, não havia liberdade religiosa (no Brasil Colônia) e apenas os luteranos, os calvinistas e, no fim do II Império, os positivistas eram tolerados – entre muitos outros, os evangélicos eram desprezados e rejeitados.

Não duvido de que os exemplos acima são polêmicos para o público conservador, mas eles não são anedóticos. Vinculando-se à liberdade de crença e ao fim da escravidão estão a República e a igualdade perante a lei, bem como o direito ao voto: a República tem 130 anos e a isonomia e o voto têm sido ampliados aos poucos desde 1889, com o fim do voto censitário em 1890, a instituição do voto feminino em 1934 e do voto de analfabetos em 1988. O que devemos considerar como tradicional aí, para ser valorizado pelo conservadorismo? A sociedade de castas monárquica (350 anos) ou a isonomia republicana (130 anos)? A liberdade de expressão foi afirmada em 1889 e durou até 1937; depois voltou em 1946 para ser restringida (duramente) em 1964 e, ainda mais, em 1968, voltando apenas após 1979, para que se transformasse em “cláusula pétrea” em 1988. Durante a República, a liberdade de expressão durou bem mais que a censura e a repressão; ainda assim, temos que perguntar: o que seria “tradição” nesse caso?

Do ponto de vista econômico e de política internacional, a variedade de “tradições” não é menos importante. A República – novamente ela! – proclamou a fraternidade universal, o fim das guerras como ideal e a busca do arbitramento para solução de controvérsias; durante a I República afirmava-se o liberalismo econômico mas o Estado constantemente protegia a indústria, com vistas ao desenvolvimento, e após 1930 o desenvolvimento econômico, social e político tornou-se política pública, com a inclusão e a proteção dos trabalhadores. Aliás, a proteção aos trabalhadores como policy é uma preocupação que se iniciou em 1930 e que está de acordo com o catolicismo, mas que se distancia radicalmente do individualismo evangélico. Até há pouco tempo, a noção de “Ocidente” era encarada no Brasil como sinônima de “universalismo”; da mesma forma, as negociações internacionais e o multilateralismo tornaram-se parte da tradição nacional em política e comércio internacional. Rejeitar o multilateralismo e a arbitragem, estimular conflitos internacionais, incentivar o individualismo e largar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará – isso integra alguma tradição brasileira?

As indagações e os comentários acima não visam a denegrir conservadores, católicos ou evangélicos. Bem ao contrário, são um esforço – um pedido, na verdade – para que os conservadores brasileiros atuais deixem de lado sua agenda negativa (antipetismo, rejeição à esquerda) e passem a definir de maneira afirmativa uma agenda; que deixem de dizer o que não querem e passem a indicar o que desejam, em particular o que desejam conservar. Não se trata aqui de atribuir “tradições” à direita ou à esquerda, a católicos, a evangélicos, a comunistas, a militaristas, a pacifistas: em meio a uma pluralidade de tradições brasileiras, trata-se de definir o que deve ser preservado – e, portanto, o que deve ser deixado de lado.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política (UFSC).

26 outubro 2019

Gazeta do Povo: "Conservadores brasileiros rumo ao desastre"

O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.

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Os conservadores brasileiros rumo ao desastre

Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.

Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo sem dúvida o desejo de manter o status quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.

O que importa notar do que se vê acima é que o conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos (!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo, assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.

O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que, aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo, são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas mentais.

Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram especialmente sectários.

Elementos básicos da tradição ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo, o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações e fake news, sugerindo que em ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do Ministro da Educação, não há nada de tolerância, de respeito, de “agree to desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a própria doença.

Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de “direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações, são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.


Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e Sociólogo da UFPR.

12 setembro 2019

Negação do aperfeiçoamento humano como crítica ao Positivismo

A citação abaixo oferece uma explicação prévia para a quantidade enorme de erros e distorções de que o Positivismo é vítima. Esse comentário de Augusto Comte é verdadeiramente lapidar e resume tanto o programa do Positivismo quanto o procedimento adotado pelos "críticos"; ele foi feito por A. Comte em uma carta a seu discípulo, o médico Georges Audiffrent (1823-1909), em meados de 1855.

"On hésitera toujours à se déclarer ouvertement contre une doctrine qui perfectionne autant le sentiment que la raison et l'activité".

("Sempre se hesitará a declarar-se abertamente contra uma doutrina que aperfeiçoa tanto o sentimento quanto a razão e a atividade".)

(Carta de Augusto Comte a Georges Audiffrent, 10 de março de 1855; in: Augusto Comte, Correspondance générale et confessions, t. VIII: 1855-1857; Paris, J. Vrin, 1990, p. 34.)

De alguns anos para cá há publicistas extremamente famosos atualmente, em particular no Brasil e que se definem como "conservadores" e "direitistas" - gente como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé -, que se comprazem em ser contra o politicamente correto e contra o altruísmo, a generosidade, o pacifismo, a racionalidade etc. A despeito da "incorreção política" de tais publicistas, o fato é que, no fundo, eles acreditam, sim, no altruísmo, no aperfeiçoamento moral e assim por diante: ocorre apenas que eles negam essa possibilidade a seus adversários, mas (mesmo que secretamente) concedem-na às suas próprias preferências filosóficas.

Ora, o Positivismo baseia-se na afirmação da perfectibilidade humana: para os positivistas, é possível ao ser humano melhorar (ser mais altruísta e menos egoísta, ser mais racional e mais sintético, ser mais convergente). Mais do que isso: para os positivistas, é necessário que nos aperfeiçoemos (e, para isso, o Positivismo indica os inúmeros meios e procedimentos adequados).

Assim, deixando de lado os retrógrados que gostam de estar na moda e de aparecer nos telejornais do horário nobre, ninguém em sã consciência é contra a possibilidade e a necessidade de aperfeiçoamento humano. Como o Positivismo é radicalmente favorável a isso, o único meio de opor-se a ele é falseando sua proposta de aperfeiçoamento - daí as mais variadas e disparatadas críticas, formuladas pelos liberais, pelos marxistas, pelos católicos, pelos conservadores, pelos autoritários.
Augusto Comte.

Georges Audiffrent.
Fonte: http://cths.fr/an/savant.php?id=120841.

01 abril 2018

Gazeta do Povo: "Conservadores à deriva no Brasil"

Artigo publicado em 1º de abril de 2018 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

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Conservadores à deriva no Brasil

Os conservadores brasileiros estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém, sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas... o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.

Entrementes, deixarei para comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em particular.

Historicamente, os conservadores começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo, a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal, direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).

Como se vê, o conservadorismo filosófico combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história, para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.

De qualquer maneira, a relação com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe notar que é de propósito que não estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e “progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se tornou famoso (Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da “esquerda” seria a promoção da igualdade. Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco? Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula a esquerda ao progresso, isto é, à concepção de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e (2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do “conservadorismo” e/ou do reacionarismo.

Assim, o problema que Bobbio não quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças (ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século XIX.

A concepção de que a esquerda seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais – tudo isso é público e notório.

O problema que se verifica no Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente nisso: em uma reação. São idéias e atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito; todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais –; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade, fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e desprezam a fraternidade.

Se a liberdade é a condição para o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas, tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade. Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade” que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas, além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Em nome da igualdade social, a esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.

Voltemos ao tema do conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados “conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.

Dito isso, desde 2013, uma estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao progresso e à esquerda.

Entretanto, essas diversas associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista: os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados; em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades, condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.

Em reação ao ensino cívico, civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a 1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser um projeto político, como no caso de Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político (seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel, durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.

O resultado das reflexões acima – das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados “conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais, morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes – em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos dois lados está efetivamente na direção correta.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.

11 março 2009

Contra os pós-modernos

Escrevi há algumas semanas algumas anotações contra os pós-modernos, no duplo esforço de identificar os principais ramos dessas formas aberrantes de pensamento e suas sociogêneses (como dizia o Norbert Elias). Essas anotações não são finais, mas como tiveram uma certa extensão e não estão totalmente desarticuladas, submeto-as à apreciação pública.

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As críticas feitas à modernidade reúnem uma série de preconceitos, idéias e valores que são extremamente particulares, a despeito das afirmações – literalmente metafísicas – de sua universalidade; além disso, os procedimentos pós-modernos são “revolucionários” conforme entendido por Augusto Comte, isto é, meramente destruidores, incapazes de propor qualquer idéia nova e construtora – e, como se sabe, rejeitando qualquer pretensão a isso. São duas grandes correntes, duas “famílias” intelectuais: ou, sendo mais preciso, são dois grandes ramos da mesma família, toda ela herdeira da filosofia alemã do final do século XIX, com as características intelectuais desse período: romantismo exacerbado, mal-estar fin-de-siècle, irracionalismo, idealismo.

Os dois ramos são: de um lado, a tradição antimoderna alemã, que teve seu grande iniciador em Nietzsche; do outro lado, os pós-modernos e os ultra-relativistas, em particular os franceses, mas também os norte-americanos.

No que se refere ao primeiro ramo, o problema é que atribui à humanidade como um todo os males específicos de seu próprio país, de sua própria civilização em um momento específico: a Alemanha nas décadas imediatamente seguintes à unificação bismarckiana. As enormes e profundas mudanças por que passava a sociedade alemã nesse período influenciaram a intelectualidade, refletindo-se em um mal-estar intelectual e social. Minha hipótese é a seguinte: a Alemanha teve que se modernizar às pressas, no que chamam de “via prussiana”; mas essa modernização foi principalmente material, isto é, econômica, com a industrialização acentuada e as mudanças sociais decorrentes, em particular o arrojado crescimento do proletariado urbano-industrial, do sindicalismo e das formas de pensamento associadas a eles; secundariamente, a modernização material consistiu na criação de um Estado nacional alemão.

Entretanto, do ponto de vista intelectual e social, a Alemanha não saíra da Idade Média e do feudalismo: aliás, a “via prussiana” foi um meio de forçar a evolução alemã para além do feudalismo, no que se refere à economia e à política. Do ponto de vista intelectual, permanecia o forte idealismo alemão, com sua rígida separação entre Kultur (“cultura”, isto é, aquilo do “espírito”) e Zivilitation (“civilização”, isto é, o “material”, o que inclui a tecnologia[1]), a que se somava o romantismo saudosista da Idade Média e dos cavaleiros teutões. Ao contrário do que ocorrera, por exemplo, na França, em que o romantismo medievalista levou a um esforço para atualizar a Idade Média (na verdade, foram esforços para atualizar a Antigüidade Clássica e, até certo ponto, o Antigo Regime), na Alemanha ocorria uma nostalgia retrógrada, que literalmente queria voltar à Idade Média. Esse romantismo, além disso, ao identificar as filosofias “modernas” com as Luzes (isto é, com o Iluminismo) e com o racionalismo negador da Kultur e da “verdadeira alma alemã”, assumia um forte caráter irracionalista.

Do ponto de vista social, ocorriam tensões equivalentes aos problemas intelectuais. À modernização econômico-política não correspondeu a modernização social, conservando-se os antigos hábitos e valores feudais da honra e do orgulho nacional[2]; mas, ao mesmo tempo, a disputa econômico-política entre os países acontecia (basta pensar na partilha da África, em 1885, no Congresso de... Berlim) e a luta de classes fazia-se presente. As antigas classes dominantes alemãs (incluindo aí as classes médias) mantinham seus valores e suas formas de pensar, mas percebiam que novos valores, novas formas de pensar e de agir eram mais adequados aos novos tempos – e não conseguiam lidar com a própria obsolescência.

O resultado disso foi o surgimento do mal-estar fin-de-siècle, em que várias idéias negadoras do Iluminismo, não necessariamente coerentes entre si, desenvolveram-se: a “decadência da cultura”, o ultra-idealismo, o primado da força e da vontade, o irracionalismo puro e simples. Toda uma geração alemã ou de língua alemã padeceu desses males: não apenas Nietzsche (que foi um dos seus grandes promotores, na verdade), mas também Max Weber, G. Luckács, Franz Kafka[3] e até mesmo Robert Musil[4].

Essas características já foram indicadas por vários autores a propósito de outras questões: Norbert Elias, sobre o processo civilizador; Hannah Arendt, sobre o surgimento do nazismo. Entretanto, convém notar que esses elementos mantiveram-se como uma espécie de lastro da filosofia alemã, que se manteve não apenas na primeira metade do século XX – e de que um dos seus principais resultados foi o nazismo – mas ultrapassou 1945, por meio do pensamento de Heidegger, da Escola de Frankfurt (em particular Adorno e Horkheimer) e mesmo de Hannah Arendt e Leo Strauss. O caso de Heidegger é fácil de perceber: sua metafísica do “ser” e do “esquecimento do ser” é uma forma rebuscada de colocar-se contra a modernização; aliás, a partir de uma referência marxista, Adorno e Horkheimer expressaram a mesma revolta contra a modernidade, ao criticarem não apenas as insuficiências como também os “embustes” (“dialéticos”) da Razão iluminista[5]. Por fim, Hannah Arendt e Leo Strauss criaram notabilizaram-se no campo da Teoria Política, entre outros motivos, por terem defendido a existência de uma “tradição” do pensamento ocidental que se degenerou ao longo dos séculos e, em particular, na época do Iluminismo.

Os autores que teorizam a “modernidade” adotam como referências intelectuais esse conjunto de pensadores alemães do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O diagnóstico que apresentam para a modernidade é o mesmo que o de seus inspiradores: irracionalismo, mal-estar social e intelectual (e também moral ou “espiritual”), crise de valores; acima de tudo, há a desconfiança radical a respeito da racionalidade humana (mesmo que parcial, “localizada”) e dos resultados da aplicação técnica dos conhecimentos humanos sobre a realidade[6].

Essa forma de pensar é altamente equivocada. Pode-se argumentar que ela oferece a interessante perspectiva de duvidar da ciência, de modo a buscar controlá-la, humanizá-la e cuidar com cuidado e atenção da aplicação prática de seus princípios, seja em termos tecnológicos, seja em termos estritamente políticos. De fato, essas são posições intelectuais e políticas importantes, mas o fato é que a crítica à modernidade visa a negar a modernidade e qualquer papel positivo que ela porventura tenha. Assim, mais que a controlar a ciência, a crítica à modernidade visa a negar e a combater a ciência – propondo em seu lugar, como vimos, seja uma rebuscada metafísica do “ser”, seja o claro retorno à teologia, seja, ainda, o voluntarismo beligerante da “vontade do poder”. Também se mantém, mesmo que de maneira subterrânea, a oposição antinômica entre Kultur e Zivilitation, de tal sorte que não é possível nenhuma síntese em que a civilização incorpore em si os desenvolvimentos do espírito. O resultado disso é uma negatividade permanente e profundamente daninha para o ser humano, que se vê condenado a uma divisão moral e espiritual eterna.

O contraste das Alemanhas guilhermina, de Weimer e nazista com a França da III República é altamente instrutivo. Em primeiro lugar, o conceito francês de civilisation engloba tanto aspectos “espirituais” quanto “materiais”; os antropólogos poderiam perfeitamente afirmar que um sinônimo para ele é “cultura”. O desenvolvimento da civilisation engloba tanto questões materiais (econômicas e políticas) quanto intelectuais e morais (filosóficas, artísticas e científicas). Assim, embora possa haver descompassos entre os seus vários elementos, não há uma verdadeira e profunda oposição entre eles.

Enquanto os antimodernistas alemães exercitavam retóricas pessimistas, racistas, beligerantes[7], a França procurava realizar uma República laica e propícia à cidadania, com desenvolvimento econômico e social. Em particular, em 1885 a França instituiu o ensino primário laico obrigatório e, em 1905, realizou a completa separação entre Igreja e Estado. Após as comoções da Comuna de Paris, em 1871, o período mais conturbado politicamente da III República foi o do affaire Dreyfus, entre 1895 e 1905, que opôs a intelectualidade ao Exército, tendo como causa específica de disputa o nacionalismo xenófobo (antigermânico) e o anti-semitismo – exatamente os elementos que, cerca de 30 anos depois, alimentariam na Alemanha o nazismo. Todavia, ao contrário do fim da República de Weimar, de golpes de Estado à direita e à esquerda e da eclosão de uma guerra total mundial, o resultado na França foi o da republicanização do Exército, o que equivale ao fortalecimento da República. É importante insistir: a República na França era considerada um projeto a um só tempo político, econômico e social – mas também, e sobretudo, intelectual e moral. Em outras palavras, não é adequado atribuir à modernidade francesa a mesma negatividade radical que se atribui à modernidade alemã – e, portanto, não é adequado atribuir essa negatividade radical à modernidade tout court. Como, entretanto, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Horkheimer, Leo Strauss e Hannah Arendt (bem como seus êmulos) compartilham dessa negatividade, o resultado é que eles não são autores adequados a uma avaliação responsável da “modernidade”[8].

O segundo ramo antimoderno é antimoderno afirmando ser posterior à modernidade: são os “pós-modernos”. Evidentemente, há sérios problemas a respeito da caracterização teórica e mesmo empírica desse caráter posterior à modernidade, mas isso não interessa tanto agora, importando mais a forma como os pós-modernos negam a “modernidade”. Embora sua caracterização inicial da modernidade seja devida aos antimodernos alemães, essa corrente não assume um negativismo radical, preferindo rir a deprimir-se. Por quê “rir”? Porque o procedimento-padrão (preconizado ou realizado) é a ironia, é o deboche. A isso se somam o irracionalismo e o hiper-relativismo; o relativismo, em particular, é assumido não como um procedimento metodológico para permitir comparações entre sociedades ou traços culturais e generalizações, mas como um valor substantivo, em que qualquer graduação de sociedades ou de traços culturais é recusada. Nesse ramo há duas vertentes: a francesa e a norte-americana.

A vertente francesa busca a “desconstrução” das “categorias modernas”: em vez de propor novas categorias analíticas ou sintéticas; em vez de propor novas teorias capazes de refinar a compreensão das realidades cósmica e humana, o que se busca é a fragmentação cada vez maior, cada vez mais acentuada das descrições, que são permitidas a partir de perspectivas cada vez mais díspares (e “descentradas”, isto é, dando voz e vez aos não-ocidentais, aos não-homens, aos não-brancos e assim por diante – e nominalmente aos “não-científicos”). Ao mesmo tempo, as descrições habituais são substituídas por outras, em que sobressai, por saltar aos olhos, a característica da verborragia e do abuso das metáforas com ou do linguajar das Ciências Naturais. Derrida, Deleuze e Lacan são exemplos acabados dessa vertente.

A vertente norte-americana é menos irônica e muito mais sisuda; aceita vigorosamente o hiper-relativismo; recusa o eurocentrismo branco, macho, burguês e cientificista afirma a hiperpolitização da realidade e percebe apenas “interpretações” “interessadas” – o que dá azo à afirmação de que as realidades cósmica e social são “textos” a serem lidos. Entram nessa vertente todos os Cultural Studies, que aproximam fortemente a Sociologia, a Antropologia, a História, a Filosofia da Literatura – sem que se saiba o que é uma e o que é outra, sem que sejam nem Sociologia, nem Antropologia, nem História, nem Filosofia nem Literatura. Como disse Marshal Sahlins, os estudos feministas, identitários, da hegemonia e assim por diante entram nessa categoria. O que importa neles é afirmar o caráter dominador (“hegemônico”) das perspectivas totalizantes – necessariamente eurocêntricas, brancas, “machas”, burguesas e, claro, cientificistas – e, por outro lado, afirmar também a validade política, epistemológica e teórica das perspectivas fragmentárias, contra-hegemônicas e locais, que dão voz aos subalternos e dominados (e que não se caracterizam pelas características das perspectivas hegemônicas)[9].

Os resultados de ambos os ramos pós-modernos são variados. Poderíamos citar, todavia, os seguintes: anti-racionalismo; hiperpolitização da realidade (afinal, tudo é o conflito entre a hegemonia e a contra-hegemonia); fragmentação radical da realidade. Em particular, convém notar sérios problemas intelectuais e morais decorrentes da negação dos “discursos totalizantes”: quando menos para viver em sociedade, o ser humano carece de uma descrição do conjunto das realidades cósmica e social; a partir disso, é possível ter a coerência individual para cada um identificar-se como uma pessoa. Entretanto, “discursos totalizantes” são sintéticas, generalizantes e abstratas: os discursos pós-modernos aceitam apenas descrições altamente fragmentárias, localizadas e, por definição, empíricas; cada vez menos há “(todos) nós” e cada vez mais há “eu” e “nosso grupo específico”. Cada vez menos há concordância e ação conjunta, que vise a (alguma) harmonia social e cada vez mais há disputas e conflitos entre grupos e indivíduos hegemônicos e contra-hegemônicos; cada vez menos há confiança e respeito e cada vez mais há “denúncias” e enfrentamentos.

Faltou tratar da “sociogenêse” desse ramo antimoderno. Um problema evidente é que ele é relativamente jovem: possui no máximo 40 anos, por ter-se originado em meados dos anos 1960, o que dificulta a determinação de suas raízes. Mas, por outro lado, a literatura crítica a ele também é diminuta e de modo geral concentra-se em criticar as suas posições intelectuais (cf. SOKAL & BRICMONT, 2001; SAHLINS, 2004), sem aplicar a ele mesmo a Sociologia do Conhecimento que tão vorazmente aplicam aos demais, “modernos”.

No que se refere aos franceses – Deleuze e Derrida; até certo ponto, também Foucault – o irracionalismo parece-me ter a ver com um certo esgotamento intelectual do estruturalismo dos anos 1950 e 1960, a que se soma pura e simplesmente o fim do sentimento de urgência social das elaborações intelectuais. Mas, além disso, as revoltas de 1968 parece terem criado raízes intelectuais; as críticas que tais movimentos dirigiam aos “poderes constituídos” foram encaradas como devendo ser contra o racionalismo e a racionalidade; a crítica social que então se fazia passou para a Filosofia (e, daí, para as Ciências Humanas), sem outras preocupações além de serem “críticas” (o que, incidentalmente, revela com clareza o seu caráter metafísico, isto é, destruidor, no sentido comtiano)[10]. Mas é muito provável que nos próximos anos outros elementos surjam para explicar essas formas de pensamento (embora o respeito quase sagrado que 1968 tenha para grande parte da intelectualidade dificulte sobremaneira essa tarefa).

No que se refere à vertente norte-americana, talvez a explicação seja um pouco mais simples e mais rasteira. Em primeiro lugar, os norte-americanos são reconhecidamente “empíricos”, isto é, avessos às grandes generalizações e às grandes abstrações (como os franceses ou os alemães). Esse empirismo até meados do século XX foi canalizado pelo racionalismo, em que se buscavam explicações para a realidade social: a obra de Franz Boas é um bom exemplo disso. Entretanto, a partir da década de 1950 um mal-estar social e moral começou a difundir-se pelos Estados Unidos, desenvolvendo-se nos anos 1960 e resultando em fortes conflitos políticos, sociais e morais no final dessa década e no início da seguinte. Assim como na França – e até mesmo mais que lá –, a contracultura norte-americana também buscava pôr-se contra os “poderes estabelecidos”; mas enquanto na França isso se devia a um mal-estar difuso, a um radicalismo de esquerda no meio universitário e a anseios por mudanças no sistema de Ensino Superior francês, nos Estados Unidos a pauta política era mais específica, inobstante a idêntica presença de um mal-estar difuso entre a juventude: a Guerra do Vietnã, a campanha pelos direitos civis e contra a segregação racial, a evolução do movimento beatnik em movimento hippie.

Além disso, no caso específico dos Estados Unidos, houve dois outros fatores. Em primeiro lugar, nos anos 1950 a 1970 ocorreu o processo de descolonização da Ásia e da África: embora essas antigas colônias não fossem norte-americanas mas européias, a afirmação das perspectivas “pós-coloniais” foram rapidamente absorvidas pela academia estadunidense, especialmente devido ao caráter de refúgio dessa academia e também porque os Estados Unidos eram – como ainda são – a principal potência mundial. (Em si mesmas, as demandas pelas vozes pós-coloniais não negam a racionalidade e a “modernidade”, mas elas forneceram um elemento a mais na crítica ao “modo ocidental” de pensar.) Em segundo lugar, a geração baby boomer não compartilhava dos compromissos morais e políticos de seus pais e avós, o que equivale a dizer que os jovens dos anos 1960 e 1970 não aceitavam – pelo menos não com tanta facilidade – o compromisso de levar adiante a Guerra Fria e, mais especificamente, não estavam dispostos a arcar com os custos materiais e morais de tal compromisso[11].

O racionalismo e a “modernidade”, bem como a ciência de um modo geral, foram vistos como integrantes do “sistema” e como tais deveriam ser combatidos. Ao racionalismo, opor-se-ia o irracionalismo; ao autocontrole intelectual, um laxismo teórico e também moral; à ciência, as diversas formas “alternativas” de conhecimento; ao “sistema”[12], os discursos e as práticas “contra-hegemônicas”; às “narrativas totalizantes”, os “discursos fragmentários e locais”. O resultado foi que as análises sociais anteriores foram substituídas por “discursos” eminentemente “críticos”, que visam à “libertação” dos “povos e dos grupos oprimidos”, ao afirmarem que em caráter eterno há apenas lutas e disputas. Novamente, assim como no antimodernismo alemão, os resultados foram a fragmentação radical do discurso, a ininteligibilidade cósmica e social, a negação da simples racionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARON, R. 1999. As etapas do pensamento sociológico. Lisboa: Dom Quixote.

BREDIN, J.-D. 1995. O caso Dreyfus. São Paulo: Scritta.

BRUSEKE, F. J. 2001. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: UFSC.

DOMINGUES, J. M. 2002. Reinterpretando a modernidade. Imaginário e instituições. Rio de Janeiro: FGV.

ELIAS, N. 1994. O processo civilizador. V. I. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SAHLINS, M. 2004. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify.

SANTNER, E. L. 1997. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SOKAL, A. & BRICMONT, J. 2001. Imposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Record.



[1] A ciência teria um papel ambíguo, aí: as “Ciências do Espírito” (Sociologia, História, Letras, Filosofia, Direito etc.) entrariam na Kultur e as “Ciências Naturais” (Matemática, Física, Química, Biologia), na Zivilitation; como a tecnologia é mais facilmente desenvolvida a partir das Ciências Naturais, ela entraria na Zivilitation. As tentativas de desenvolver-se tecnologias a partir das “Ciências do Espírito” seriam, assim, degradações da sua idealidade e de sua nobreza.

[2] Claro que, nesse caso, na medida em que podia ser “nacional”, identificando-se com a Kultur em oposição à Zivilitation à la francesa ou às culturas “inferiores” dos povos da Europa Centro-Oriental, como os poloneses.

[3] Uma questão sociológica que merece investigação é a seguinte: Kafka era tcheco (na verdade, austríaco, naquela época) e não alemão. Como o seu mal-estar é muito semelhante ao dos autores alemães, seria interessante investigar até que ponto a “civilização germanófona” no seu conjunto atravessava uma crise. A mesma coisa pode ser dita de Musil, que era vienense.

[4] Esses são pensadores “respeitáveis”, mas se analisarmos com um pouco de atenção as biografias de Adolf Hitler, de Joseph Goebbels e de vários outros líderes nazistas, perceberemos os mesmos traços intelectuais e morais (alguns diriam “espirituais”): receberam com grande júbilo guerreiro e “vital” a I Guerra Mundial (vista como forma de fazer valer a “força da cultura alemã” no exterior), sofreram grandes abalos morais com a derrota no conflito e ficaram vagando por diversos anos, de emprego em emprego, à busca de satisfação para seus problemas existenciais e de solução – via bodes expiatórios – para os problemas econômico-sociais da Alemanha.

[5] Aliás, Adorno é ainda mais exemplar desse irracionalismo antimoderno, pois no final da vida deixou de lado a metafísica de origem marxista para assumir uma clara teologia (de inspiração provavelmente protestante).

[6] Em outras palavras, é a velha desconfiança em relação à Zivilitation.

[7] É bom insistir: retóricas cujas desastrosas conseqüências entre 1914 e 1945 são por todos conhecidos.

[8] Aliás, o caráter especificamente alemão dessa negatividade antimoderna é confirmado por toda a literatura que trata da “modernidade” e de seus “males”. Não apenas os principais de seus autores, como vimos, foram alemães, como também toda a literatura crítica da “modernidade” nessa tradição negativista refere-se à Alemanha, ao pensamento alemão e ao mundo alemão (cf., por exemplo, SANTNER, 1997; BRUSEKE, 2001; DOMINGUES, 2002) – mas sem se referir, por exemplo, à França ou à Inglaterra no mesmo período, embora estendam a avaliação crítica a esses países, cujas características sociais e morais eram profundamente diversas. Nessa litania antimoderna e negativista, o mais espantoso é que não tenha havido comentários contrários a ela no sentido indicado aqui: assim, a discussão de modo geral concorda com o “diagnóstico” da “modernidade” proposto por diversos daqueles que prenunciaram e até mesmo colaboraram especificamente com os horrores dessa modernidade – o que, por si só, já é revelador de que há alguma coisa errada nos diagnósticos sociológicos e exige, por sua vez, análise específica.

[9] Embora eu não tenha citado explicitamente nesse grupo – que, por óbvio, inclui feministas, estudiosos das identidades, das “tradições” etc. ­–, é importante incluir aí Richard Rorty e todos os seus pragmatistas, “antifundacionalistas” e que-tais.

[10] Sahlins, de um modo um tanto sarcástico, afirma que um dos motivos para o surgimento e o desenvolvimento dessas correntes nos Estados Unidos – mas a que poderíamos muito bem ajuntar na França – é simplesmente o tédio intelectual, isto é, pura e simplesmente o modismo.

[11] É claro que é outra questão saber se esses custos eram de fato aceitáveis: como se sabe, a Guerra do Vietnã ultrapassou largamente as expectativas iniciais de mortes e seu resultado foi bastante diverso do inicialmente esperado. Ainda assim, o contraste entre as perspectivas da juventude norte-americana face à II Guerra Mundial e à Guerra da Coréia, por um lado, e à Guerra do Vietnã, por outro lado, é revelador da mudança de sensibilidade política e intelectual que estamos sublinhando.

[12] A expressão é literal e, por mais espantoso que pareça, fez grande fortuna: Lyotard usou a palavra “sistema” como uma categoria sociológica e Habermas, ao defender o “mundo da vida”, faz pouco mais que isso.