17 maio 2021

Reflexões sobre um evento com marxistas ortodoxos

Há alguns dias eu participei de um debate à distância sobre “classes sociais no Brasil contemporâneo”.

A minha participação consistiu em afirmar que é necessário usarmos o conceito de classes sociais nas sociedades industriais, na medida em que as clivagens básicas dessas sociedades dão-se em termos de riqueza, ou seja, de classes sociais; todavia, é necessário deixar de lado o aspecto sublevador e destruidor – revolucionário, em uma palavra – que o marxismo associou a esse conceito. Ao mesmo tempo, para combater os particularismos tanto proletário do marxismo quanto, de modo mais atual, das propostas identitárias, é necessário retomar-se o conceito de república, com seu universalismo da cidadania.

Depois de mim apresentaram dois professores marxistas – bem entendido, marxistas ortodoxos. E aí eu fiquei espantado ao constatar como o marxismo pode ser extremamente sedutor e eficiente em termos retóricos.

A moralidade marxista é simplista e tende ao maniqueísmo (isso quando não é diretamente maniqueísta): o proletariado é bom mas é explorado, a burguesia é má e é exploradora. A sua promessa de solução dos problemas sociais oferece uma enorme esperança e sua “radicalidade” baseia-se também no seu simplismo maniqueísta, adicionando um elemento mágico: quando a luta de classes acirrar-se tanto e a tal ponto que ocorra uma revolução proletária universal, todos os conflitos sociais acabarão de uma vez por todas, a malvada burguesia exploradora deixará de existir e o proletariado deixará de sofrer e de ser explorado e poderá viver em paz e com dignidade.

É realmente espantoso que esse simplismo convença as pessoas. É claro que ele convence também porque, aparentemente, oferece “soluções” para os problemas que a maior parte das pessoas sofre; ou melhor, o marxismo oferece uma crítica moral, disfarçada de análise sociológica, que parece sugerir soluções para os problemas. Creio que é aí que reside muito da sedução marxista.

Mas, como observei, tudo isso é simplista e maniqueísta. Em termos individuais, isso nega, isso rejeita a noção de responsabilidade individual; ou melhor, reduz a responsabilidade individual ao maniqueísmo básico: ou ajuda o proletariado e revolução universal ou ajuda a burguesia, a dominação e a exploração.

Além disso, esse maniqueísmo afirma um universalismo proletário que nega a realidade dos países, das nações. Esse universalismo de classes ignora fatos básicos e acarretou conseqüências terríveis: por um lado, a lealdade nacional é um dos elementos mais básicos e mais fortes que une entre si os indivíduos nas sociedades; por outro lado, esse mesmo universalismo de classe provocou ou estimulou ou justificou, no início do século XX, violentas reações nacionalistas; além disso, o universalismo de classes sempre foi utilizado como desculpa para a manipulação internacional dos proletariados nacionais; por fim, as revoluções comunistas ocorreram ao redor do mundo com objetivos nacionalistas, muito mais que internacionalistas.

Mas o presente início do século XXI indica que existem vários outros problemas adicionais na crítica do internacionalismo de classes às lealdades nacionais, baseada no maniqueísmo marxista. Por um lado, por mais que se diga que o “capitalismo” – esse conceito profundamente metafísico – é internacional, o fato é que as disputas entre os países ocorrem em bases nacionais, não internacionais. Por outro lado, após a II Guerra Mundial o mundo organizou um sistema coletivo internacional de gerenciamento das crises políticas; um sistema imperfeito, não há dúvida, mas que minora muitos dos defeitos do anterior sistema baseado exclusivamente nos nacionalismos e em suas rivalidades mútuas; entretanto, como esse sistema coletivo surgido após 1945 não é proletário e, portanto, é burguês, esse sistema é visto como intrinsecamente ruim.

Além disso, as duas críticas acima reforçam por um lado uma perspectiva sociológica e moralmente particularista e, por outro lado, minam os esforços coletivos de coordenação dos assuntos internacionais: isso integra e/ou faz par, de pleno direito, ao particularismo nacionalista e identitário que elegeu Donald Trump como Presidente dos EUA, bem como inúmeros demagogos de extrema-direita mundo afora.

Por fim, considerando uma perspectiva um pouco diferente, o maniqueísmo marxista e seu universalismo proletário negam a possibilidade de projetos nacionais legítimos de desenvolvimento nacional, em que a responsabilidade pessoal esteja direcionada de verdade para o bem-estar coletivo (nacional e internacional) e para a melhoria das relações sociais. Em particular, a atual pandemia exige uma coordenação internacional, mas ela está sendo enfrentada em termos nacionais, o que é inescapável diga-se passagem; além disso, esse enfrentamento evidencia a importância de estados nacionais ativos, fortes, articulados e capazes de implementar com eficiência políticas públicas – no caso do Brasil, por meio do SUS e do Programa Nacional de Imunizações. Nada disso teria lugar ou é justificado pelo maniqueísmo marxista e por seu rasteiro universalismo proletário.

No evento de que participei, como o objetivo não era um expositor criticar as perspectivas dos outros, não me manifestei a respeito dessa série inacreditável de sofismas e simplismos morais, sociológicos, históricos e filosóficos. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando em como seria difícil expor oralmente, em alguns minutos, essa série de raciocínios que expus por escrito acima.

Enfim, mais uma vez registro meu espanto: o público que assistia às nossas exposições era composto por jovens estudantes universitários, todos eles devidamente burgueses mas, ao mesmo tempo, muitos deles piamente convencidos desses sofismas marxistas.

(Cá entre nós, não é à toa que o atual Presidente do Brasil tem uma base fiel e fanática: são discursos igualmente superficiais, simplistas, maniqueístas, adotados por pessoas ávidas de discursos desse tipo. A diferença entre uns e outros nem ao menos é de classe social, mas de “âmbito”: como observei, o marxismo afirma-se internacionalista, ao passo que o atual “nacional-populismo”, ou (neo)fascismo, é resolutamente nacionalista e anti-internacionalista.)

Bate-papo com autores da Revista GETS

Na noite do dia 30 de abril de 2021 ocorreu um simpático evento chamado "Bate-papo com autores da Revista GETS". Essa revista, que é publicada pela Faculdade IBCMed, está lançando seu mais recente número (v. 3, n. 2) e, para celebrar esse fato, convidou os autores dos artigos para exporem, rapidamente, os conteúdos desses artigos.

Embora eu mesmo não tenha sido autor de nenhum artigo, o Prof. Ricardo Cortez Lopes - professor de Sociologia da instituição e Editor-Assistente da Revista - resenhou um dos meus livros (Comtianas brasileiras, editora Appris, Curitiba, 2018) e gentilmente me convidou para também falar desse livro.

O evento foi bastante agradável e várias das pesquisas expostas, além de interessantes, têm inúmeros pontos em comum, ou têm "ressonância", com o Positivismo. Entretanto, houve algumas dificuldades técnicas e o evento, que era gravado, não está disponível para compartilhamento.

Por esse motivo, o Prof. Ricardo soliciou aos autores que gravassem pequenos vídeos complementares, em um esforço para, na medida do possível, substituir a gravação que não é possível tornar pública.

Assim, o meu vídeo complementar está disponível aqui.

Para minha exposição, elaborei um pequeno roteiro, composto por definições do que o Positivismo é e do que ele não é; esse roteiro, elaborado com o objetivo de estimular a curiosidade e o debate, está reproduzido abaixo.

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Mitos sobre o Positivismo 

O Positivismo é:

  1. Uma religião secular, uma filosofia histórica, relativista e objetiva-subjetiva, uma prática humanista, pacifista, tolerante e includente
  2. “Real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico, simpático”
  3. Uma religião que afirma, regula e estimula o altruísmo inato (que, por sua vez, orienta e limita o egoísmo também inato)
  4. Uma afirmação da realidade humana e dos valores humanos
  5. Uma afirmação da historicidade humana e, portanto, do relativismo 

O Positivismo não é:

  1. Não é ateísmo
  2. Não é uma “teologia científica” (Religião da Humanidade)
  3. Não é um cientificismo nem um academicismo
  4. Não é um “naturalismo” (não reduz as Ciências Humanas às Ciências Naturais)
    1. Não é a favor da dicotomia entre “explicações” versus as “compreensões”
  5. Não é um “empiricismo”
  6. Não é ideológico
  7. Não é uma ideologia burguesa
  8. Não é militarista
  9. Não é uma afirmação do Estado totalitário nem da sociedade sufocante anti-indivíduo
  10. Não é otimismo ingênuo (“pensamento positivo”)




11 maio 2021

Frederic Harrison: "Novo calendário dos grandes homens"

O historiador e positivista inglês Frederic Harrison publicou em 1892 uma interessante e valiosa obra coletiva intitulada Novo calendário dos grandes homens (no original em inglês: The New Calendar of Great Men).

Escrito por dezenas de positivistas ingleses, ele apresenta notas biográficas de cada um dos tipos homenageados no calendário positivista concreto, que é o mais famoso dos dois calendários positivistas e que é popularmente conhecido como "calendário histórico".

Na verdade, essas notas não são propriamente biografias; na verdade, elas correspondem às ações e/ou às idéias realizadas por esses homens e mulheres ao longo de suas vidas e que justificaram sua inclusão no calendário positivista. Assim, além das notas biográficas, há estudos filosóficos, históricos e sociológicos correspondentes a cada um dos 13 meses do calendário positivista e que servem de introdução geral aos tipos de cada mês.

O resultado é impressionante. Lendo cada um desses estudos introdutórios e dessas notas biográficas, aprendemos muito - muito! - tanto sobre o Positivismo, sua filosofia da história e sua filosofia moral, quanto das centenas de homens e mulheres que fizeram, ao longo dos milênios, a Humanidade progredir, bem como dos contextos sociais, políticos, intelectuais em que eles viveram. 

Além disso, esse livro dá a medida da assustadoramente grande erudição de Augusto Comte, o fundador do Positivismo, da Sociologia, da Moral e da Religião da Humanidade.

Essa portentosa obra, valiosa, útil e válida ainda hoje, está disponível no portal Internet Archive, aqui.



10 maio 2021

500 postagens!

Com a postagem "Roteiro da exposição sobre o quinto mês dos calendários positivistas (César e Fraternidade)", o blogue Filosofia Social e Positivismo atinge a marca de 500 postagens! É um pequeno marco, que deve ser celebrado!

Ele começou em 4 de janeiro de 2007, com a postagem "Teorias sociais, violência e integração"; nesses mais de 14 anos, este blogue tem sido dedicado à difusão, à defesa e à aplicação do Positivismo. 

Esperamos que até agora ele tenha sido interessante e útil a todos; de qualquer maneira, está sempre aberto aos comentários e à participação de todos (desde, é claro, que sejam feitas com boa vontade, honestidade e espírito construtivo).

Roteiro da exposição sobre o quinto mês dos calendários positivistas (César e Fraternidade)

 O vídeo do roteiro abaixo encontra-se disponível aqui.

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Roteiro da exposição sobre o quinto mês dos calendários positivistas
 
Parte I – Mês concreto: César


 

-        5º mês do calendário positivista concreto

o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2021, o mês de César começa em 23 de abril e termina em 20 de maio

o   O quinto mês concreto representa a civilização militar

§  É o quinto mês da Antigüidade

§  Ele é antecedido por Moisés (a teocracia inicial), Homero (a poesia antiga), Aristóteles (a filosofia antiga) e Arquimedes (a ciência antiga), sendo o derradeiro mês da Antigüidade

-        César é referido duas vezes nos calendários positivistas:

o   Sendo o titular do quinto mês do calendário concreto;

o   Sendo celebrado na quarta semana do oitavo mês do calendário abstrato, dedicada ao politeísmo social (Catecismo, p. 477); César está associado a Cipião, o Africano, e a Trajano

o   Além de ser homenageado como o titular do quinto mês do ano no calendário concreto, César também é homenageado como o titular do terceiro dos dias das semanas, conforme esta tabela:

 

Dias portugueses

Segunda-f.

Terça-f.

Quarta-f.

Quinta-f.

Sexta-f.

Sábado

Domingo

Dias positivistas

Lunedia

Martedia

Mercuridia

Jovedia

Venerdia

Sábado

Domingo

Consagração histórica

Homero

Aristóteles

César

São Paulo

Carlos Magno

Dante

Descartes

Nota: os “dias positivistas” correspondem à proposta de Miguel Lemos de tradução para o português das palavras correspondentes aos nomes dos dias da semana em espanhol (lunes, martes...), italiano (lunedi, martedì...) e francês (lundi, mardi...) (e mesmo em romeno: luni, martì...).

 

-        Evidentemente todos os meses dos calendários positivistas apresentam aspectos históricos e sociológicos bem claros, mas no caso do mês de César isso é bastante marcado

o   Em primeiro lugar, tanto a Grécia quanto Roma são caracterizadas como “politeísmos progressivos” (em contraposição às teocracias, que eram “politeísmos conservadores”) (Catecismo, p. 406-407)

§  Esses politeísmos greco-romanos viram a afirmação dos guerreiros ocorrer bastante cedo, de tal sorte que foram “teocracias abortadas”, na medida em que os sacerdócios não conseguiram verdadeiramente se sobrepor aos guerreiros

§  Ainda assim, todo o conjunto das sociedades gregas e romana apresentam claramente as heranças sociais, políticas, intelectuais de teocracias anteriores, em uma evidente demonstração de continuidade histórica

o   Embora o mês de César seja dedicado à “civilização militar”, notavelmente o que menos importa aí é a celebração das guerras em si e mais o caráter social que as guerras de conquista, especialmente as empreendidas por Roma, assumiram: a frase de ninguém menos que Júlio César ilustra com perfeição esse programa: “fazemos a guerra para levar os hábitos da paz”

o   As guerras de Roma constituíram paulatinamente uma grande região de paz ao redor do Mar Mediterrâneo; assim, embora as guerras por definição sejam atividades violentas e destruidoras, a atividade romana ultrapassou largamente esse aspecto daninho e permitiu o desenvolvimento da atividade pacífica, com a produção da riqueza em bases industriais (embora, sem dúvida, o trabalho escravo e a falta de conhecimentos técnico-científicos tenham entravado muito isso)

§  as guerras de conquista de Roma permitiram a disseminação e a manutenção do conhecimento grego, regularizaram a atividade cívica e criaram as condições sociais e intelectuais para um esforço de disciplinamento moral (por meio do monoteísmo católico)

o   Se dividimos a existência de Roma em duas metades, uma vinculada à República e outra ao Império, vemos com facilidade que a primeira corresponde às guerras de conquista, ou seja, à expansão do território, enquanto a segunda metade corresponde à manutenção do território e a guerras que cada vez mais foram defensivas:

§  vale notar que, herdeiro das tradições populares das guerras sociais de Roma, ocorridas no século II aec, a figura pessoal de Júlio César estabelece o vínculo e a transição entre as duas etapas, com a conclusão das guerras de conquista (no caso, a Gália transalpina) e o estabelecimento de facto do império e a submissão do Senado

§  em outras palavras, a ação romana corresponde à realização ou ao vislumbre de realização de duas das três leis dos três estados:

·         a lei dos sentimentos: após os sentimentos humanos mais amplos limitarem-se às famílias e às cidades, com Roma aponta-se com clareza para a concepção de Humanidade

·         a lei da atividade: após as guerras de conquista concluírem-se passou-se às guerras de defesa e ao estímulo da atividade pacífica e industrial

§  apesar de Roma ser o maior prenunciador da sociocracia, na evolução humana faltavam-lhe, todavia, alguns aspectos centrais: (1) o desenvolvimento direto da regulação moral (reservada à Idade Média), (2) a extensão da lei intelectual dos três estados a todas as ciências (limitada então à Matemática, à Astronomia e a rudimentos das demais ciências – e tudo isso apenas no âmbito estático e não no dinâmico), (3) a emancipação dos trabalhadores e das mulheres (também reservadas à Idade Média) e (4) a elaboração final da síntese subjetiva (reservada ao Positivismo, após todos os passos anteriores realizarem-se)

·         César e Trajano deixaram claro o pressentimento que os romanos tinham da atividade plenamente pacífica e da fé demonstrável (Catecismo, p. 429)

§  O desenvolvimento parcial dos elementos da natureza humana foi necessário; caso ele ocorresse todo ao mesmo tempo, ou caso houvesse então a regulação total da natureza humana (sem o desenvolvimento prévio de seus elementos), ter-se-ia o (r)estabelecimento das teocracias (Catecismo, p. 409)

·         A inteligência tinha que ser o primeiro elemento a desenvolver-se e os sentimentos, o último: caso a atividade prática desenvolvesse-se antes da inteligência, a convergência forçada da guerra conquistadora constrangeria a liberdade intelectual; por outro lado, como os sentimentos têm seus contatos com a realidade externa por meio da inteligência e da atividade, eles tinham que ser desenvolvidos após o desenvolvimento preliminar da inteligência e da atividade

·         Além disso, com a cessação das guerras de conquista, os destinos coletivos perderam sua orientação, o que evidenciou a possibilidade e a necessidade de uma regulação mais ampla, abrindo então o caminho para o surgimento do catolicismo como proposta de religião universal

o   Também é digno de nota que o civismo e o bom senso romanos consideraram durante muitos séculos o catolicismo como retrógrado e imoral, com sua crença irracional, seu culto da morte, sua negação da vida em sociedade, seu fortíssimo egoísmo (Catecismo, p. 417)

o   As guerras e as atividades de Roma foram em tudo superiores às da Grécia:

§  subordinavam a inteligência à ação e valorizavam a vida ativa, em vez de subordinar a ação à inteligência e valorizar a inação

§  exigiam o concurso de todos os cidadãos e de todas as famílias (em uma ação socialmente homogênea), permitindo que a condução das guerras de conquista corrigisse espontaneamente os defeitos teocrático-aristocráticos do Senado e afirmando, no Império, o vínculo entre os líderes e o povo; já a Grécia apresentou o espetáculo de massas sociais submetidas a relativamente poucos indivíduos realmente notáveis e responsáveis pelo progresso humano (no máximo 100 nomes dignos de recordação)

§  foram guerras verdadeiramente de conquista, após momentos de conflito concentrado em um adversário temível (Cartago) e hesitações no papel de árbitro do Mediterrâneo (na Grécia), em vez de serem guerras intestinas que serviram apenas para enfraquecer as cidades e expô-las à dominação estrangeira

§  apesar de serem os conquistadores da Grécia, os romanos sempre valorizaram a herança grega, isto é, o conquistador político-militar submeteu-se intelectualmente ao vencido; de modo geral, os romanos eram muito abertos a influências convergentes e assimiláveis dos povos vencidos

§  embora sem ser vinculada às guerras em si, em Roma foi criada a hereditariedade sociocrática, em vez da hereditariedade teocrática (vinculada ao sangue) e das eleições democrático-metafísicas

-        A atividade guerreira é mais facilmente disciplinável que a atividade industrial, pois os chefes são mais claramente identificáveis, a disciplina é mais clara e mais direta e os objetivos também são mais facilmente determináveis; além disso, a subordinação do egoísmo individual aos objetivos coletivos também é mais clara, fácil e direta

o   Em contraposição, a atividade industrial é mais indireta e menos evidente, permitindo que chefes medíocres e/ou mesquinhos tenham o poder, os objetivos coletivos da ação individual são disfarçados pela divisão do trabalho, a subordinação é mais complicada e, devido a uma herança degradada da tradição militar, o mando é exercido inicialmente de maneira despótica

o   Importa notar que o elogio que Augusto Comte faz da atividade militar ao tratar de Roma não equivale, de maneira nenhuma, ao elogio dessa atividade nos dias atuais, como afirmou com má-fé indescritível o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (cf. os meus livros Laicidade na I República e Comtianas brasileiras, ambos publicados pela editora Appris)

-        O mês e as semanas do mês de César correspondem ao seguinte:

o   César – corresponde à guerra sistematizada e em seu estágio conquistador final, que encerra o ciclo de conquistas e estabelece a paz universal (na medida do possível); também indica a preeminência das preocupações sociais (e populares) e a subordinação da inteligência às preocupações sociais

o   Temístocles – representa os esforços ocidentais, principalmente gregos, para manter a independência política do politeísmo progressivo em relação a uma teocracia conservadora já retrógrada (a persa), como condição da liberdade intelectual ocidental

o   Alexandre – corresponde a uma tentativa, ocorrida no seio da própria Grécia, de estabelecer um império grande o suficiente capaz de encerrar o ciclo de conquistas militares; adicionalmente, Alexandre corresponde à vitória grega final sobre os persas; além disso, o efêmero império alexandrino teve o mérito de disseminar pelo Mediterrâneo oriental, pela Ásia Menor e por partes da Ásia Central a cultura grega, no chamado “helenismo”

o   Cipião, o Africano – corresponde aos esforços romanos para constituir, exitosamente, o seu império, desde o início da República (século VI aec) até o início das crises sociais (século II aec), em que as guerras púnicas (isto é, contra Cartago) ocupam um papel de destaque; as virtudes cívicas mais proeminentes estão representadas aí, bem como há espaço mesmo para cartagineses (Aníbal) e para líderes populares nas disputas sociais (Mário e os irmãos Gracos)

o   Trajano – apresenta os grandes imperadores do século II, que, escolhidos de acordo com a hereditariedade sociocrática, indicam o apogeu do império, com sua máxima extensão, seu máximo brilho e sua máxima força (na chamada “dinastia” nervo-antonina, que compreende os imperadores que vão de Nerva até Cômodo), além de auxiliares, juristas e alguns outros imperadores

 

Parte II – Mês abstrato: a fraternidade

-        O quinto mês do calendário positivista abstrato celebra a fraternidade

o   É o quarto mês que celebra os laços fundamentais, em número de cinco: casamento, paternidade, filiação, fraternidade e domesticidade

o   A fraternidade corresponde ao laço que liga no âmbito doméstico os filhos entre si, em que se desenvolvem e sistematizam os vínculos entre os iguais em força, os da mesma geração e os iguais em relações hierárquicas

o   Enquanto os meses da paternidade e da filiação referem-se a relações entre antepassados e descendentes, instituindo a continuidade humana, a fraternidade estabelece a relação entre indivíduos de uma mesma geração (ou, de modo geral, da mesma época), instituindo a solidariedade humana

-        São quatro as modalidades determinadas por nosso mestre na filiação, com as respectivas festas semanais; elas vão das mais completas, fortes e íntimas para as mais incompletas e fracas:

1)      Natural – são os laços completos e por vezes involuntários que ligam entre si os irmãos, mas em todo caso sendo laços de origem biológica

2)      Artificial – são os laços criados pelos pais entre seus filhos, por meio das adoções

3)      Espiritual – são os laços de apoio principalmente moral, mas também intelectual e artístico

4)      Temporal – são os laços de apoio material (econômico e político)

 

Parte III – Comemorações de aniversários e feriados cívicos

-        Em termos de aniversários, comemoramos neste mês as seguintes figuras:

o   Fundação da Igreja Positivista do Brasil (1881) (19.César – 11.maio)

o   Jean-François E. Robinet (1825-1899) – nascimento (2.César – 24.abr.)

o   Jorge Lagarrigue (1854-1894) – morte (12.César – 4.maio)

o   Cândido Rondon (1865-1958) – nascimento (13.César – 5.maio)

o   Luís Lagarrigue (1864-1949) – nascimento (24.César – 16.maio)

o   Marco Aurélio (121-180) – 1900 anos de nascimento (25.César – 17.maio)

o   Dia do Trabalho (9.César – 1° de maio)

o   União das Raças (1888) (21.César – 13.maio)

 

















 

Referências bibliográficas

Augusto Comte: Sistema de filosofia positiva, Sistema de política positiva, Catecismo positivista, Síntese subjetiva

Frederic Harrison: O novo calendário dos grandes homens

Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte

Pierre Laffitte: Les Grands types de l’Humanité, v. II

David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 3

Ângelo Torres: Calendário Filosófico

Gustavo Biscaia de Lacerda: Comtianas brasileiras e Laicidade na I República

28 abril 2021

"Green Book" - um belo filme, que dá o que pensar

Há alguns dias revi o belo filme Green Book - o guia, estrelado por Mahershala Ali e Viggo Mortensen.

Esse é um filme curioso. A história é simples, ou melhor, é esquemática e as personagens principais são, de maneira corresponte, meio simplistas, até estereotipadas. Há um negro, homossexual escondido, brilhante pianista de formação clássica, poliglota, com três doutorados e formação em música na Rússia - mas alienado de suas origens. Por outro lado, há o motorista e guarda-costas italiano, meio turrão, meio machão, grosseiro e "do povo".

Ao longo do filme, esses estereótipos mais ou menos se revelam como simples estereótipos: o motorista revela-se sem preconceitos contra o chefe, sejam de raça, sejam de orientação sexual, e, talvez mais importante, ele dá seguidas demonstrações de uma tocante lealdade pessoal e profissional para com o chefe, além de estar aberto à influência refinada do seu chefe (tornando-se menos grosseiro e mais civilizado) e sabendo apreciar o talento do pianista.

Por seu turno, o pianista negro exibe uma forte e constante atitude de dignidade, rejeitando sistematicamente o emprego da violência contra o racismo imposto pelos protestantes brancos contra os negros fetichistas nos Estados Unidos. Mas, além disso, sabe reconhecer a lealdade do seu motorista/guarda-costas e valoriza-a cada vez mais; o contato contínuo entre ambos também leva o pianista a reconectar-se um pouco com suas origens humildes e com o comum do povo, naquilo que há de melhor nisso. E, principalmente, vemos que a dignidade e o talento do pianista negro aliam-se a uma grande coragem pessoal, na medida em que ele escolheu apresentar-se no "Sul profundo" dos Estados Unidos, ou seja, justamente naqueles estados e naquelas regiões em que o racismo era, e é, mais entranhado e mais degradante.

Como comentei antes, tudo isso é bem esquemático, mas ainda assim funciona bem e emociona; mesmo roteiros em geral simplistas podem funcionar bastante bem.

Há uma questão adicional que fica mais ou menos sem solução; essa questão, na verdade, aplica-se tanto ao caso do pianista negro com formação clássica quanto, mutatis mutandis, para o Brasil, para a América Latina, para países que foram colônias européias e para o mundo em geral: como conjugar a grande cultura clássica, que em termos mundiais é ocidental e que, no Ocidente, tem origem européia e está ligada aos antigos dominadores, com as culturas locais e/ou populares. No caso do Brasil, essa oposição tem sido traduzida (há várias décadas, talvez há mais de um século) na forma de ocidentalismo versus terceiro-mundismo, ou europeísmo versus nativismo, ou outras oposições similares.

Embora sem se aprofundar, o filme Green Book dá a entender que essa oposição é falsa; sem deixar de ser propriamente uma fonte de tensão, a cultura clássica e a cultura popular podem e devem coexistir, respeitar-se e estimular-se simultaneamente. Ou, no caso do Brasil: somos, sim, por formação e aspiração, plenamente ocidentais, ao mesmo tempo que integramos a "periferia" (ou, quem sabe, a semiperiferia). Essa é a nossa força; devemos aproveitá-la e utilizá-la para benefício de todos.



19 abril 2021

Ricardo Cortez Lopes: resenha de "Comtianas brasileiras"

O sociólogo gaúcho Ricardo Cortez Lopez publicou uma bela e gentil resenha do meu livro Comtianas brasileiras (Curitiba, Appris, 2019). Essa resenha foi publicada na GETS - Revista Interdisciplinar em Gestão, Educação, Tecnologia e Saúde (Sete Lagoas, v. 3, n. 2, p. 86-90, 2020) e seu original está disponível aqui.

Reproduzo abaixo o texto da resenha.

*   *   *



Augusto Comte (1798-1857), o pai do positivismo, é comumente abordado nas disciplinas dos cursos de ciências sociais devido a ser pai também da própria disciplina sociologia, nomeando-a e delimitando uma área de atuação junto a outras disciplinas. Porém, muito de sua relevância no meio acadêmico acaba se restringindo a essa inauguração e à teoria dos três estados, restando às outras ideias desse sistema intelectual a pecha de fantasias ou teoricismos estéreis.

Lançado pela editora Appris, o livro de Gustavo Biscaia de Lacerda – bacharel em ciências sociais, mestre e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná e que é nacionalmente conhecido justamente pela sua vasta obra de Teoria Política dedicada ao positivismo – busca dar profundidade ao clássico autor francês a partir de uma mediação pela sua obra, e que é escrita para muitos públicos. Essa mediação acontece, no livro, por duas vias: a) mostrar a atualidade do autor diante das questões atuais e b) evidenciar a complexidade intrínseca das ideias do francês. Uma vez bem-sucedidos esses dois objetivos, o estigma associado a Comte se mostra inconsistente e o autor e o seu sistema podem ser apreciado por quem não o admira. Ou seja, é um livro que milita, porém o faz em termos sociológicos e buscando contribuir para a disciplina fundada pelo autor francês.

Sobre o título da obra, sua lógica é explicada na contracapa: a chamada remete ao esforço proposto por Heitor Villa-Lobos em “Bachianas”, que combinou a música clássica com elementos da cultura brasileira: Lacerda está se utilizando de um clássico – amaldiçoado pelo ambiente acadêmico atual, eivado de outras perspectivas – e o utilizando para complexificar os ambientes epistemológicos e políticos atuais. Assim, a ideia é recuperar o alcance original de suas ideias universalistas e dando prosseguimento à obra do próprio Comte legitimado pelo próprio contexto brasileiro, que é de difícil análise para os ferramentais teóricos de outros países.

Mas não é apenas na intenção que o volume se aproxima da partitura. Tal qual composições musicais formando um disco, o livro em si é composto de uma série artigos independentes reunidos sob as respectivas temática comum, muitos deles já publicados em outras revistas ou em outros eventos, o que é bem fácil de constatar visitando o currículo do pesquisador. Nesse sentido, a brochura consegue juntar uma série de textos esparsos, e na sua junção não acontece a mera soma desses escritos: de fato há um Comte que emerge do enorme volume de material analisado e uma reflexão maior é gestada: uma contribuição para a teoria sociológica se consolida. Mostra-se um Comte cuja obra uma vez adaptada, torna-se mais do que um item de museu ou de erudição: ele é um instrumento tanto para pesquisas empíricas quanto para intervir na realidade brasileira através de uma proposta coerente e não genérica.

Para lograr tal objetivo, o autor optou por dividir a monografia em duas partes – o que aponta que os seus textos de até então se preocuparam com aspectos do positivismo de forma sistemática, de modo a poderem constituir um livro coeso. A primeira parte se refere aos métodos das ciências sociais, ajudando a mostrar a relevância da teoria para os pares da academia. Já a segunda delas refere-se a uma leitura comteana sobre o contexto do Brasil e da cidadania, mostrando o quanto a teoria positivista é útil no entendimento da realidade social, o que se estende para além da confecção de lemas em bandeiras. Mas esses argumentos ficam mais desenvolvidas pela estrutura dos capítulos, como veremos agora.

A Parte I ostenta 4 capítulos. O primeiro deles se chama “Aplicando Comte atualmente, ou sobre a relevância contemporânea do positivismo”, e versa sobre a negação de Comte no meio acadêmico, embora Lacerda não tenha mostrado evidências dessa recusa. De qualquer maneira, os elementos que supostamente inviabilizariam o sistema comteano não estão presentes de fato na obra comteana. Já no segundo capítulo, “Explicação vs. compreensão: respostas comtianas às críticas do interpretativismo”, é analisado crítica e detalhadamente um artigo de um pesquisador, refletindo sobre os dois tópicos no esmiuçar da monografia abordade, que enseja questões basilares das próprias ciências sociais. Tal exposição, por demais extensa, permite pensar questões da própria epistemologia das ciências sociais num geral. Por seu turno, o capítulo 3, “Sobre comparações interpretativas nas ciências sociais, ou sobre a possibilidade de uma ciência social que não seja comparativista e subjetivista” desenvolve mais esses tópicos, com o objetivo de problematizá-los de maneira mais geral por meio do positivismo, o que torna essa seção a mais abstrata do livro. O último capítulo, “Vontades e leis naturais: liberdade e determinismo no positivismo comteano”, destina-se a combater de maneira mais detida um dos espantalhos sobre o positivismo, o de ser uma ideologia que elimina ao indivíduo. O procedimento de Lacerda é mostrar, na obra comteana, o complexo papel da vontade individual.

A parte II da obra é composta pela maioria dos capítulos, cinco, numerados sequencialmente com os da parte anterior. O capítulo enumerado como o de número cinco, “A “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos brasileiros: composição étnica e independência nacional”, menciona o papel dos intelectuais positivistas na intepretação do Brasil, não reconhecida no cânone das ciências sociais até então. A abordagem da etnia, por exemplo, permite mostrar que o positivismo não é racista por conta de muitas das características, em especial a da sua fraternidade universal. Já no sexto capítulo, denominado como “O secreto horror à realidade” dos positivistas: discutindo uma hipótese de Sérgio Buarque de Holanda”, é abordada a crítica do clássico pesquisador brasileiro em “A história da civilização brasileira”. A força dessa crítica não reside tanto em sua exatidão (questionada por Lacerda), e sim porque ela influenciou e, por esse motivo, sintetizou muitas das críticas vindouras. Tais críticas (imprecisas e nunca retomadas) ajudaram a estabelecer o estigma contra o qual o livro se volta contra. O antepenúltimo capítulo, “Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos”, trata da militância de uma parte dos positivistas pela laicidade estatal, algo que pode contrastar com a defesa de uma Religião da Humanidade. Ou seja, os positivistas mais ortodoxos defendiam um dos pilares da moderna democracia, a despeito de hoje levarem a alcunha de amantes da ditadura e do militarismo. Essas posições não se sustentam historicamente, como bem mostra o sociólogo brasileiro. No penúltimo capítulo, “Cidadania e desigualdade em Augusto Comte”, é mostrado que Comte não era propriamente um adepto da desigualdade social no sentido aristocrático, como interpretações que o asseveram como conservador soem atribuir-lhe. De fato existem diferenças entre os indivíduos, porém o objetivo final do positivismo é a igualdade lidando com as estruturas sociais de até então. O capítulo que fecha a coletânea, o de número nove, “Entrevista sobre o positivismo: maçonaria, política, pseudociência, Brasil, mérito”, mostra uma série de quatro entrevistas concedidas por Lacerda ao pesquisador Daniel Araujo. O objetivo do autor foi didático, pois Lacerda reorganiza os tópicos para esse fim, porém o texto acaba servindo como um ótimo encerramento, uma vez que articula todos os assuntos a partir dos pontos tocados pela entrevista e produz uma síntese esperançosa. E a esperança define muito mais o positivismo do que a conservação das coisas do modo como elas são.

Para encerrar essa resenha, podemos elencar uma série de utilidades dele para além daquelas que já foram apresentadas até então. A primeira delas é a didática: seus textos podem fazer parte dos programas das disciplinas introdutórias de sociologia, listadas no lugar dos próprios escritos de Comte – ou pelo menos paralelamente a eles – no intuito de abrir possibilidades de entendimento para os alunos. Assim, é possível mostrar um outro lado da teoria e não apenas reforçar a refutação não embasada – como as acusações de higienismo e de racismo, por exemplo. Outro ponto interessante é repensar o modo de exposição das ideias do próprio ofício do sociólogo: Lacerda lembra Olavo Bilac na busca da palavra correta para cada frase. Esse tipo de “ourivesaria” do texto, de revisitá-lo inúmeras vezes, é uma atividade que fica dificultada em tempos de produtivismo, então é admirável observar tanta abnegação em um autor de obra tão vasta.

Talvez seja possível também apontar limitações da própria obra com relação ao intento do autor. O primeiro deles é que o tipo de militância de Lacerda (que é positivista) não é bem visto por muitos pares da sociologia, e a sua filiação formal com uma Igreja pode o fazer perder credibilidade – o que provavelmente não aconteceria se o autor fosse de alguma outra filiação, admitamos. Porém, o descrédito científico segue o mesmo. O segundo é que, seguindo a tradição renascentista de seus antepassados intelectuais, a exposição de Lacerda é bastante erudita e densa, o que dificulta o acompanhamento por parte de alguns segmentos do público, mesmo nas entrevistas. Assim, é possível que alguns leitores não admirem a obra pelas suas qualidades, e sim por se tratar de uma obra com gosto de século XIX. O que se trataria de uma tremenda injustiça com uma obra tão esmerada.