12 junho 2023

Entendendo a relevância atual da metafísica político-moral

No dia 13 de São Paulo de 169 (2.6.2023) redigi um pequeno texto em que apresento uma interpretação positiva da política contemporânea. 

Na verdade, esse texto foi redigido como uma pequena apresentação dos esforços realizados pelo Apostolado Positivista da Itália, que tem à sua frente nosso querido amigo, o Apóstolo Sebastiano Fontanari. Mas, para que essa apresentação não se limitasse ao mero elogio, pareceu-me melhor fazer uma pequena reflexão sobre as sociedades contemporâneas, resultando nessa interpretação em que indico o porquê de a metafísica ter tanta importância atualmente.

Tão logo Sebastiano verta para o italiano esse texto, ele será publicado neste blogue.

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O século XIX foi um período em que muitas utopias surgiram e, portanto, foi um período de esperanças. Surgiram utopias positivas – por definição, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade –, assim como utopias metafísicas – a democracia rousseauniana revigorada, o marxismo, o anarquismo e tantas outras –; surgiram até mesmo utopias teológicas, na forma dos projetos retrógrados românticos. Ao mesmo tempo em que a teologia seguiu um caminho descendente, a positividade seguiu sua marcha ascendente, com a difusão do Positivismo no conjunto do Ocidente e mesmo além dele.

O século XX, por outro lado, pode ser dividido em duas grandes partes. A primeira delas caracterizou-se pelos estertores do regime católico-feudal: a II Guerra dos 30 Anos, ou seja, o tumultuado período que vai de 1914 a 1945 no fundo caracterizou-se pela mobilização, com enorme violência, das derradeiras forças militares próprias ao feudalismo; não é à toa que o mundo que surgiu após 1945 fosse “moderno”, isto é, em que já não se percebessem mais os hábitos herdados do mundo feudal.

Todavia, a II Guerra dos 30 Anos não pôs um fim apenas ao mundo feudal; ela também sacrificou a maior parte do movimento positivista que se desenvolvia, ramificava e frutificava no Ocidente. Tal sacrifício ocorreu principalmente durante a fase inicial dessa guerra, no período que se chama habitualmente de “I Guerra Mundial”, tanto pela morte dos positivistas e pela destruição das igrejas e dos clubes positivistas (durante o período 1914-1919) quanto pela disseminação de um espírito fortemente metafísico, em particular em suas vertentes niilista, comunista e nacionalista (após 1919). Dessa forma, após 1945 o mundo já era “moderno” – mas não era, como ainda não é, positivo; derrotada a teologia de origem feudal, dizimada a positividade, a metafísica surgiu vitoriosa, em meio à disputa de duas grandes metafísicas: o comunismo soviético e a democracia liberal estadunidense.

Ambas as utopias metafísicas que se enfrentaram na segunda parte do século XX consistem em sistematizações de concepções opostas, confusas e parciais sobre a natureza humana, seja coletiva, seja individual; além disso, essas duas metafísicas são materialistas e democráticas, isto é, ambas apelam para a vontade todo-poderosa e voluntariosa do “povo”. Acuada pelo comunismo, a dupla metafísica democrático-liberal respeitou as liberdades individuais e procurou prover condições mínimas de existência para o proletariado dentro dos países centrais (negando esses fatores nos países periféricos); por seu turno, o comunismo limita ou rejeita as liberdades individuais, impõe uma doutrina oficial de Estado em nome da liberdade material coletiva e obriga as populações a ele submetidas a graves provações materiais e morais (tanto no antigo país-mãe do comunismo como em todos os demais países comunistas): assim, enquanto as repressões comunistas acabaram resultando na falência dessa metafísica, uma situação conjuntural – a pressão comunista – permitiu ao proletariado ocidental liberdades e elevação do padrão de vida. A falência comunista encerrou a Guerra Fria e, assim, a metafísica democrático-liberal deixou de sofrer o constrangimento externo que a moderava e evitava seus maiores desregramentos. Durante a Guerra Fria, as metafísicas mantiveram seu caráter belicista; acima de tudo, a chamada doutrina da “destruição mútua assegurada” (mutual assured destruction – MAD) impediu o conflito direto entre as duas potências-líderes dos blocos metafísicos: por outro lado, felizmente a Europa Ocidental pôde afinal deixar de lado os hábitos militaristas, em particular na forma dos nacionalismos estreitos, e assumiu a paz como ideal civilizacional, em vez de ser mera interrupção de conflitos.

Os desvios próprios à metafísica democrático-liberal conduziu, mal, o mundo após 1989-1991, primeiro na forma do triunfalismo do ultraliberalismo e, depois, na forma do militarismo estadunidense, que conjugava (como conjuga) a metafísica democrática com a concepção protestante do excepcionalismo norte-americano. Absolutista, a metafísica democrático-liberal (agravada pelo excepcionalismo protestante dos EUA) é incapaz de reconhecer as várias concepções de mundo e de, com relativismo, lidar com elas; em particular, essa metafísica é incapaz de reconhecer que a harmonia social exige não apenas liberdades individuais, mas também, e antes, o bem-estar coletivo, que inclui aspectos morais e intelectuais e não somente materiais. Em outras palavras, a metafísica da vontade do povo é incapaz de perceber que (1) a vontade curva-se ante as leis naturais e (2) que o povo estadunidense não corresponde aos povos dos demais países do mundo. Daí a incapacidade de os Estados Unidos constituírem, por meio de sua liderança, uma ordem internacional estável e progressista; daí a superficialidade da implantação da “democracia” ao redor do mundo – embora, como se saiba, muitos países regridam a concepções cripto-teológicas, ainda que profundamente marcadas pela metafísica da vontade popular, com os “tradicionalismos”, o comunismo e, de modo geral, os nacionalismos xenofóbicos renovados.

Tal angustioso cenário é contraposto, por outro lado, pela feliz constatação de que o ser humano, em meio às variações históricas de sua realidade, obedece afinal de contas a leis naturais – e que tais leis indicam o rumo a tomar: paz universal, relativismo, noção de Humanidade, com o abandono decisivo dos hábitos militares, das concepções absolutas e das noções sociais estreitas. A positividade – na forma da simpatia, da síntese e da sinergia, com a prevalência da continuidade sobre a solidariedade humana – prevalecerá, revelando-se como a única solução para esses problemas; mas podemos – e, portanto, devemos – acelerar na medida do possível, na medida das nossas forças, essa transição, ao difundirmos a positividade sistematizada[1].

Assim, é com muita alegria, muita satisfação e, principalmente, com muita esperança que apresento e dou as boas-vindas ao Apostolado Positivista da Itália, em particular na figura de seu Diretor, o Apóstolo Sebastiano. Sua dedicação ao Positivismo, à difusão da positividade já rende frutos, retomando a tradição positivista européia, cerca de um século após seu abrupto fim em decorrência da I Guerra Mundial.

Salut et Fraternité – ou, na versão em português: Saúde e Fraternidade!



[1] Comentário do meu amigo Hernani Gomes da Costa: sem a ação sistemática do Positivismo, o resultado da política mundial e nos vários países será a manutenção da terrível e cansativa oscilação entre o progresso anárquico e a ordem retrógrada.

07 junho 2023

Sobre as celebrações empíricas

No dia 17 de São Paulo de 169 (6.6.2023) realizamos a nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em particular em sua sétima conferência, dedicada ao que podemos chamar de "filosofia das ciências naturais".

Após a leitura comentada, no sermão expusemos algumas considerações sobre as celebrações sociais empíricas, especialmente as que têm sido propostas a partir do século XX. As anotações que elaboramos a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida pelos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/RmHP2) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/Zb6mq). A exposição sobre as celebrações empíricas pode ser vista a partir de 58'.

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Sobre as celebrações empíricas 

-        Toda sociedade celebra seus valores coletivos

o   Como sabemos, a celebração dos valores integra o culto, na medida em que a “celebração dos valores” implica a mobilização e o estímulo dos sentimentos

-        Quando falamos que “toda sociedade celebra seus valores”, temos que ter clareza que a expressão “sociedade” não é unívoca

o   Embora no dia-a-dia ela denote “sociedade nacional”, isto é, a pátria, o fato é que a ela corresponde vários níveis sucessivos e complementares entre si

o   Augusto Comte distingue de maneira elementar três níveis, de acordo com seus fundamentos e sua amplidão: a família, a pátria e a Humanidade (embora haja evidentemente graus intermediários, como, por exemplo, o que chamamos atualmente de “civilização”)

§  Cada um desses níveis celebra seus valores coletivos, das mais variadas maneiras:

·         As famílias realizam encontros gastronômicos, festas de aniversário, celebrações civil-religiosas etc.

·         As pátrias realizam festas populares (feiras, quermesses, carnaval), comícios políticos, eventos esportivos etc. – e a decretação de dias especiais e feriados

·         A Humanidade de modo geral emprega os mesmos meios usados pelas pátrias, embora em geral com diferenças na forma de sua implantação: festas populares (feiras), comícios políticos, eventos esportivos etc. – e a decretação de dias especiais

-        Nas sociedades ocidentais, o aspecto cultual das celebrações coletivas torna-se cada vez menos evidente, embora nem por isso ele deixe de existir e de ser verdadeiro

o   Vale notar, de passagem, que a disciplina acadêmica chamada Antropologia estuda esses ritos em todas as sociedades e que, assim como o Positivismo, tem clareza de que mesmo as sociedades ocidentais possuem tais celebrações

-        É necessário termos clareza de que essas celebrações têm algumas particularidades:

o   Na medida em que, de diferentes maneiras, elas celebram efetivamente valores coletivos, elas mais ou menos sempre correspondem aos valores gerais da civilização em questão

o   Por outro lado, com freqüência, mas não sempre e não necessariamente, elas têm origem popular

o   Mas, correspondendo aos valores da civilização e tendo origem popular ou não, o fato é que é sempre o sacerdócio que sistematiza e sanciona tais celebrações

o   Mesmo que o poder Temporal referende tais celebrações, o fato é que elas integram plenamente o âmbito do poder Espiritual; prova disso é que não basta um governo estabelecer uma data comemorativa qualquer e/ou instituí-la como feriado: se não houver sentimentos populares e a sistematização sacerdotal, as datas serão apenas formalidades e/ou dias meramente caracterizados pelo ponto facultativo

o   Vale lembrar que os calendários têm uma dupla função, a que o sacerdócio está intimamente vinculado:

§  Por um lado eles regulam a passagem do tempo, em unidades maiores ou menores, de acordo com progressões cíclicas ou “lineares”: horas, minutos, segundos; dias, meses, anos, séculos etc.

§  Por outro lado, essa passagem do tempo, ou melhor, a contagem do tempo é sacramentada pelo sacerdócio:

·         Cada civilização tem sua contagem própria de anos, cujo início é (ou foi) estabelecido pelo sacerdócio

·         Os dias da semana, os meses e até os anos são dedicados a diferentes aspectos da vida coletiva: lunedia, martedia, mercuridia, jovedia, venerdia, sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira etc.; ano do boi, do rato, do tigre, do dragão; mês do ramadã etc.

·         Além disso, no Ocidente, a partir da sistematização católica dos sentimentos populares, cada dia é dedicado a um ou mais santos

o   É devido a esses motivos que a Religião da Humanidade estabelece múltiplos e sistemáticos sistemas de comemoração: pessoais, familiares, nacionais e mundiais:

§  Cada mês do ano é dedicado a um aspecto abstrato da existência humana positiva (em número de 13) e a um aspecto histórico do desenvolvimento da Humanidade (também em número de 13)

§  Cada semana é dedicada a um aspecto abstrato específico (em número de quatro) e a um aspecto histórico específico (em número de quatro)

§  Cada dia é dedicado a uma figura histórica geral representativa da evolução humana (em número de sete) e também a uma ou mais figuras históricas específicas (em um total de cerca de 500)

o   Fora isso, temos que lembrar que a Religião da Humanidade consagra diversas festas cívicas

§  No Brasil, essas festas foram acatadas pelo governo republicano provisório em 14 de janeiro de 1890, por meio do Decreto n. 155-B (mas, a partir de 1930, substituídas pelas comemorações clericalistas católicas)

-        O declínio acentuado da teologia, como notamos acima, conduz o Ocidente a cada vez mais desconsiderar as festas sacramentadas pela teologia

o   Isso se dá de duas maneiras:

§  Por um lado, o ritmo geral da vida deixa de ser religioso e teológico para ser cada vez mais pragmático-utilitário e humano

§  Em conseqüência do aspecto anterior, as festas e as celebrações teológicas perdem cada vez maior a relevância e são lembradas cada vez menos; inversamente, cada vez mais elas são lembradas por seus aspectos humanos (o que, infelizmente, com freqüência se reduz aos seus aspectos comerciais)

-        Em face do evidente e necessário declínio da teologia no Ocidente, desde o final do século XVIII sistemas coletivos e mais ou menos sistemáticos de celebrações têm surgido:

o   Antes de mais nada, devemos reafirmar a centralidade do culto público positivista, que já recordamos em traços muito breves acima

o   Durante a Revolução Francesa, propuseram-se novas celebrações, algumas com caráter francamente metafísico (o culto ao Grande Ser), outras com um caráter mais positivo (a mudança de contagem do calendário e os novos nomes para os meses: Frutidor, Prairal, Brumário etc.)

o   As celebrações propostas pelos movimentos proletários (anarquistas, “socialistas utópicos”, as primeiras internacionais socialistas) e as celebrações criadas após a Revolução Russa

-        Entrando, enfim, no tema específico deste sermão: por outro lado, desde o início do século XX inúmeras celebrações empíricas têm surgido e são cada vez mais comuns

o   Pela expressão “celebrações empíricas” eu penso principalmente nas celebrações públicas decretadas pelo governo, isto é, pelo poder Temporal, em homenagem às mais variadas questões

§  O poder Temporal, aqui, não se resume aos chefes políticos das pátrias (isto é, dos países), mas considera também as celebrações ditas “internacionais” ou “mundiais”, propostas pela Organização das Nações Unidas e suas instituições secundárias (Unesco, Unicef, OIT etc.)

o   Essas celebrações são “empíricas” porque correspondem apenas aos valores julgados importantes nos momentos históricos em que são instituídas

§  São celebrações não sistemáticas e, antes, não sancionadas por nenhum poder Espiritual

§  Em outras palavras, elas são “empíricas” porque, embora mais ou menos correspondam aos sentimentos populares, elas são feitas às cegas

o   O “empirismo” de tais celebrações e o seu caráter “às cegas” resulta em que há celebrações efetivamente importantes, assim como há muitas relevantes; mas há também celebrações de realidades humanas secundárias, quando não caricatas e, conforme o espírito do tempo em que são criadas, há muitas com maior ou menor particularismo

§  Duas belas datas são o 1º de janeiro (Dia Internacional da Fraternidade Universal) e o dia 5 de junho: “dia mundial do meio ambiente”

§  As celebrações que chamamos de “relevantes” são, por exemplo, as que homenageiam as profissões e as atividades práticas, além das que homenageiam os laços domésticos (mães, pais, avós etc.)

§  Uma data caricata é o dia 8 de junho: “dia do cunhado”

§  As datas particularistas são todas as propostas pelo clericalismo (católico ou evangélico) e/ou pelos identitarismos (de “raça”, de gênero)

o   Os problemas com o empirismo dessas datas são os seguintes:

§  Por um lado, elas são sujeitas às conjunturas políticas de cada momento, de modo que podem perder o seu caráter de festa coletiva e tornar-se apenas uma intromissão do poder Temporal no domínio espiritual

§  Por outro lado, mesmo quando as celebrações estabelecidas correspondem efetivamente a aspectos positivos da realidade humana, elas carecem de profundidade moral (ao abordarem apenas um aspecto da existência humana, com freqüência a realidade prática) e também carecem de integração sistemática (ou, se desejar-se, integração “sistêmica”) com o conjunto da vida humana

·         Em outras palavras, o empirismo dessas celebrações conduz a que lhes falta a amplitude e a profundidade que somente a concepção religiosa do Positivismo pode realizar

-        Para retomar alguns argumentos e, assim, concluir:

o   As atuais celebrações empíricas, em si mesmas, de modo geral são objeto de simpatia, na medida em que celebram aspectos da existência humana

o   Entretanto, o seu empirismo precisa com urgência cada vez maior ser corrigido pela sistematização religiosa desenvolvida pelo sacerdócio positivo

o   Tal sistematização corretora é necessária por vários motivos:

§  Muitas celebrações são estabelecidas apenas em função e como resultado das disputas políticas do momento

§  Muitas celebrações empíricas estimulam o egoísmo particularista, enquanto outras são meramente tolas

§  Além disso, mesmo no caso das celebrações corretas, elas são tanto superficiais quanto isoladas (quando não meramente presentistas), ou seja, elas falham quase totalmente em seus propósitos religiosos

05 junho 2023

400 mil visitas!

No dia de hoje, 16 de São Paulo de 169 (5.6.2023), este blogue atingiu uma importante marca: ultrapassou as 400 mil visitas!

Criado em 4 de janeiro de 2007, as marcas anteriores foram atingidas nas seguintes datas:

- 100.000 visitas: 8 de Dante de 161 (23.7.2015)

- 200.000 visitas: 27 de Aristóteles de 163 (24.3.2017)

- 300.000 visitas: 7 de Dante de 165 (22.7.2019)

Este blogue foi criado para apresentar notícias e reflexões baseadas no Positivismo, inspiradas por ele e/ou sobre ele, expondo a positividade e o espírito positivo, o pacifismo e as liberdades públicas e individuais, o relativismo e o altruísmo, contra o absolutismo teológico-metafísico, o autoritarismo e o militarismo. 

Neste blogue buscamos expor concepções reais e úteis, para esclarecer, orientar, aconselhar o público leitor; são informações, relatos, dados expostos gratuitamente, para a correta e necessária livre circulação de idéias. O objetivo, em última análise, é colaborar na constituição de um novo poder Espiritual e, com isso, auxiliar na constituição de uma opinião pública renovada conforme os parâmetros indicados (relativa, altruísta, orgânica).

Esse programa - "real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático" - vai contra o espírito de nossa época, que se caracteriza pelo absolutismo, pela crítica, pela visão fragmentária e de detalhe, pelo egoísmo disseminado; assim, o programa da Religião da Humanidade atualmente é de difícil difusão. Mesmo com essa dificuldade, ou mesmo devido a ela, é necessário persistir, tendo certeza de que, em meio às tormentas morais, intelectuais e políticas de nossa época e de nossa sociedade, a positividade triunfará. 

31 maio 2023

Sobre "comtismo" e atualização do Positivismo

No dia 10 de São Paulo de 169 (30.5.2023) fizemos nossa prédica positiva. Dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, iniciamos a sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais; na parte do sermão abordamos a expressão "comtismo" e o que pode significar a "atualização" do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/RRf9d) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/qWPWc). O sermão pode ser visto a partir de 53' 20".

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Sobre “comtismo” e atualização do Positivismo

 

-        Uma das primeiras – ou, com freqüência, uma das únicas – observações feitas por quem não conhece o Positivismo e a Religião da Humanidade é que é necessário “atualizá-los”

o   Vinculada a essa questão está a diferença entre “comtismo” e “Positivismo”

-        Essas duas questões exigem alguns esclarecimentos e algumas reflexões

o   Vale notar que os comentários que farei aqui são mais ou menos pessoais e que, evidentemente, estou aberto a reflexões posteriores

-        Comecemos pela expressão “comtismo”:

o   “Comtismo” é uma expressão que denotaria a filosofia específica a Augusto Comte

§  Está muito claro o sentido usualmente depreciativo dessa expressão, ao querer reduzir o “Positivismo” a um mero “comtismo”, ou seja, ao querer reduzir o Positivismo a uma série de idiossincrasias e supostas esquisitices de Augusto Comte

o   Ao mesmo tempo em que reduz a obra de Augusto Comte a uma série de idiossincrasias, a expressão “comtismo” sugere que o “Positivismo” consiste em outras coisas que não a filosofia e a religião sistematizadas por A. Comte

§  Essa mudança de âmbito do Positivismo pode ocorrer com fins elogiosos ou depreciativos em relação especificamente ao Positivismo

o    Augusto Comte rejeitava a denominação – na verdade, como vimos, redução e degradação – de sua obra como “comtismo”

§  Para Comte, a doutrina positivista é superior aos seus órgãos quaisquer e, portanto, superior a ele mesmo: só isso já bastaria para rejeitar o “comtismo”

§  Assim, Comte insistia em que o Positivismo – e a Religião da Humanidade – deve ser entendido como uma elaboração sistematizada por ele a partir dos materiais legados pela Humanidade e que, portanto, não poderia, como não pode, ser reduzida às suas particularidades pessoais

o   Por outro lado, as referências a Augusto Comte, da parte dos positivistas, são constantes: não seria isso uma prova empírica do “comtismo”?

§  A resposta a essa pergunta é muito clara e direta: não, não é prova de “comtismo”

§  As referências que os positivistas fazem a Augusto Comte devem-se pelo menos a duas ordens de motivos:

·         Por um lado, trata-se de uma referência inescapável, na medida em que Augusto Comte foi o fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade; ele elaborou – ou melhor dizendo, ele sistematizou – a síntese positiva e, portanto, é evidente que se deve fazer referência a ele

·         Por outro lado, trata-se de humildade, de reconhecimento da superioridade moral e intelectual de Augusto Comte e, assim, trata-se também da aplicação do princípio de que a “digna submissão é a base do aperfeiçoamento”

§  Em outras palavras, os positivistas referem-se com freqüência a Augusto Comte porque essa referência é inescapável e também porque se trata de homenageá-lo e reconhecer nele uma figura digna de emulação

o   Também é importante lembrar que, a despeito da determinadas tendências academicistas, o único “positivismo” para nós é o Positivismo de Augusto Comte; os demais supostos “positivismos” são exageros, ampliações conceituais indevidas, aplicações de boa ou má fé etc.

-        Mas, enfim, se o Positivismo não é meramente o "comtismo", o que diferencia uma coisa da outra na prática?

o   Para os nossos presentes propósitos, a resposta mais clara e mais direta é esta: trata-se da capacidade de desenvolvimento, aplicação e atualização do Positivismo – afinal, trata-se de uma doutrina relativista

§  Isso suscita, naturalmente, a questão da “atualização” do Positivismo

o   Além disso, de maneira mais profunda, considerando a relação de oposição complementar entre “amor” e “fé” (ou seja, entre afeições/atividades práticas e inteligência), o comtismo consiste no mero conhecimento da letra de Augusto Comte e de seus discípulos, ao passo que o Positivismo consiste em viver de fato a partir dos parâmetros da Religião da Humanidade

-        Passemos, então, ao tema da “atualização” do Positivismo: “atualizar” pode significar na prática três ou quatro coisas:

o   Aplicar a doutrina a questões atuais

o   Desenvolver e complementar a doutrina em aspectos mais ou menos secundários

o   Modificar os métodos de propaganda

o   Modificar a doutrina

-        Mas, antes de qualquer discussão efetiva sobre a atualização do Positivismo, temos que considerar diversos aspectos preliminares:

o   Antes de mais nada, muitos dos que criticam a desatualização do Positivismo desejam apenas o criticar, sem contribuir com nada além da crítica

§  Geralmente são teológicos ou metafísicos

§  Com freqüência tais críticos fazem observações superficiais sobre aspectos secundários do Positivismo e são moralmente muito inferiores ao Positivismo

·         Exemplo: Carl Sagan: em Cosmos ele critica longamente Augusto Comte (por este ser contra a análise espectrográfica das estrelas), ignorando de maneira mesquinha os elogios que Augusto Comte fez da Astronomia (aliás, em um livro de divulgação científica, a sua Astronomia popular); por outro lado, em O mundo assombrado pelos demônios, Carl Sagan afirma que o máximo da moralidade é a “regra de ouro” sugerida pelo protestantismo, em particular o prevalecente nos Estados Unidos: “não fazer aos outros o que não se deseja que se faça com você” é o cúmulo do egoísmo e a negação direta do altruísmo

o   Basicamente, quem fala em “atualizar” o Positivismo não o conhece nem o entende

§  Se não conhece e não entende, não tem absolutamente nenhuma condição de avaliá-lo e, portanto, de sugerir qualquer alteração nele

·         Quem não conhece a doutrina mas exige atualizações revela não apenas ignorância como também arrogância

§  É importante aqui destacar que o Positivismo implica, necessariamente, uma alteração de perspectiva

§  No âmbito do Positivismo não falamos em “iluminação”, em “revelação”, em “testemunho”; ainda assim, o adequado entendimento do Positivismo não é um processo total ou principalmente intelectual; é um processo afetivo que implica a mudança profunda e radical de como se entende a realidade: eu tenho usado a expressão “mudança de sensibilidade”

§  Essa mudança consiste na revalorização dos sentimentos, na substituição do absolutismo pelo relativismo e na aplicação geral da lógica positiva (sentimentos, imagens, sinais), com tudo o que isso implica

o   O segundo aspecto preliminar que temos que ter em mente ao tratarmos da atualização do Positivismo é entendermos a partir de qual filosofia (e de qual síntese) fala-se disso e, ainda mais, em qual contexto social

§  Saber de qual filosofia (ou de qual síntese) fala-se em atualização importa porque as concepções de mundo, sobre a realidade, seus valores etc. são determinados ou influenciados por essa filosofia: há que se considerar se essa filosofia (ou essa síntese) é compatível com o Positivismo, se é relativista ou não, se afirma a visão de conjunto ou não, se reconhece o altruísmo ou não; ou, por outro lado, se é materialista ou não, se é espiritualista ou não, se é metafísica ou não etc.

§  O que vale para a filosofia adotada pelos indivíduos vale muito mais e de maneira mais central para a sociedade; afinal, os valores e as concepções difundidas e vigentes em uma determinada época e em um determinado lugar influenciam poderosamente a maneira como os indivíduos pensam, estabelecendo parâmetros, impondo limites etc.

o   É necessário insistir nesta ideia: o contexto social mais amplo não é secundário; na verdade, ele faz toda a diferença

§  Os exemplos são inúmeros e variam conforme os períodos (ou seja, conforme os "contextos"); os exemplos que darei são todos do Brasil, mas poderiam ser estendidos a todos os países:

·         Nas décadas de 1890 a 1930, o Positivismo era criticado (ou ridicularizado) por defender o proletariado, por defender a proteção social aos idosos, às mulheres, aos desamparados; por defender os índios; por defender o ambientalismo; por defender a atuação social do Estado (contra o liberalismo econômico)

·         Nos anos 1930 e 1940 o Positivismo era criticado por ser a favor das garantias constitucionais, por ser a favor das liberdades, por ser a favor de reformas (e não de revoluções), por ser a favor do pacifismo (e não do militarismo), por ser a favor da concórdia entre as classes (e contra a luta de classes), por afirmar a visão de conjunto e também a atuação individual; por estar muito identificado com a I República

·         Nos anos 1960 a 1980 o Positivismo era criticado por ser a favor da visão de conjunto e a favor da atuação individual; por defender as reformas (e não as revoluções); por defender a moderação (e não os extremos); por defender a racionalidade (contra o irracionalismo maoísta e contra o misticismo vinculado a drogas dos hippies); por defender a concórdia entre as classes (e não a luta de classes); por estarmos identificados equivocadamente com os militares e até certo ponto corretamente com a I República

§  Em cada uma das conjunturas indicadas acima se afirmou que o Positivismo estaria ou seria “desatualizado” e, por implicação, que o Positivismo deveria “atualizar-se” nos sentidos criticados

§  Caso os positivistas tivessem-se “atualizado” conforme essas conjunturas e as respectivas cobranças, o Positivismo ficaria descaracterizado e degradado

§  Em meio a todas essas modas político-intelectuais e apesar delas (ou contra elas), o Positivismo comprovou-se correto

o   O atual contexto social é marcado, acima de tudo, pela metafísica e por seu espírito dissolvente, particularista, exclusivista, excludente – além de absolutista, academicista e/ou irracionalista: pós-modernismo, cientificismo academicista, identitarismo, tradicionalismo etc. etc.

§  Nesse contexto, a “atualização” do Positivismo consistiria em alterá-lo em direção à metafísica, ao seu absolutismo e ao seu espírito dissolvente: deveria ser claro que isso não seria “atualizar”, mas degradar

-        Passemos aos sentidos possíveis de “atualizar”, começando pela aplicação da doutrina:

o   Pode-se aplicar uma doutrina das mais diferentes maneiras

§  Podemos aplicar uma doutrina fazendo citações dela ou referindo-nos a seus autores: essa é uma forma bem superficial, basicamente intelectualista mas extremamente comum; na verdade, é o que mais ocorre

§  Podemos aplicar uma doutrina a partir de um conhecimento “médio”, nem superficial nem profundo; geralmente são intelectualistas e exigem uma certa simpatia; esse nível permite alguns desenvolvimentos, em particular intelectuais mas com certa freqüência formalistas

§  A aplicação a partir do conhecimento aprofundado é a mais difícil, pois exige tanto o conhecimento intelectual quanto a experiência “vital” da doutrina: é aí que a aplicação da doutrina torna-se mais rica, mais frutuosa e mais viva – e mais criativa

§  Assim, por si só, aplicar a doutrina é uma forma de atualizá-la

-        A respeito da atualização como desenvolvimento ou complemento da doutrina:

o   Deveria ser evidente (mas não é) que a atualização como desenvolvimento e/ou complemento exige tanto o conhecimento quanto a experiência subjetiva da doutrina, além do respeito e da simpatia pela figura do fundador (no caso, Augusto Comte), pelos seus discípulos sinceros e pela própria doutrina

o   O conhecimento da doutrina já sugere desenvolvimentos ou complementos, seja a partir de indicações do fundador, seja por lacunas que a doutrina sugere existirem

o   Conhecimentos ou movimentos sociopolíticos correntes podem sugerir ou inspirar alguns desenvolvimentos ou complementos na doutrina

§  Há uma condição fundamental para isso: esses desenvolvimentos ou complementos inspirados por novos conhecimentos ou outros movimentos têm que ser, evidentemente, coerentes e homogêneos com a doutrina

§  Também é importante lembrar que o método é superior à doutrina em si

o   Com facilidade aceitamos que há vários aspectos do Positivismo que estão “desatualizados” e que podem, também com maior ou menor facilidade, ser “atualizados”

§  Um exemplo da política mundial: atualmente existe a ONU e, de maneira correlata, o colonialismo europeu, que dominava o mundo no século XIX, já não existe mais

§  Um exemplo da política nacional: após a II Guerra Mundial desenvolveu-se o Estado de bem-estar social

§  Um exemplo das ciências: a Informática é uma área que demanda incorporação na classificação das ciências (minha sugestão pessoal é que seja entendida como integrante da Filosofia Terceira, isto é, como tecnologia derivada da Matemática)

-        No que se refere à atualização como mudança nos métodos de propaganda:

o   Essa talvez seja a forma mais simples, mas não necessariamente mais fácil, de atualizar

o   Ela consiste em usar dignamente todos os meios disponíveis, técnicos e sociais, para a propaganda

o   Mas sempre é necessário ter-se clareza de que a forma interfere no conteúdo e vice-versa; assim, determinadas formas de comunicação podem degradar o conteúdo, bem como determinados conteúdos devem evitar alguns formatos

-        No que se refere à atualização como mudança da doutrina:

o   Com freqüência, quem reclama “atualização” do Positivismo (ou, por outra, quem critica sua “desatualização”) demanda a mudança da doutrina

§  Por “mudança da doutrina” eu entendo aqui a mudança no “núcleo duro” da doutrina (relativismo, historicismo, defesa do altruísmo, visão de conjunto, natureza humana tríplice, prevalência da continuidade humana sobre a solidariedade etc.)

o   Uma coisa é realizar ajustes secundários maiores ou menores; outra coisa é propor a mudança de partes fundamentais da doutrina: estas mudanças fundamentais não são “atualizações”, mas são deformações

o   Como indicamos antes, a atualização como mudança da doutrina geralmente é proposta por quem não conhece e nem entende o Positivismo e, de qualquer maneira, é proposta por quem considera que o espírito do tempo presente, daquele em que se vive, é o cume da moralidade e da inteligência humana

§  Nos dias atuais (início do século XXI), isso consiste em o Positivismo fazer concessões, maiores ou menores, aos identitarismos de esquerda, aos identitarismos de direita, aos autoritarismos de direita, aos autoritarismos de esquerda, ao pós-modernismo e/ou ao ultraliberalismo

 

Observações de Hernani Gomes da Costa para colaborar com este sermão, feitas em 29.5.2023

Algumas reflexões que me ocorreram sobre o seu sermão:

1)      “Devo limitar aqui a apreciação do futuro e do presente pelo grau de precisão que comportam os volumes precedentes nos estudos respectivos da ordem e do progresso. Mas uma tal aproximação basta realmente a todas as necessidades atuais. Quando a sucessão humana exigir regras mais especiais, a moral as instituirá segundo uma sociologia mais desenvolvida, que poderá às vezes necessitar do aperfeiçoamento prévio da biologia e mesmo da cosmologia” (Augusto Comte, Política Positiva; Preâmbulo Geral, Tomo IV, p.8).

2)      O fator tempo não pode funcionar como um critério absoluto capaz de determinar por si só a validade de uma concepção.

3)      Diferenças sutis entre as idéias de “novo” e de “atual”: nem tudo que é atual é novo e vice-versa.

4)      Necessidade do estabelecimento de critérios simultaneamente afetivos, intelectuais e práticos para a plena caracterização do que possa constituir uma real atualização da doutrina. Da mesma forma, necessidade de comparar essa atualização com a dos aperfeiçoamentos de que são suscetíveis as imagens subjetivas dos nossos entes queridos falecidos.

5)      Maior simpatia, maior síntese e maior sinergia definem o perfil de uma verdadeira atualização da doutrina.

6)      Na caracterização de um aperfeiçoamento qualquer, o tempo designado como “presente” precisa estar subordinado tanto ao passado quanto ao futuro, constituindo-se assim como um verdadeiro intermediário de um e outro.

7)      É também importante lembrar o papel das utopias como marcos referenciais para as atualizações.

8)      É importante lembrar que as maiores retrogradações, sobretudo práticas, sempre reivindicaram para si o caráter de “modernidade”.

9)      A morte prematura de Augusto Comte deixou a doutrina inacabada e necessitando de uma inteira revisão. Este caráter deve distinguir a propaganda positivista daquela que é realizada por todas as religiões teológicas. É na assunção de sua incompletude que reside o sinal distintivo de sua perenidade.

10)  Diferença sutil entre “comtiano”, “comtista” e “positivista”.

11)  As lições que podemos aproveitar do que se chamou o “revisionismo” entre os marxistas, e do que se entende por uma “heresia” teológica, como tentativas malogradas de aperfeiçoamento doutrinário.

12)  Os assim chamados “livros didáticos” transformados em mercadoria descartável (tanto pelo orgulho e pela vaidade do pedantismo acadêmico quanto pela cobiça da burguesocracia) e vistos como uma espécie de mina inesgotável; eles promovem uma idéia distorcida daquilo em que consiste uma verdadeira atualização científica junto a quem mal começa seus estudos.