25 janeiro 2007

Impostos, Estado e... Positivismo?!

O artigo “Impostos e imposturas”, escrito pela Profª Maria Sylvia Carvalho Franco e publicado na Folha de S. Paulo de 25.1.2007, a respeito da necessária expansão da carga tributária para financiar o recém-anunciado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) merece algumas reflexões. De fato, conforme argumenta a autora, parece fazer sentido que um “Estado forte” – isto é, no sentido em que a autora entende a expressão, um Estado autoritário – exige uma pesada tributação sobre a sociedade, bem como parece clara a preferência do Presidente Lula por um Estado grande, pesado e devidamente aparelhado, com base em critérios ideológicos.
Todavia, algo chamou-me a atenção: a referência ao Positivismo, que é estranha, em diversos sentidos.
Em primeiro lugar, a autora afirma que o Positivismo influenciou de maneira decisiva o aumento do poder Executivo no Brasil, citando uma carta que Pierre Laffitte enviou a Benjamin Constant nos alvores da República, orientando-o a manter presidencialista o Estado brasileiro e evitando a ação parlamentar. O estranho é que não há relação entre, por um lado, esse conselho de Laffitte e, por outro lado, o aumento do poder Executivo e autoritarismos no Brasil. Afinal, (1) o Positivismo foi um dos grandes defensores do federalismo radical que vigeu no país entre 1889 e 1930, além de pregar um Estado “enxuto” e (2) ao contrário dos grupos liberais, de inspiração estadunidense, e dos variados grupos católicos – e por vezes em oposição a esses grupos –, os positivistas bateram-se resolutamente pelas liberdades públicas e sociais: liberdades de pensamento, de expressão, de organização; separação entre Igreja e Estado; legislação social: direito de greve, direitos indígenas, previdência social etc.
Em segundo lugar, na Filosofia Política de Augusto Comte o que se contrapõe ao Estado – que deve, sim, ser forte – não é o parlamento, supostamente “casa de representação do povo”, mas a própria sociedade civil. Para contrapor-se a um Estado forte, é a própria sociedade civil que deve ser forte – e a garantia disso é que haja uma rigorosa e escrupulosa separação entre Igreja e Estado, de modo que a sociedade civil possa efetivamente exercer a crítica à atuação do Estado. Parece-me fora de discussão que não cabe falar em “autoritarismo” em um projeto sócio-político desse tipo.
Em terceiro lugar, em seus comentários subjaz a idéia de que “Estado forte” é sinônimo de “Estado autoritário”. Não é necessário despender muito tempo comentando como essa afirmação é, na melhor das hipóteses, simplesmente gratuita.
Em quarto lugar, subjaz igualmente em seus comentários o pressuposto de que a existência do parlamento é garantia das liberdades públicas. A “pesquisa histórica”, todavia, não aponta correlação positiva entre parlamento e liberdades públicas: parlamentos podem coexistir com a inocorrência das liberdades públicas, com a coibição dessas liberdades e, de maneira oposta ao seu comentário, podem também ser a fonte de profunda corrupção política, econômica e social. Sem me deter em exemplos históricos, basta pensar na atual situação do Congresso Nacional brasileiro: pode-se com seriedade falar que ele favorece as liberdades públicas? Afirmar que a atual degradação do parlamento nacional é devida ao Presidente Lula não muda nada a (falta de) responsabilidade do Congresso Nacional.
Em quinto e último lugar, simplesmente não é razoável referir-se ao Positivismo para criticar o Presidente Lula, o Partido dos Trabalhadores ou o recém-anunciado PAC: afinal, qual a relação entre aquele e estes? A resposta é simples e direta: nenhuma.
Assim, infelizmente, ansiosa em criticar nosso atual Presidente da República, a autora simplesmente repete os lugares-comuns e as distorções que as várias historiografias nacionais (liberal, católica e/ou marxista) difundiram sobre o Positivismo. Aliás, não por acaso, a autora vincula-se a correntes liberais e católicas.
No final das contas, é intelectual e politicamente desanimador constatar que uma “formadora de opinião”, querendo fazer uma crítica a políticas públicas, resolve "matar dois coelhos com uma cajadada" e baseia-se em mitos profundamente arbitrários para realizar essa crítica. Sinal da qualidade de nossos "formadores de opinião".

24 janeiro 2007

A revista Galileu e “O evangelho dos novos ateus”

Li a matéria (de capa) da revista Galileu de janeiro de 2007, intitulada “O evangelho dos novos ateus” e fiquei espantado com a baixa qualidade do texto. Ao longo de toda a matéria há uma sensível pré-disposição contrária aos cientistas e filósofos agnósticos e ateus militantes, no sentido de considerá-los anormais, errados ou tolos – ou, pior, fanáticos. Subjacente à matéria está a premissa de que a crença em deus – em qualquer deus, diga-se de passagem – é correta, isto é, moralmente boa e empiricamente aceitável; mais ainda, subjaz a premissa de que a mera crença é importante e que quem põe em questão a fé das pessoas nas divindades não presta ou é insano.
Assim, por exemplo, o subtítulo da matéria é “Em contrapartida ao fundamentalismo cristão que assola o Ocidente, um grupo de cientistas ergue a bandeira da fé cega na ciência”. À parte o fato de que o fundamentalismo religioso (isto é, teológico) assola não apenas o Ocidente mas também o Oriente (em sua porção islâmica), o fato é que não faz sentido a expressão “fé cega na ciência”. Essa expressão é um oximoro tanto lógico quanto “empírico”, porquanto a ciência baseia-se não na “fé cega”, mas na crítica sistemática.
Se há fé cega em algum lugar, é na teologia, que, sendo filosoficamente absoluta, rejeita discussões e dúvidas a respeito de suas afirmações; os discordantes, como sabe, eram e são mortos como ímpios e pecadores. Essa, aliás, é a linha divisória entre a ciência e a teologia, como já indicava Augusto Comte: a ciência é relativa, é tentativa; seus esforços são parciais e assumidamente provisórios. Ao contrário do que ocorre com a teologia, pôr em dúvida uma afirmação científica não condena ninguém à morte[1]. Afirmar que esses novos agnósticos e ateus militantes professam uma “fé cega na ciência” é misturar coisas completamente diferentes ou não entender o que cada uma – ciência e teologia – tem de específico e de particular.
Na página 34 citam-se três cientistas que acreditavam em deus: Kepler, Newton e Einstein. Ora, à parte os fatos de que a crença de Einstein em deus é discutível e de que nem Kepler nem Newton podiam, em termos sociológicos, não acreditar em deus, a questão é que esse texto é mal-intencionado e visa explicitamente a confundir os leitores. Kepler, Newton e Einstein acreditavam em deus? Pois bem: não somente eles auxiliaram poderosamente a erodir essa crença como houve inúmeros outros, em particular a partir de meados do século XVIII, que não acreditavam e propuseram uma ética completamente humana. Não apenas físicos, mas também filosófos, matemáticos, químicos, biólogos, sociólogos, moralistas, políticos e cidadãos comuns: Hume, Voltaire, Lavoisier, Condorcet, Augusto Comte, Diderot, Gall, Darwin, Bertrand Russell, Freud, Marx etc. etc. Por que não se apresentaram esses pensadores humanistas? O que a revista fez, de maneira bastante mal-intencionada, foi contrapor três grandes pensadores supostamente “serenos” e “crentes” contra dois pensadores contemporâneos considerados pela revista como “raivosamente ateus” (“Dawkins [como] ‘cão de guarda’ de Darwin”).
Indo ao argumento da matéria: à parte a bobagem sociológica que é a idéia de Dawkins a respeito do “meme”, o fato é que não vi, na exposição das idéias de Dawkins ou de Sennet, nenhuma posição “raivosamente atéia”, nem uma “fé cega na ciência”. Aliás, bem ao contrário: Sennet chega a desmerecer o Iluminismo!
Sem dúvida que Dawkins é militantemente ateu: mas por que não poderia ser? A própria revista reconhece que há uma onda de fundamentalismo cristão assolando o Ocidente (mas, também sem dúvida, não se estende a respeito). Por que apenas os cristãos podem fazer proselitismo? Os danos intelectuais, sociais e políticos desse proselitismo teológico são cada vez maiores, ameaçando não apenas as liberdades públicas fundamentais (liberdades de pensamento, de expressão e de discussão), mas a separação entre a Igreja e o Estado e chegando ao ponto de ameaçar as medidas contrárias ao aquecimento global e promovendo novas cruzadas anti-islâmicas (como se pode perceber nas atuações de George W. Bush e do papa Bento XVI).
Novamente, a pergunta: por que apenas os teológicos podem fazer proselitismo? Se um cientista julga necessário fazer profissão de fé (e não uso essa expressão por acaso) no agnosticismo ou no ateísmo, na verdade ele responde a uma necessidade social sentida faz muito tempo pelas sociedades ocidentais – que, afinal, estão sendo acossadas pelas ondas de fundamentalismo cristão e islâmico.
Uma última questão: a revista Galileu é da editora Globo, que também publica a revista Época. Não é coincidência que no mês de novembro de 2006 a revista Época dedicou a matéria de capa à mesma questão, chegando aos mesmos resultados. Aliás, essa revista “adulta” e “formadora de opinião” é a mesma que afirma que o espiritismo é uma ciência e que suas afirmações têm sido comprovadas cientificamente. Se a editora Globo deseja promover o espiritismo e não tolera a militância antimística, isso é um direito que assiste à editora (sem dúvida que em uma sociedade laica, não-teológica, com liberdade de crença e de expressão). Todavia, apresentar, por um lado, o espiritismo como sendo científico e, por outro lado, apresentar os militantes agnósticos ou ateus como “cães raivosos” é uma postura questionável e não-neutra: cumpre à editora, por meio de suas diversas revistas, assumir uma posição claramente mística e deixar de apresentar-se como a portadora da “opinião pública”.



[1] Não deixa de ser irônico o fato de que a revista chame-se Galileu e que ignore, ou despreze, os ensinamentos políticos que a prática científica desse cientista legaram-nos.

04 janeiro 2007

Valores republicanos e a estátua de Benjamin Constant


Toda sociedade tem seus símbolos e seus heróis míticos e, apesar do que alguns importantes políticos (e mesmo intelectuais) têm dito, precisamos deles. Muitas vezes esses “heróis”, da maneira como são percebidos, não correspondem aos fatos históricos, mas sua importância reside nos valores que transmitem, ou melhor, nos valores que despertam e atualizam em cada cidadão, em cada membro da sociedade.

A despeito das bobagens que se falou a respeito dos símbolos míticos, durante o século XX no mundo e particularmente a partir da década de 1980 no Brasil, todos precisamos desses “heróis”, pois são eles que nos inspiram, que “dizem” quem somos e quem desejamos ser. É claro que não são os símbolos, os mitos, os heróis que nos “dizem” essas coisas; no fundo, é a sociedade, é o que alguém já chamou de “consciência coletiva” que nos diz tudo isso.

Cada tipo que cultuamos indica traços de nós mesmos; ao vermos certas características em alguns tipos, estamos dizendo que elas são-nos importantes. Por outro lado, a maneira como lidamos com esses símbolos também indica o apreço ou desapreço que temos por alguns valores.

Em uma época em que se descobre que o “mensalão” é uma prática política corrente e semi-institucionalizada; em que o partido que supostamente seria o “bastião da ética” revela-se fraudulento, o tratamento dispensado pela cidade de Curitiba à estátua de Benjamin Constant revela-se pleno de sentido.

Essa estátua homenageia, na principal praça de Curitiba, o fundador da República do Brasil. Ela compõe-se de três níveis: no superior há uma estátua da República, com a imagem mítica de Marianne carregando o pendão nacional; no nível intermediário está uma estátua de corpo inteiro de Benjamin Constant e, na base do monumento, estão altos-relevos dos participantes do movimento fundador da República, juntamente com máximas políticas republicanas: “Ordem e Progresso”, “A sã política é filha da moral e da razão”, “Viver às claras” – todas elas mais ou menos esquecidas e, como não poderia deixar de ser, mais necessárias do que nunca.

Ora, as “críticas históricas” – da direita e da esquerda; dos marxistas, dos liberais e/ou dos católicos, em seus variados matizes – gostam de indicar um caráter golpista da parte de Benjamin Constant ao proclamar a República no alvorecer de 15 de novembro de 1889; ao fazerem-no, procuram desmerecer não apenas o regime então inaugurado (no caso da esquerda, em favor de alguma variante do socialismo), como também seus valores fundamentais (em favor de todos os críticos). Em nome da melhoria das condições de vida do proletariado e de sua incorporação à sociedade, alguns adotam por modelos Che Guevara, Fidel Castro e outros, propondo impor o progresso às custas de qualquer ordem social, sacrificando inclusive a liberdade. Outros, por sua vez, abandonam o proletariado à própria sorte em nome de um liberalismo laissez-faire ou, ainda, combatem o progresso identificando-o ao comunismo. A bem da verdade, o discurso esquerdista – bem como seus símbolos – é o que prevalece hoje, como bem o demonstram os discursos do progresso revolucionário (afinal, “todos temos que ser revolucionários”, não é mesmo?) e da luta de classes (qual escola não ensina, de acordo com os parâmetros (semi-)oficiais, que “o motor da história é a luta de classes”, nas disciplinas de História?), além da mitificação dos seus símbolos (Olga Benário Prestes, Antônio Gramsci e o já citado e onipresente Che Guevara).

Esses valores – que consagram a disputa entre a ordem e o progresso, à direita ou à esquerda – são os mesmos que permitem e justificam que os símbolos fundadores e o projeto da República brasileira sejam mal-preservados e desrespeitados. O projeto de Benjamin Constant era o de unir a ordem ao progresso: não a ordem dos cemitérios ou das baionetas ou mesmo de uma propriedade privada absoluta e irresponsável; nem, por outro lado, o progresso liberticida ou anárquico. Esse projeto era de um regime de liberdades individuais e coletivas, de responsabilidade social (exatamente no sentido que se confere hoje a essa expressão) e de subordinação da política à moral (isto é, de ética pública). O regime proposto, defendido e, enquanto viveu, praticado por Benjamin Constant pautava-se pelas liberdades de discussão e associação, de respeito escrupuloso à coisa pública (“res publica”) e ao bem comum, de permanente abertura ao escrutínio público (e, diga-se de passagem, de não-enriquecimento da parte dos agentes políticos enquanto agentes políticos).

Como dissemos no início deste artigo, a maneira como um povo cuida de seus símbolos revela bem os seus ideais, suas perspectivas e suas esperanças: a estátua de Benjamin Constant em Curitiba é completamente mal-conservada (tanto pela “elite” como pelo “povo”; tanto pela direita quanto pela esquerda): suja, pichada, com excrementos, defecações e fogueiras em sua base; além disso, tem exatamente à sua frente uma luminária e, atrapalhando sua contemplação, copas de árvores mal-aparadas.

O respeito que (não) prestamos à República e aos seus valores não poderia ser mais emblemático.

Transdisciplinaridade humanista

UMA transdisciplinaridade humanista:

A síntese subjetiva positivista

Desde há alguns anos fala-se bastante em “multidisciplinaridade”, “interdisciplinaridade” e até em “transdisciplinaridade”. Essas propostas são maneiras de perceber a realidade e, mais do que isso, o próprio conhecimento científico; cada uma delas são metodologias que organizam nossos conhecimentos, tendo em vista algumas perspectivas específicas sobre a realidade.

Assim, a multidisciplinaridade afirma que as diversas áreas do conhecimento devem colaborar entre si para a resolução dos problemas; por sua vez, a interdisciplinaridade reconhece a importância de essas áreas colaborarem entre si, mas dá um passo além, no sentido de haver trocas entre elas e também no sentido de desenvolverem-se maneiras de relacionar-se com intimidade.

Tomemos como exemplo o ser humano, com todas as suas necessidades físicas, biológicas, afetivas, econômicas e assim por diante. A multidisciplinaridade afirma que cada uma dessas necessidades pode e deve ser satisfeita pela aplicação de um conhecimento específico: os problemas emocionais e afetivos pela Psicologia, o trabalho pela Economia, a saúde pela Medicina, as relações sociais pela Sociologia etc. A interdisciplinaridade afirma, por outro lado, que, além de cada uma das áreas do conhecimento cuidar de um aspecto do ser humano, elas devem dialogar entre si, procurando uma solução em comum, havendo uma troca de perspectivas e de conteúdo entre elas; assim, a Economia contribuirá para a Psicologia e a Sociologia, que contribuirão para a Medicina e a Economia etc. Em termos de método, o resultado é que nenhum nível do conhecimento superpõe-se aos demais, considerando que a realidade é formada por múltiplos níveis e, nesse sentido, é inesgotável.

Essas maneiras de lidar com o conhecimento começaram a tornar-se mais conhecidas a partir dos anos 1960, em reação a diversas limitações teóricas e práticas que a especialização excessiva e alienante trouxe para o ser humano. Ora, o interessante é que elas foram propostas há mais de 150 anos por um filósofo da ciência que já gozou de bastante fama no Brasil e no mundo, mas que há um certo tempo está injustamente desconhecido: Augusto Comte.

Comte (1798-1857), fundador do Positivismo e formulador da frase que está na bandeira brasileira – Ordem e Progresso –, no começo do século XIX percebia que os conhecimentos estavam cada vez mais especializados, cada vez mais específicos. Por um lado, não há como nem porquê evitar que isso ocorra: afinal, é precisamente esse o caminho que se deve trilhar para aumentarmos o conhecimento da realidade. Mas, por outro lado, a especialização aumenta o conhecimento em profundidade, mas diminui o conhecimento em extensão: sabemos cada vez mais sobre cada vez menos; em outras palavras, perdemos a visão de conjunto. Ora, nós precisamos da visão de conjunto para entender a totalidade da realidade e para podermos, de fato, agir. Assim, o que em um primeiro momento A. Comte propôs foi mais uma especialidade: aquela que analisaria os principais resultados de cada uma das formas de conhecimento e procuraria elaborar uma síntese deles, de maneira a fornecer uma visão de conjunto. Tal síntese seria, necessariamente, filosófica e, se hoje em dia não fosse uma palavra com uma conotação negativa, diríamos que seria uma síntese filosófica e generalista. O interessante a notar é que, a partir do momento em que se parte dessa perspectiva, que é de conjunto, modifica-se a maneira como se percebem as várias partes, surgindo novos resultados para cada um dos conhecimentos. Como dissemos antes, essa é a própria interdisciplinaridade.

Continuando a estudar o ser humano, Augusto Comte percebeu que ainda poderia ir muito além disso. Afinal, o que dissemos até agora se refere apenas aos conhecimentos científicos, mas o ser humano é mais que a inteligência, incluindo também as ações práticas e, principalmente, os sentimentos. Cada uma dessas partes deve manter-se em harmonia com as demais, para os seres humanos considerados tanto individualmente quanto em termos coletivos; além disso, uma verdadeira consideração do conjunto dos seres humanos deve incluir também o local onde vivemos, ou seja, deve incluir também o próprio planeta e o meio ambiente. Assim, o resultado é que, partindo de uma perspectiva de conjunto baseada na realidade do ser humano, a única forma de mantermos em harmonia sentimentos, pensamentos e ações é por meio do desenvolvimento do altruísmo e da generosidade, regulando nossas ações individuais e coletivas tendo em vista o bem comum. Como no final é o ser humano o centro dos sentimentos, das concepções e das ações e como essa centralidade quem atribui é o próprio ser humano, a síntese é, necessariamente, subjetiva, isto é, referente ao sujeito.

É claro que o “ir além” da interdisciplinaridade, como apresentamos, refere-se a pautar as condutas humanas a partir de um padrão moral, ético, daí orientando as elaborações intelectuais. Bem entendidas as coisas, esse “ir além” é a transdisciplinaridade a que nos referimos no início do texto.

Para concluir, vale a pena notar que as concepções de Augusto Comte, embora tenham já cerca de 150 anos, mantêm-se extremamente atuais, podendo contribuir com grande fecundidade para os grandes desafios que enfrentamos atualmente.

Comemoração de Trajano

Comemoração de Trajano (52-117)[1]

Trajano ocupa o domingo da 4a semana do mês de César, coroando, assim, a participação romana na civilização militar, própria à Antigüidade. Foi imperador por indicação de Nerva, com quem dividiu o trono imperial em 98, tendo, depois, reinado sozinho por mais vinte anos. Para sucedê-lo no trono indicou Adriano; este, por sua vez, indicou Antonino Pio, que escolheu Marco Aurélio: todos esses foram grandes imperadores, durante o “século de ouro” romano, e figuram no Calendário Positivista.

Marco Ulpio Trajano

Extrato do Calendário Positivista: 5o mês – CÉSAR – A civilização militar
Dia
Tipo principal
Tipo adjunto
Calendário católico
15.
Júnio Bruto
(07.maio)
16.
Camilo
Cincinato
(08.maio)
17.
Fabrício
Régulo
(09.maio)
18.
Aníbal
(10.maio)
19.
Paulo Emílio
(11.maio)
20.
Mário
Os Gracos
(12.maio)
21.
Cipião
(13.maio)
22.
Augusto
Mecenas
(14.maio)
23.
Vespasiano
Tito
(15.maio)
24.
Adriano
Nerva
(16.maio)
25.
Antonino
Marco Aurélio
(17.maio)
26.
Papiniano
Ulpiano
(18.maio)
27.
Alexandre Severo
Aécio
(19.maio)
28.
Trajano
(20.maio)
“Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é preciso notar sua origem espanhola, eminentemente própria para testemunhar quanto estava, então, já realizada uma incorporação que permitia ao chefe romano um tal imperador” (A. Comte apud Carneiro, 1942, p. 113).
* * *
A primeira observação que devemos fazer é que, ao comemorarmos um tipo histórico, temos que ter claro, em primeiro lugar, que não se trata de praticarmos o que se chama vulgarmente de “história positivista”, ou seja, meramente apresentarmos a coleção de fatos e episódios dos tipos notáveis, na tradição de Th. Carlyle. Essa prática, além de histórica e sociologicamente incorreta e falsa, é moralmente falha e condenável, pois elege como tipos ideais, isto é, dignos de imitação, simplesmente aqueles que alcançaram grandes posições. Assim, teríamos que Nero foi um grande personagem, pela simples razão de ter sido Imperador romano; ou, para citar um exemplo menos óbvio, teríamos que Napoleão teria sido também digno de imitação, por ter sido um grande golpista.
Ora, pela negativa as observações acima já indicam o caráter das comemorações dos tipos, que os positivistas realizamos: por meio delas conhecemos história e as diversas fases da Humanidade, com suas características particulares. Por outro, esses tipos são concretos, ou seja, são os efetivos agentes da história, que, além disso, apresentam a característica de serem tomados verdadeiramente como exemplos a serem seguidos – desde que compreendida, é claro, sua importância histórica, ou seja, a partir de uma perspectiva relativista. Sua função, então, é de permitir uma comemoração social da Humanidade, através de tipos concretos, em apoio ao sistema de comemorações abstratas, que visualiza as fases históricas e os elementos sociais e morais humanos (cf. Comte, 1934, 5ª a 7ª Conferências)[2].
* * *
Estudar os tipos leva-nos imediatamente à filosofia da história do positivismo, que é a da historicidade e profunda continuidade humanas, particularmente no que se refere ao Ocidente. Algumas figuras apenas marginalmente nos levam à filosofia da história de A. Comte; outras, contudo, levam-nos mais diretamente a ela: São Paulo, Carlos Magno, Frederico, Descartes, Bichat – e César. O caso de César é interessante devido ao juízo que fazia Augusto Comte da civilização romana, por ele bastante admirada: para o fundador do Positivismo, os romanos estavam já bastante próximos do ideal de sociocracia, faltando-lhes principalmente apenas o desenvolvimento afetivo, reservado à Idade Média.
Augusto Comte considerava que as civilizações militares surgiram da decomposição dos regimes teocráticos, quando o governo dos sacerdotes – conservadores – foi substituído pelo dos guerreiros – progressistas –: desde seu início foi esse o caso romano. O espírito positivo era bastante desenvolvido no povo do Lácio, e a maior aproximação empírica da sociocracia dava-se com o desenvolvimento do altruísmo – da veneração em seu estágio pátrio –; com a subordinação da especulação à ação; com o desenvolvimento progressivo dos motivos humanos (iniciado mesmo pela substituição dos sacerdotes pelos guerreiros, na teocracia inicial); com a busca dos hábitos da paz após feitas as guerras, com a assimilação dos vencidos, e com a meritocracia. Todas essas características encontramos em César e, para o que nos interessa aqui, também em Trajano.
A história romana divide-se em três momentos: a monarquia, a república e o império. O período republicano é o mais caracteristicamente sociocrático – o advento mesmo de César foi nesse período. Por outro lado, a hereditariedade sociocrática foi estabelecida no Império. Augusto Comte considerava que os três melhores tipos romanos foram César, Cipião e Trajano, citando-os nominalmente e reservando a eles, no Calendário Positivista, o nome de um mês – portanto, de todo um aspecto da história humana – e a chefia de duas semanas, respectivamente. Ao Augusto Comte relativamente igualar Cipião, César e Trajano, ele indica o valor semelhante de sua ação, indicada acima: assimilação, humanização, meritocracia, indústria.
Posteriormente, o catolicismo veio completar a “transição ocidental”, com o desenvolvimento sistemático dos sentimentos – embora ainda parcialmente, por ter um fundo egoísta e sendo auxiliado pelo cavalheirismo empírico e altruísta devido ao feudalismo. É devido aos defeitos teóricos do catolicismo que Augusto Comte sempre elogiou a “sabedoria prática” do sacerdócio católico, que, baseado em um dogma vicioso, soube elaborar uma doutrina social altruísta, de que Santa Teresa – com sua lenda sobre andar nas ruas de Paris com o archote e o balde d’água na mão, para queimar o céu e apagar o inferno – e São Francisco de Assis são grandes exemplos.
Os problemas teóricos do catolicismo são também devidos ao seu caráter anti-histórico, ao negar, ao pretender ignorar e desprezar todo o passado que o precedeu. “Todavia, cumpre reconhecer aqui, como por toda parte alhures, que a eminente sabedoria do sacerdócio católico neutralizou, durante muito tempo, os principais vícios de sua deplorável doutrina. Apropriando-se da língua de Roma, quando ela cessou de prevalecer, ele conservou espontaneamente todos os tesouros intelectuais da Antigüidade, inclusive sua bela teologia. A comovente lenda, tão dignamente imortalizada por Dante, acerca da feliz intercessão de um santo papa em favor de Trajano, bastará para indicar quanto as nobres almas católicas lastimavam que sua cega doutrina as impedisse de honrar seus melhores antepassados. Mas o respeito geral dos antecedentes gregos foi desenvolvido sobretudo pelos chefes temporais, apesar de sua freqüente ignorância” (Comte, 1934, p. 425).
Finalmente, essa filosofia da história pode ser bem compreendida por meio da metáfora de Pascal, segundo a qual devemos compreender a história da humanidade como a história de um único, longo e grande indivíduo que vai desenvolvendo-se e amadurecendo em cada um dos elementos da natureza humana (sentimentos, inteligência e atividade). A continuidade – a “boa” continuidade, se podemos falar assim – surge daí, marcada pelo signo do altruísmo e do relativismo (afinal, de que maneira incluir culturas tão díspares em uma única narrativa?).
* * *
Voltando a Roma e ao Calendário Positivista: os quatro domingos do mês de César indicam o esforço contínuo em constituir, no Mediterrâneo (ou seja, no Ocidente), uma civilização que unificasse a Grécia, afastando-a das teocracias orientais (nomeadamente a Pérsia), ao mesmo tempo que consolidando e mantendo seu legado: são esses os papéis de Temístocles e Alexandre. Em seguida, a constituição de uma civilização então universal, afastando seus inimigos e consolidando sua obra de guerra para a paz: esses foram Cipião e Trajano. Em outras palavras, a “civilização militar” na filosofia da história de Augusto Comte apenas faz sentido, de fato, como uma etapa provisória, cujo fim em si mesmo não era a contenda, porém sim (1) a organização de sociedades que de outro modo seriam dispersas, e, (2) em seguida, predispô-las à vida pacífica e industrial, em comum.
É interessante notarmos como o caráter de transitoriedade não levou Augusto Comte a desprezar os tipos característicos do período, ou seja, o caráter militar dos tipos; muito ao contrário. Sempre valorizando todas as etapas parciais da Humanidade, como momentos necessários de sua história, percebemos que o valor de César, Temístocles, Alexandre, Cipião e Trajano relaciona-se à hábil conjugação da visão de estadistas com o de militares, que eram, desses personagens. Eis o juízo de nosso Mestre sobre Cipião, César e Trajano: “[...] Os três tipos essenciais da sociabilidade militar, Cipião, César e Trajano, dignos precursores da sociocracia, após sua nobre apreciação da vida pacífica”[3] (Comte, 1854, p. 144).
Reafirmando: diziam os romanos – ou melhor, dizia César – que faziam a guerra para levar os hábitos da paz. De fato era assim: os romanos, ao invés de simplesmente manterem uma dominação política sobre seus dominados, explorando-os e exigindo tributos, eventualmente reprimindo rebeliões e sublevações, procuravam de fato romanizar suas províncias. Ora, esse “romanizar” não significava somente impor aos demais os seus próprios hábitos; significava realizar um amálgama das culturas, respeitando-as e difundindo-as – particularmente a grega. É o aforisma: a Grécia pensou e Roma executou[4].
Essas observações levam-nos a outros dois pontos. Em primeiro lugar, de fato realizou-se primeiramente a guerra para depois se manter a paz: a chamada pax romanna, inaugurada no período de Augusto, não era uma idéia justificativa para enganar os ingênuos, uma “ideologia”, mas uma realidade concreta. Todos sendo então mais ou menos militares, sua conquista uns pelos outros não oferecia novidade alguma – ao contrário da iniciativa romana. Assim, os povos submetidos ao jugo romano, ao invés de guerrearem-se mutuamente, passaram a trabalhar em conjunto para o desenvolvimento da economia comum, nas margens do Mediterrâneo.
Em segundo lugar, a incorporação dos povos a Roma foi suficientemente grande para permitir que um espanhol, isto é, alguém oriundo da periferia do Império, assumisse o manto púrpura: o próprio Trajano, depois seguido e continuado por Adriano. As opiniões de Augusto Comte a propósito cabem aqui: “[...] Em relação às artes especiais do som e da forma, os romanos essencialmente marcaram a apreciação, embora muito mais por meio de demonstração de seu testemunho passivo, de como a preponderância da vida cívica pode dispor todos a sentir que se pode aperfeiçoar a Humanidade.
Essa primeira fase da ditadura foi dignamente instalada por dois tipos eminentes, que merecem ser pessoalmente indicados. Sábio herdeiro do general César, Augusto soube nobremente ultrapassar os impulsos de suas longas lutas, e governou o Ocidente com uma solicitude sociocrática, na qual todas as classes deviam concorrer para o bem público de acordo com suas aptidões respectivas. Essa característica geral foi energicamente desenvolvida por Tibério, que, malgrado as torpezas privadas de seus últimos anos, suplantou, no conjunto de suas qualidades, intelectuais e morais, seus preconceitos de origem aristocrática.
Um nobre velho inaugurou sabiamente a segunda fase, introduzindo o sistema de sucessão adotiva que a caracterizará sempre. Sua honrosa iniciativa, depois muito imitada, conferiu à ditadura ocidental os melhores tipos de que ela pudesse se honrar.
Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é necessário indicar sua origem espanhola, eminentemente própria a testemunhar como estava então realizada uma incorporação que permitisse ao chefe romano preferir um tal sucessor. Ainda que nada seja comparável à ditadura assim surgida durante a primeira meia geração do segundo século, ela foi seguida de uma digna série de eventos, sempre devidos à sua adoção” (COMTE, 1853, p. 394-395)[5].
Gibbon indicou como os romanos souberam desprezar os preconceitos mantidos pelos gregos a respeito da “pureza da raça”, e misturaram-se aos seus vencidos, procurando daí tirar os benefícios decorrentes, particularmente no que se referia à conservação e à expansão de seus domínios: “A política estreita de preservar sem qualquer mistura estrangeira o puro sangue dos antigos cidadãos forçou a sorte e acarretou a ruína de Atenas e Esparta. O gênio dominador de Roma sacrificou a vaidade à ambição, julgando mais prudente, assim como mais honroso, adotar a virtude e o mérito para si própria, onde quer que fossem encontrados, mesmo entre escravos ou estrangeiros, inimigos ou bárbaros”[6] (GIBBON, 1998, p. 32).
* * *
Os imperadores romanos, indicados no Calendário Positivista, de acordo com o período de império, foram os seguintes:
· 1o – Augusto – 27aC-14dC (41 anos)
· 9o – Vespasiano – 69-79 (10 anos)
· 10o – Tito – 79-81(2 anos)
· 12o – Nerva – 96-98 (2 anos)
· 13o – Trajano – 98-117 (19 anos)
· 14o – Adriano – 117-138 (21 anos)
· 15o – Antonino – 138-161 (23 anos)
· 16o – Marco Aurélio – 161-180 (19 anos)
· 24o – Alexandre Severo – 222-235 (13 anos)
É interessante percebermos como há uma concentração de imperadores do período de meados do Iº século até mais ou menos cem anos depois; é o período que os historiadores indicam como sendo da dinastia Antonina, após a Júlio-Cláudia; ou, de outra forma, é o período dos chamados “reis-filósofos”, tais as qualidades políticas e humanas desses governantes. Apenas para tomarmos o juízo de Gibbon: “Durante um feliz período de mais de 80 anos, a administração pública foi conduzida pela virtude e pelas habilidades de Nerva, Trajano, Adriano e dos dois Antônios”[7] (Gibbon, 1998, p. 3).
Vimos como Augusto Comte admirava o Império Romano, ou melhor, o povo romano de um modo geral. Ora, o simples exame dos tipos que ele homenageou em seu Calendário, na parte dedicada ao Império, permite perceber com o que o filósofo preocupava-se e o que o admirava: não a decadência precoce representada por Nero, mas a sabedoria daqueles que vieram depois de Vespasiano, até Marco Aurélio, compreendendo aí quase um século de bom governo. Como diria Gibbon, “[...] O firme edifício do poder romano foi baseado na e preservado por meio da sabedoria dos tempos. As obedientes províncias de Trajano e dos Antônios foram unidas por leis e adornadas por atos. Eles podiam ocasionalmente sofrer um abuso parcial de alguma autoridade delegada; mas o princípio geral de governo era sábio, simples e benévolo”[8] (Gibbon, 1998, p. 28).
* * *
Trajano nasceu Marcus Ulpius Trajanus Trinitus, em Itálica, na Espanha, em 52; morreu em Selinonte, na Sicília, em 117. Suas infância e adolescência são desconhecidas; sabe-se apenas que seu pai era um protegido de Vespasiano, que foi cônsul. Trajano serviu sob comando paterno e também veio a ser cônsul. Sua existência para o mundo começou mesmo quando, com 45 anos, foi adotado por Nerva em 98 e proclamado imperador quando este morreu, no mesmo ano. Estava então no Reno; foi a Roma apenas no ano seguinte, e conquistou os corações pela sua simplicidade e por seu respeito para com o Senado. “Tão bons começos não eram uma novidade na história; o que surpreendeu a Roma foi que Trajano cumpriu sua promessa abundantemente”[9] (Durant, 1955, p. 38).
A importância de Trajano liga-se à de César na constituição do Império Romano, ao definir suas fronteiras e cessar as guerras de conquista. Trajano impôs, tal o voto de Augusto, limites naturais ao Império, dedicando-se então a desenvolver os hábitos da paz, com o máximo de indústria então possível. Algumas de suas conquistas, particularmente as realizadas sobre os partas, foram posteriormente devolvidas aos vencidos, por seu sucessor, Adriano.
A importância de Trajano, ademais, ressalta-se quando se se dá conta de que a hereditariedade sociocrática – categoria criada por Augusto Comte – iniciou-se exatamente quando Nerva escolheu Trajano seu sucessor, após o ter feito seu filho adotivo; da mesma forma, Trajano escolheu Adriano seu sucessor, pelo mesmo processo, e assim com alguns outros: todas essas escolhas baseadas na hereditariedade sociocrática foram exitosas. (Pode-se pensar em alguns outros processos de transmissão de liderança, discutidos pelas teorias de administração contemporâneas, cuja essência é meritocrática, deixando em 2o plano a hereditariedade consangüínea).
Sobre a ascensão de Trajano ao trono, eis as palavras de Gibbon: “Nerva mal havia aceito o púrpura dos assassinos de Domiciano quando descobriu que sua frágil idade era imprópria para conter a torrente de desordens públicas que se multiplicaram sob a longa tirania de seu predecessor. Sua disposição branda era respeitada por ser boa; mas os romanos degenerados requeriam um caráter mais vigoroso, cuja justiça pudesse instilar terror nos culpados. Embora ele tivesse diversas relações, ele fixou sua escolha em um estrangeiro. Ele adotou Trajano, que então contava quarenta anos, e que comandava um poderoso exército na Baixa Germânia; imediatamente, por meio de um decreto do Senado, fê-lo seu colega e sucessor no Império. É sinceramente de se lamentar que, enquanto somos fatigados com a desagradável relação dos crimes e loucuras de Nero, estamos reduzidos a coletar as ações de Trajano das bruxuleantes luzes de seus sucessos, ou da discutível luz de um panegírico. Este permanece, contudo, um panegírico muito distante das suspeitas de adulação. Após duzentos e cinqüenta anos da morte de Trajano, o Senado, realizando as costumeiras aclamações na ascensão de um novo Imperador, desejava que ele pudesse ultrapassar a felicidade de Augusto e a virtude de Trajano [felicior Augusto, melior Trajano]”[10] (Gibbon, 1998, p. 68).
Como Gibbon observa, há poucas fontes sobre a vida de Trajano, a principal delas sendo o panegírico proferido por Plínio o Moço no ano 100, homenageando o Imperador. O espanhol, aliás, confiava muito em Plínio, chegando a confiar-lhe missões de administração, de diplomacia e de saneamento administrativo. A correspondência entre ambos indica, além da amizade, a responsabilidade com que se desincumbiam de suas tarefas, particularmente o Imperador. Ora, por tais motivos é possível confiar no Panegírico de Trajano como fonte de informações, descontados os exageros do estilo – além de se considerar o texto uma obra-prima dos discursos elogiosos[11].
Além de sua importância histórica, Trajano era dono de um caráter corretíssimo, humilde e despojado, preocupado com os destinos pátrios, de modo que todos o respeitavam. Sua vida, assim, era motivo de admiração, de tal sorte que, diz-se, no século V o papa Gregório Magno, após ler uma biografia do Imperador, entristecido pela exclusão de Trajano do paraíso (por ser pagão), orou tanto e tão fervorosamente que obteve a admissão do romano no recinto celeste. Esse episódio, narrado por Dante na Divina comédia, é comentada por Miguel Lemos na edição apostolar do Catecismo Positivista:
“[...] Contava-se que o papa Gregório Magno (599-604), lendo um dia a vida de Trajano e tomado de admiração por tão singulares virtudes, não pode conformar-se com que, por ser pagão, deixasse esse príncipe de salvar-se no outro mundo. Entrou, pois, numa igreja e orou tão fervorosamente a deus pela alma do grande Imperador que ali mesmo deus lhe revelou que sua súplica estava deferida e Trajano admitido no reino celestial.
O passo da Divina comédia em que Dante alude a esta lenda é o seguinte:
Quiv’era storïata l’alta gloria
Del roman principato, il cui valore
Mosse Gregorio a la sua gran vittoria;
I’ dico di Trajano imperadore.
(“Purgatório”, 10o Canto).
Aí se a história a altiva glória
Do príncipe romano que a Gregório
Deu, por alto valor, causa ao triunfo:
Relato aqui o Imperador Trajano.
(Tradução de Bonifácio de Abreu).
No Paraíso o poeta não esqueceu o grande Romano e lá o colocou entre os bem-aventurados (Canto 20o)” (Comte, 1934, p. 496)[12].
Embora não fosse um gênio, era uma pessoa bastante capaz, grande general e grande administrador, conhecedor de seus deveres e responsabilidades. “Contava apenas consigo; mas também sabia aproveitar as qualidades alheias. Daí o princípio que pôs em prática: Nada criar sem premente necessidade. Tirar o maior partido possível daquilo que existe” (Carneiro, 1942, p. 114) – que pode ser considerado uma outra forma do aforisma dantoniano, “só se destrói o que se substitui”.
Em termos administrativos, Trajano procurou fazer o máximo de economia, ou seja, não onerar desnecessariamente a população. Nesse sentido, ao realizar suas expedições militares e suas obras públicas, organizou de tal maneira as finanças públicas que não precisou aumentar os impostos. Também procurava dispor das residências imperiais não para si, mas para os funcionários do Estado, tornando-as úteis. É sem dúvida alguma digno de nota o fato de publicar diariamente suas despesas, tanto pessoais quanto imperiais, exigindo o mesmo, portanto, de seus auxiliares e colaboradores. Essa publicidade está contida no preceito positivista de “viver às claras”...
Criou a instituição alimentar, ou serviço de assistência de alimentação, higiene e medicina para as crianças pobres, seguindo, talvez, recomendação de Nerva. Graças a um engenhoso mecanismo de empréstimos, essa instituição era ao mesmo tempo um estímulo à agricultura (Encyclopedia e diccionário internacional, 1935?, p. 11 554).
Ao andar entre a multidão, andava sozinho, sem séquito, e ao andar como Imperador, seu cortejo era muito pequeno e simples, sem a escolta a maltratar os transeuntes. Conservou no trono a afabilidade que o tinha tornado simpático na sua vida particular. “Tu tens amigos porque és amigo de ti mesmo”, disse-lhe Plínio o Moço (ibidem).
Otávio Augusto havia formulado um preceito, segundo o qual o Império deveria ter como limites naturais os acidentes geográficos, isto é, o Atlântico, o Reno, o Danúbio, os rios mesopotâmicos, o Egito e os desertos africanos. Houve duas exceções a esse preceito. A primeira foi a Bretanha, até antes da atual Escócia, conquistada por Domiciano, com Agrícola no comando. A outra exceção foi a Dácia, atual Romênia, na região balcânica transdanubiana, conquistada por Trajano em duas expedições, ocorridas em 101-102 e 105.
A guerra contra os dácios é bastante interessante. Embora esse reino tenho sido de fato anexado ao Império, tornando-se província, não era objetivo romano sua conquista, conforme o preceito de Augusto. Contudo, o rei dácio, Decébalo, freqüentemente invadia o território romano, zombando da majestade imperial e desrespeitando-a. Para pôr fim a esse estado de coisas, Trajano, formado general, foi à guerra, em 101, tendo chegado a um acordo de respeito mútuo. Entretanto, o rei dácio manteve sua atitude de zombaria e desrespeito a Roma, o que levou Trajano a invadir novamente esse país em 105 – para agora anexá-lo como província. Como de hábito, essa província foi de fato incorporada ao Império; mas, em virtude dos problemas enfrentados, dispersou-se a população local no que era possível e colonizou-se o território com cidadãos romanos. Assim é que entre os povos eslavos da Europa do leste há um povo neolatino, que é a Romênia[13].
Dessas expedições militares Trajano tirou diversos proveitos. O primeiro foi uma grande quantidade de ouro, particularmente das minas dácias, que pagou as duas expedições contra a Dácia, remunerou os exércitos, permitiu uma distribuição popular e ainda a instituição dos alimentos. O registro da conquista da Dácia está na famosa Coluna Trajana, em Roma, em frente ao Fórum de Trajano. Essa coluna, enorme tanto de base quanto de altura, tem incrustada em si o relato da conquista da Dácia, nas seções transversais que são cada um dos blocos que a compõe.
Além da conquista da Dácia, Trajano planejou a conquista da Párcia, no Oriente Médio, na região transmesopotâmica, pretendendo chegar à Índia, tal como Alexandre. Não chegou a tanto – tendo falecido enquanto levava a cabo tal projeto –, mas conquistou a Armênia, a Síria e a Mesopotâmia – o reino parta –, que foram reduzidas à condição de províncias romanas (posteriormente reconstituídas reinos independentes por Adriano).
Em termos de construções, a principal obra criada durante o seu reinado foi o Fórum Trajano, com duas bibliotecas e uma basílica, além da já citada coluna narrando a conquista da Dácia. Também criou um porto, cavado ao redor do que Cláudio havia construído, e mais outros dois, os de Centumcelloe (Civita-Vecchia) e de Ancona; finalmente, construiu, sobre o rio Tejo, a ponte de Alcântara (ibidem).
As imagens de que dispomos de Trajano baseiam-se em diversas estátuas encontradas em escavações. Em Florença está uma estátua antiga de Trajano, revestido de uma armadura ricamente ornada de figuras de animais. O Vaticano, particularmente, possui diversos bustos de este imperador; um de eles, de proporções colossais, foi encontrado nas escavações feitas em Ostia (ibidem). A sua estátua, em bronze dourado, coroava, outrora, a célebre Coluna Trajana – no lugar dessa estátua encontra-se, atualmente, uma de São Pedro.
Face à posterior importância do catolicismo, é interessante indicarmos a posição de Trajano frente aos cristãos. Pois bem: Trajano perseguiu-os, considerando-os perigosos e fanáticos. O juízo de Augusto Comte é o seguinte: “Entre os numerosos exemplos que a história pode fornecer das perigosas ilusões próprias ao emprego das noções estáticas sem seu complemento dinâmico, convém aqui indicar a imensa aberração de todos os grandes homens relativamente à preparação reservada à Idade Média. No primeiro capítulo deste volume eu já notara como as melhores almas estiveram enganando-se por longo tempo, ao reprimirem o catolicismo nascente, que lhes parecia desviar diretamente a humanidade de seu nobre fim social que os séculos anteriores lhes indicavam. Ora, importa aqui reconhecer que um tal erro, então inevitável, resultou sobretudo da ausência total de concepções dinâmicas, a partir das quais fosse possível apreciar os primeiros passos essenciais ao tipo estático. Desde Cipião e César até Trajano e Constantino, os pensadores e os homens de Estado sentiram de mais a mais que o conjunto do movimento romano permitia a prevalência das noções positivas sobre as crenças teológicas ou metafísicas e a atividade industrial sobre a vida guerreira. Falhos de um estudo assaz preciso sobre a marcha humana, eles desconheceram inteiramente a necessidade da transição monoteica e feudal. Os melhores dentre eles foram assim conduzidos bastante freqüentemente a sujar seus nomes com as atrozes perseguições conduzidas sobre os verdadeiros promotores espontâneos do nobre regime que não cessou de seguir à procura de um tipo abstrato”[14] (Comte, 1851, p. 471-472).
               Mais ainda: “Habituados, após a ditadura, a conceber sua própria evolução como uma preparação necessária ao estado final da humanidade, os romanos parecem poder facilmente compreender a nova transição, complemento natural da fase anterior.. Mas, falhos de uma teoria histórica, o advento de uma ordem normal pareceu-lhes tão imediato quanto aos cristãos, ainda que eles se formassem sob outras noções. Longe de reconhecerem a necessidade da transição monoteica, eles a julgaram diretamente hostil ao conjunto de nossos destinos. Por produnda e funesta que tenha sido esse erro, ele devia ser inevitável, considerando os vícios, intelectuais e morais, da nova doutrina, em uma época em que ninguém podia prever o quanto eles seriam neutralizados pela situação ocidental. Tácito e Trajano são plenamente excusáveis de terem considerado a fé nascente como inimiga do gênero humano, haja vista a impossibilidade de pressentir então uma reação social que não é hoje compreendida senão pelos verdadeiros filósofos”[15] (Comte, 1853, p. 410-411).
Observa o Prof. David Carneiro que o último serviço que Trajano prestou a Roma foi a indicação de Adriano para sucedê-lo (Carneiro, 1942, p. 115)[16]. Com sua morte o politeísmo consagrou-o, por meio de sua divinização, e depois também o catolicismo, por meio de Gregório Magno e principalmente Dante. A consagração definitiva veio com Augusto Comte, que o colocou no Calendário Positivista, chefiando a última semana do mês de César.
* * *
Há algumas questões que devem ser pesquisadas em investigações subseqüentes, a primeira delas referindo-se à escolha de Augusto Comte em favor de Trajano ao invés de Adriano. Inicialmente, Trajano teve bastante justificada sua invasão à Dácia, haja vista as freqüentes e reiteradas provocações que os dácios lançavam aos romanos. Da mesma forma, os partas, no Oriente Médio, provocavam Roma. Contudo, enquanto na Europa do leste Trajano conquistou para cessar uma situação humilhante, no Oriente ele continuou, procurando chegar à Índia, tal qual Alexandre cinco séculos antes; ele não chegou a esse país, mas estendeu o Império até as margens do Oceano Índico. Em outras palavras, manteve ainda um espírito militar conquistador, quando não havia mais necessidade de expansão.
Por outro lado, Adriano executou uma política completamente pacífica, indo às armas apenas quando necessário, ao mesmo tempo que, no caso parta, devolveu a autonomia a esse povo, retirando-o de sua condição de província e mantendo-o como “Estado associado” (cuja soberania dependia francamente da autoridade romana). Da mesma forma, adotou uma extensa política de desenvolvimento do Império, visitando, ao longo de cinco anos, todas as províncias, procurando dotá-las de estruturas urbanas e sociais adequadas. Trajano, da mesma forma, desenvolveu o Império, mas beneficiou mais a Itália, e tinha bastante marcado um espírito mais militarista.
Ainda assim, de qualquer forma, Trajano tornou tradição a prática adotada por Nerva a seu próprio respeito, ou seja, adotou o critério de hereditariedade sociocrática para o Imperador seguinte, escolhendo, além disso, alguém de inegáveis méritos e qualidades.
De maneira mais rápida, podemos pensar também em questões mais contemporâneas, a partir do exemplo de Trajano e dos romanos de modo geral.
Insistindo sobre a hereditariedade sociocrática, devemos nos lembrar de que Augusto Comte caracterizava-a como o modo romano por excelência de transmissão do poder – ou melhor, de transmissão do comando. O titular do governo em vida indicava seu sucessor, não necessariamente seu filho ou algum seu parente, mas aquele que julgava o mais capacitado para a posição a assumir. Evidentemente diversas virtudes são necessárias, tanto políticas quanto cívicas, e mesmo, mais corriqueiramente, “morais”. A experiência de Roma, como se viu, foi completamente exitosa, e encerrou-se exatamente quando, ao invés de se indicar alguém através da hereditariedade sociocrática, indicou-se através da consangüínea (Cômodo, por seu pai Marco Aurélio). A instituição, de qualquer forma, era completada pela adoção civil do sucessor pelo antecessor (a ad-rogação).
Essa hereditariedade é o que está na base do tão mal-compreendido projeto de “ditadura republicana”, que de “ditadura” tem apenas o nome. A ditadura republicana é o governo republicano de liberdades civis, políticas e sociais, assim como o das responsabilidades civis, políticas e sociais, no qual o governante exerce seu poder executivo – que de maneira alguma é absoluto ou tirânico – segundo limites claros e dependendo sempre das sanções sociais, particularmente da opinião pública. Em outras palavras: Estado de Direito, liberdade civis, proteção ao cidadão com ampliação radical da cidadania – esse é em enorme proporção o projeto “democrático” de governo[17].
Mudando do âmbito, isto é, passando do setor público para a iniciativa privada, podemos mesmo pensar em se não existem teorias de administração que preconizam exatamente uma transmissão do comando em empresas através de um processo como a hereditariedade sociocrática.
Em seguida, pensamos no valor de um império universal nos dias atuais. Pensamos, claro, nos Estados Unidos, cuja influência é ampla e cada vez maior – apesar de diversos prognósticos em contrário, como o de Paul Kennedy, realizado no final dos anos 1980. O poder norte-americano baseia-se na economia, em sua capacidade de regular as relações econômicas no mundo, ou, ao menos, de influenciá-las poderosamente. Mas, como outros autores já indicaram, esse poder é “multidimensional”, ou seja, baseia-se também em outras fontes, entre as quais a cultural – qual o país que não se sente atraído por Hollywood, pelo American way of life ou pelo jazz e pelo blues? – e, infelizmente, também a militar. O atual líder norte-americano, como é amplamente reconhecido, não está à altura do país que comanda, não sendo efetivamente capacitado para conduzir a bom termo as inúmeras responsabilidades mundiais que essa potência tem, como o caso da não-assinatura do Protocolo de Kyoto, entre outras atitudes, bem ilustra.
Por outro lado, o poder americano baseia-se firmemente no que Kehoane e Nye chamaram de hard power, mas que é, simplesmente, um militarismo grosseiro, ou seja, a insistência em manter um efetivo militar cada vez mais poderoso (embora não necessariamente mais numeroso), a despeito dos contingentes militares de outros países. A década de 1990 seria marcada pela prevalência dos temas econômicos sobre os militares, com o fim da Guerra Fria, e, portanto, com a passagem, há tanto esperada, das atividades militares para as pacíficas, baseadas exatamente na economia. Contudo, o que se vê atualmente é exatamente o contrário: um retorno extemporâneo às armas.
É nessa altura que percebemos como a comparação entre os Estados Unidos e Roma refere-se apenas à característica supostamente comum de serem ambos “impérios” “universais”. Roma de facto e de jure foi um império, cuja obra estende-se até atualmente; como diria César, a máxima que orientou os patriotas romanos foi o de fazerem a guerra para levarem os hábitos da paz – e de fato foi assim, como a instituição imperial realmente executou (com as exceções da Inglaterra, da Dácia e da Párcia). Foi uma anexação seguida da progressiva incorporação das populações locais, com a elevação cada vez mais ampla de seus súditos à categoria de “cidadãos romanos”. Em outras palavras, Roma imperou com vistas gerais, buscando manter o Império como um todo. Há já um certo tempo que os Estados Unidos estão distantes dessas perspectivas... Além disso, é importante notarmos como Augusto Comte era terminantemente contra a existência de países demasiadamente grandes nos tempos atuais, por serem contra a fraternidade humana, tanto interna quanto externamente aos países. Considerava A. Comte que deve, sim, haver um império atualmente: mas um império das opiniões e dos sentimentos, e não um império das armas.
Finalmente, pode-se ficar pensando no valor que a filosofia da história que Augusto Comte elaborou pode ter para os dias atuais. Um esquema tão ambicioso, tão complexo, que procura relacionar a Grécia, Roma, a Idade Média e a modernidade, atribuindo a cada um deles o desenvolvimento de determinadas características da natureza humana e a preponderância de certas formas de pensar – tudo isso pode ser exagerado, demais. Por que não algo mais simples? Por outro lado, porque essa insistência na continuidade humana? Por que não, simplesmente, rupturas e quebras?
Ora, sem dúvida alguma que A. Comte reconhecia a existência de mudanças e rupturas na história; quem não o reconhecer é incapaz das mais simples observações históricas. O espetáculo da Revolução Francesa apresentou esse caráter de radical ruptura, entre a Idade Média, católico-feudal, e a modernidade, cada vez mais positiva e pacífico-industrial. O que ocorre é que, por debaixo das mudanças e das transformações, o filósofo de Montpellier via apenas um único ser humano, que em diversos momentos assumia, e assume, certas características, de acordo com o momento histórico no qual vive.
Mas o principal está em que, se queremos ser de fato positivos em nossas concepções, temos que nos voltar ao ser humano, ao conjunto de sua história, de suas diversas fases, para termos um ideal a seguir. É exatamente nisso que consiste a filosofia da história do positivismo religioso: um ideal que nos orienta em direção ao futuro, através da observação e da interpretação do passado, de modo a dirigir o presente. Como diria Raymond Aron, se é para fazermos da humanidade, de sua história, uma religião, não há ideal mais elevado que o do positivismo, que a Religião da Humanidade.
Gustavo Biscaia de Lacerda.
Nascido em Curitiba, em 02.04.1977.
Rua Lamenha Lins, 213 – Curitiba
gustavobiscaia@yahoo.com.br
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ARON, R. 1986. As etapas do pensamento sociológico. 2ª ed. Brasília : Edunb.
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Carvalho, D. s/d. História geral. Antigüidade. Rio de Janeiro : Record.
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_____. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Anot. Miguel Lemos. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil.
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Sartori, G. 1994. A teoria da democracia revisitada. I – O debate contemporâneo. São Paulo : Ática.




[1] Este texto serviu de referência para a conferência de mesmo título pronunciada em 13.Homero.214 (10.2.2002) no Centro Positivista do Paraná.
[2] Apenas para corroborar as considerações acima: “Os homens previdentes aparecem como verdadeiros causadores dos aperfeiçoamentos que previram, quando estes apenas se operaram por influência preponderante da civilização. [...] Quando um homem parece exercer uma grande ação, tal não acontece em geral por causa das suas próprias forças, que são bem pequenas. São sempre as forças exteriores que atuam por ele, e segundo leis sobre as quais ele não tem poder algum” (Comte, 1977, p. 120-121).
[3] “[...] Les trois types essentiels de la sociabilité militaire, Scipion, César et Trajan, dignes précurseurs de la sociocratie, d’après leur noble appréciation de la vie pacifique” (todas as traduções são do autor, com a eficiente colaboração de Ângelo Torres).
[4] É claro que essa “execução romana do pensamento grego” deu-se com a adaptação dos elementos gregos aos hábitos e particularidades do povo do Lácio. Essa relação exemplifica como o pensamento deve subordinar-se à ação, para Augusto Comte.
[5] “[...] Envers les arts speciaux du son et de la forme, les Romains durent se borner essentiellement à l’appréciation, mais en montrant, d’après ce témoignage passif, combien la prépondérance de la vie civique que dispose à sentir tout ce que peut ameliorer l’Humanité.
Cette première phase de la dictadure fut dignement installée par deux types éminents, que méritent d’y être personnellement signalés. Sage heritier du généraux César, Auguste sut noblement surmonter les impulsions resultées de ses longues luttes, et gouverna l’Occident avec une sollicitude sociocratique, où toutes les classes devaient concourir au bien public suivant leurs aptitudes respectives. Ce caractère général fut énergiquement développé par Tibère, qui, malgré les turpitudes privées de ses dernières années, effacera bientôt, d’après l’ensemble de ses qualités, intellectuelles et morales, une flétrissure émannée des rancunes aristocratiques.
Un noble vieillard inaugura sagement la second phase, en introduisant le système de succession adoptive que la caractérisera toujours. Son heurese initiative, longtemps imitée, conféra la dictadure occidantele au meilleur type dont elle puisse s’honorer.
Outre l’admirable superiorité de Trajan, pour le coeur, l’esprit, et le caractère, il faut ici remarquer son origine espagnole, éminentement propre à temoigner combien était alors accomplie une incorporation que permettait au chef romain de préférer un tel successeur. Quoique rien ne soit comparable à la dictadure ainsi surgie pendant la première démi-génération du second siècle, elle fut suivi d’une digne série d’avénements, toujours dus à l’adoption”.
[6] “The narrow policy of preserving without any foreign mixture the pure blood of the ancient citizens, had checked the fortune, and hastened the ruin, of Athens and Sparta. The aspiring genius of Rome sacrificed vanity to ambition, and deemed it more prudent, as well as honorouble, to adopt virtue and merit for her own whatsoever they were found, among slaves or strangers, enemies or barbarians”.
[7] “During a happy period of more than fourscore years, the public administration was conduit by the virtue and abilities of Nerva, Trajan, Hadrian, and the two Antonines”.
[8] “[...] The firm edifice of Rome power was raised and preserved by the wisdom of ages. The obedient provinces of Trajan and the Antonines were united by laws and adorned by acts. They might occasionally suffer from the partial abuse of delegated authority; but the general principle of government was wise, simple, and beneficent”.
[9] “Tan buenos comienzos no eran una novedad en la historia; lo que sorprendió a Roma fué que Trajano cumpliera su promesa abundantemente”.
[10] “[AD 96 – Adoption and character of Trajan] Nerva had scarcely accepted the purple from the assassins of Domitian before he discovered that his feeble age was unable to stem the torrent of public disorders which had multiplied under the long tyranny of his predecessor. His mild disposition was respected by the good; but the degenereted Romans required a more vigorous character, whose justice should strike terror into the guilty. Though he had several relations, he fixed his choice on a stranger. He adopted Trajan, then about forty years of age, and who commanded a powerful army in the Lower Germany; and immediatly, by a decree of the senate, declared him his colleague and successor in the empire. It is sincerely to be lamented, that, whilst we are fatigued with the disgustful relation of Nero’s crimes and follies, we are reduced to collect the actions of Trajan from the glimmerings of an adridgement, or the doubtful light of a panegyric. There remains, however, one panegyric far removed beyond the suspicion of flattery. Above two hundred and fifty years after the death of Trajan, the senate, in pouring out the costumary acclamations on the accession of a new emperor, wished that he might surpass the felicity of Augustus, and the virtue of Trajan”.
[11] Excertos do Panegírico e da correspondência entre Plínio e Trajano podem ser lidos em Carneiro (1942, p. 117-132).
[12] Aliás, o episódio indicado no Paraíso refere-se ao de uma idosa que agradeceu a Trajano por este ter retardado a partida de uma expedição para atender a suas solicitações de justiça.
[13] Sobre a invasão e anexação da Dácia, considera Will Durant que Trajano não a realizou apenas por motivo de orgulho nacional, mas por jazidas de ouro presentes em seu território (Durant, 1955, p. 39-40). É possível, embora também seja possível pensarmos que o Império Romano tivesse condições de extrair internamente os metais preciosos para sua economia, ou mesmo por meio do comércio. De qualquer forma, é questão para pesquisa posterior.
[14] “Parmi les nombreux exemples que l’histoire peut fournir des dangereuses illusions propres à l’emploi des notions statiques sans leur complement dynamique, il convient ici d’indiquer l’immense aberration de tous les grands hommes de l’antiquité envers la préparation reservée au moyen âge. Au premier chapitre de ce volume, j’ai déja noté combien les meilleures âmes s’étaient longtemps méprises en repoussant le catholicisme naissant, que leur semblait écarter directement l’humanité du noble but social que les dernieres siècles venaient de leur révéler. Or, il faut ici reconnaître qu’une telle erreur, alors inevitable, résultait surtout de l’absence totale de conceptions dynamiques d’après lesquelles on pût apprécier les premiers pas essentiels qu’exigeait ce type statique. Depuis Scipion et César jusqu’à Trajan et Constantin, les penseurs et les hommes d’État sentirent de plus en plus que l’ensemble du mouvement romain poussait à faire prévaloir les notions positives sur les croyances théologiques ou métaphysiques et l’activité industrielle sur la vie guerrière. Faute d’une étude assez précise de la marche humaine, ils méconnurent entièrement la necessité de la transition monothéique et féodale. Les meilleurs d’entre eux furent ainsi conduits trop souvent à souiller leurs noms par d’atroces persécutions envers les vrais promoteurs spontanés du noble régime qu’ils ne cessaient de poursuivre d’après un type trop abstrait”.
[15] “Habitués, depuis la dictadure, à concevoir leur propre évolution comme une préparation nécessaire à l’état final de l’humanité, les Romains semblaient devoir aisément comprendre la nouvelle transition, suite naturelle de celle-là. Mais, faute d’une théorie historique, l’avénement de l’ordre normal leur parut autant immédiat qu’aux chrétiens, quoiqu’ils s’en formassent d’autres notions. Loin de reconnaître le besoin de la transition monothéique, ils la jugèrent directement hostile à l’ensemble de nos destinées. Quelque profonde et funeste qu’ait été cette méprise, elle devient inévitable, d’après les vices, intellectuelles et moreaux, de la nouvelle doctrine, en un temps où nul ne pouvait prévoir combien ils se trouveraient neutralisés par la situation occidantale. Tacite et Trajan sont pleinement excusables d’avoir considéré la foi naissante comme ennemie du genre humain, vu l’impossibilité de pressentir alors une réaction sociale que n’est aujourd’hui comprise que par les vrais philosophes”.
[16] Entretanto, há algumas discussões sobre se essa indicação foi devida aos méritos de Adriano, reconhecidos por Trajano, ou se por influência de sua esposa, Plotina, que teria tido um romance com Adriano. Parece-nos que, embora uma ou outra situação possa indicar traços diversos dos costumes romanos, o fato é que a escolha foi acertada, correta, com excelentes resultados – além, é claro, de ter ocorrido conforme os preceitos sociocráticos.
[17] Sobre as transformações da palavra “ditadura”, e mesmo sobre o conteúdo da democracia, cf. o excelente Sartori (1994, cap. 7).