02 março 2023

Apostolado Positivista - 1ª Circular Anual (168-2022)

No dia 2 de Aristóteles de 169 (27.2.2023), em nossa prédica positiva, iniciamos a leitura comentada do Catecismo positivista em sua parte do dogma, com a sexta conferência ("Conjunto do dogma"). Em seguida, expusemos em linhas gerais a nossa "1ª Circular Anual", que é um relatório, ou melhor, uma prestação pública de contas de nossas atividades sacerdotais ao longo do ano de 168 (2022).

A prédica foi exibida nos canais Apostolado Positivista (disponível aqui: l1nk.dev/DNjVf) e Positivismo (disponível aqui: l1nq.com/V4tqB). A exposição da Circular Anual ocorre a partir de 57'.


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APOSTOLADO POSITIVISTA

 

 

 

 

1ª Circular Anual (168-2022)

 

 

 

 

 

Viver às claras

 

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos

 

Concebei-a, minha filha, segundo os diversos modos ou graus do sacerdócio positivo, classificados na ordem de sua plenitude crescente. Este grande ministério exige um raro concurso das qualidades morais, tanto ativas como afetivas, com os talentos intelectuais, estéticos e científicos. Se, pois, estes forem os únicos salientes, seus possuidores, após uma cultura conveniente, terão de permanecer, talvez para sempre, simples pensionistas do poder espiritual, sem aspirarem nunca a ser nele incorporados. Em tais casos, felizmente excepcionais, o maior gênio poético ou filosófico não pode dispensar de ternura e de energia um funcionário que deve estar habitualmente animado por simpatias íntimas e destinado amiúde a lutas difíceis (Catecismo positivista, 5ª Conferência)

 

(Augusto Comte)

 


Sumário

 

1. Introdução justificativa. 3

2. O ambiente em que atua o Apostolado Positivista. 5

3. As atividades do Apostolado Positivista em 168 (2022) 10

3.1. Estrutura do Apostolado. 10

3.2. Início do Apostolado (19.1.2022) 12

3.3. Curso Livre de Política Positiva. 12

3.4. Prédicas positivas. 13

3.5. Lives AOP.. 14

3.6. Participação em eventos científicos e didáticos. 18

3.7. Manifestações cívicas. 18

4. Atividades futuras do Apostolado Positivista. 20

 

Apêndice 1: roteiro do curso de política positiva. 21

Apêndice 2: temas dos sermões. 23

Apêndice 3: abaixo-assinado antifascista. 24

 


1. Introdução justificativa

 

O presente documento é a primeira circular anual do Apostolado Positivista; ela abarca o ano de 168 no calendário normal, ou 2022 no calendário júlio-gregoriano[1]. O objetivo da circular anual é realizar uma prestação pública de contas das atividades desenvolvidas no período considerado. Antes de seguirmos adiante, convém explicarmos e justificarmos o que entendemos por “prestação de contas” e “pública”.

O conjunto de atividades que modestamente realizamos constitui propriamente um apostolado, ou seja, de difusão, aplicação e defesa de uma religião – no caso, a Religião da Humanidade, fundada em 1854 por Augusto Comte, “sob a angélica inspiração de Clotilde de Vaux” (na bela expressão de Teixeira Mendes). Embora esse apostolado seja uma iniciativa pessoal de nossa parte, tendo, assim, uma origem unilateral, os seus objetivos só podem ser atingidos na medida em que tais esforços encontram eco em um público mais ou menos interessado e, dessa forma, o apostolado constitui-se em um poder Espiritual. Na medida em que nos constituímos como poder Espiritual, passamos a ter a responsabilidade pelas ideias, pelos valores, pelos juízos emitidos; sendo uma ação exercido sobre o público, a nossa responsabilidade é justamente perante esse público.

De ordinário nossa responsabilidade pode ser avaliada no cotidiano, justamente pela qualidade das nossas opiniões e das nossas avaliações, bem como da oportunidade em que se propõe cada uma. Mas uma avaliação periódica do conjunto das atividades também se impõe, seja das atividades em si mesmas, seja das atividades em relação ao meio em que elas ocorrem.

Sendo o poder Espiritual um poder aconselhador, o seu fundamento sociológico é a confiança de que ele vê-se merecedor da parte do público que ele constitui, organiza e orienta. A prestação de contas consiste, portanto, na exposição e na avaliação das atividades desenvolvidas durante um certo período de tempo, elaborada pelo órgão atuante do poder Espiritual e dirigida ao público, a fim de este público avaliar, por sua vez, a correção e a oportunidade das atividades desenvolvidas pelo poder Espiritual. O objetivo normal dessa avaliação, por sua vez, é confirmar a confiança depositada pelo público no poder Espiritual.

A redação da circular anual, como forma de prestação de contas, não se constitui portanto em uma concessão liberalmente feita em algum momento pelo órgão do poder Espiritual – concessão que, nesse sentido, tanto pode ser feita como pode não ser feita. A circular anual é uma obrigação do poder Espiritual; é um dever que se constitui na contrapartida da confiança depositada pelo público no órgão do poder Espiritual. Por certo que todo poder Espiritual vê-se obrigado a tais prestações de contas; mas as espiritualidades teológicas e metafísicas, a partir de sua fundamental característica absoluta e, portanto, indiscutível, eludem essa responsabilidade, de tal maneira que os comportamentos efetivos dos órgãos espirituais e suas respectivas orientações tornam-se impassíveis de qualquer avaliação e, por outro lado, o público vê-se reduzido à confiança cega: em outras palavras, as espiritualidades absolutas são essencialmente irresponsáveis. Bem ao contrário disso, a espiritualidade positiva, a par de sua realidade e de sua relatividade, reconhece o seu dever perante o público; como dizia Augusto Comte, a positividade não teme a avaliação pública dos fundamentos da sociedade e é justamente a possibilidade de realizar tal exame que embasa a confiança do público no poder Espiritual. Em última análise, trata-se de realizarmos, naquilo que cabe ao poder Espiritual, a máxima pública “Viver às claras”.

Devemos apresentar dois últimos aspectos nesta introdução. A redação de circulares anuais não é uma novidade nossa; assim como a respeito de inúmeros outros aspectos, apenas retomamos e damos continuidade a tradições positivistas seculares, algumas delas recuando até o fundador da Religião da Humanidade, nosso mestre Augusto Comte; evidentemente, as circulares anuais incluem-se entre essas tradições. Assim, podemos ler nos quatro volumes do Sistema de política positiva (1851-1854) diversas circulares anuais de Augusto Comte, com exposições e reflexões sistemáticas sobre a propaganda positivista, as iniciativas adotadas, as dificuldades enfrentadas, os êxitos logrados; além disso, além da prestação de contas em termos “político-morais”, Augusto Comte realizava uma escrupulosa prestação de contas dos recursos que ele recebia na forma do subsídio positivista. Aliás, nesse sentido, Augusto Comte reiteradamente tinha que cobrar seus discípulos e seus simpatizantes no sentido de que a contribuição para o subsídio positivista não era mera liberalidade da parte destes, mas um dever religioso tão moralmente obrigatório quanto todos os demais deveres estabelecidos pela Religião da Humanidade, como os relativos aos nossos nove sacramentos.

Assim como o fundador da Religião da Humanidade, os apóstolos da Humanidade Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes adotaram desde o começo de seu apostolado sistemático no Brasil o hábito das circulares anuais – e, claro, pelos mesmos motivos de Augusto Comte e à luz do exemplo de nosso mestre.

O conjunto das observações acima evidencia, portanto, que a “circular anual” não consiste, isto é, não pode consistir em apenas um documento elaborado uma vez por ano, apresentando algumas considerações genéricas ou mesmo apenas breves relatos sobre as atividades desenvolvidas. A circular anual destina-se à prestação de contas de um órgão do poder Espiritual positivo para o público, tendo um caráter sintético mas sem que, com isso, deixem-se de lado descrições minimamente circunstanciadas das atividades desenvolvidas.

 


2. O ambiente em que atua o Apostolado Positivista

 

A fim de podermos avaliar adequadamente a ação desenvolvida pelo Apostolado Positivista, é necessário termos clareza do meio social em que se dá tal ação. Parece-nos que dois ou três aspectos inicialmente se apresentam.

Em primeiro lugar, as atividades do Apostolado Positivista ocorrem no Brasil. Como sabemos, nosso país tem dimensões continentais e uma grande população. O tamanho gigantesco do Brasil induz-nos a termos um olhar centrado em nós mesmos e, com exceção do que ocorre nos Estados Unidos, a ignorarmos as realidades externas. Por outro lado, o tamanho do território também resulta em uma dispersão geográfica da população, por si só impõe desafios e dificuldades, na medida em que as tradições, os usos e os costumes das várias regiões são por vezes bastante diferentes uns dos outros; além disso, os custos para reuniões físicas, presenciais, dos positivistas e dos simpatizantes entre si, são bastante elevados.

Entretanto, as características da grande população brasileira conduzem a dificuldades todas próprias. Não considero neste momento a já indicada variedade de usos e costumes; o que importa notar aqui é a combinação entre pobreza e analfabetismo generalizados. É claro que em si mesmos esses fatores não impedem a difusão do Positivismo; entretanto, eles impõem problemas seja para o Positivismo chegar a essa população, seja para essa população ter acesso ao Positivismo. A pobreza, com frequência miséria, restringe às vezes de maneira brutal as possibilidades da população de ampliarem os ambientes em que vivem, de acederem concepções morais, filosóficas, políticas e científicas diferentes daquelas já estabelecidas nos ambientes em que vivem (e que na quase totalidade são teológicas, sejam do catolicismo popular brasileiro, sejam, cada vez mais, dos agressivos, intolerantes e ultraindividualistas protestantes evangélicos); o analfabetismo mantém a população presa nesses circuitos e círculos viciosos.

Assim, em termos sociais amplos, o público mais facilmente acessível ao Positivismo no Brasil é a população de classe média, seja porque ela tem os meios de obter informações, seja porque com freqüência ela valoriza bastante a instrução formal. Ao mesmo tempo em que tem mais acesso a e mais interesse pelo ensino formal, a classe média também se desvencilha da teologia – embora seja necessário notar que o avanço dos evangélicos mesmo nesse grupo seja uma fonte de dificuldades e que, de qualquer maneira, o desvencilhar da teologia pela classe média de modo geral conduza-a não diretamente à positividade, mas oriente-a a diferentes modalidades de metafísica. (Não deixa de ser motivo de tristeza que o aspecto especificamente social desse nosso diagnóstico seja essencialmente o mesmo que o elaborado por Miguel Lemos na época da fundação da Igreja Positivista do Brasil, datada de 19 de César de 27 (11 de maio de 1881).)

Um outro aspecto fundamental consiste no caráter metafísico da política brasileira atual – na verdade, da política ocidental de maneira geral. Um sinal evidente dessa metafísica reinante é a importância atribuída à palavra “democracia” e à ética individualista, anti-histórica e antissocial dos “direitos”, em negação do conceito positivo, relativista e altruísta da sociocracia e da noção político-moral correlata de “deveres”; um outro sinal da metafísica ocidental é a centralidade da oposição “direita vs. esquerda”. Mas a relevância da palavra “democracia”, dos direitos e de “direita-esquerda” é apenas a parte visível dos valores e das concepções profundos que informam o Brasil e o Ocidente: esses valores e concepções correspondem plenamente às características morais da metafísica, isto é, o seu absolutismo, o espírito destruidor, a sua ânsia pela “criticidade” que arrasa todas as instituições e toda a historicidade humana. Não é nenhum acaso que a política ocidental seja bastante influenciada pelos Estados Unidos: esse país foi fundado sob a égide do protestantismo, isto é, da teologia já fortemente influenciada pelo espírito destruidor, e a secularização desse protestantismo resultou largamente na metafísica; os esforços empíricos ou sistemáticos em favor da positivização desse país ou foram excluídos na forma de experiências sociais e morais marginais, ou foram degradados pelo espírito ao mesmo tempo “empiricista”, metafísico, autocentrado e com freqüência intolerante e punitivista do país. Cabe reconhecer com clareza que o messianismo dos Estados Unidos desempenhou um papel altamente positivo no mundo ao estabelecer as bases da reorganização internacional após a devastação da II Guerra Mundial (com a criação da Organização das Nações Unidas e do sistema de instituições correlatas) e durante a Guerra Fria (com o enfrentamento do comunismo de origem soviética), quando a Europa foi arrasada, marginalizada e tornada dependente dos Estados Unidos: a partir disso, são os valores próprios a esse país que influenciam o resto do mundo e em particular o conjunto do Ocidente (mesmo que os vários países ocidentais não reconheçam essa influência).

Cabe aqui uma pequena digressão, relativa à França, cuja situação evidentemente é, ou seria, de particular importância para nós. Desde o final do século XIX a influência internacional da França passou a declinar; a I Guerra Mundial e, de maneira mais brutal e clara, a II Guerra Mundial e os acontecimentos posteriores conduziram esse país à perda de influência internacional.

Na própria França a positividade já cedia lugar à metafísica nos anos 1910 e 1920, por exemplo com o sucesso de Henri Bergson e com um irracionalismo especialmente dirigido contra o Positivismo. Essas duas tendências conjugaram-se no existencialismo, cujo sucesso começou já nos anos 1930, mas que teve seu auge após 1945. Embora algumas correntes filosóficas e científicas tenham procurado reafirmar a racionalidade e a realidade (como no caso do estruturalismo), nenhuma grande filosofia moral de caráter positivo desenvolveu-se e afirmou-se na França. O intenso ativismo de Sartre, ao mesmo tempo um pouco histérico e bastante confuso, foi apenas um último e breve esforço para reverter a decadência; ao existencialismo sucedeu-se o comunismo e este, por sua vez, cedeu espaço para a metafísica altamente corrosiva e niilista (inspirada por Nietzsche) de Foucault e dos pós-modernos. A partir da Guerra Fria, a França contentou-se ao mesmo tempo em buscar (sem sucesso e a custos políticos, sociais, morais e financeiros exorbitantes) manter um império colonial (Indochina-Vietnã, Argélia), em manter um antiamericanismo militante mas contraditório e um pouco infantil e, por fim, de maneira mais central para o que nos interessa, em autocentrar-se e em afirmar uma identidade nacional francesa. Esse autocentramento identitário, afirmando o “francesismo” como parte de esforços nacionais de reerguimento após a devastação da II Guerra e para fazer frente à hegemonia dos EUA, à perda do seu império e ao desafio da constituição e da manutenção da União Européia, especialmente após o famoso “maio de 1968”, resultou em que a França na prática abriu mão de suas ambições universalistas.

O que queremos notar com os comentários acima é que um conjunto de circunstâncias sociais e políticas refletiu-se na filosofia francesa, que decidiu conformar-se com o caráter politicamente secundário do país no mundo ao orientar suas reflexões para um caráter autocentrado e particularista. Embora, como indicamos, desde pelo menos o período entre-guerras já houvesse alguns traços irracionalistas na filosofia francesa, o fato é que após 1945 o irracionalismo e o niilismo irromperam com clareza cada vez maior (não por acaso, a partir de uma aceitação também cada vez maior de influências filosóficas da metafísica alemã): essa orientação refletiu, portanto, a perda mais ampla de objetivos sociais dos franceses. Dessa forma, a influência positiva e positivadora que a França poderia exercer no mundo, especialmente com base em sua filosofia, cedeu espaço para a metafísica de origem estadunidense: tal substituição não ocorreu apenas porque o messianismo estadunidense de origem protestante fundamentou com intensidade a convicta difusão internacional da influência e da maneira de conceber a realidade desse país; a substituição da França pelos Estados Unidos ocorreu também, em parte importantíssima, porque desde a II Guerra Mundial a França desistiu de exercer uma influência moral e filosófica verdadeira em âmbito internacional.

Retomando a argumentação que desenvolvíamos antes da digressão sobre a França: o atual caráter metafísico da política – ou melhor, da filosofia social disseminada – dificulta bastante a disseminação do Positivismo e da Religião da Humanidade. O espírito crítico, isto é, destruidor, corrosivo, pervade todos os ambientes sociais; some-se a isso o caráter altamente maniqueísta próprio à oposição direita-esquerda, em que a metafísica esquerdista é “progressista” e a teologia (ou até mesmo a metafísica) direitista é “retrógrada”: quem se opõe à metafísica da esquerda (por exemplo, cobrando o respeito à ordem, ou diretamente criticando a metafísica) é visto como “retrógrado” ou “reacionário” – mas, da parte da “direita”, quem afirma o progresso é visto como “revolucionário”. Mais do que isso: a modernidade corrói cada vez mais a teologia, que se vê, assim, cada vez mais acuada e, portanto, ela torna-se cada vez mais radical, mais intolerante e mais fanática; ao mesmo tempo, a influência dos Estados Unidos sobre o Brasil não se dá somente por meio da importação da metafísica estadunidense, mas também da reação teológica própria aos Estados Unidos, de tal sorte que os teológicos brasileiros, sob efeito dos evangélicos, tornam-se progressivamente mais reacionários, mais agressivos, mais fundamentalistas. É claro que, reagindo contra a metafísica, essa teologia torna-se, ela mesma, imbuída de metafísica.

A metafísica que pervade o ambiente social e político brasileiro (bem como ocidental) manifesta-se na forma de u’a mentalidade generalizada de que o bom comportamento social, político, filosófico e científico é “crítico”; essa “criticidade”, por sua vez, é entendida como sendo um estado permanente de desconfiança e o desejo, igualmente permanente, de destruir as idéias, as práticas, as instituições vigentes. Essa criticidade nas últimas décadas alcançou um auge no âmbito filosófico na forma do pós-modernismo, que é o niilismo e o irracionalismo transformados em parâmetros intelectuais fundamentais. Já em termos políticos, essa corrosão moral e social tem sido afirmada pela política identitária, que rejeita o universalismo, o altruísmo, a harmonia, a concórdia, e que em seu lugar propõe o particularismo, a institucionalização e a instrumentalização do ódio e do ressentimento, o punitivismo (tão próprio ao protestantismo e, a partir disso, à mentalidade dos EUA!) como parâmetros das relações sociais “boas”.

Toda essa metafísica resulta em um ambiente caracterizado por grande agressividade, tanto filosófica quanto política, em que um aspecto reforça (e mesmo complementa) o outro. O Positivismo vê-se atingido por essa disposição, na medida em que as críticas de que somos alvo passaram daquelas de origem marxista-comunista, de que o Positivismo seria uma “ideologia burguesa”, para críticas de origem identitária, como a de que seríamos “eurocêntricos”, “patriarcais” ou mesmo “racistas”! A intensidade desse espírito metafísico é tão intensa que mesmo pessoas próximas ao Positivismo muitas vezes insistem nessas críticas, que, todavia, são erradas tanto do ponto de vista teórico (o Positivismo pura e simplesmente não é nem “eurocêntrico”, nem “patriarcal”, nem “racista”), quanto do ponto de vista moral e religioso (essas críticas originam-se da metafísica, que, como se sabe e como vimos reafirmando, é uma disposição destruidora, corrosiva e antirreligiosa)[2].

Fizemos referência ao comunismo: ele próprio é uma forma de metafísica, menos intensa, ou melhor, menos corrosiva que a modalidade niilista-irracionalista identitária e pós-moderna. Em termos sociais e políticos mais amplos, a derrota do comunismo em âmbito internacional, em 1989-1991, levou ao descrédito geral dessa filosofia e dessa política, embora, como é notório, as más condições de vida em inúmeras partes do mundo sejam um contínuo alimento para o radicalismo comunista[3].

O que importa notar, de qualquer maneira, é que o descrédito do comunismo libertou os espíritos ocidentais desses grilhões mentais e morais, permitindo que as novas gerações desejosas de melhoras sociais e morais buscassem outras possibilidades: não me parece casual que o Positivismo esteja sendo objeto de renovada atenção de jovens, isto é, de pessoas nascidas a partir da década de 1990. No mesmo sentido, não é casual que as antigas críticas comunistas contra o Positivismo, marcadas pelo seu sectarismo característico, já não sejam mais empregadas e que as efetivas contribuições positivistas para o progresso social sejam revalorizadas, seja em termos empíricos, seja em termos teóricos – e, muitas vezes, essa revalorização dá-se mesmo pelos comunistas ou por indivíduos próximos ao comunismo.

O último aspecto que exige necessita ser indicado na presente caracterização do ambiente em que se desenvolve a atuação do Apostolado Positivista é o próprio “local” em que ela ocorre: trata-se do advento da internet e de sua popularização, justamente a partir de meados da década de 1990. Aliás, é o advento da internet e, em particular, das chamadas “redes sociais”, com suas amplas e crescentes possibilidades de produção de conteúdo e de interação entre os indivíduos o que importa aqui. Ao suprimir as dificuldades de reunião física e, ao mesmo tempo, ao permitir interações em “tempo real”, pessoas dos mais variados lugares podem reunir-se e, assim, constituir um grupo ativo e interessado.

Além das possibilidades de interação à distância e em “tempo real”, a internet e suas “redes sociais” constituem-se também em um acervo disponível e acessível virtualmente a todos; ou seja, ela é uma biblioteca de vídeos, de interações, de manifestações e de textos. Por fim, mas não menos importante, ao contrário das tecnologias anteriores de comunicação (livros, jornais, rádio e televisão), a internet e as “redes sociais” têm um custo baixíssimo, que facilitam e até estimulam a produção de conteúdo[4]. Na medida de suas possibilidades concretas, a propaganda positivista deve lançar mão de todos os recursos disponíveis e possíveis; sem deixar de produzir livros e artigos, nem deixar de realizar prédicas, cursos e palestras, o Positivismo pode e deve desenvolver uma crescente atividade na internet[5].


3. As atividades do Apostolado Positivista em 168 (2022)

 

A partir das reflexões e justificativas anteriores, a exposição das atividades desenvolvidas pelo Apostolado Positivista torna-se mais simples, podendo limitar-se à descrição circunstanciada dos vários aspectos de nossa atuação e de cada um dos tipos de eventos e dos resultados que temos obtido. Por esse motivo, esta seção está dividida em diversas subseções; com uma exceção, cada uma dessas subseções é de tamanho reduzido.

 

3.1. Estrutura do Apostolado

 

Antes de mais nada temos que esclarecer o nome: a tarefa de divulgação de uma doutrina é, por definição, a de um apostolado; sendo a doutrina o positivismo, é claro que se trata de um “apostolado positivista”. Esse nome também é uma homenagem à bela e nobre atuação dos apóstolos da Humanidade Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, fundadores da Igreja Positivista do Brasil. Homenagem, porém não cópia: na medida em que já existe o “Apostolado Positivista do Brasil”[6], desejamos continuar essa bela tradição, atualizando-a, mas ao mesmo tempo evitando problemas terminológicos; daí apenas o nome “Apostolado Positivista”, sem o “do Brasil”. Mutatis mutandis, considerações semelhantes fizeram-nos evitar a expressão “Igreja Positivista”.

O Apostolado Positivista desenvolve suas atividades basicamente pela internet, especialmente em dois canais, ambos em “redes sociais”: o canal Positivismo, canal disponível no Youtube sob o nome “The Positivism”, e o canal Apostolado Positivista, disponível no Facebook; os respectivos endereços são estes: Youtube.com/ThePositivism e Facebook.com/ApostoladoPositivista. Ambos são de acesso gratuito, embora o Facebook imponha a exigência de registro em sua rede para o acesso (obtendo, portanto, dados pessoais)[7]. Além desses canais, usamos também o blogue Filosofia Social e Positivismo, sediado no Blogspot, com o seguinte endereço: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/. Finalmente, é importante lembrar que nossas atividades desenvolvem-se também por meio de textos impressos: livros, artigos em revistas científicas, artigos em revistas de opinião, artigos em jornais noticiosos.

Na medida do possível, todas as atividades do Apostolado Positivista são desenvolvidas simultaneamente nos dois canais acima indicados e depois replicados em outros meios (por exemplo, no blogue e em comunidades e com contatos no Whattsapp). Outras “redes sociais” podem ser empregadas, mas, na medida em que a quase totalidade do trabalho de preparação, produção, realização, finalização e divulgação cabem a mim mesmo, cada rede social adicional impõe custos crescentes, tanto em termos de tempo quanto de habilidades que devem ser mobilizadas. Vale também a pena indicar que os custos financeiros envolvidos em tudo isso são cobertos única e exclusivamente por mim, incluindo aí assinatura de internet e aquisição de material (para eventos virtuais e também livros). Nas próximas subseções desta Circular exporemos com um pouco mais de detalhes as atividades que realizamos como Apostolado, mas vale citar que elas são de três tipos: (1) as prédicas (sejam as regulares, de caráter semanal, sejam as extraordinárias, como no caso da celebração da Festa da Humanidade e do nascimento de Augusto Comte); (2) as Lives AOP; (3) palestras variadas.

Afirmamos acima que a quase totalidade dos esforços desenvolvidos cabem a nós mesmos; isso exige duas observações complementares. A primeira é que isso se dá mesmo apesar de já termos solicitado, anteriormente, o apoio de outros simpatizantes e/ou correligionários. Infelizmente, a facilidade de criação de canais e de grupos nas redes sociais estimulam a fragmentação dos esforços, em que cada novo aderente ou cada novo simpatizante, com freqüência desejoso de “fazer alguma coisa”, entende que sua atuação deve ser plenamente autônoma e “nova”; passado o afã inicial, essas iniciativas são deixadas de lado, sem que tenham convergido nem que tenham realizado uma divulgação mais sistemática do Positivismo.

A segunda observação complementar é no sentido de matizar a afirmação de que realizamos sozinhos a quase totalidade das atividades. Em primeiro lugar, na medida em que mantemos um apostolado, nossos esforços são principalmente no sentido de divulgar a doutrina positivista e, secundariamente, de aplicá-la: ora, a divulgação pressupõe que o trabalho de elaboração já foi feito – e é evidente que esse trabalho foi realizado por nosso mestre Augusto Comte, seja como autor original, seja como intérprete maior da Humanidade. Em sentido semelhante, baseamo-nos e inspiramo-nos em toda a tradição positivista ortodoxa, a começar pela da Igreja Positivista do Brasil, estabelecida desde 1881 até 1927 pelos grandiosos Apóstolos da Humanidade, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes e seguida nas décadas seguintes por inúmeros outros positivistas (Luiz Hildebrando Horta Barbosa, Henrique Batista da Silva Oliveira, Alfredo de Moraes Filho, Rubem Descartes de Garcia Paula, Stella da Cunha Santos, Beatriz Torres Gonçalves, Wally Leal Freire de Souza, Sofia Torres Gonçalves e muitos outros correligionários)[8]. Além disso, auxiliando-me com freqüência, sugerindo temas, interpretações e dando um apoio constante, além de ser um representante da tradição da Igreja Positivista do Brasil, está o nosso amigo Hernani Gomes da Costa. Luiz Gustavo Mota também auxiliou ao elaborar semanalmente cartões de divulgação, especialmente para o Curso Livre de Política Positiva.

Por fim, se o trabalho que realizo é de divulgação, esse trabalho também é de comunicação – e toda comunicação tem dois pólos, dos quais ocupamos apenas um: o público que acorre ao Apostolado, que assiste aos eventos e lê os textos, esse público também desempenha um papel importante, ainda que mais passivamente; é esse público que, espero, honra-nos com sua confiança.

 

3.2. Início do Apostolado (19.1.2022)

 

O Apostolado Positivista iniciou suas atividades no dia 19 de Moisés de 168 (19.1.2022), ao celebrar o 224º aniversário de nascimento de nosso mestre, Augusto Comte. Foi uma transmissão ao vivo, no canal Apostolado Positivista, criado justamente naquele dia[9].

Antes dessa comemoração, já realizávamos um evento mensal, com a explicação dos meses dos calendários positivistas (abstrato e concreto), juntamente com celebrações de efemérides e aniversários importantes para o Positivismo; tais eventos ocorriam no canal Positivismo e não eram ao vivo, ou seja, eram gravados. Esses vídeos começaram a ser postados no dia 12 de São Paulo de 166 (2 de junho de 2020), com a celebração-explicação dos sextos meses dos calendários positivistas, e terminaram em 25 de César de 167 (17 de maio de 2021), com a celebração-exposição dos quintos meses dos calendários positivistas. Todos os roteiros e as respectivas anotações que elaboramos, bem como os endereços eletrônicos para os vídeos, estão disponíveis no blogue Filosofia Social e Positivismo.

(Na ocasião em que iniciamos essas exposições, decidimos começar pelo mês em que nos encontrávamos, em vez de iniciar, de fato, pelos primeiros meses do ano. Se essa decisão foi bastante contraintuitiva – e ela realmente o foi –, por outro lado ela evitou que tivéssemos que preparar quatro ou cinco vídeos preliminares: com isso, procuramos evitar uma demora que, àquela altura, parecia-nos incômoda e desnecessária.)

 

3.3. Curso Livre de Política Positiva

 

Após a celebração do nascimento de Augusto Comte, consideramos quais as atividades que poderíamos realizar no Apostolado Positivista. Por um lado, tínhamos a experiência das exposições-celebrações dos calendários positivistas, realizadas nos dois anos anteriores; por outro lado, ainda não estava claro se e como poderíamos realizar prédicas virtuais.

Ao mesmo tempo, consideramos a impressionante atuação do positivista ortodoxo carioca Luiz Hildebrando Horta Barbosa, que, durante várias décadas, ao mesmo tempo em que trabalhava como engenheiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizou dezenas de palestras públicas, publicou dezenas de artigos e ainda realizou prédicas na Igreja Positivista do Brasil: em especial suas palestras tinham o caráter de instrução popular e versavam sobre os mais variados temas (Filosofia, História, Ciências, Moral)[10]. Horta Barbosa deu seguimento a uma bela e honrosa tradição positivista de realizar cursos públicos e gratuitos de instrução popular, conjugando perspectivas filosóficas, morais, históricas e científicas – tradição não por acaso iniciada diretamente por Augusto Comte, seguida por dezenas de positivistas franceses, chilenos, mexicanos, ingleses e brasileiros, além dos de outras nacionalidades.

Assim, inspirado por esses exemplos, decidimos realizar um curso livre de política positiva, expondo a Sociologia Política de inspiração positivista[11]. Em todo caso, após uma breve consulta a correligionários para obter sugestões e comentários, propusemos um curso à distância de 15 sessões (e que acabou tendo 16 sessões). Realizado às terças-feiras a partir das 19h, iniciou-se em 11 de Aristóteles de 168 (8 de março) e terminou em 4 de Carlos Magno (21 de junho), com um público fiel composto tanto por positivistas quanto por interessados em geral e que acorreu ao curso realmente buscando os conhecimentos que nos propusemos expor. O ementário consolidado do curso está reproduzido no Apêndice 1. Vale lembrar que tanto o ementário quanto, principalmente, os vídeos das sessões estão disponíveis nos canais indicados (Positivismo, Apostolado Positivista e blogue Filosofia Social e Positivismo).

 

3.4. Prédicas positivas

 

O Curso Livre de Política Positiva foi uma experiência exitosa; além da divulgação de conhecimentos políticos, sociológicos, históricos e morais para o público interessado, pessoalmente desenvolvemos habilidades mínimas na gestão de eventos virtuais ao vivo. A partir disso, sentimo-nos seguros o suficiente para darmos início diretamente a prédicas semanais.

Para as prédicas semanais, decidimos manter o dia da semana e o horário em que se realizaram as sessões do curso livre: terças-feiras a partir das 19h. A data de início das prédicas foi 24 de Dante (8 de agosto), após um recesso de seis semanas desde o término do curso livre e nossas próprias férias laborais. O nome escolhido foi “prédicas positivas”, com o “positivo” no polissêmico sentido dado a essa palavra por Augusto Comte no Apelo aos conservadores: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Esse nome também evita a parcialidade própria e inevitável às expressões – de qualquer maneira, belas e imponentes – que Augusto Comte criou para caracterizar o regime positivo: “sociocracia” (regime), “sociolatria” (culto) e “sociologia” (dogma) (bem como as suas variações).

As prédicas positivas inicialmente previam duas partes, mas rapidamente elas passaram a contar com três partes, de diferentes extensões:

1)      uma seção inicial, em que fazemos comentários variados, lembrando efemérides, elogiando ou criticando situações cotidianas etc.;

2)      a leitura comentada do Catecismo positivista, em que, em meio à leitura dessa bela obra, intercalamos explicações e/ou aplicações dos trechos lidos;

3)      sermões, em que realizamos reflexões sobre temas variados a partir do Positivismo.

Tanto nos comentários ao Catecismo positivista quanto nos sermões procuramos evidenciar o que corresponde à letra e ao espírito específicos de Augusto Comte e o que é a nossa interpretação, ou aplicação, pessoal. Devemos insistir na importância da leitura direta da obra de Augusto Comte: com esse procedimento ao mesmo tempo simples, respeitoso e eficiente, escapamos de boatos e opiniões que atribuem ao fundador da Religião da Humanidade as idéias mais disparatadas, mais contraditórias entre si e mais opostas ao que ele realmente disse e quis dizer.

Os sermões tratam de questões atuais ou de temas de interesse público, dos mais variados âmbitos. O seu objetivo, então, é aplicar o Positivismo e a Religião da Humanidade na prática; em alguns casos essas aplicações são “clássicas” (como com o “Ordem e Progresso”), mas em outros casos são menos evidentes e que, por isso, vale a pena apresentar (como nos casos do “amor”, da “felicidade”, da “gratidão” e das “crenças no sobrenatural”). A Religião da Humanidade é real, é útil, é relativa, é altruísta, é simpática e é cívica; para ser uma religião viva, pulsante, ativa, ela deve evidenciar a sua sempre renovada capacidade de ser aplicada às mais variadas situações concretas: é para tais aplicações concretas que realizamos os “sermões”, ou reflexões positivas. (No Apêndice 2 inserimos a relação dos temas abordados nos sermões, bem como das Lives AOP – de que trataremos na seqüência.)

Com algumas interrupções devidas a problemas de saúde (resfriado, enxaqueca), realizamos as prédicas continuamente até o dia 18 de Bichat (20 de dezembro), quando entramos em recesso, para a retomada das prédicas em 17 de Moisés de 169 (17 de janeiro de 2023). Prevíramos, de qualquer maneira, duas prédicas excepcionais: a da Festa Geral dos Mortos (31 de dezembro) e a da Festa da Humanidade (1º de Moisés – 1º de janeiro); todavia, ficamos gripados desde alguns dias antes do final do ano até alguns dias depois do ano novo, portanto incapazes de realizar qualquer atividade.

 

3.5. Lives AOP

 

As prédicas positivas têm um aspecto cultual que importa sempre respeitar e preservar; mesmo os sermões, que por vezes abordam aspectos mais políticos e controversos – e, portanto, supostamente mais distantes desse caráter cultual –, são elaborados à luz da mais cuidadosa ortodoxia positivista. As prédicas, portanto, permitem conversas, esclarecimentos, até mesmo a avaliação positiva de polêmicas; mas em si mesmas elas não se prestam a “debates”, especialmente ao entrechoque ativo de perspectivas “extrapositivistas” sobre e com o Positivismo.

Além disso, há temas e situações que exigem da parte dos positivistas uma postura mais enérgica e dura, o que também se afasta um pouco do aspecto mais cultual e afetivo das prédicas. Como vivemos em uma sociedade de liberdades – característica que, aliás, é ativamente defendida pela Religião da Humanidade –, todos têm liberdade de manifestar-se a respeito do Positivismo; todavia, um aspecto chocante dos supostos “debates” públicos que envolvem o Positivismo (em termos doutrinários e/ou em termos históricos) é que se fala muito do Positivismo mas é-nos terminantemente proibida a nossa própria manifestação. Dois casos são exemplares a respeito.

Em primeiro lugar, isso ficou flagrante e escandalosamente claro na matéria publicada pelo portal BBC Brasil em 30 de agosto de 2020, da autoria de Vinícius Mendes e intitulada “Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil”[12]: o jornalista consultou inúmeros “pesquisadores” – que falaram o que bem entenderam sobre o Positivismo, com ou, mais freqüentemente, sem razão –, mas o autor da matéria recusou-se terminantemente a consultar os próprios positivistas! Em conversa pessoal imediatamente posterior à publicação, de acordo com um dos pesquisadores entrevistados e com quem mantemos boas relações (Christian Lynch), a redação do portal BBC Brasil recusou-se (ou melhor, proibiu) explícita e intencionalmente a entrevista com os próprios positivistas. Além de esse comportamento supostamente ir contra os melhores parâmetros da ética jornalística, isso se constituiu pura e simplesmente em censura.

O segundo caso evidenciou-se em 2021 e repetiu-se (ou teve ecos) em 2022. Aproximando-se o dia 19 de novembro, que é o dia da bandeira, como não poderia deixar de ser a referência ao Positivismo é mais ou menos de praxe. Entretanto, desde pelo menos 2021 existe um grupo social que se mobiliza ao redor do mote “Inclua o amor na bandeira”. Por si só, esse grupo seria apenas mais das centenas, talvez milhares de grupos que se formam todos os dias, propondo as mais variadas questões, algumas corretas, outras disparatadas; mas, além de reunir cidadãos “comuns”, esse grupo congrega, ou pelo menos tem o apoio, de personalidades com grande evidência (atrizes, músicos, políticos), obtendo em virtude disso, por exemplo, o gigantesco privilégio de ser objeto de matéria (simpática, enorme e detalhada) nas versões impressa e eletrônica do jornal Folha de S. Paulo[13]. Com base nisso, a proposta desse grupo é bem simples: incluir a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso” na bandeira nacional. Não há dúvida de que essa é uma proposta aparentemente simpática e convergente, facilmente compreensível pelo grande público e que inspiraria bons sentimentos; em condições normais, ela poderia ser debatida com tranquilidade. Todavia, um exame – mesmo superficial – da proposta, das concepções de base e do comportamento do grupo “Inclua o amor na bandeira” logo revela inúmeros, graves e profundos problemas:

1)      o grupo “Inclua o amor na bandeira” consciente e propositalmente faz afirmações peremptórias sobre o Positivismo, sobre o “Ordem e Progresso” e sobre a atuação de Raimundo Teixeira Mendes, como se fossem conhecedores de qualquer uma dessas coisas;

2)      essas afirmações peremptórias são, quase todas elas, erradas[14];

3)      o grupo “Inclua o amor na bandeira” nunca fez nenhuma questão de conversar com os positivistas a respeito de sua proposta e, em 2021, quando nos manifestamos junto a ele, fomos simplesmente desdenhados, desprezados e tratados com impaciência[15].

Erros (repetidos ou não) de boa-fé são apenas erros; erros (principalmente os repetidos) de má-fé são demonstrações de defeitos morais, intelectuais e práticos. Nos dias que correm a repetição intencional de erros – a “desinformação” – ganhou o nome de “fake news”, cujos efeitos sociais e políticos sabidamente são desastrosos e estão sendo objeto das mais detida preocupação pública. Ao rejeitar ouvir o Positivismo, o grupo “Inclua o amor na bandeira”, embora pareça simpático e afirme defender o amor, contra o ódio, na prática infeliz e contraditoriamente desenvolve um ativismo que reproduz o que está na base de todas as campanhas de ódio social.

Os dois relatos acima – sobre a matéria no portal BBC Brasil e sobre o grupo “Inclua o amor na bandeira” – comprovam o que afirmamos antes: fala-se sobre o Positivismo (e, em particular, fala-se mal) mas recusa-se a palavra ao Positivismo. Isso é ainda mais chocante e escandaloso em nossa época caracterizada pela metafísica identitária, que afirma sem cessar a categoria prática do “lugar de fala”: somente o próprio grupo pode falar sobre si mesmo; os outros grupos não podem falar uns dos outros, exceto se for para concordar com o que o grupo original fala. O “lugar de fala” tem um acentuado caráter excludente, discriminatório e estimulante dos ressentimentos; esse caráter fica evidente ao constatar-se que só se considera aceitável o “lugar de fala” para os grupos autointitulados “excluídos”, “marginais”, “minoritários”; a todos os demais é proibido o “lugar de fala” e, bem vistas as coisas, é proibida qualquer fala (o que se constitui em censura).

Ora, se ao Positivismo e à Religião da Humanidade é recusada a possibilidade de manifestar-se quando os outros tratam de nós, os positivistas não podemos aceitar a imputação de erros, distorções e mentiras a nosso respeito, nem a censura, quer seja ela relativa a esses erros, quer seja a censura em geral. Em outras palavras, é necessário o Positivismo exigir e fazer valer suas perspectivas, isto é, alguma coisa como uma concepção positiva (relativa, altruísta, includente) do “lugar de fala”.

Em face dessas duas situações (debates sobre o Positivismo, manifestação clara das perspectivas próprias ao Positivismo) decidimos criar as “Lives AOP”. A primeira ocorreu no dia 13 de Descartes (20 de outubro), com a exposição intitulada “Ecopositivismo: a aproximação entre o Positivismo e a condição ecológica da sociedade humana”, feita pelo doutor Felipe Zorzi. Tivemos ainda outras três Lives AOP: em 27 de Descartes (3 de novembro), a palestra “Positivismo, trabalho e pacto com os subalternos” com o mestre Maxmiliano Pinheiro; em 13 de Frederico (17 de novembro), proferimos a palestra “O Positivismo, a República e a bandeira nacional”; por fim, em 19 de Bichat (21 de dezembro), a doutora Fernanda Alcântara realizou a palestra “Harriet Martineau e Augusto Comte”. (No Apêndice 2 as Lives AOP estão relacionadas na ordem em que ocorreram, juntamente com os temas dos sermões das prédicas.)

O nome “Live AOP” exige duas explicações. O “Live” é uma concessão de caráter propagandístico às gírias contemporâneas; é uma forma simples, fácil e prática de atualizar o formato da nossa propaganda. Já o “AOP” consiste nas iniciais de “amor, ordem e progresso”, com o que ao mesmo tempo indicamos o caráter positivista da iniciativa, fazemos uma referência à nossa fórmula sagrada (“O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”) e também fazemos outra concessão propagandística às gírias contemporâneas, tão simpáticas à proliferação de siglas.

Uma última observação sobre as Lives AOP. Ao longo do século XX, após a transformação de Teixeira Mendes, em 1927, os positivistas brasileiros chegaram a conclusões semelhantes às que nós mesmos chegamos: por um lado, a necessidade do respeito ao aspecto cultual das prédicas semanais; por outro lado, a necessidade de os positivistas manifestarem-se de maneira clara sobre os mais variados aspectos da política contemporânea. Essa dupla constatação levou-os a constituir o Clube Positivista, que durante décadas atuou como “braço político” da Igreja Positivista do Brasil, participando de iniciativas fundamentais para o país, como no caso da Campanha “O Petróleo é Nosso”, nos anos 1940 e 1950. Apesar do triste fim do Clube[16], sua existência logrou outros resultados além daqueles imediatos: ao criarmos as Lives AOP, desde o início fomos inspirados pelo belo exemplo dessa importante iniciativa cívica dos positivistas brasileiros. (Aliás, de maneira mais profunda, podemos considerar que as várias iniciativas de Augusto Comte e dos positivistas franceses também servem de inspiração mais profunda para as Lives AOP, como a Sociedade Positivista e a Sociedade Positivista de Ensino Popular).

 

3.6. Participação em eventos científicos e didáticos

 

Ao longo do ano tivemos a honra de sermos convidados para algumas palestras, realizadas à distância. Na primeira ocasião fomos convidados pela Profª Sheila T. Humphreys e expusemos a palestra intitulada “Desmistificando o Positivismo” no dia 11 de Homero (8 de fevereiro).

Duas outras palestras ocorreram, coincidentemente, a convite de membros do Partido Democrático Trabalhista (PDT) desejosos de conhecer algumas fontes históricas e teóricas do trabalhismo brasileiro. Assim, em 10 de Arquimedes (4 de abril), a convite de Luciano Zini, proferimos a palestra “Propostas sociais e políticas do Positivismo”; em 7 de Frederico (10 de novembro) repetimos, atualizando, essa palestra, a convite de Samuelson Xavier. Ambas essas palestras ocorreram apenas como áudio (ou seja, sem vídeo) por meio do Twitter e tiveram ampla participação de militantes do PDT e foram seguidas por longas conversas.

 

3.7. Manifestações cívicas

 

Na “Introdução justificativa” referimo-nos a diversos aspectos que caracterizam as sociedades brasileira e ocidentais; insistimos no caráter metafísico da política e fizemos referência à política identitária. Deixamos de lado a grave polarização que se tem manifestado no conjunto do Ocidente, desde meados da década de 2010; essa polarização é um aspecto da metafísica (e, em particular, da metafísica identitária). No Brasil essa polarização afirmou-se ao longo das linhas estabelecidas pela oposição direita-esquerda, em que a esquerda resumiu-se no Partido dos Trabalhadores (PT) (e em seu maior líder, Luiz Inácio Lula da Silva) e a direita, cada vez de maneira mais agressiva, definiu-se como antipetista sob a liderança fascista de um tenente cuja expulsão do Exército Brasileiro foi disfarçada devido à delicada conjuntura política dos anos 1980, o sr. Jair M. Bolsonaro. Este último senhor foi eleito Presidente da República em 2018; todo o seu governo consistiu em uma depredação generalizada das instituições republicanas, do serviço público e da sociedade civil brasileira; não à toa ele afirmou, logo no início de seu mandato, que deveria destruir muito antes de fazer qualquer coisa construtiva no país[17]. O caráter profundamente antipositivista desse político já poderia ser percebido por essa frase, proferida em um jantar em honra de um filósofo que sempre afirmou a correção moral do ódio sistemático e disseminado; mas o fato é que a destruição sistemática das instituições sociais e políticas foi acompanhada pela também sistemática conspurcação da bandeira nacional republicana, associada por ele ao seu projeto destruidor e fascista.

Padecendo durante todo o mandato do sr. Bolsonaro, nas eleições presidenciais de 2022 fomos convencidos por nosso amigo Hernani Gomes da Costa, especialmente no segundo turno desse pleito, de que deveríamos manifestar-nos, seja em defesa dos altos valores morais, cívicos e humanos representados na bandeira nacional, seja contra o fascismo e seu projeto antipositivista de ódio. Assim, redigimos um documento, a que demos o caráter de abaixo-assinado, intitulado “A bandeira nacional republicana não é fascista”. Esse documento, que se encontra reproduzido no Apêndice 3, foi tornado público em 19 de Descartes (26 de outubro), na semana anterior ao segundo turno das eleições presidenciais; ele mantém-se disponível neste endereço: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657 (acesso em 26.2.2023).

 


4. Atividades futuras do Apostolado Positivista

 

O ano de 168 (2022) foi bastante ativo e alvissareiro. A fundação do Apostolado Positivista, realizando prédicas ortodoxas, de caráter formativo e informativo, ensejou também uma série de outras ações correlatas a um apostolado e, em particular, na medida do possível, conforme as exigências e as responsabilidades do sacerdócio da Humanidade. Nos anos seguintes, nossa expectativa é de manter um ativismo no mínimo com a mesma intensidade, aperfeiçoando a infraestrutura técnica (a fim de melhorar a comunicação e a interação com o público) e melhorando, em termos morais, intelectuais e práticos, o nosso desempenho. Também desejamos “profissionalizar” a atuação, no sentido de criar desenhos e símbolos identificadores do Apostolado Positivista (logomarcas, ex-libris etc.).

Acima de tudo, temos a plena convicção de que a Religião da Humanidade é a religião do presente e, ainda mais, do futuro; que ela oferece o entendimento e os meios para a harmonia social e individual; que ela indica que e como podemos associar a felicidade individual e o bem-estar público. A partir da elaboração de Augusto Comte, sob a angélica influência de Clotilde de Vaux, repetimos a máxima fundamental da Religião da Humanidade: “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda.

 

Curitiba, 3 de Aristóteles de 169 (28 de fevereiro de 2023).

 


Apêndice 1: roteiro do Curso Livre de Política Positiva

 

Reproduzimos abaixo os tópicos abordados durante o Curso Livre de Política Positiva. Essa relação não corresponde exatamente ao que fora inicialmente planejado, mas, sim, aos temas abordados efetivamente em cada uma das semanas; é por isso que ele apresenta 16 semanas, em vez das planejadas 15. Além disso, reproduzimos apenas os tópicos abordados, sem incluir também as anotações pessoais em que nos baseamos para as exposições orais[18].

 

Sessão 1

Apresentação: justificativa; foco geral do curso; estrutura do curso

Notas sobre a biografia de Augusto Comte e sua época

Preliminares à Política Positiva I: relativismo

Sessão 2

Preliminares à Política Positiva II: historicismo; visão de conjunto e visão de detalhe; objetividade e subjetividade; descrições e prescrições; escala enciclopédica e graus de generalidade

Sessão 3

Preliminares à Política Positiva III: Estática e Dinâmica; a síntese subjetiva; o estado normal

Sociologia Estática I: teoria da religião: concepções e regulações gerais da existência humana

Sessão 4

Sociologia Estática II: teoria da família; os indivíduos

Sessão 5

Sociologia Estática III: teoria da linguagem

Sessão 6

Sociologia Estática IV: teoria da propriedade: origem e destinação sociais, gestão individual; luta de classes.

Sessão 7

Sociologia Estática V: teoria do governo: o poder Temporal

Sessão 8

Sociologia Estática VI: teoria do governo: o poder Temporal (concl.); o poder Espiritual

Sessão 9

Sociologia Estática VII: teoria do governo: o poder Espiritual (concl.)

Sessão 10

Sociologia Dinâmica I: os três estados da inteligência: teologia, metafísica, ciência e positividade

Sessão 11

Sociologia Dinâmica II: a lei dos três estados da atividade: guerra conquistadora, guerra defensiva, paz industrial

Sessão 12

Sociologia Dinâmica III: lei prática dos três estados (concl.); lei afetiva dos três estados

Sessão 13

Sociologia Dinâmica IV: relato histórico sociológico de Augusto Comte; fetichismo; astrolatria; transição própria ao Ocidente

Sessão 14

Sociologia Dinâmica V: teocracias antigas; tríplice transição ocidental (Grécia, Roma, Idade Média); duplo movimento moderno; Revolução Francesa

Sessão 15

Sociologia Dinâmica VI: Revolução Francesa como explosão resultante dos movimentos sociais anteriores; surgimento de vários partidos sociopolíticos durante a após a Revolução Francesa; fundação da Sociologia por A. Comte como síntese entre as sociologias do progresso (Condorcet) e da ordem (De Maistre); análises de conjuntura; fundação da Religião da Humanidade e papel de Clotilde de Vaux

Sessão 16

A Religião da Humanidade: a Trindade Positiva

A transição final: ditadura republicana; triunvirato positivo

Conceitos políticos importantes para o Positivismo: “Ordem e Progresso”; “conservadorismo”; “moralismo”

 


Apêndice 2: temas dos sermões

 

Agosto de 2023:

1.1. Estréia das prédicas positivas: 25.Dante.168 (9.8.2022)

1.2. Importância da leitura comentada das obras originais de Augusto Comte (no caso, do Catecismo positivista)

1.3. Oração positiva como prática de meditação

1.4. Sobre a gratidão

Setembro de 2022:

2.1. Bicentenário do Brasil e celebração de José Bonifácio

2.2. Sobre a tolerância

2.3. Sobre o “Ordem e Progresso”

2.4. Sobre a “sistematização da paz”

Outubro de 2022:

3.1. Sobre a confiança

3.2. Live AOP: Felipe Zorzi e seu “ecopositivismo”

3.3. Teoria positiva da esperança

Novembro de 2022:

4.1. Teoria positiva da felicidade

4.2. Teoria positiva dos deveres

4.3. Live AOP: Maxmiliano Pinheiro: “Positivismo, trabalho e pacto com os subalternos”

4.4. Sobre a visão de conjunto

4.5. Live AOP: Gustavo Biscaia de Lacerda: “O Positivismo, a República e a bandeira nacional”

4.6. Sobre o amor

Dezembro de 2022:

5.1. Sobre o “sobrenatural”

5.2. Sobre o progresso

5.3. Sobre as liberdades política e filosófica

5.4. Live AOP: Fernanda Alcântara: “Harriet Martineau e Augusto Comte”

 


Apêndice 3: abaixo-assinado antifascista

 

A bandeira nacional republicana não é fascista

 

Os abaixo-assinados – quer sejam positivistas, quer não sejam positivistas; reconhecendo e respeitando os valores e princípios subjacentes aos símbolos nacionais brasileiros, em particular a bandeira nacional republicana; reconhecendo a dramática situação política, social, intelectual e econômica vivida pelo Brasil no ano de 2022; considerando a apropriação cada vez mais reiterada dos símbolos nacionais por grupos sociais e políticos particularistas, violentos e intolerantes – têm a dizer o seguinte.

1. Os valores da bandeira nacional

A bandeira republicana brasileira foi instituída como símbolo nacional em 19 de novembro de 1889, quatro dias após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Ela foi elaborada por Raimundo Teixeira Mendes a partir das indicações precisas do fundador da Sociologia, do Positivismo e da Religião da Humanidade, Augusto Comte.

Símbolo nacional maior por excelência, ela une de maneira simples, elegante e harmônica o desenvolvimento histórico e a continuidade social, ao manter o fundo verde e amarelo da bandeira monárquica e ao inserir a esfera estrelada azul e a divisa política “Ordem e Progresso”, próprias à evolução republicana do país. Assim, essa bandeira segue a inspiração de “preservar melhorando”, de acordo com as leis da sociologia dinâmica descobertas por Augusto Comte.

A frase “Ordem e Progresso” representa o ideal de unir indissoluvelmente duas perspectivas políticas até então opostas, o respeito à ordem e a necessidade de progresso. Separadas, cada uma dessas perspectivas torna-se antagônica em relação à outra, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância.

Em particular, o respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante. Nada disso é liberdade ou cidadania, mas autoritarismo, militarismo e submissão abjeta.

2. A política positiva

A bandeira nacional republicana, bem como a divisa “Ordem e Progresso”, inspiram-se e representam os conceitos da política positiva; estes, por sua vez, podem ser sumariados como seguem:

-        subordinação da política à moral: subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade; subordinação das perspectivas específicas e particulares às concepções gerais e mais amplas; primado da publicidade e da racionalidade na vida coletiva, em particular nas ações com resultados públicos; afirmação dos deveres sociais, em particular responsabilizando claramente os fortes, os poderosos e os ricos por suas ações e omissões;

-        separação entre os poderes Temporal e Espiritual: rejeição de todo e qualquer clericalismo (teológico, metafísico e científico); rejeição do uso do Estado para promoção ou repressão de crenças, exceto no caso em que elas estimulem e/ou provoquem a violência; rejeição da eleição ou da indicação de sacerdotes para cargos públicos; defesa das liberdades de pensamento, de expressão e de associação;

-        pacifismo: rejeição de toda e qualquer violência na política (seja do Estado contra os cidadãos, seja dos cidadãos entre si), em particular na forma das agressões de policiais contra cidadãos; rejeição da atuação de militares e policiais na política; possibilidade de manifestar livremente as idéias e as concepções pessoais sem correr nenhum risco (físico e/ou profissional) por isso;

-        relativismo: prática da tolerância para com as diferentes crenças e religiões; respeito e proteção às comunidades indígenas; condenação de toda prática violenta na vida social.

3. Os fascistas contra o Positivismo

Desde pelo menos 2019, grupos fascistas e de extrema-direita têm manifestado a pretensão de tomar exclusivamente para si, de maneira sectária, a bandeira nacional republicana, incluindo aí o “Ordem e Progresso”. Diversas manifestações desses mesmos grupos evidenciam, entretanto, não somente que eles afastam-se dos ideais expressos na bandeira nacional republicana e no “Ordem e Progresso” como, ainda mais, são opostos e desprezam esses valores.

Assim, por exemplo, o mote do atual governo federal, que resume o programa fascista, é “Brasil acima de tudo e deus acima de todos”. Essa única frase rejeita ao mesmo tempo os princípios (1) da subordinação de todas as pátrias aos supremos interesses da Humanidade e (2) da separação dos poderes Temporal e Espiritual; inversamente, ela (1) estabelece como parâmetro de conduta o nacionalismo mais estreito e (2) a imposição oficial de doutrina teológica. Se isso não bastasse, o verso “Brasil acima de tudo” não por acaso retoma a frase empregada pelo regime nazista, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles).

Da mesma forma, não podemos esquecer as reiteradas manifestações de profundo ódio e preconceito político desses grupos contra o Positivismo, com o que mais uma vez evidenciam que desprezam os valores da bandeira nacional e o “Ordem e Progresso”:

-        “Os positivistas são lixo que necessitam ser expurgados” (Carlos Bolsonaro, 8/3/2020)

-        “Os positivistas são o pior câncer do Brasil” (Carla Zambelli, 5/7/2020)

-        “Enquanto a gente não resolver o positivismo, a gente não consegue desmontar o comunismo, socialismo, a esquerda no Brasil” (Abraham Weintraub, 27/6/2022).

4. Declaração final

Os valores, os ideais, as concepções subjacentes à totalidade da bandeira nacional republicana, incluindo aí a divisa “Ordem e Progresso”, condensam os melhores e mais altos princípios da política moderna. Todos esses princípios são profundamente estranhos à filosofia e à prática do fascismo. Mais do que isso: como se sabe, o fascismo baseia-se no estímulo sistemático e no uso político da violência; na militarização e na “policialização” da sociedade; na imposição de crenças pelo Estado e na busca de supressão das crenças não oficiais; no nacionalismo extremado, na xenofobia, na intolerância.

É em virtude de todos esses motivos que afirmamos sem medo de errar:

A BANDEIRA NACIONAL REPUBLICANA NÃO É FASCISTA!

 

 



[1] Utilizaremos as cronologias da era normal (iniciada em 1855) e a júlio-gregoriana. Não utilizaremos a cronologia da transição revolucionária (iniciada em 1789 e que estabelece que a 2022 corresponde 234) em virtude do caráter apostólico e ortodoxo da presente Circular.

[2] As dificuldades próprias a cada indivíduo, no sentido de tornar-se mais religioso – mais altruísta, mais sintético, mais harmonioso – são acrescidas, assim, de uma camada adicional. A metafísica tanto provoca distúrbios morais e sociais quanto dificulta extremamente a solução dos distúrbios, sejam eles provocados pela própria metafísica (de maneira direta ou indireta) quanto aqueles que existem independentemente dela.

[3] Além disso, evidenciado o necessário fracasso do comunismo, o radicalismo metafísico encontrou espaço no irracionalismo pós-moderno e em sua versão política, o identitarismo. Seja porque o identitarismo é antissocial e anti-histórico, particularista e excludente, seja porque, não por acaso, ele vê no Positivismo um de seus principais alvos, os profundos danos já produzidos e a produzir pelo identitarismo têm que ser objeto de atenção cuidadosa dos positivistas. Não há dúvida de que os profundos prejuízos sociais, políticos e morais do identitarismo ficarão cada vez mais evidentes e que, por isso, mais dia, menos dia, ele será combatido e superado; mas, até lá, ele continuará sendo daninho para as sociedades e os indivíduos (o nazifascismo demorou cerca de 25 anos; o comunismo, cerca de 70). Cabe ao Positivismo diminuir esse prazo, diminuir esse sofrimento e orientar sociedades e indivíduos pelo e para o altruísmo, o relativismo e a continuidade humana.

[4] Nada disso nega ou suprime os problemas que sempre estiveram associados às liberdades de pensamento e de expressão, especialmente na forma da chamada “liberdade de imprensa”: por um lado, possibilidade de censura e de imposição de doutrina oficial de Estado; por outro lado, possibilidade de boatos, avaliações superficiais e/ou desonestas, desinformação. Esses problemas sempre existiram; o advento da imprensa aumentou-os e evidenciou-os; já a internet e as “redes sociais” amplificaram-nos tremendamente. Em virtude disso, aliás, mais do que nunca a Religião da Humanidade faz-se necessária.

[5] Essa observação pode parecer banal, mas ela tem que ser feita, pois suas conseqüências não são triviais. Por um lado, é necessário termos clareza de que a propaganda via internet é complementar e não substitutiva da propaganda impressa e/ou presencial. Por outro lado, a realização de prédicas via internet exige a adequação cuidadosa e delicada de um evento central em termos religiosos para o meio específico, que é o da realidade virtual.

[6] A existência, ou melhor, a permanência atual da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil é meramente formal. Desde há muitos anos ela é inoperante e incapaz das mínimas ações em favor do Positivismo, da Religião da Humanidade e da memória de Augusto Comte, Clotilde de Vaux e dos apóstolos Miguel Lemos e Teixeira Mendes.

[7] Embora possa parecer evidente, convém observarmos que ficamos sujeitos às possibilidades técnicas, às flutuações e às mudanças de serviço realizadas pelas empresas provedoras de serviços de internet e das mantenedoras das “redes sociais”. Em termos mais concretos, isso significa que em vários momentos as transmissões sofreram interrupções, além de variadas dificuldades técnicas em termos de controle dos vídeos e das interações com o público.

[8] Para celebrar a Festa Geral dos Mortos de 167 (2021), mas expondo-o no dia seguinte, em 1º de Moisés de 168 (1º de janeiro de 2022), Hernani Gomes da Costa redigiu um belo documento, de caráter memorialístico, intitulado “Figuras da Igreja Positivista do Brasil com quem convivi”. Esse documento apresenta as suas interpretações pessoais de inúmeras pessoas que atuaram na Igreja Positivista do Brasil ao longo do século XX e com quem Hernani lá conviveu nas décadas de 1980 e 1990. O texto pode ser lido aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2022/01/hernani-gomes-da-costa-figuras-da-ipb.html (acesso em 28.2.2022).

[9] Esse vídeo está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=1dG_6z8KSMQ; acesso em 26.2.2023.

[10] A relação incompleta dos títulos dessas palestras pode ser lida no opúsculo “In memoriam de Luiz Hildebrando Horta Barbosa”, reunindo elegias de Joaquim Modesto Lima, Ângelo Torres e Rubem Descartes de Garcia Paula e disponível aqui: https://archive.org/details/inmemoriamdeluishildebrandohortabarbosa (acesso em 27.2.2023).

[11] A palavra “livre” foi necessária em virtude do academicismo oficialista reinante, que com freqüência sugere que cursos “de verdade” são apenas aqueles chancelados pelo poder público, em particular pelo Ministério da Educação. Além disso, sendo uma iniciativa pessoal nossa, não emitiríamos – como não emitimos – certificado de participação.

[12] Disponível aqui: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53829948; acesso em 27.2.2023.

[13] Matéria escrita por Joelmir Tavares, publicada em 18.11.2023 sob o título “Campanha quer escrever ‘amor’ na bandeira do Brasil e combater ódio político”. Pelo menos em sua versão eletrônica, a matéria oferecia um vínculo ativo para a inscrição em um evento do grupo: inscrevemo-nos e só conseguimos manifestar-nos em nome do Positivismo ao interromper a fala de um dos expositores oficiais, pré-aprovados, que então expunha a cantilena de erros sobre o Positivismo. A matéria está disponível aqui: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/campanha-quer-escrever-amor-na-bandeira-do-brasil-e-combater-odio-politico.shtml; acesso em 27.2.2023.

[14] Os erros são os seguintes: (1) a frase “Ordem e Progresso” não é original em si mesma, mas uma redução, ou melhor, uma deturpação da frase religiosa fundamental do Positivismo, “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”; (2) em vez de ser “Ordem e Progresso”, a frase “correta” seria “Amor, ordem e progresso”; (3) Teixeira Mendes, ao elaborar a bandeira entre 15 e 19 de novembro de 1889, teria suprimido o amor, assim deturpando propositalmente o pensamento de Augusto Comte; (4) a supressão deturpadora do amor foi devida à pressão dos militares (em particular de Benjamin Constant) sobre um timorato Teixeira Mendes; (5) a supressão do “amor” ocorreu com vistas à imposição da violência na sociedade (haja vista os militares). Cada uma dessas afirmações está errada, com os trechos errados destacados em itálico. Disso tudo, os únicos dados corretos são que Teixeira Mendes é o autor da bandeira nacional republicana, que ele inseriu nela o “Ordem e Progresso” e que graças à oportuna atuação de Benjamin Constant ela foi aceita como símbolo nacional republicano.

Como um esforço para combater os erros acidentais ou propositais, a desinformação e as mentiras, incluímos em 2019 no portal Internet Archive uma versão eletrônica da terceira edição do opúsculo A bandeira nacional, de Teixeira Mendes (opúsculo n. 110 da série da Igreja Positivista do Brasil; 1ª edição de 1892, 3ª edição de 1958), disponível aqui: https://archive.org/details/n.110abandeiranacional (acesso em 27.2.2023).

[15] Um exemplo bastante claro da difusão desses erros foi recentemente dado pela atriz Denise Fraga. Não sabemos se ela integra o grupo “Inclua o amor na bandeira”; além disso, em face dessa nossa ausência de dados, não queremos sugerir qualquer vínculo dela com o grupo. Disso isso, em novembro de 2022 a atriz Denise Fraga repetiu todos os erros que vimos criticando, em um evento da campanha eleitoral Luiz Inácio Lula da Silva; essa manifestação tornou-se imediatamente famosa e pode-se assistir a ela no vídeo “Denise Fraga: Ordem, Progresso e Amor” (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=SFv5ejsAI5U; acesso em 27.2.2023).

Na verdade, infelizmente Denise Fraga já manifestava esses erros em 2019, como se vê no artigo “Denise Fraga: ‘Palavras têm poder e nossa língua portuguesa carrega pequenos atos falhos’”, publicado no portal Revista Crescer, de 14 de maio de 2019 (disponível aqui: https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Denise-Fraga/noticia/2019/05/denise-fraga-palavras-tem-poder-e-nossa-lingua-portuguesa-carrega-pequenos-atos-falhos.html; acesso em 27.2.2023).

[16] O fim do Clube Positivista consumou-se com a perda do imóvel que ficava na Rua 13 de Maio, no bairro da Cinelândia, no Rio de Janeiro. A administração do Clube estava então a cargo da mesma pessoa que permitiu que o teto da Igreja Positivista do Brasil desabasse, em 2006.

[17] Cf. a matéria “‘Temos que desconstruir muita coisa’, diz Bolsonaro sobre Brasil”, de Natália Lázaro, publicada no portal Metrópoles, em 18 de março de 2019; disponível aqui: https://www.metropoles.com/mundo/politica-int/temos-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-sobre-brasil (acesso em 27.2.2023).

[18] A versão completa das anotações do curso estão disponíveis aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2022/06/curso-livre-de-politica-positiva_42.html; acesso em 26.2.2023.


22 fevereiro 2023

Comentários sobre direita e esquerda

No dia 17 de Homero de 169 (14.2.2023) fizemos nossa prédica positiva, concluindo a leitura comentada da quinta conferência do Catecismo positivista, dedicada ao culto público.

Na seqüência expusemos algumas considerações sobre os conceitos de direita e esquerda, a partir do Positivismo. As anotações desses comentários estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (acesse.one/O6mQo) e Positivismo (encr.pw/VVvpa). Os comentários sobre direita e esquerda podem ser vistos a partir de 49' 50".

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Anotações sobre direita e esquerda

 

-        “Direita” e “esquerda” são duas categorias políticas fundamentais nos debates políticos contemporâneos

o   Evidentemente, com base no Positivismo eu tenho muito a dizer a respeito delas

§  É importante insistir em um aspecto inicial: as reflexões expostas aqui são comentários pessoais, não de Augusto Comte

§  Isso não poderia ser diferente, na medida em que direita-esquerda tornaram-se categorias básicas após a vida de Augusto Comte

o   Mas: elas serem fundamentais nos debates políticos contemporâneos não equivale a dizermos que concordamos com elas e/ou que as consideramos adequadas ou suficientes

o   Nesse sentido, não por acaso, já me manifestei inúmeras vezes a respeito, com publicações no meu blogue (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/): “‘Ordem’ e ‘progresso’ como categorias sociopolíticas legítimas”, “Necessidade do ‘ordem e progresso’; superioridade sobre ‘direita-esquerda’, ‘situação-oposição’”, “Comparação entre Positivismo, direitas e esquerdas”

§  Alguns comentários retomarão argumentos expostos antes

§  A esse respeito, aqui está um modesto quadro comparativo que elaborei no início de 2020: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/02/comparacao-entre-positivismo-direitas-e.html

·         Esse quadro compara o Positivismo com as extremas direitas, a extrema esquerda, a direita intermediária, a esquerda intermediária, a centro-direita, a centro-esquerda e o centro, em função de 16 conceitos sociopolíticos relevantes ((1) ordem; (2) progresso; (3) tradição; (4) passado; (5) liberdade de pensamento; (6) liberdade de expressão; (7) família; (8) pátria; (9) Humanidade; (10) religião; (11) propriedade; (12) governo temporal; (13) governo espiritual; (14) paz; (15) igualdade; (16) indivíduos e individualidades)

-        O sentido da oposição direita-esquerda varia ao longo do tempo:

o   A origem de direita e esquerda está no início da Revolução Francesa, em que, na sala da assembléia (1789-1792), no alto e à esquerda sentavam-se os jacobinos, embaixo e à direita os reacionários e, no meio, os girondinos

§  Assim, durante o século XIX, a esquerda foi associada ao “progresso” (e/ou à revolução) e a direita, à “ordem” (e/ou à reação)

o   A partir do final do século XIX, a esquerda passou a ser associada a variados movimentos revolucionários: socialistas, comunistas, anarquistas; de qualquer maneira, cada vez mais ao marxismo

o   Com a Revolução Russa, em 1917, a esquerda passa a vincular-se decididamente ao comunismo soviético

o   A direita cada vez mais passa a definir-se de maneira residual e reflexa, como sendo a anti-esquerda ou a não-esquerda

o   Isso se cristalizou durante todo o século XX e, em particular, durante a Guerra Fria; após 1989, a feliz e necessária derrocada do comunismo pôs em questão a validade da oposição direita-esquerda

o   Em 1992 o filósofo italiano Norberto Bobbio reafirmou a oposição direita-esquerda e propôs que o conteúdo específico mais constante e importante da esquerda seria a igualdade e o da direita, a liberdade

§  É necessário admitirmos que essa proposta de Bobbio é muito cômoda e operacional; todavia, ela também é extremamente criticável, tanto no que se refere à direita quanto à esquerda

§  De qualquer modo, essa proposta tem o valor indireto de indicar o quanto a oposição direita-esquerda distanciou-se ao longo dos séculos da sua origem na Revolução Francesa

-        Uma outra forma de entender direita-esquerda é por meio de situação-oposição:

o   A oposição é quem não está no poder

o   Essa concepção é bem mais fraca que as que surgiram com a Revolução Francesa

-        Também é importante notar que, embora fale-se em direita e esquerda no singular, na verdade é necessário distinguir várias direitas e várias esquerdas (no plural), além da posição do “centro”

-        Ilustrando as várias direitas e esquerdas com a situação atual do Brasil:

o   As esquerdas dividem-se em esquerdas radicais, revolucionárias e leninistas (PCO); esquerdas “intermediárias”, de caráter revolucionário mas que aceitam os procedimentos eleitorais (PSTU, Psol, setores do PT); centro-esquerda, que tem perspectivas de esquerda, mas rejeita as revoluções e tem um franco diálogo com setores da direita (PDT, PSD, setores do PT, Rede)

§  Esses grupos afirmam buscar a igualdade social; as esquerdas “intermediárias” e a centro-esquerda assumem, cada vez mais, o facciosismo da política identitária; todos eles consideram que defendem o progresso, que é vagamente identificado com essas pautas

o   No Brasil, as direitas consolidaram-se bastante nos últimos anos; elas abrangem a extrema direita, que é militarista, fascista ou filofascista, evangélica e católica ultramontana, ultraliberal (PSL, PL, Republicanos); uma direita “intermediária”, de caráter liberal ou neoliberal (Republicanos, PL, União Brasil, PSDB)

§  O que dá coerência às direitas no Brasil é a rejeição à esquerda e ao vago progressivismo correlato; assim, as direitas defendem um vago – mas na prática bastante duro – conceito de ordem social, que ora defende o Estado mínimo, ora prega o retorno à Idade Média (ou à época de Moisés!); também se definem como “conservadores”; a presença dos evangélicos aí é cada vez mais pronunciada e agressiva

o   O centro consiste basicamente em políticos tradicionais que vendem seu apoio ao governo em troca de prebendas e que estão sempre prontos a pilhar o Estado; caracteristicamente são políticos favoráveis ao parlamentarismo, sem grande identidade ideológica, moral ou intelectual (PL, Republicanos, União Brasil, PSDB)

o   Para considerar as nossas reflexões sobre o mérito individual, expostas na prédica do dia 7.2.2023: enquanto a esquerda basicamente rejeita o mérito (em nome de seus ideais igualitaristas), a direita teológica considera que o mérito é obra divina (e, portanto, é um sinal da eleição divina, conforme o que o protestantismo prega) e a direita materialista reduz o mérito a uma concepção ultraindividualista e antissocial

-        Para o Positivismo, a oposição direita-esquerda é insuficiente e inadequada:

o   Evidentemente, é uma divisão muito cômoda e, é necessário convir, de modo geral, no dia a dia, ela é muito operacional

§  Essa “operacionalidade” também se deve ao caráter fortemente metafísico da política atual

o   Entretanto, a oposição direita-esquerda ela reduz a dinâmica social ao confronto interminável entre dois pólos, sem que haja nem a possibilidade nem o desejo de que esse confronto seja solucionado

§  Tal oscilação é cansativa, desgastante, degradante e, portanto, daninha para o ser humano

o   Além de manter a dinâmica social presa em uma oscilação virtualmente eterna, a oposição direita-esquerda é muito propícia para as polarizações mais ou menos extremas, com todas as suas conseqüências particularistas, excludentes e agressivas (na lógica do “nós contra eles”)

o   Também é importante notar que essa oposição é particularmente adequada para os partidos políticos, sendo menos adequada à dinâmica social

§  Ainda assim, há momentos em que a sociedade politiza-se de tal maneira que ela acaba partidarizando-se: é o que vemos no Brasil de dez anos para cá

o   Adicionalmente, os conteúdos específicos da direita e da esquerda são extremamente mal definidos, vagos e passíveis das mais variadas manipulações, muitas delas cínicas

o   Também é importante notar que a oposição direita-esquerda associa-se à política metafísica, com toda a demagogia daí resultante

§  A política metafísica propõe a “democracia”; o que se opõe, positivamente, a isso é a sociocracia

§  Para evitar inevitáveis confusões: a “democracia” criticada pelo Positivismo não é o atual regime de liberdades e de garantias; aliás, o regime de liberdades, garantias e opinião pública é a sociocracia; a democracia é o regime absoluto, autoritário, que considera que “a voz do povo é a voz de deus”; que considera que “o povo não erra”; excludente e clericalista, proposto por J.-J. Rousseau e realizado por M. Robespierre

·         Nesse sentido, não há como nem porque não deixar claro: o fascismo é rigorosamente “democrático”, bem como o comunismo

o   Por fim, mas não menos importante, é necessário realçarmos com toda a clareza que os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)

§  Embora a direita tenha uma origem teológica, nas últimas décadas ela assumiu um claro caráter metafísico, ao adotar o materialismo economicista e individualista próprio ao liberalismo (ou ao neoliberalismo, ou ao ultraliberalismo)

-        No âmbito do Positivismo, em vez de falarmos em “direita e esquerda”, falamos em “ordem e progresso” e em sociocracia

o   Sociocracia: regime da opinião pública altruísta e voltada para o bem público (que é basicamente a satisfação das necessidades do comum do povo), com fiscalização e responsabilização pública constante; afirmação dos deveres mútuos; liberdades públicas e garantias individuais; reconhecimento e disciplinamento do poder, da riqueza e dos indivíduos

o   “Ordem e progresso”: necessidades sociais igualmente necessárias, devem ser compatibilizadas para que cesse a oposição e a oscilação patológicas entre cada um dos princípios; a união ocorre com o altruísmo, a afirmação dos deveres, a prevalência da moral;

§  A “ordem” e o “progresso”, na sociocracia, têm definições filosóficas e sociológicas precisas: “o progresso é o desenvolvimento da ordem, a ordem é a consolidação do progresso”

-        Em relação aos grupos políticos de sua época, Augusto Comte entendia da seguinte maneira a ordem e o progresso:

o   O grupo da ordem: os reacionários; teológicos (católicos) e monarquistas; afirmação dos elementos da ordem social (de modo geral, da Estática Social), mas com sacrifício do progresso e com justificativas absolutas e teológicas, desejosos de manter os valores do feudalismo ou de retornar a essa época; basicamente passivos politicamente; escola de De Maistre e De Bonald

o   O grupo do progresso: os revolucionários; metafísicos (materialistas ou espiritualistas; juristas ou literatos) e democratas (às vezes parlamentaristas, com freqüência clericalistas); desejosos de realizar o progresso com sacrifício da ordem; revolta contra o poder, contra o capital, contra a história; corresponde ao grupo que tem a primazia política atual; escola de Rousseau, Voltaire, Robespierre

o   O grupo da ordem e do progresso: os positivistas; sociocratas, republicanos; propõem a conjugação necessária, imperiosa e inadiável entre ordem e progresso, com o liame do amor; consagra e disciplina o poder e a riqueza, a partir da história e do altruísmo; escola de Augusto Comte, Diderot, Danton

-        Até onde conseguimos perceber, Augusto Comte era particularmente crítico do grupo do progresso – e isso devido a pelo menos dois motivos:

o   O grupo do progresso afirmava o progresso sacrificando totalmente a ordem (e, em particular, a historicidade humana)

§  Não por acaso, como sabemos, a concepção de progresso mobilizada pela “esquerda” é vaga e/ou quimérica, extremamente crítica e considera que o passado é um pesado fardo

o   O grupo do progresso detém a primazia política, no sentido de que a ele competem as iniciativas e o ativismo sócio-político: só por isso sua importância social é enorme

§  Mas, como os princípios que orientam o grupo do progresso são ruins, a prática política daí derivada também é ruim

o   Esses dois fatores conjugados realçam o fato de que o grupo que possui a liderança social, embora supostamente represente uma das tendências fundamentais da sociedade, é orientada por concepções – mas também sentimentos – erradas, equívocas e imorais

-        Resumindo o argumento:

o   Embora direita e esquerda sejam categorias políticas fundamentais desde o fim do século XIX, elas são inadequadas para a reflexão política e social

o   A inadequação de direita-esquerda é dupla:

§  Por um lado, o seu esquema fundamental é rigorosamente maniqueísta, propondo a oscilação eterna entre os dois pólos, sem que se veja, nem que se deseje, nenhuma solução para isso

§  Por outro lado, cada um dos termos é errado e prejudicial em si mesmo: os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)

·         A direita é autoritária e/ou retrógrada e/ou antissocial; a esquerda é contra a ordem, mistifica a “revolução” (que é sempre violenta) e seu igualitarismo é anti-histórico, antissocial e com freqüência reinstitui castas

o   A adequação de “direita e esquerda” aos dias atuais também se dá porque a política atual é fortemente metafísica

o   Em oposição à metafísica da direita-esquerda, é necessário afirmar a positividade sociocrática do “ordem e progresso”:

§  O “ordem e progresso” afirma a conjugação necessária e simultânea de dois, ou melhor, três aspectos da vida humana: a Estática Social (ordem), a Dinâmica Social (progresso), vinculadas pelo amor (a palavra “e”)

§  Não há indefinida oscilação maniqueísta no “ordem e progresso”, mas complementaridade e conjugação constante e permanente de necessidades e anseios sociais

§  Cada um dos termos do “ordem e progresso” corresponde a uma efetiva realidade social, política e moral, que pode e deve ser satisfeita para a harmonia social e a felicidade individual

§  Os termos do “ordem e progresso” correspondem ao caráter histórico de continuidade humana e das suas instituições sociais fundamentais; essa continuidade não é estática, mas dinâmica e desenvolve-se na direção do pacifismo, do relativismo, do altruísmo: qualquer outra proposta é irreal e imoral    

07 fevereiro 2023

Anotações sobre o mérito e a meritocracia

No dia 10 de Homero de 169 (7.2.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, lembramos o centenário de nascimento do nosso grande correligionário Paulo de Tarso Monte Serrat (1923-2014), ocorrido justamente nessa data (10 de Homero, ou 7 de fevereiro).

Após a leitura comentada, apresentamos algumas reflexões sobre a noção positiva (altruísta, relativa, sociocrática) de mérito individual. As anotações que fizemos para o sermão estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Meritos) e Positivismo (l1nq.com/Meritocracia). O sermão sobre o mérito pode ser visto nos vídeos a partir de 44' 55".

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Anotações sobre o mérito e a meritocracia

 

-        No Brasil atual, o mérito individual é tema de grande oposição entre distintas perspectivas políticas, a partir de critérios intelectuais e morais

-        Para adiantar o argumento e simplificar a discussão, podemos estabelecer (pelo menos) dois conceitos de “mérito”:

o   Conceito metafísico, burguês e individualista: o mérito individual é dado e medido pelo sucesso material (grosseiramente: pela renda mensal) e este, por sua vez, é uma conseqüência única e exclusiva do esforço individual

§  Essa concepção é, por definição, egoísta e antissocial – e antissocial mesmo no sentido de que o mérito de um indivíduo afirma-se pela negação do valor dos demais cidadãos

o   Conceito positivo, sociocrático e altruísta: o mérito individual é dado e medido pela moralidade das ações individuais, estabelecida, por um lado, pelas contribuições sociais (ou melhor, sociocráticas) dessas ações e, por outro lado, e de maneira complementar, pela moralidade das ações individuais

-        A noção de mérito individual é afirmada desde sempre em todas as sociedades (ou, talvez, na maioria esmagadora delas), como um estímulo à qualidade e ao valor das ações individuais

o   Nesse sentido, o mérito individual é um estímulo ao aperfeiçoamento pessoal

o   Em tais situações, o mérito individual é complementar ao caráter social das pessoas

o   Em suma, a afirmação do mérito individual é a recompensa pública que o conjunto da sociedade dá aos esforços de uma pessoa em benefício dos demais

-        No Ocidente, a noção de mérito individual afirmou-se pelo menos no século XVIII, pelos enciclopedistas, ao mesmo tempo como um estímulo aos esforços altruístas individuais e como um princípio organizador da sociedade que se contrapunha ao princípio das castas

o   É necessário insistir nessa idéia: o mérito individual contrapõe-se às castas (de que as sociedades de ordens, intrínsecas às monarquias, são o último resquício)

o   As sociedades de castas organizam-se de tal maneira que a profissão dos indivíduos e também seus valores pessoais estão determinados previamente ao seu nascimento, pela posição que cada qual ocupa na estrutura social

o   No século XVIII, os enciclopedistas afirmavam que o valor de um indivíduo seria dado não a priori, pelo seu “berço”, mas a posteriori, conforme a moralidade intrínseca e os resultados efetivos das ações realizadas por cada um ao longo de suas vidas

§  Não é preciso insistir muito na idéia de que o último sacramento positivista, o da incorporação, baseia-se intimamente na noção de mérito individual (bem entendido: na acepção sociocrática e altruísta do mérito individual)

-        A noção de mérito individual (em particular como contraposto às castas) é muito clara em outros países, especialmente naqueles com forte tradição republicana

o   Considero aqui, em particular, França e Portugal

§  Vale notar que na França e em Portugal a meritocracia republicana é, por um lado, afirmada pela esquerda e, por outro lado, contra o identitarismo

-        O Positivismo afirma com clareza, com todas as letras, a noção de mérito individual

o   A noção de mérito individual no Positivismo segue a inspiração anti-castas do republicanismo enciclopedista e também o seu estímulo ao aperfeiçoamento individual

o   Embora seja evidente e já o tenhamos afirmado, é necessário repeti-lo com todas as letras: a meritocracia positivista orienta os indivíduos para o altruísmo; ou seja, é u’a meritocracia sociocrática

-        Augusto Comte tinha muitíssima clareza de que a capacidade de ação individual varia de acordo com a posição de cada indivíduo na sociedade

o   Indivíduos melhor situados (os ricos) conseguem fazer mais coisas; indivíduos pior situados (os pobres) conseguem fazer menos coisas

o   A maior possibilidade que os ricos têm de fazer mais coisas resulta pelo menos em duas conseqüências para o Positivismo:

§  Maiores recursos implicam maiores deveres: se o capital é social em sua origem e, portanto, deve ter uma destinação social, a posse (ou, se desejar-se, a propriedade) do capital implica necessariamente a obrigação de usar bem e com fins sociais o capital à em outras palavras, na sociocracia a propriedade do capital não é um luxo nem um direito, mas uma obrigação que se impõe

§  Maiores possibilidades dadas a priori implicam, inversamente, menor mérito relativo

o   Como resultado das observações acima, no Positivismo o caráter moral (e social) do “mérito individual” apresenta-se com toda a clareza e em todo o seu esplendor

o   Ao mesmo tempo, considerando que a capacidade de atuação de um indivíduo está profundamente vinculada à sua posição na estrutura social, a avaliação, ou melhor, a determinação do mérito individual tem que ser extremamente abstrata (sopesando as ações individuais e a posição na estrutura social), elaborada a partir de parâmetros morais (e sociocráticos) e por juízes especialmente preparados para isso (ou seja, pelo sacerdócio positivista)

§  Augusto Comte afirmava que essa avaliação consistia no mais difícil e mais exclusivo atributo do sacerdócio positivo

-        Nas disputas políticas brasileiras, a “direita” neoliberal (ou ultraliberal) afirma o “mérito individual” a partir dos parâmetros estadunidenses dos anos 1980: um indivíduo é meritório se ele tiver “sucesso na vida”, o que, por sua vez, quer dizer que ele agiu contra os outros indivíduos (ou melhor, contra a sociedade) e tem uma altíssima renda mensal

o   O grande exemplo disso é a personagem Gordon Gekko, do filme Wall Street (de 1987 e dirigido por Oliver Stone); interpretado por Michael Douglas; essa personagem dizia que “A ganância é boa”

-        Em contraposição a esse conceito rasteiro e degradante de mérito, a esquerda brasileira afirma... o mais puro igualitarismo, rejeitando totalmente qualquer noção de mérito

o   Insisto: a rejeição esquerdista do mérito consiste na mais completa, pura e total afirmação do igualitarismo; é o igualitarismo levado às últimas conseqüências

o   Ao mirar na concepção neoliberal do mérito, a esquerda rejeita qualquer concepção de mérito e, portanto, na prática despreza as ações individuais e os mecanismos morais e intelectuais adequados à regulação dos “indivíduos”

§  É claro que, ao rejeitar os mecanismos morais de regulação dos “indivíduos”, a esquerda brasileira necessariamente afirma o materialismo economicista (quando não, também, o materialismo politicista)

o   A rejeição da noção de mérito, pela esquerda, apresenta uma série escandalosa de defeitos morais e intelectuais acachapantes:

§  Esquece, ou finge esquecer, que o mérito individual contrapõe-se à sociedade de castas, de tal sorte que rejeitar qualquer mérito individual é afirmar, ou propor, a sociedade de castas

·         Aliás: não por acaso, as tentativas empíricas de criar sociedades “igualitaristas” serviram apenas para criar versões modernas de sociedades de castas, como nos países comunistas

§  Rejeita a tradição republicana ocidental, conforme desenvolvida e aplicada desde o século XVIII e ainda hoje viva e pulsante (França e Portugal)

§  Finge esquecer que a história brasileira foi marcada por uma sociedade de castas, durante o período monarquista

·         A monarquia era um arremedo ridículo de “sociedade de estados” no que se refere à nobreza, mas era muito concretamente uma sociedade de castas no que se referia à escravidão

§  Ignora, ou finge ignorar, que as eleições e os votos baseiam-se sempre no afirmado mérito individual dos candidatos e na superioridade (alegada e/ou real) de uns em relação aos outros

§  Ignora, ou finge ignorar, que situações de profunda injustiça social tendem a realçar o mérito individual daqueles que, a muito custo, conseguem superar suas dificuldades e desenvolver atividades socialmente importantes

·         Por exemplo: a rejeição do mérito individual é incoerente e incompatível com a recente (e corretíssima) valorização de Luiz Gama, em uma cinebiografia de 2021 (Doutor Gama, de Jeferson De)

·         É claro que o realçado mérito individual de quem supera as grandes adversidades não pode ser entendido como justificativa para a manutenção das situações de injustiça social

o   Não há justificativa nenhuma para a rejeição do conceito de mérito da parte da esquerda brasileira

§  A esquerda brasileira combate, com razão e justiça, o conceito metafísico-burguesocrático-neoliberal de mérito que o entende como sendo a alta renda mensal às expensas dos demais

§  Entretanto, a esquerda brasileira, consoante seu igualitarismo materialista radical, despreza toda e qualquer concepção de mérito individual: ela “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”

§  Se quisesse, a esquerda brasileira poderia muito bem elaborar opções intelectuais, campanhas políticas etc. apresentando concepções alternativas de mérito; mas é exatamente essa a questão: a esquerda brasileira não faz tais campanhas porque não quer

o   A rejeição de qualquer concepção de mérito a partir (e/ou em benefício) do radical igualitarismo materialista serve profundamente à política identitária, com seu sectarismo, sua ultrapolitização dos ressentimentos sociais – e suas infinitas cotas

o   Afirmar a “justiça social” para rejeitar o mérito individual não é justificativa nenhuma adequada para as tolices da esquerda brasileira, a esse respeito

§  Essa rejeição – cuja contrapartida é a afirmação do identitarismo e das suas cotas – não serve nem à justiça social nem à regulação dos “indivíduos”, nem faz justiça aos ricos e (em especial) aos pobres que têm efetivamente mérito

-         

01 fevereiro 2023

Hernani Gomes da Costa: mais reflexões sobre as hierarquias/classificações positivas

No dia 3 de Homero de 169 (31.1.2023), realizei minha prédica positiva; em sua parte de sermão, abordei o tema das hierarquias positivas, ou classificações positivas. Para elaborar tal sermão, conversei com meu amigo Hernani Gomes da Costa; a partir daí mantivemos um diálogo, em que ele, por sua vez, também refletiu intensamente a respeito desse tema, a partir das minhas observações.

Algumas das reflexões de Hernani não puderam ser apresentadas na prédica do dia 31, devido a vários motivos (eu tinha ainda que refletir a respeito de alguns desses comentários; os novos comentários poderiam ser entendidos como de "nível avançado", enquanto os sermões têm que ser de "nível básico"; só as anotações que eu já tinha estabelecido já tornariam o sermão bastante longo).

Entretanto, embora nem todas as reflexões de Hernani tenham podido ser incorporadas à minha exposição, ainda assim elas eram muito interessantes (como, aliás, costumam ser suas reflexões!) e merecem alguma forma de divulgação pública.

Por isso, após o consultar a respeito, publico aqui duas considerações feitas por Hernani também no dia 31.1.2023 sobre a teoria positiva das hierarquias (ou das classificações); como se verá, elas consistem em conseqüências adicionais que se pode tirar desssa teoria positiva. Vale notar que essas conseqüências são complementares ao que foi exposto na minha prédica do dia 31.1.2023 - que, por sua vez, como indiquei acima, em medida importante beneficiou-se do diálogo com o Hernani.




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Está sendo para mim de extrema importância abordar a questão da hierarquia. Ela vem trazendo em seu bojo problemas que não teriam, se eu bem me conheço, me ocorrido. Meditando ontem [30.1.2023] sobre nossa conversa, ocorreram-me dois pontos:

1) A dedutibilidade do futuro pelo passado supõe sempre (assim me parece) a elaboração de algum tipo de classificação. Haja vista que já o próprio silogismo, consistindo na extração de uma conclusão particular a partir de princípios mais gerais, baseia-se inteiramente sobre o conceito de generalidade, que é aquele conceito mesmo que define uma classificação positiva, ocorre-me também que muitos princípios no positivismo podem ser alcançados tanto pela via dedutiva quanto pela indutiva. Assim, por exemplo, quando Augusto Comte nos diz que “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”, o “sempre” aí me parece referir-se à seguida constatação empírica dessa verdade, de onde adveio a sua generalização; enquanto o “necessariamente” corresponde ao caráter dedutivo que essa lei comporta, já agora também como uma decorrência de princípios mais gerais.

2) A superação do empirismo político me parece um processo intimamente associável à capacidade efetiva de elaborar teoricamente sobre (ou a partir de) os fatos “crus”, algo que se assemelha a uma classificação, ao menos buscando-se para eles conexões que nos possibilitem apreciá-los como mais ou menos semelhantes uns aos outros. Do contrário, dispondo apenas de uma obediência servil à mera cronologia, isso só nos oferecerá um enfileiramento no tempo, do qual o empirismo político logo se encarregaria de extrair a fatídica conclusão de seu otimismo maquinal, segundo o qual, por ser “de hoje”, a situação haverá de ser sempre “melhor” do que  a antiga. A ambiguidade do termo “atual” (que tanto se refere ao que se dá no momento presente, quanto se refere ao real processo de aperfeiçoamento que readapta o antigo ao presente) presta-se muito bem a isso.