23 agosto 2023

Sobre destruição/remoção de estátuas e relativismo histórico

No dia 10 de Gutenberg de 169 (22.8.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo Positivista (em sua oitava conferência, dedicada à filosofia das ciências humanas). 

Em seguida, na parte do sermão, abordamos dois temas: (1) a fórmula "Saúde e Fraternidade" e (2) a destruição/remoção de estátuas em face do relativismo histórico.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://ury1.com/YYfqA) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/JzF4e). O sermão começou em 49' 22" e os comentários sobre a destruição de estátuas, em 1h 00' 40".

Devido a problemas técnicos com o sinal de internet, a transmissão da prédica foi prejudicada com inúmeras interrupções, encerrando-se o vídeo bem antes do que deveria, em 1h 26' 20".


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Sobre a fórmula “Saúde e Fraternidade”

 

-        Nós, positivistas, empregamos habitualmente a fórmula “Saúde e Fraternidade”

o   Essa fórmula não é especificamente positivista; na verdade, ela é republicana

o   A origem dessa fórmula está na Revolução Francesa, indicando os novos hábitos desejados ao longo desse acontecimento, em particular na fase da Convenção Nacional (1792-1794), que foi a da prevalência dos dantonianos (embora não apenas da deles)

o   Assim, quando nós, positivistas, usamo-la, nós afirmamos o nosso republicanismo, no duplo sentido que nosso mestre identificou para a “república” no curso da Revolução: (1) sentido negativo: rejeição da monarquia e (2) sentido positivo: regeneração moral, intelectual, política e social

§  Convém notar que, em virtude de seu republicanismo, essa fórmula também é uma afirmação da cidadania

§  Em sentido semelhante, na Política positiva, Augusto Comte afirma que todos devemos tratar-nos por “senhor” (“messieur”, o que ainda no século XIX tinha um caráter feudal), mas entendendo-nos como “cidadãos” (“citoyens”)

§  Essa é uma fórmula simples, clara e humana, sem o empolamento, a hipocrisia e o sobrenaturalismo tão comuns ao oficialismo de ontem como de hoje

o   No Brasil, ela era empregada largamente no final do Império e no início da República

§  Era extremamente difundida, sendo empregada ordinariamente nas correspondências oficiais e particulares

§  Aliás, também em Portugal ela foi empregada: nos anos ao redor de 1910 (quando foi proclamada a República lá), as correspondências oficiais e particulares em Portugal usavam frequentemente essa fórmula

-        Entretanto, o original em francês é “Salut et fraternité”, ou seja, “Saudações e fraternidade”

o   Assim, a versão que adotamos em português consiste em uma tradução um pouco incorreta do francês

§  Inversamente, “saúde” em francês é “santé

o   O significado do original em francês é este: a pessoa que fala (1) saúda o interlocutor e, em seguida, (2) afirma o desejo de amizade com ela e, de modo mais amplo, com todos os seres humanos (fraternidade)

o   Ainda assim, o francês “salut” vem do latim “salvus”, que por sua vez vem de “salvere”, que significa tanto (1) o “saudações” quanto (2) o desejar boa saúde

§  Em outras palavras, a tradução de “salut” como “saúde” corresponde ao sentido etimológico da palavra, o que é bastante aceitável

-        Mas a tradução para o português, embora não corresponda exatamente ao francês, acaba sendo superior ao original:

o   “Saúde e Fraternidade” significa (1) que o falante, em um primeiro momento, deseja ao seu interlocutor boas condições de saúde, ou seja, que esteja fisicamente bem e (2), em seguida, o falante afirma o desejo de manter boas relações com o interlocutor e com todo o gênero humano

o   Dessa forma, a versão em português lembra a base física e material da existência humana e sua condição para o desenvolvimento dos nossos outros atributos, isto é, para o progresso em geral

o   Em outras palavras, a versão em português aproxima-se com grande clareza da fórmula político-moral do Positivismo, que é o “Viver para outrem”

§  O “viver para outrem” significa que devemos orientar nossas vidas para o bem comum (“para outrem”), mas que, para isso, temos que cuidar de nossa saúde (“viver”)

-        É interessante comparar o “Salut et Fraternité” e o “Saúde e Fraternidade” com suas versões em espanhol, italiano e inglês

o   Em espanhol essa fórmula foi empregada também no sentido em português, ou seja, como “Salud y Fraternidad

o   Em italiano, as palavras para “saudações” e “saúde” são extremamente parecidas: “saluti” (saudações) e “salute” (saúde)

§  Assim, em termos fonéticos, o italiano permite preservar a feliz ambigüidade da fórmula: “Saluti e fraternità

o   Em inglês a fórmula difere bastante: “Salut et Fraternité” vira “Greetings and Fraternity”, “Saúde e Fraternidade” vira “Health and Fraternity

-        Por fim, vale notar que em 1890 (não por acaso, logo após a Proclamação da República) Miguel Lemos viu-se obrigado a defender a versão brasileira dessa fórmula, contra os adversários da República que se apresentavam como puristas lingüísticos

o   Essa defesa foi feita no opúsculo “A fórmula: Saúde i Fraternidade”, n. 103 da série da Igreja Positivista

o   Além disso, Miguel Lemos observa que o original francês Salut et Fraternité, desde a eclosão da Revolução Francesa, sempre foi traduzido em português (Brasil e Portugal) e em espanhol como “Saúde e Fraternidade”

 

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Sobre o relativismo histórico e destruição/remoção de estátuas

 

-        Em maio de 2020 o cidadão estadunidense George Floyd foi assassinado por policiais, na cidade de Minneapolis

o   Na detestável situação racial dos Estados Unidos, George Floyd era negro e seus policiais, brancos

o   A barbaridade do ato – o homem foi morto asfixiado, com o joelho de um dos policiais sobre seu pescoço durante quase dez minutos – foi imediatamente interpretada também, e principalmente, como uma atitude racista da polícia

o   As reações a essa morte foram variadas: além das manifestações de pesar pela morte do homem, também houve uma forte campanha contra o racismo em geral e contra o racismo nas polícias – e, para o que nos interessa, curiosamente se desenvolveu uma campanha contra estátuas e nomes de logradouros e instituições homenageando figuras consideradas “polêmicas”, como Cristóvão Colombo[1], Winston Churchill[2] e Woodrow Wilson[3], além de estátuas e nomes de figuras mais diretamente associadas à degradação da África, do comércio escravista e da escravidão[4]

-        Antes de mais nada, é importante dizermos com clareza: como positivistas, rejeitamos radicalmente toda forma de racismo

o   Assim, concordamos com o repúdio à barbaridade do ato que resultou na morte de George Floyd, cujo elemento racista ficou mais ou menos claro

o   Também é importante notar que a situação própria aos Estados Unidos – com sua divisão radical entre “brancos” e “negros” (ou seja, entre descendentes de anglossaxões e descendentes dos africanos) e seu princípio de “one-drop rule[5] – é uma situação específica dos Estados Unidos a partir de concepções racistas de pureza de raça e que, portanto, não é e não pode ser parâmetro para as chamadas relações étnicas

§  Pessoalmente, consideramos que, ao contrário do que se estabeleceu como política oficial no Brasil nos últimos dez ou 15 anos, somos a favor da mestiçagem, do reconhecimento dos mulatos, da mistura entre os grupos sociais brasileiros – e contra a estapafúrdia, forçada e violenta divisão social entre “brancos” e “negros” que se vem operando no país

-        Referi-me ao caso George Floyd porque ele tem que ser comentado e porque ele ensejou as manifestações contra estátuas e nomes de logradouros e instituições, que é o que nos interessa aqui

o   Entretanto, a relação entre o caso George Floyd e as manifestações contra estátuas e logradouros é um tanto indireta

o   As estátuas e os logradouros criticados foram percebidos como homenageando racistas, colonialistas, imperialistas; por exemplo, além dos já citados Colombo, Churchill e W. Wilson, também foram objeto de repúdio público monumentos e homenagens a generais que lutaram pelo Sul escravista (Robert Lee[6]) e traficantes de escravos

§  Ou seja: a indignação moral contra o crime de racismo foi transferida para homenagens públicas a personagens ligadas ou percebidas como ligadas ao racismo

o   Isso tudo exige reflexão cuidadosa, envolvendo pelo menos dois aspectos: o culto público e o relativismo histórico

-        Comecemos com o culto público:

o   Por definição, seu objetivo é criar sentimentos, valores e idéias compartilhadas entre os membros de uma pátria – ou melhor, de u’a mátria – e da Humanidade; trata-se de “co-memorar”, isto é, de “lembrar em conjunto”

o   Estátuas, logradouros, instituições têm nomes e rostos definidos porque correspondem àqueles indivíduos cuja ação foi particularmente meritória para a coletividade nacional e/ou universal, em um ou mais âmbitos da existência humana

o   Na maioria das vezes, essas homenagens são feitas a partir dos valores prevalecentes em um determinado contexto social:

§  Por exemplo, quando foi proclamada a República no Brasil, inúmeros logradouros tiveram os nomes modificados, de modo a homenagear o novo regime e deixar para trás a monarquia

§  Mas há homenagens mais amplas em termos de tempo e espaço, como o provam as estátuas de Cristóvão Colombo

-        A Religião da Humanidade estabelece um duplo sistema de comemoração pública, indicado pelos dois calendários históricos

o   O calendário tem como objetivo primordial celebrar valores em comum, em caráter cíclico; a isso se soma o aspecto pragmático, de organização do tempo

o   A comemoração básica no âmbito do culto público positivista ocorre com o nosso chamado calendário abstrato, que apresenta as 13 funções sociológicas, históricas e político-morais da Humanidade (Humanidade, Casamento, Paternidade, Filiação, Fraternidade, Domesticidade, Fetichismo, Politeísmo, Monoteísmo, Mulher, Sacerdócio, Patriciado, Proletariado)

§  O calendário abstrato lembra-nos dos elementos estáticos, da evolução dinâmica e da constituição normal da Humanidade

§  Mas é um calendário abstrato, cuja função básica não é se referir a ninguém em particular (apesar de que, em vários casos, isso seja inevitável)

o   Para complementar o calendário abstrato, indicando a evolução humana (em particular a própria ao Ocidente) e – isto é fundamental – suscitando o espírito de relativismo histórico, há o chamado calendário concreto

§  O calendário concreto apresenta os principais agentes da evolução humana em termos históricos: Moisés, Homero, Aristóteles, Arquimedes, César, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico II, Bichat

§  Ao indicar agentes concretos, o calendário histórico permite-nos pelo menos efetivamente refletir (1) a respeito da responsabilidade individual (2) em face da coletividade e dos destinos humanos e (3) considerar as limitações e as possibilidades de cada qual; assim, mais que o calendário abstrato, o calendário concreto permite-nos (4) desenvolver o sentido de relativismo histórico

o   Em ambos os casos dos calendários positivistas, o objetivo é lembrar-nos a todos de que o ser humano é antes de mais nada (1) produto da continuidade (ou seja, da evolução histórica) e que, cada qual em sua mátria, (2) também somos todos filhos da Humanidade

§  Em outras palavras, dois dos mais importantes objetivos dos calendários são combater o “presentismo” e o paroquialismo

§  É importante reforçar: o culto público, afirmando a continuidade histórica e a perspectiva humana geral, estimula o relativismo histórico; em contraposição, embora por si sós não impliquem absolutismo, o fato é que tanto o presentismo quanto o paroquialismo com freqüência andam de braços dados com o absolutismo filosófico e moral

·         As remoções das estátuas, nos EUA, na Inglaterra e alhures, embora motivadas por bons sentimentos, caracterizam-se por um forte absolutismo moral

-        Passemos ao relativismo histórico:

o   Para a Religião da Humanidade, o relativismo não equivale ao “qualquer coisa está valendo”, ou “tudo é igual a tudo e tudo vale a mesma coisa”, isto é, ao arbitrário e à ausência de parâmetros

§  Apesar de sua puerilidade e sua superficialidade, esse sentido de arbitrário para o “relativo” é o mais comum nos dias atuais, mesmo entre pensadores profissionais

o   O relativismo consiste na percepção de que nossos conceitos e nossas ações têm que se referir, sempre e necessariamente, ao ser humano; em conseqüência disso, o relativismo estabelece que não é possível adotarmos parâmetros alheios ao ser humano e supostamente válidos por si sós

o   No que se refere à história, o relativismo evidencia que diferentes épocas e diferentes lugares têm diferentes concepções sobre o que é bom, verdadeiro e belo

o   No âmbito da Religião da Humanidade, essa concepção básica do relativismo é complementada pela evidência de que o ser humano é mesmo um ser histórico, ou seja, que é ao longo do tempo e cumulativamente que ele desenvolve seus atributos

o   Dessa forma, concepções que hoje consideramos boas com freqüência exigiram para sua constituição que, antes, concepções consideradas ruins vigessem durante muito tempo

§  Dois exemplos banais mas muito claros: (1) se hoje consideramos que a guerra por definição é um crime contra a Humanidade, isso só é possível porque durante quase toda a existência humana a guerra foi percebida como conatural ao ser humano e, embora origem de tragédias, também era a fonte de grandes virtudes; (2) se hoje consideramos que a escravidão é um crime contra a Humanidade (e que o trabalho dignifica o homem), milênios atrás considerávamos que a escravidão também era conatural ao ser humano e que o trabalho era fonte de degradação: deveríamos desprezar Aristóteles porque, para ele, os bárbaros eram naturalmente escravos e escravizáveis?

o   Aplicando o relativismo histórico aos nossos conceitos morais, o resultado é que, sem abrir mão de nossos valores atuais, devemos ter clareza de que com freqüência estes nossos valores não eram os valores de nossos antepassados (e vice-versa)

§  Em outras palavras, há que se considerar e respeitar a fase histórica de cada figura que consideramos: não podemos desprezar ou rejeitar essas figuras históricas apenas porque seus valores não eram os nossos

§  Embora o absolutismo moral rejeite a aplicação dessa regra para o Ocidente contemporâneo, ela é seguida em todos os casos que não se referem diretamente à sociedade ocidental: por exemplo, julga-se que se deve respeitar os usos e costumes dos índios; os usos e costumes dos países muçulmanos ortodoxos etc.

o   Um outro aspecto que se evidencia quando aplicamos o relativismo histórico é a respeito dos vários âmbitos da existência e da atuação humana

§  Como afirmava Augusto Comte, se a natureza humana é tríplice (afetiva, intelectual e prática), as ações dos indivíduos podem dar-se em vários âmbitos (artístico, filosófico, científico, político, econômico etc.)

§  Essa observação é em si mesma banal, mas serve para lembrarmo-nos de que se uma figura é homenageada, ela é homenageada devido à sua atuação em um determinado âmbito e não necessariamente em outros âmbitos (que, não raras vezes, são desconsiderados e/ou desprezados): Francis Bacon foi um dos mais importantes filósofos, mas em termos políticos considera-se que ele era um escroque

-        Reunindo todos esses elementos, o que podemos concluir é o seguinte:

o   Sempre haverá, e sempre deve haver, homenagens públicas a figuras que julgamos relevantes

§  A relevância que atribuímos às figuras homenageadas baseia-se nos valores prevalecentes em uma determinada época e considera aspectos específicos da atuação humana

o   Diferentes contextos estimulam que homenageemos algumas figuras em detrimento de outras – o que, em determinadas situações, justifica a mudança de nomes de logradouros, de estátuas etc.

o   Entretanto, devemos ter com enorme clareza em nossos espíritos não somente os valores que dizemos professar em um determinado momento, mas também que o ser humano é um ser histórico, que ele constitui-se a partir da continuidade humana e que muitos valores importantes hoje só são importantes porque, em muitos casos, valores opostos foram importantes antes

o   Assim, embora devamos afirmar os nossos valores atuais, a afirmação do relativismo histórico exige que entendamos e contextualizemos os valores de nossos antepassados

§  Além disso, adicionalmente temos que lembrar que as homenagens referem-se com freqüência a aspectos específicos da existência humana e não à totalidade das ações dos homenageados

o   Nos casos concretos que citamos:

§  As retiradas das estátuas de Colombo parecem-me profundamente equivocadas: ele é homenageado por ter-se arriscado a realizar a circum-navegação do globo terrestre, integrando toda a Humanidade; por outro lado, ele não teve culpa pelo trágico destino dos ameríndios

§  Da mesma forma, parece-me um erro a retirada das estátuas de Churchill: embora ele fosse imperialista, as homenagens que ele recebe são devidas à sua fundamental atuação na II Guerra Mundial, em que ele garantiu a resistência ocidental contra o nazismo

§  A Escola de Relações Internacionais da Universidade de Princeton, ao tirar de seu nome a referência a W. Wilson, comete o mesmo erro que a respeito de Churchill: um instituto de RI homenageia o pensador idealista e o criador da Liga das Nações, não o político racista do Sul dos Estados Unidos

§  As estátuas de traficantes de escravos não merecem maior respeito

-        Por fim, vale notar que deixar de homenagear alguém com estátuas não é o mesmo que se esquecer dessa pessoa nem do que ela representou antes, mesmo que com um caráter negativo: por exemplo, em Moscou há o Parque das Estátuas Caídas, que, como um museu a céu aberto, lembra o culto à personalidade da época soviética



[1] A cidade de Chicago decidiu remover uma estátua de Colombo: https://www.reuters.com/article/eua-chicago-colombo-estatuas-idBRKCN24P21S-OBRWD (22.8.2023).

[2] Uma estátua de Churchill em Londres foi pichada e teve que ser protegida para não sofrer maiores depredações: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/londres-blinda-estatua-de-winston-churchill-para-evitar-ataques.shtml (22.8.2023).

[3] A Universidade de Princeton retirou do nome da sua Escola de Assuntos Públicos e Internacionais a referência a Woodrow Wilson: https://www.dn.pt/mundo/universidade-de-princeton-remove-nome-de-woodrow-wilson-da-escola-devido-a-politicas-racistas-12361622.html (22.8.2023).

[4] Ainda em Londres, estátuas do rei belga Leopoldo II e do comerciante escravista Robert Milligan foram retiradas: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/londres-blinda-estatua-de-winston-churchill-para-evitar-ataques.shtml (22.8.2023).

[5] A “one-drop rule” (“regra da gota única”) estabelece que, por mais que um indivíduo tenha um fenótipo (isto é, feições) “brancas”, caso ele tenha pelo menos uma única gota de sangue “negro”, ele será “negro”, isto é, será considerado e tratado como “negro”. O ideal de pureza racial (“branca”) é evidente nessa regra, bem como a discriminação racial contra os “negros”.

[6] A cidade de Charlottesville removeu uma enorme estátua eqüestre de Robert Lee e outra de Thomas Jackson: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-07-11/estatua-de-robert-lee-e-retirada-em-charlottesville-quatro-anos-depois-da-revolta-dos-supremacistas.html (22.8.2022). Como nota o autor dessa matéria jornalística, essas estátuas, especificamente nessa cidade, vinculam-se de maneira particularmente dramática ao racismo supremacista branco, o que, sem dúvida, foi um motivo adicional para sua retirada.

21 agosto 2023

Luiz Hildebrando de Horta Barbosa: entrevista para o jornal Última Hora

A partir da postagem feita por nosso amigo Samuelson Xavier, em seu portal O Positivista, reproduzimos abaixo uma entrevista concedida pelo grande positivista brasileiro Luiz Hildebrando de Horta Barbosa ao jornal Última Hora.








 

15 agosto 2023

Orgulho no estudo do Positivismo

No dia 3 de Gutenberg de 169 (15.8.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo Positivista (em sua oitava conferência, dedicada à filosofia das ciências superiores, isto é, da Sociologia e da Moral). 

Na seqüência, abordamos no sermão quatro temas:

1.      Transformação de José Murilo de Carvalho (13.8.2023)

2.      Dia dos Pais (13.8.2023)

3.      Festa da Mulher (15.8.2023)

4.      Orgulho no estudo do Positivismo

A prédica foi transmitida nos canais Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/eFhRL) e Positivismo (aqui: https://ury1.com/8hVNr). Devido a uma dificuldade técnica do Youtube, a transmissão do canal Positivismo iniciou-se com um atraso de cerca de sete minutos em relação ao canal Igreja Positivista Virtual.

Tomando como base a transmissão do canal Igreja Positivista Virtual (no Facebook), cada um dos temas do sermão começou nos seguintes tempos:

1.      Transformação de José Murilo de Carvalho: 54' 02"

2.      Dia dos Pais: 1h 06' 40"

3.      Festa da Mulher: 1h 14' 38"

4.      Orgulho no estudo do Positivismo: 1h 28' 01"


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1.      Transformação de José Murilo de Carvalho

a.       No dia 13 de agosto de 2023 transformou-se José Murilo de Carvalho, ou seja, ele faleceu. Nascido em 8 de setembro de 1939, foi um dos maiores cientistas políticos e historiadores do país. Embora fosse mineiro de nascimento e de formação acadêmica básica (estudou Sociologia e Ciência Política na UFMG), desenvolveu sua importante carreira intelectual no Rio de Janeiro, tendo sido professor da UFRJ, do Iuperj e também membro da Academia Brasileira de Letras.

b.      Em suas pesquisas ele abordou a consolidação do Estado brasileiro; a cidadania no país; a atuação política dos militares; o desenvolvimento dos símbolos cívicos nacionais republicanos. Com maiores ou menores limitações (especialmente em termos de opiniões políticas), todos esses estudos são referências absolutamente obrigatórias na reflexão histórica, sociológica e política do Brasil.

c.       Ao estudar em particular os símbolos cívicos republicanos – no livro A formação das almas – ele concedeu uma inequívoca importância à atuação dos positivistas, em particular ao Apostolado Positivista Brasileiro, na definição de símbolos decisivos: a bandeira, José Bonifácio, Tiradentes, o sistema de feriados nacionais.

d.      Suas opiniões políticas muitas vezes deixavam a desejar: era claramente simpático à monarquia (alguns dizem que ele era de fato monarquista) e, ao mesmo tempo, apoiava a metafísica democrática da revolução social. A respeito do Positivismo e da Religião da Humanidade, muitas de suas opiniões repetiam a superficialidade banalizante, a ironia e o desprezo academicista e cientificista tão comuns – embora, ao mesmo tempo, de maneira plenamente contraditória, elogiasse a importância dos símbolos cívicos elaborados e disseminados pelos positivistas e seu caráter cívico.

e.       No final da vida ele apoiou o esforço de nosso amigo e simpatizante do Positivismo Luiz Edmundo Horta Barbosa, ao integrar a Associação dos Amigos do Templo da Humanidade, criada para angariar apoio e recursos para a restauração da Igreja da Humanidade no Rio de Janeiro.

f.       Um pequeno artigo de sua autoria, publicado em 2005 na Revista de História da Biblioteca Nacional (ano 1, n. 1, p. 68-72) sob o sugestivo título de “A Humanidade como deusa”, tanto os seus defeitos quanto suas qualidades apresentam-se de maneira claríssima. Os últimos dois parágrafos do texto são um belo elogio ao Positivismo:

Um ponto em que nossos positivistas estavam, de fato, muito distantes da realidade brasileira era o da moral pública. Para eles, o interesse coletivo devia predominar sobre o individual. Todos, patrões e operários, eram funcionários da humanidade. Entendiam a república em seu sentido original, romano, de regime voltado para a realização do bem público. O cidadão republicano era, por definição, um cidadão virtuoso, dedicado à causa pública. Os chefes positivistas jamais aceitaram cargos públicos e não faziam qualquer concessão em matéria de moralidade pública. Repetiam a frase de José Bonifácio: “A sã política é filha da moral e da razão”. Os positivistas que ocuparam cargos públicos, como o Marechal Rondon, foram sempre funcionários exemplares, às vezes para desespero das famílias, que não podiam beneficiar-se da posição do chefe.

A nós que vivemos hoje, cem anos depois, numa República em que o público é alvo costumeiro da rapina de políticos, funcionários e empresários predadores, os positivistas parecem seres ainda mais estranhos, uns alienígenas, uns ETs.

 

2.      Dia dos Pais

a.       Em 1953, com base em motivos comerciais, criou-se no Brasil o “Dia dos Pais”, que cai sempre no segundo domingo de agosto. O objetivo foi ter uma data comercialmente relevante em agosto, em paralelo com o Dia das Mães e tentando também substituir o Dia de São Joaquim, pai da Virgem Maria. Neste ano de 2023, essa comemoração caiu no dia 13 de agosto.

                                                                          i.      Vale notar que as atuais celebrações do Dia das Mães começaram nos Estados Unidos, em 1908, e foram instituídas no Brasil por decreto presidencial em 1932.

b.      Apesar da origem comercial, o Dia dos Pais é, sim, uma data a ser celebrada; afinal de contas, a paternidade é uma das funções sociais.

                                                                          i.      Nesse sentido, ela é diretamente celebrada no culto público no terceiro mês do ano.

                                                                        ii.      A paternidade divide-se em completa (natural e artificial) e incompleta (espiritual e temporal). Assim, o pai não é somente aquele que biologicamente origina um novo ser humano – afinal, pode haver “pais adotivos”. Além disso, exercem funções paternas aqueles homens que apóiam jovens, seja na forma do aconselhamento, seja na forma do patrocínio.

                                                                      iii.      A relação de paternidade idealmente atua em conjunto com as relações de maternidade e de filiação: acima de tudo, o pai estabelece a figura de autoridade e, daí, a relação de subordinação, em que o pai desenvolve a bondade e o filho, a veneração. Essas relações evidenciam que a autoridade não é, nem pode ser, puramente material; em outras palavras, é necessário haver relações e limitações afetivas, de respeito mútuo e de aceitação das respectivas autonomias.

 

3.      Festa da Mulher

a.       A Religião da Humanidade celebra no dia 15 de agosto a Festa da Mulher.

                                                                          i.      Essa é uma celebração importante por diversos motivos:

1.      Seja devido ao tema da celebração – a mulher, a providência moral da Humanidade, a principal fonte contínua de moralidade e de altruísmo do ser humano

2.      Seja devido ao dia específico escolhido para essa data e ao procedimento moral e sociológico empregado para a definição da data

b.      Vale lembrar que o Positivismo celebra as mulheres também em outras datas:

                                                                          i.      Indiretamente, no 1º de janeiro, com a Festa Geral da Humanidade

                                                                        ii.      No dia 19 de janeiro, nascimento de Augusto Comte: festa de Rosália Boyer (mãe)

                                                                      iii.      No dia 5 de abril, transformação de Clotilde de Vaux (esposa)

                                                                      iv.      No dia 5 de setembro, transformação de Augusto Comte: festa de Sofia Bliaux (filha)

                                                                        v.      No décimo mês do calendário abstrato, em que se celebra a função social da Mulher, ou a providência moral

                                                                      vi.      No dia 8 de outubro, festa de Clotilde e Augusto Comte

                                                                    vii.      No dia bissexto (31 de dezembro dos anos bissextos): a Festa Geral das Mulheres Santas

c.       O motivo da escolha desse dia específico para a Festa da Mulher na Religião da Humanidade é que, no catolicismo, nessa data, celebra-se a assunção da Virgem Maria; em outras palavras, nesse dia o catolicismo diviniza a Virgem Maria, tornando-a plenamente objeto de culto e adoração.

                                                                          i.      A Virgem Maria, humana em sua origem e sua atuação na mitologia cristã, foi praticamente desprezada durante a primeira metade da Idade Média, quando vigeu a síntese eucarística

                                                                        ii.      Na segunda metade da Idade Média, com a atuação central de São Bernardo de Claraval, a síntese eucarística foi substituída pela síntese mariana, com o elemento plenamente sobrenatural substituído pelo elemento humano (e feminino) apenas acessoriamente sobrenatural

                                                                      iii.      Assim, o culto à Virgem Maria é um predecessor teológico, histórico e transitório do culto positivo e definitivo à Humanidade

d.      Como lembra Teixeira Mendes em O culto católico, ao adotar a data católica, a Religião da Humanidade segue o procedimento de todas as religiões temporárias, que se apropriaram de celebrações anteriores modificando seus conteúdos

                                                                          i.      Em outras palavras, com isso nós afirmamos a grande continuidade humana e constituímo-nos como herdeiros do conjunto da história: seja ao seguir um procedimento que todas as religiões seguiram, seja ao tornarmos nossa uma celebração anteriormente católica

                                                                        ii.      O culto à Humanidade é também um culto à mulher: daí a data de 15 de agosto para a Festa da Mulher

 

4.      O orgulho no estudo do Positivismo

a.       O título original deste comentário seria “A arrogância no estudo do Positivismo”; mas decidi alterar para “orgulho”, seja porque é menos agressivo, seja porque se refere mais diretamente a uma categoria plenamente positivista, seja porque “orgulho” apresenta uma ambigüidade que pode ser útil

b.      O orgulho é um dos instintos egoístas com caráter social, sendo a ambição temporal; ele é o penúltimo instinto egoísta, seguido pela ambição espiritual da vaidade

                                                                          i.      O orgulho define-se pelo impulso a dominar, isto é, a impor-se sobre os demais; assim, ele é importante para a dominação política

c.        Além desse sentido preciso, a palavra “orgulho” pode ser entendida também de duas outras formas:

                                                                          i.      Arrogância: é a auto-suficiência, a ignorância que não aceita submeter-se a nada, ou seja, é a combinação do impulso dominador com a ignorância

                                                                        ii.      Satisfação íntima: é um sentido um pouco distante dos dois anteriores (dominação e arrogância), em que a pessoa fica feliz por um determinado resultado ou por uma determinada situação obtidos por si mesmo ou por alguém próximo

d.      Mas o que queremos indicar é o orgulho no estudo do Positivismo, isto é, a arrogância de quem começa a estudar o Positivismo, a auto-suficiência de quem considera que, mesmo sendo ignorante, pode criticar o Positivismo (em seu conjunto e/ou em seus detalhes)

                                                                          i.      É algo notável e espantoso:

1.      Por um lado, qualquer pessoa, ao começar a estudar ou a aprender o que quer que seja, é obrigado a adotar uma postura humilde, com freqüência manifestando simpatia pelo que começa a conhecer: história, ciências, ofícios práticos, esportes, outras doutrinas filosóficas ou religiosas etc. etc.

2.      Por outro lado, o Positivismo – ou melhor, a Religião da Humanidade – afirma que a (digna) subordinação é a base do aperfeiçoamento, ou seja, que é necessário humildemente assumir a imperfeição e/ou a ignorância

                                                                        ii.      Todavia: no que se refere ao Positivismo, é bastante comum que a postura de quem se aproxima seja não de humildade, mas de arrogância, de auto-suficiência:

1.      Quem não conhece o Positivismo e não deseja conhecê-lo de verdade – por exemplo, quem faz trabalhos escolares (incluindo aí os “doutores”) – simplesmente repete os preconceitos correntes, marcados por mentiras, distorções e tolices retrógradas e revolucionárias

2.      Quem não conhece o Positivismo mas deseja conhecê-lo muitas vezes começa o estudo partindo do pressuposto – completamente arbitrário e preconceituoso – de que é necessário “atualizar o Positivismo” (e que essa pessoa será a pessoa adequada e responsável por essa “atualização”)

a.       A pretensão de saber previamente ao estudo que é necessário “atualizar o Positivismo” é uma forma extremamente agressiva e infantil de arrogância, em que a ignorância é afirmada pela pretensão de auto-suficiência

b.      Além disso, é evidente que, sendo ignorante, a auto-suficiência de tais arrogantes só pode basear-se em preconceitos (o mais das vezes metafísicos, mas também retrógrados)

                                                                      iii.      Em outras palavras, o Positivismo é objeto de um orgulho que não se vê em outras partes, muitas vezes mesmo a partir de pessoas que se dizem partidárias ou defensoras da Religião da Humanidade

e.       Caso o arrogante controle seu orgulho e persista nos estudos do Positivismo, aos poucos perceberá que ele é, ou era, de fato arrogante, orgulhoso; a submissão passará a atuar no lugar da auto-suficiência

                                                                          i.      Entretanto, até que o arrogante perceba com maior ou menor clareza que é de fato arrogante, haverá um custo para os positivistas sinceros

                                                                        ii.      Esse custo ocorrerá das mais diferentes formas, todas elas negativas: disputas; bate-bocas; cobranças exageradas e/ou infundadas; cansaço; exaustão; somatização

                                                                      iii.      Essa arrogância auto-suficiente, além de desperdiçar valiosos recursos humanos (tempo, paciência, boa vontade, saúde física e moral), também é o oposto dos objetivos maiores do Positivismo, que é a instituição de uma disciplina moral e intelectual, tanto individual quanto coletiva, em que o altruísmo e a preocupação com os demais subordinam, comprimem e orientam o egoísmo e as preocupações exclusivamente voltadas para si mesmo

1.      É necessário insistir: na verdade, a arrogância auto-suficiente é ainda pior do que parece à primeira vista, pois ela recusa inicialmente a condição fundamental para o aperfeiçoamento humano, que é a digna subordinação

f.       Além disso tudo, a arrogância auto-suficiente impõe um enorme dilema para a propaganda e o ensino do Positivismo: na medida em que há um possível aderente, que supostamente deseja conhecer e praticar a Religião da Humanidade mas que atua de maneira por vezes frontalmente contrária ao que supostamente deseja conhecer, os apóstolos vêem-se o tempo todo ante o drama de ter que optar entre persistir em um ensino muito desgastante e desistir de um possível verdadeiro aderente

g.       Estas anotações não se dirigem a ninguém em particular; por outro lado, elas baseiam-se na prática apostólica e sacerdotal que tanto eu quanto nosso amigo e correligionário Hernani vimos desenvolvendo nos últimos anos

                                                                          i.      O que eu chamei acima de “desperdício de valiosos recursos humanos” não é uma afirmação genérica e/ou meramente teórica; ela consiste na descrição literal de problemas que cada um de nós enfrenta em determinados momentos

                                                                        ii.      Há toda uma série de situações correntes de falhas ou limitações de comportamento – desconhecimento da doutrina, imperfeições de caráter, falhas na avaliação prática etc. – que, se e quando ocorrem com lealdade e com boa-fé, são por assim dizer aceitáveis, no sentido de que são passíveis de aconselhamento, recomendações, estímulos etc.

1.      Nesses casos, os esforços e os recursos despendidos pelos sacerdotes da Humanidade para sua solução (inclusive a respeito dos próprios sacerdotes) são recursos bem empregados

2.      Inversamente, no caso da arrogância, da auto-suficiência, o consumo dos recursos passa com facilidade e rapidez do bom emprego para o desperdício

h.      Se é para o Positivismo constituir-se de fato em uma Religião da Humanidade, em um poder espiritual, é necessário que possamos fazer, com legitimidade, sem acrimônia de parte a parte e sem reações adversas, uma exprobração como esta

                                                                          i.      Assim como eu, na condição de sacerdote da Humanidade, faço e tenho que constantemente fazer exame de consciência e exame de minhas condutas, para verificar a adequação de meus comportamentos em relação à Religião da Humanidade e em relação à eficiência de minhas prédicas e de meu apostolado; mais uma vez: assim como eu submeto-me a exames constantes de meu comportamento, é necessário que possamos exprobrar os aderentes a respeito de suas ações e cobrar-lhes uma adequação semelhante

                                                                        ii.      Essa exprobração é importante porque, como vimos indicando, esse problema é particularmente agudo e desgastante

i.        Para concluir e sintetizar esta exprobração, convém reforçarmos:

                                                                          i.      Em qualquer atividade e, no fundo, na vida em geral, só podemos obter conhecimento e aperfeiçoarmo-nos a partir de uma postura de humildade, ou seja, de digna submissão

                                                                        ii.      O Positivismo afirma com clareza que “a (digna) submissão é a base do aperfeiçoamento”

                                                                      iii.      Assim, tanto na vida em geral quanto em particular para conhecer o Positivismo é necessário desde o início ser positivista e praticar o Positivismo, adotando-se a postura de digna submissão