08 setembro 2021

Exposição no evento "200 anos de Sociologia: Augusto Comte"

No dia 3 de setembro de 2021 tive a honra e a alegria de realizar a exposição inaugural do curso de extensão "200 anos de Sociologia", promovido em conjunto pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS); esse curso é organizado pelas professoras Fernanda Alcântara e Giulle da Mata.

Após a vergonhosa e (quase) total omissão da academia brasileira (incluindo aí a própria SBS) quando dos 200 anos de nascimento de Augusto Comte (em 1998) e dos 150 anos de sua morte (em 2007), a inclusão do fundador do Positivismo como autor que inaugura um evento sobre o bicentenário de uma das disciplinas fundadas por A. Comte não deixa de ser ao mesmo tempo alvissareira e um pequeno ato de desagravo.

Minha exposição, conforme anunciado antes (aqui), apresentou vários dos elementos fundamentais da Sociologia do fundador da Sociologia, isto é, de Augusto Comte. A gravação do evento está disponível no meu canal Positivismo (aqui) e no Youtube em geral (aqui), bem como a exposição para Powerpoint que elaborei está disponível aqui.

Os materiais indicados acima, bem como uma descrição e uma justificativa do evento como um todo, também podem ser obtidos no blogue da prof. Fernanda Alcântara (aqui).

[Nota acrescentada em 9.9.2021 e em 14.9.2021: a omissão da academia brasileira no que se refere ao bicentenário do fundador da Sociologia, em 1998, não foi total; houve três eventos. 

O querido professor Valter Duarte Ferreira Filho, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizou dois eventos, um na UFRJ e outro na UERJ, celebrando o bicentenário de nascimento de Augusto Comte. O evento da UFRJ contou com a presença do cônsul da França e com a exposição de membros da Igreja Positivista do Brasil, como o meu caro amigo Hernani Gomes da Costa; o evento da UERJ foi uma apresentação realizada por Danton Voltaire Pereira de Souza, também da Igreja Positivista do Brasil.

Além disso, a UFRGS organizou um evento de vários dias, integrando comemorações internacionais e contando com palestrantes nacionais e estrangeiros. Houve uma sessão na Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, presidida por Mozart Pereira Soares.]

Abaixo reproduzo as anotações que elaborei para a exposição de 3.9.2021.

*   *   *

 -        Introdução: definições apofáticas

o   Que é o Positivismo?

§  O Positivismo é:

1)      Uma religião secular, uma filosofia histórica, relativista e objetiva-subjetiva, uma prática humanista, pacifista, tolerante, universalista e includente

a.       É um sistema de educação universal

2)      “Real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico, simpático”

3)      Uma religião que afirma, regula e estimula o altruísmo inato (que, por sua vez, orienta e limita o egoísmo também inato)

4)      Uma política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

5)      Uma afirmação da realidade humana e dos valores humanos

6)      Uma afirmação da historicidade humana e, portanto, do relativismo

§  O Positivismo não é:

1)      Não é ateísmo

2)      Não é uma “teologia científica” (Religião da Humanidade)

3)      Não é um cientificismo nem um academicismo

a.       Não é reducionista (ele afirma a dignidade de cada ciência e, em particular, do ser humano e das Ciências Humanas)

4)      Não é um “naturalismo” (não reduz as Ciências Humanas às Ciências Naturais)

a.       Não é a favor da oposição “explicação” versus “compreensão”

5)      Não é um “empiricismo”

6)      Não é ideológico

a.       Não é uma ideologia burguesa

7)      Não é militarista

8)      Não é uma afirmação do Estado totalitário nem da sociedade sufocante anti-indivíduo

9)      Não é otimismo ingênuo (“pensamento positivo”)

10)  Não é nem idealista nem materialista

11)  Não é fatalista nem nega a liberdade humana

-        Confusão generalizada e intencional:

o   Interpretações nacionais:

§  alemães (Escola de Frankfurt): desumanização do homem por meio da técnica e da razão instrumental; redução do ser humano a “coisas” (a serem manipuladas pelo capitalismo)

§  alemães (Dilthey, interpretativistas): negação sistemática da liberdade e da subjetividade humanas; redução do ser humano a “coisas” (como se fossem objetos das ciências naturais)

§  anglófonos (Stuart Mill, Giddens, Alexander): no caso de Comte: ou uma obra delirante ou um mero prenúncio do “empiricismo” do Círculo de Viena

§  estadunidenses: Sociologia funcionalista, mecanicista e/ou qualitativista

§  franceses (Aron, Alain): há vários “positivismos” e o de Comte não é redutível a outros

o   Interpretações ideológicas:

§  Marxismo: burguês, explorador, dominador, alienante

§  Liberalismo: autoritário, militarista

§  Catolicismo: ateu, totalitário, cientificista, militarista

§  Feministas: machista e patriarcal

§  Movimento Negro: racista, colonialista, desprezo pelos negros, desprezo pela contribuição africana

o   Em suma: Comte e o Positivismo são a Geni (Chico Buarque, Geni e o zepelimhttps://www.letras.mus.br/chico-buarque/77259/):

Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!

o   São os inimigos preferenciais, que não precisam nem podem ser conhecidos e que existem apenas para serem desprezados à não importa o que Comte e os positivistas escrevem, mas o que os críticos desejam que eles sejam

-        Comte como “clássico” (J. Alexander)

o   “Positivismo” é a obra de Augusto Comte

-        Vida e obra de Comte

o   França posterior à Revolução Francesa

§  Busca de uma nova organização social e de novos princípios legitimadores, adequados a uma sociedade industrial e com a ciência

o   Obras

§  Opúsculos de Filosofia Social (1816-1828) (em particular: Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822 e 1824)

§  Curso de filosofia positiva, em 6 volumes (1830-1842) (em 1848 foi renomeado para Sistema de filosofia positiva) à coleção “Os pensadores” (lições 1 e 2)

§  Curso filosófico de Astronomia popular (1844)

§  Discurso sobre o espírito positivo (1844 – “Introdução” do Curso de Astronomia) à coleção “Os pensadores”

§  Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848) à coleção “Os pensadores” (2/3 do cap. 1)

§  Sistema de política positiva, em 4 volumes (1851-1854)

§  Catecismo positivista (1852) à coleção “Os pensadores”

§  Apelo aos conservadores (1855)

§  Síntese subjetiva (1856)

§  Correspondência, em 8 volumes (1816-1857)

-        Epistemologia comtiana:

o   Questões de estilo de escrita e da forma de raciocinar:

§  Englobamento de contrários (Louis Dumont)

§  Estilo “criptográfico” e “chinês” (Ângelo Torres e Emmanuel Lazinier)

§  Perspectivas “telescópica” e “caleidoscópica” (Angèle Kremer-Marietti)

o   Caráter tríplice da natureza humana: conjugação da espontaneidade com a sistematicidade: “Agir por afeição e pensar para agir”

§  princípio: sentimentos (impulso)

§  meio: inteligência (conselho)

§  resultado: ação prática (execução)

o   Caráter histórico da natureza humana: desenvolvimento de atributos ao longo do tempo

§  Em particular: da paz, da indústria, do trabalho livre, da ciência; do relativismo e da própria historicidade

o   Filosofia positiva: estudo das ciências para determinar: a lógica da ciência, as bases da Sociologia, as bases do novo poder espiritual, a síntese positiva e subjetiva

o   Espírito positivo: bom senso comum, com a continuidade do conhecimento empírico e as elaborações científicas

§  Daí a busca das leis naturais (relações entre os fenômenos) e a rejeição das “causas” absolutas (teológicas e metafísicas)

§  Daí também a combinação entre realidade e utilidade da ciência e a rejeição do academicismo

§  “Para completar as leis são necessárias vontades”

o   Acepções de “positivo”: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

o   Síntese subjetiva:

§  Visão de conjunto (em termos de natureza humana, de concepções e de objetivos): filosofia, arte, indústria, política, ciência

·         Todos devem entendimentos gerais sobre tudo; em contraposição, a atuação prática é sempre parcial

§  Subordinação da inteligência à afetividade e à atividade prática

·         Relações íntimas entre simpatia, síntese e sinergia

§  Concepções que explicam e regulam o conjunto das realidades humanas e cósmica

§  Afirmação da preponderância normal das ciências superiores (Sociologia e Moral) sobre as ciências inferiores (Matemática até a Biologia), ao mesmo tempo em que “os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros” à “multi” e “transdisciplinariedade”

·         O altruísmo e o egoísmo são inatos (ou seja, são naturais) à mas: a maior fraqueza do altruísmo e o desenvolvimento histórico da paz, da indústria e da ciência exigem o emprego constante e permanente de todos os recursos sociais e individusia disponíveis para a afirmação do altruísmo

§  Unidade da ciência: multiplicidade e autonomia das ciências; homogeneidade de método e de doutrina

§  Estabelece não apenas o que se pode conhecer e fazer, mas, acima de tudo, o que se deve fazer (ou não fazer)

§  Definição da moralidade: estímulo e prática do altruísmo (ternura), compressão do egoísmo (pureza)

o   Lógica positiva:

§  Conjunto dos meios próprios a estimular e a orientar o pensamento humano: sentimentos, imagens, sinais

§  Caráter afetivo da inteligência

§  Subordinação da imaginação à observação (mas reconhecendo a legitimidade da imaginação e a relativa autonomia da inteligência)

§  Incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final: radicalização da noção de afetividade

§  Leis da Filosofia Primeira

§  A Humanidade é a única realidade que reúne em si os sentimentos (universais), a atividade (compartilhada com o planeta Terra, ou Grão-Meio) e a inteligência (exclusiva da Humanidade, ou Grão Ser) à isso torna a intencionalidade o atributo exclusivo dos seres humanos

o   Relativismo e subjetivismo:

§  “Relacionismo” cognitivo (sensações) e intelectual (relações entre fenômenos)

§  Antiabsolutismo

§  “Subjetivismo social”, relativo ao ser humano em geral à novo antropocentrismo

o   Historicidade do ser humano e das concepções humanas:

§  o ser humano é um ser social e histórico: afirmação da solidariedade e da continuidade

§  a experiência histórica não é (e não pode ser) desperdiçada: os contextos mudam, mas há grandes continuidades (e mesmo essas continuidades mudam)

§  a história não é passado-presente-futuro, mas passado-futuro-presente

§  essas concepções são o fundamento último da Sociologia (cujo método específico é a “filiação histórica”)

-        Leis dos três estados

o   (1) Leis (2) sociológicas (3) dinâmicas:

§  inteligência: “cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

§  atividade prática: “a atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial”

§  afetividade: “a sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos” (apego, veneração e bondade)

o   a teologia e a metafísica são absolutas, enquanto a positividade é relativa

o   diferentes formulações ao longo do tempo: de “estados fictício, abstrato e científico” para “estados teológico, metafísico e positivo”

§  entregue a si mesma a ciência tende a tornar-se absoluta à constituição de um quarto estado (filosófico, sintético e relativo) em oposição à mera ciência (analítica e passível de voltar ao absoluto)

o   desenvolvimento histórico da paz, da indústria, do trabalho livre, da ciência, do relativismo, da historicidade

-        Escala enciclopédica

o   lei explicativa da lei intelectual dos três estados

o   multiplicidade das ciências à multiplicidade das leis naturais à autonomia das ciências (relações entre subordinação e dignidade)

§  Anti-reducionismo

§  Mudanças ao longo do tempo: fundação da Moral como ciência suprema; Sociologia como preparatória da Moral (v. II-III da Política)

o   classificação das ciências (abstratas) e respectivos métodos:

§  Matemática: dedução

§  Astronomia: observação

§  Física: experimentação

§  Química: nomenclatura

§  Biologia: comparação

§  Sociologia: filiação histórica

§  Moral: construção

o   critérios:

§  lógicos e históricos

§  generalidade decrescente e especificidade (complexidade) crescente

§  dedutibilidade decrescente e empiricidade crescente

§  quanto mais elevada a ciência, mais complexa e nobre ela é à mais modificável à maior capacidade de intervenção humana

o   espírito positivo versus ciência

§  ciência: conhecimento analítico da realidade, por meio das leis naturais abstratas; conjunto mais ou menos homogêneo de doutrinas e métodos empregados na exploração de um determinado âmbito da realidade

§  espírito positivo: compreensão sintética da realidade, elaborada pela filosofia, abrangendo a ciência, a atividade prática (que deve ser sinergética) e os sentimentos (que devem ser simpáticos)

§  enquanto a ciência tende a secar e a isolar o ser humano (em termos intelectuais, afetivos e práticos), o espírito positivo busca desenvolver o espírito e a integrar o ser humano

·         o objetivo da ciência é auxiliar o ser humano em seu desenvolvimento à antes de mais nada moral e, depois, material à é assim que se deve julgar e avaliar a ciência

-        Sociologia comtiana

o   Busca de um novo poder espiritual: necessidade e oportunidade de fundação de uma ciência relativa à sociedade

§  necessidade de entender o que ocorria na Europa após a Revolução Francesa e de solucionar os problemas sociais e políticos

§  disponibilidade de meios intelectuais para isso (o desenvolvimento do método científico e a conseqüente maturidade intelectual para a criação da Sociologia)

o   Em face da especialização das ciências, como proceder? Por meio da criação de uma nova disciplina

§  caráter múltiplo da Sociologia:

·         afirmação da perspectiva humana (em termos morais)

·         investigação da realidade humana (em termos científicos)

·         investigação de aspectos específicos da realidade social

·         afirmação da perspectiva de conjunto (continuidade e solidariedade) da existência humana

·         proposição de medidas adequadas à solução dos problemas

o   Método específico da Sociologia: filiação histórica:

§  historicismo

§  relativismo

§  visão de conjunto:

·         Estática (sincronia: ordem)

·         Dinâmica (diacronia: progresso)

o   rejeição do materialismo:

§  o método específico da Sociologia é a filiação histórica, não a matematização da sociedade

§  criação da palavra “Sociologia” para marcar a diferença com Quétélet

o   Elaboração de leis sociológicas qualitativas

o   Proposta do “método patológico” (v. II da Política)

o   Não há biologicismo, apenas o emprego eventual de algumas metáforas baseadas na Biologia e plenamente reconhecidas como artifícios lógicos à dignidade da Sociologia e afirmação da “imaginação sociológica

-        Estática social: elementos presentes em todas as sociedades: religião, propriedade, linguagem, família, governo à sociologia comparativa

o   Religião:

§  distinção entre teologia e religião

§  a religião busca a convergência do ser humano (síntese, simpatia, sinergia)

§  relativa continuidade entre a teologia e a ciência

§  teologia: fetichismo, astrolatria, politeísmo, monoteísmo

o   Linguagem:

§  liame intelectual de existência da sociedade

o   Propriedade

§  A teologia e a metafísica são incapazes de abarcar a realidade material da sociedade; portanto, são incapazes de solucionar seus problemas

§  A propriedade enquanto tal sempre existe (privada ou coletiva)

§  Manutenção e aumento dos tipos de capital

·         material, intelectual e moral

·         responsabilidade pessoal pela gestão dos recursos

·         “O capital é social em sua origem e deve sê-lo em sua destinação”

§  Formas de transmissão do capital: guerra: conquista; paz: dádiva, troca, herança

§  Emancipação paulatina dos trabalhadores (e das mulheres): escravos na Antigüidade, servos na Idade Média, trabalhadores livres na modernidade

§  Necessidade de concurso entre o patriciado e o proletariado

·         Riqueza: força concentrada; trabalho: força dispersa

·         Caráter instrumental da luta de classes

o   Governo

§  Conjugação dos princípios de Aristóteles e de Hobbes:

·         Aristóteles: “a sociedade consiste na divisão do trabalho e na convergência dos esforços”

·         Hobbes: todo governo baseia-se na força

§  “Não existe sociedade sem governo”

·         Afirmação das vistas de conjunto da sociedade

·         Preocupação em como se maneja o poder, não com quem o ocupa

·         Dois pólos sociopolíticos: Estado e sociedade civil

§  Poderes:

·         Temporal: manutenção da ordem civil (âmbito de aplicação das ciências inferiores)

·         Espiritual: opiniões e crenças (âmbito de atuação das ciências superiores)

o   Família

§  Principal realidade social dos seres humanos

§  Âmbito sobretudo afetivo, baseado nos três níveis da afetividade (apego, veneração, bondade)

§  Emancipação e dignificação da mulher: reconhecimento histórico da importância e da autonomia feminina; reserva moral da sociedade

-        Dinâmica Social

o   Evolução dos elementos da Estática Social com o passar do tempo

§  Sociologia comparativa e  histórica à Filosofia da História

§  “O progresso é o desenvolvimento da ordem e a ordem é a base do progresso”

o   Três leis dos três estados: inteligência, atividade prática, afetividade

§  Múltiplas relações entre as três leis dos três estados

§  Lei da atividade prática

·         Estado militar-conquistador

·         Estado militar-defensivo

·         Estado pacífico-industrial

§  Lei da afetividade

·         Família: vínculo afetivo

·         Pátria: vínculo prático (econômico e político)

·         Humanidade: vínculo intelectual

o   Marcha histórica:

§  Fetichismo como fase comum a toda a Humanidade, seguida pela astrolatria e pelo politeísmo

§  No Ocidente: após a atuação das grandes teocracias (politeísmo conservador) há o desenvolvimento do politeísmo progressista (Grécia e Roma) e pelo monoteísmo

·         Tríplice transição ocidental: entre Grécia (desenvolvimento da inteligência), Roma (desenvolvimento da atividade) e Idade Média (desenvolvimento da afetividade)

§  Após a Idade Média: duplo movimento ocidental, cada vez mais anárquico:

·         destrutivo: mais rápido, correspondente à corrosão do regime católico-feudal (absoluto, militar)

·         construtivo: mais lento, correspondente à constituição da sociedade positiva (relativista), pacífica e industrial

§  Descompasso crescente entre os movimentos: explosão social e política na forma da Revolução Francesa

·         Revoluções prévias: intelectual (Enciclopedistas); burguesa (fim do Antigo Regime); proletária (afirmação do problema social); faltaria a feminina

·         necessidade de conciliação entre a ordem e o progresso

o   Sociologia da ordem: fundada por José de Maistre

o   Sociologia do progresso: pelo Marquês de Condorcet

o   Contribuição de Augusto Comte: conjugação entre a ordem e o progresso (além do desenvolvimento da reflexão sobre as ciências, sobre o que é a cientificidade, sobre os métodos e o objeto da Sociologia, sobre a aplicabilidade da Sociologia etc.)

·         constituição de vários partidos:

o   militarista (Bonaparte)

o   retrógrado (católico: José de Maistre)

o   revolucionário (democrático e clericalista: Rousseau, Robespierre)

o   revolucionário (monarquista e anticlericalista: Voltaire)

o   construtivo (sociocrático, positivista: Diderot, Danton)

o   Etc.

o   Análises de conjuntura (v. IV e VI da Filosofia; v. III da Política; Apelo): análises dos grupos sociais, suas motivações, suas ações, suas variações históricas

o   Sociologia do conhecimento, Sociologia da ciência: v. IV-VI da Filosofia; v. I-III da Política

-        Indivíduo e individualismo:

o   Ambigüidade no uso da palavra “indivíduo”: realidade de carne e osso; mônada teológica; agente social

o   Como a Sociologia parte do conjunto para as partes, não existem “indivíduos”, apenas seres humanos em sociedades

§  Antepor a análise dos indivíduos à das sociedades resulta em considerar os seres humanos como animais, não como seres humanos

o   As “células sociais”, isto é, as menores unidades de análise sociológica são as famílias

o   Apesar disso, a sociedade possui agentes: são os indivíduos

o   Os “indivíduos” criticados por A. Comte são as elaborações próprias ao individualismo (que rejeita a sociedade e a vida coletiva, em uma busca da satisfação estritamente pessoal), que surgiram na Idade Média teológica e reafirmaram-se na Idade Moderna com a metafísica

o   “Consagrar para regular”: indivíduo buscando a satisfação pelo altruísmo

-        Religião da Humanidade

o   Novo poder espiritual, totalmente humano

§  Aplicação e consolidação dos princípios anteriores

o   Importância central em termos morais, intelectuais e afetivos de Clotilde de Vaux

§  Clotilde é a cofundadora da Religião da Humanidade

o   Sistema de educação:

§  Individual e social

§  para a vida toda

§  objetiva e subjetiva

o   “Humanidade”

§  “Grão-Ser”

§  real, abstrato, histórico, composto

§  “reencantamento do mundo”

§  “humanização do ser humano”

§  Veneração de uma figura feminina

o   Culto: desenvolvimento da moralidade:

§  estímulo do altruísmo e compressão do egoísmo

§  cultos íntimos, privados e públicos

§  cultos abstratos e concretos

§  âmbito da arte

§   “Viver para outrem”

o   Dogma:

§  conhecimento útil da realidade

§  baseado na ciência: espírito positivo

§  “Saber para prever a fim de prover”

o   Regime:

§  ação positiva sobre o planeta (indústria; ecologismo)

§  “Viver às claras”

§  “Ordem e Progresso”

-        Política

o   Em termos gerais:

§  pacifismo, antimilitarismo, rejeição normal da violência

§  política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

§  deveres

§  meritocracia com justiça social

§  afirmação da sociedade civil

o   Governo:

§  republicanismo

§  separação dos dois poderes (“laicidade do Estado”)

§  desenvolvimento econômico e social

o   Justiça social:

§  incorporação social do proletariado

§  “funcionalismo público”

§  conjugação entre liberdades políticas e econômicas e atuação do governo (crítica ao liberalismo econômico)

§  caráter social da riqueza

§  responsabilidades individuais e coletivas

·         noção de deveres: relações mútuas devidas entre indivíduos e grupos entre si

-        (Bons) portais sobre Comte e o Positivismo

o   Auguste Comte et le Positivisme: http://membres.lycos.fr/clotilde/

o   Canal Positivismo: https://www.youtube.com/user/ThePositivism

o   Classiques des Sciences Sociales: http://classiques.uqac.ca/classiques/Comte_auguste/comte.html

o   Filosofia Social e Positivismo: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/

o   Igreja Positivista do Brasil: http://www.igrejapositivistabrasil.org.br/

o   Igreja Positivista do Rio Grande do Sul: https://templopositivista.org.br/

o   Maison d’Auguste Comte: http://www.augustecomte.org/

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23 agosto 2021

Evento 200 anos de Sociologia: Augusto Comte

A partir do dia 3 de setembro de 2021 iniciar-se-á o evento "200 anos de Sociologia", promovido em conjunto pela Sociedade Brasileira de Sociologia e pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 

Tivemos a honra de sermos convidados para iniciar o evento, com uma conferência inicial sobre Augusto Comte, o grande fundador da Sociologia. Ela ocorrerá de maneira remota das 14h às 16h, do dia 3.9, por meio deste endereço.

Esperamos a participação de todos!

06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

21 julho 2021

Henrique B. S. Oliveira: "Ave Clotilde"

Em 1990 o saudoso Almirante Henrique B. S. Oliveira compôs o hino Ave Clotilde, em homenagem à colocação de um novo busto de Clotilde de Vaux na Capela da Humanidade. Essa Capela fica justamente na antiga residência da santa cofundadora da Religião da Humanidade, na rua Payenne, 5, em Paris, e desde o início do século XX é propriedade da Igreja Positivista do Brasil.

Esse hino baseia-se na Ave Maria de Gounod e deve ser acompanhada por essa música (disponível, por exemplo, aqui). Como se verá, é um poema pequeno e simples, mas muito bonito e tocante. Para que seja possível aproveitar melhor essa composição, logo após a versão original em francês segue-se uma pequena tradução para o português.


*   *   *


Ave Clotilde


Ave Clotilde,

De Comte, douce dame,

Qui éleva tendrement

Son noble couer souffrant.

Sortit des deux, même âme,

Le don, le plus fécond,

D'amour, le plus profond.


Sainte Clotilde,

Par ton altruisme plein,

Accueille dans ton sein

La fleur reconnaissante

D'une prière constante

     Amen


*    *    *


Ave Clotilde


Ave Clotilde,

De Comte, doce dama,

Quem elevou ternamente

Seu nobre coração sofredor.

Saída dos dois, mesma alma,

A dádiva, a mais fecunda,

De amor, o mais profundo.


Santa Clotilde,

Por teu altruísmo pleno,

Acolhe em teu seio

A flor reconhecedora

De uma prece constante

     Amém.

01 julho 2021

Sobre o livro "Passado imperfeito", de Tony Judt

O livro Passado imperfeito, do historiador Tony Judt (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), é muito interessante e suscita muitas reflexões; essas reflexões concernem tanto ao tema de que o autor trata quanto dos defeitos que o livro apresenta. Como não poderia deixar de ser, a forma como o autor cita Augusto Comte e o Positivismo é exemplar dos defeitos desse livro. Assim, por todos os motivos - positivos e negativos -, parece-me que vale a pena divulgar estas pequenas anotações sobre ele.

O livro pode ser comprado, entre outras lojas, aqui.

*   *   *

Sobre o livro Passado imperfeito, de Tony Judt



O livro expõe e critica, com base em um certo liberalismo, o comportamento dos intelectuais franceses nos dez anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Na última seção do livro essas diversas escolhas são explicadas e justificadas: por que os franceses; por que os dez anos após a II Guerra; até mesmo por que o liberalismo. De modo geral, essas escolhas temáticas fazem pleno sentido: os intelectuais franceses costumavam ser a consciência moral e intelectual da Europa e, daí, do mundo; além disso, o período posterior à II Guerra foi o de acerto de contas com a devastação feita pelo nazismo (antes e durante o conflito). Mas, de modo mais importante, após a II Guerra ocorreu o início da Guerra Fria, o engajamento político estridente dos intelectuais, após uma atividade em geral apolítica e antipolítica até 1940 (ou, pior, até 1944, isto é, até a libertação da França pelos aliados), a adesão da maioria desses intelectuais ao comunismo (quer fossem, quer não fossem eles mesmos comunistas, incluindo aí muitos católicos e todos os existencialistas) e o conseqüente silêncio sistemático desses intelectuais às atrocidades stalinistas e/ou as justificativas mirabolantes que eles davam aos crimes stalinistas.

O argumento do autor em linhas gerais é simples e convincente: antes e durante a II Guerra, muitos intelectuais eram apolíticos ou antipolíticos; o conflito e a Libertação, com o acerto de contas político e moral dos colaboracionistas, acarretou uma crise de consciência dos intelectuais, levando-os ao engajamento; quanto maior a crise (e, antes, quanto mais irracionais e sem sentido os sistemas filosóficos esposados pelos intelectuais, como nos casos paradigmáticos dos existencialistas, Sartre e sua consorte à frente), mais estridente era o engajamento. Na conjuntura da época, esse engajamento era necessariamente esquerdista, na medida em que ele decorria, por um lado, da luta contra o fascismo e, por outro lado, da então recente aliança da União Soviética como “país democrático”. Entretanto, a má consciência dos intelectuais franceses, seja por sua atuação antes da guerra, seja por sua atuação durante a guerra, levou-os a serem cada vez mais radicais em seus engajamentos; a isso se associava também o antiamericanismo e uma valorização extremada da “francesice”: o resultado disso tudo foi uma valorização intensa e intensamente acrítica da União Soviética e uma desvalorização do “liberalismo”; assim, na década que se seguiu à II Guerra, a grande maioria dos intelectuais franceses silenciou-se a respeito dos crimes cometidos por Stálin e/ou pelo comunismo, quando não os justificaram das maneiras mais estapafúrdias possíveis. (Quais os crimes do comunismo? Invasão de países; antissemitismo; aprisionamentos, julgamentos e execuções arbitrárias e em massa; incoerências sistemáticas; censura sistemática.) Essa submissão dos intelectuais ao comunismo tinha elementos messiânicos e milenaristas, bem como de auto-rejeição: no que se refere a este último aspecto, os intelectuais afirmavam com todas as letras, em seus artigos e livros, que, como burgueses, eram desprezíveis e que precisavam do povo, ou do proletariado, para justificarem-se socialmente; por sua vez, o comunismo – e o Partido Comunista em particular – era o canal por definição desse acesso ao proletariado; entretanto, o próprio Partido Comunista (francês, no caso) era explicitamente contra esses mesmos intelectuais.

Esse quadro só mudou após a morte de Stálin, em 1953, e, ainda mais, após o “vazamento” do relatório de 1956 de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em que o novo líder soviético denunciava o culto à personalidade e os crimes de Stálin. O autor observa que, embora a partir disso os intelectuais franceses tenham-se “libertado” do comunismo (ou, pelo menos, tenham passado a “libertar-se” dele), tal libertação foi apenas dos próprios intelectuais, que não deixaram de adotar o mesmo comportamento em relação a outros temas – fosse o anticolonialismo (em face da independência da Argélia), fosse o terceiromundismo (em que a revolução comunista camponesa fora da Europa ganhava o espaço da admiração pelo comunismo europeu) – e, em particular, os intelectuais não passaram, após 1956, a mudar de comportamento em relação ao comunismo na Europa Oriental e na União Soviética: eles simplesmente abandonaram o tema do comunismo europeu (sendo, todavia, obrigados a enfrentá-lo novamente a partir de 1974 – embora o autor não esclareça o que teria ocorrido em 1974 na França).

A exposição que o autor faz das idéias e do comportamento dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956 é o ponto forte do livro; essa exposição é organizada tematicamente. Não resta pedra sobre pedra do que ele expõe; os intelectuais franceses foram mesmo infantis e irresponsáveis.

Entretanto, há uma série de problemas metodológicos e teóricos no livro. Em primeiro lugar, o autor faz suas reflexões muito com base em literatura de segunda mão; embora ele cite com freqüência textos dos intelectuais franceses, tais citações com grande regularidade – talvez em pelo menos metade das citações – são obtidas em livros de outros pesquisadores, que já selecionaram as passagens que julgam importantes e interessantes; em outras palavras, o autor não fez de fato uma pesquisa sistemática sobre os originais. Em segundo lugar, embora à primeira vista possa parecer secundário, faltam exposições historiográficas elementares; por exemplo, não faria nenhum mal indicar aos leitores quando ocorreu a invasão nazista da França, a instalação do regime de Vichy, a tomada total do território francês pelos nazistas – ou, então, quando ocorreu o governo socialista de Léon Blum nos anos 1930 ou o que ocorreu na França em 1974.

Mas é nas explicações sociológicas e até psicológicas que o autor oferece para os comportamentos dos intelectuais franceses que estão os seus aspectos mais fracos. O autor argumenta que os intelectuais que atuaram após 1944 desprezavam o liberalismo; o conjunto de sua exposição parece confirmar com clareza esse diagnóstico; mas o autor recua até a Revolução Francesa, ou melhor, até o século XVII (até antes do Iluminismo!) para explicar esse desprezo. Ao tratar das tentativas dos liberais franceses de terem e manterem o poder, ele observa que eles fracassaram mas que a culpa pela falta de êxito do liberalismo na França, em última análise, seria da III República (1870-1940) e dos republicanos, que estavam mais preocupados em serem republicanos que em serem liberais. Ora, os liberais que ele defende eram monarquistas e parlamentaristas (Guizot e Tocqueville, por exemplo), ou seja, defensores da sociedade de castas, dos privilégios de classe, da censura, da repressão e até do colonialismo: nada disso é exposto pelo autor e, assim, muito menos entendido como defeito. Já os republicanos, preocupados em acabar com a instabilidade política e social que caracterizava a França desde 1789, são acusados de não serem liberais, apesar de garantirem as liberdades públicas e mesmo tendo que lidar com o reacionarismo da Igreja Católica e do Exército. Em outras palavras, se a França republicana estava preocupada em garantir a estabilidade e em ser moderna e com liberdades, isso não é problema do e para o autor; na verdade, isso é um defeito a ser criticado. Não é que os “liberais” franceses fossem ruins – para o autor, assim como para outros historiadores (como Pierre Rosanvallon), os liberais franceses seriam bons, a despeito de suas ações concretas e dos regimes que eles apoiaram, justificaram e legitimaram ativamente –; os políticos não liberais é que seriam ruins, mesmo que tais políticos (na III República francesa) tenham procurado agir da melhor maneira possível, de modo a estabilizar o regime, legitimá-lo, combater os reacionários e garantir as liberdades públicas. (Isso não quer dizer que a III República tenha sido perfeita: por exemplo, ela reforçou o colonialismo no Norte da África; mas por outro lado, ela conseguiu manter-se durante 70 anos, enquadrou os reacionários militares ao longo do caso Dreyfus, separou (imperfeitamente) igreja e Estado, passou pela prova duríssima da I Guerra, conseguiu manter-se relativamente ilesa da crise econômica iniciada em 1929 e ainda elegeu um governo socialista em 1936: tudo isso é muito mais do que os liberais franceses fizeram e pretenderam.) Em um aspecto o autor está certo, todavia: a concepção – democrática – de que a Assembléia Nacional seria todo-poderosa; essa idéia, em si mesma puramente democrática, já é em si mesma desastrosa e era criticada por muitos (por exemplo, Augusto Comte) desde antes da III República; no parlamentarismo – que, aliás, é o regime que se segue naturalmente dessa concepção totalitária – isso se torna desastroso. Entretanto, mesmo ao indicar o defeito congênito da democracia rousseauniana, o autor é superficial, seja porque não considera a história política e intelectual efetiva da III República, seja porque, como conseqüência do problema anterior, o autor procede dedutivamente a respeito dessa fase histórica da França.

Essa concepção curiosa que o autor defende baseia-se no seu liberalismo anticomunista. Esse liberalismo anticomunista não é de tradição estadunidense; é mais próximo do liberalismo anticomunista francês, conforme exposto e defendido por Raymond Aron (citado em muitas e elogiosas ocasiões) e, depois, retomado por François Furet. Esse liberalismo anticomunista seguia a tradição do conservadorismo britânico, à la Burke, que rejeitava os projetos de mudança racional e planejada da sociedade, bem como a visão correlata de homens aperfeiçoados: deixando de lado a necessária e correta crítica da total irresponsabilidade dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956, o autor considera que eles estavam fadados a serem errados devido ao projeto de mudança racional e planejada do homem e da sociedade; esse projeto seria em si mesmo errado e até imoral, sendo a base para a crítica da Revolução Francesa, da III República francesa, da Revolução Russa e do que veio depois. É bem verdade que os comunistas russos fizeram o possível para estabelecer uma conexão histórica e moral entre 1917 e 1789; mas, em vez de perceber que a história da França era uma coisa e a da Rússia, outra, o autor compra a tese dos comunistas e condena em bloco todo o projeto. Aliás, mais do que isso; o liberalismo anticomunista do autor fá-lo adotar as mesmas concepções historiográficas e sociológicas de François Furet, cuja “nova história crítica” da Revolução Francesa consistia em entender os acontecimentos de 1789-1799 meramente como a sucessão de eventos sociais e políticos – eventos de grande porte, mas em si mesmos sem maiores conseqüências ou importâncias filosóficas, sociológicas e históricas; em outras palavras, para combater o determinismo materialista dos comunistas, o melhor que Furet (e, no presente caso, Judt) tem para oferecer é um historicismo hipercontextualista e politicista, que rejeita qualquer filosofia da história e qualquer filosofia do progresso do ser humano.

Resumindo em si os defeitos do livro, a postura que o autor adota a respeito de Augusto Comte e do Positivismo é exemplar: são poucas citações e referências, mas essas poucas são todas elas negativas e superficiais. Por um lado, as breves exposições que o autor faz do Positivismo são todas erradas e baseiam-se em procedimentos “dedutivos”: o autor tem uma idéia preconcebida (um preconceito, em outras palavras) e quer usar o Positivismo para ilustrar um argumento qualquer; a fim de realizar tal ilustração, ele deduz as conseqüências que lhe interessa no momento. Nenhum dos seus argumentos baseia-se em qualquer tipo de citação ou de referência – e, evidentemente, não há nenhuma do próprio Comte ou dos positivistas –, mas com freqüência, e injustificadamente, o autor associa Comte a Saint-Simon, como se o fundador do Positivismo fosse uma derivação, e uma versão piorada, do conde falido. Por outro lado, o Positivismo é mobilizado para explicar traços que interessam ao autor: por exemplo, um culto às estatísticas; entretanto, não apenas esse traço não corresponde ao Positivismo (Comte era contrário à sociometria como sinônima de Sociologia, como no projeto de Quétélet), como o autor só faz aparecer no presente traços longínquos do Positivismo se esses traços antigos forem, supostamente, negativos, mas nunca positivos; em outras palavras, todas as vezes em que ele invoca o Positivismo ele comete o vício teórico-metodológico do viés de seleção. (Além disso, o autor é incoerente, ao afirmar, no começo do livro, que no início da IV República havia uma preocupação entre muitos intelectuais com as estatísticas oficiais, mas, no final do livro, insistir na idéia de que os intelectuais buscavam manter-se ignorantes da realidade (fosse francesa, fosse estrangeira)).

No que se refere ao tema específico do livro – a exposição das imbecilidades dos intelectuais franceses entre 1944 (ou, talvez, 1940) e 1956 –, isto é, em termos de história das idéias no período subseqüente à II Guerra, o autor é muito bem-sucedido, embora haja diversas limitações, como as indicadas acima. Entretanto, assim que o autor afasta-se do tema específico do livro, as limitações indicadas ganham peso e maculam o seu esforço; sua interpretação filosófica, sociológica e histórica das fontes do irracionalismo, da irresponsabilidade e da imoralidade dos intelectuais franceses desde a década de 1930 e até, pelo menos, 1956 (mas estendendo-se até 1974) revela-se profundamente falha e insatisfatória.

O conjunto do livro deixa, então, um sabor misto, ambígüo, para o leitor. Por um lado, o núcleo duro da pesquisa do autor é importante e em linhas gerais é convincente; a crítica moral que ele realiza funciona, em termos amplos. Mas, por outro lado, a interpretação sociológico-filosófica que ele propõe das origens do problema que denuncia é fraca e, se isso não fosse pouco, a concepção que ele esposa do ser humano e da sociedade, na qual baseia a sua crítica, é ainda mais frágil e superficial (ainda que tenha alguns elementos relevantes – basicamente, a idéia moderna de que as liberdades individuais devem ser preservadas).

Anos depois, o autor pelo menos abrandaria esse liberalismo em favor da defesa de uma certa social-democracia; como o seu liberalismo não é exatamente o anglossaxão (ao estilo Tatcher-Reagan, ou Popper-Hayek-Friedman), mas segue as linhas do liberalismo conforme entendido e praticado por Aron e Furet, essa defesa posterior da social-democracia não é totalmente incoerente; mas, mesmo assim, a ênfase estrita no indivíduo (contra a sociedade) passa para o respeito às noções de coletividade e de bem público. Da mesma forma, Tony Judt tornou-se famoso por seu gigantesco livro Pós-guerra e por centenas de resenhas e comentários sobre livros e pesquisas históricas, filosóficas e políticas: não deixa de ser motivo de tristeza percebermos que uma investigação prévia que ele fez, relevante e útil em si mesma, apresenta uma quantidade enorme de falhas, limitações e equívocos.

(Vale notar que a tradução brasileira é péssima, o que também não ajuda o livro.)