24 dezembro 2019

Foto de Luís Hildebrando Horta Barbosa

A foto abaixo é do engenheiro e positivista Luís Hildebrando Horta Barbosa e originalmente está encartado no pequeno e interessante volume intitulado "In memoriam de Luís Hildebrando Horta Barbosa", publicado em 1974 por Joaquim Modesto Lima, Ângelo Torres e Rubem Descartes de Garcia Paula (disponível em versão digitalizada aqui).

Todos eles eram positivistas e contribuíram ativamente para o desenvolvimento social, político e econômico do país; Luís Hildebrando, em particular, foi o responsável por grandes e importantes obras, entre as quais de longe se destaca o projeto e a construção da Cidade Universitária da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, na ilha que é conhecida popularmente como "Ilha do Fundão". 


Luís Hildebrando Horta Barbosa
Fonte: https://archive.org/details/inmemoriamdeluishildebrandohortabarbosa

02 dezembro 2019

Gazeta do Povo: Quais tradições dos conservadores?

O artigo abaixo foi publicado na Gazeta do Povo em 28.11.2019. O original pode ser lido aqui.

*   *   *

Quais tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje?

Não é segredo para ninguém que os conservadores têm o poder no Brasil, hoje; esses conservadores identificam-se como tais, especialmente no que se refere aos “costumes” e, acima de tudo, em sua oposição à “esquerda”, no “antipetismo”. Mas, além da autoidentificação – isto é, de um certo rótulo autoimpingido – e da negação de uma perspectiva sociopolítica, o que é que define, de maneira afirmativa e substantiva, esses conservadores no Brasil?

Essa não é uma pergunta secundária ou desprezível; ela exige que se apresente de maneira clara os princípios que constituem uma determinada visão de mundo e a partir da qual se realiza uma atividade política. Mais do que isso, vale notar que um rótulo por si só não quer dizer muita coisa; no limite, é apenas uma casca para um conteúdo a ser determinado. Além disso, por si só, a oposição a algum grupo intelectual e sociopolítico não evidencia muita coisa, pois limita-se a negar e não a afirmar e, de qualquer maneira, essa mera oposição pode juntar grupos que, de outra forma, estariam em campos muito, muito diferentes.

Uma primeira resposta é esta: os conservadores valorizam a tradição. Mas qual tradição? No caso específico do Brasil, a resposta mais fácil é: a tradição católica. Isso ainda não resolve o problema; deixando de lado a distinção entre a “igreja conservadora” e a “igreja progressista”, o fato é que existe um catolicismo do alto clero e outro do baixo clero, sem contar as inúmeras clivagens representadas pelas ordens – os jesuítas são diferentes dos franciscanos, que são diferentes dos carmelitas, que são diferentes dos mais recentes carismáticos etc. Também há diferentes possíveis “aplicações” da religião, no sentido de que alguns católicos, como católicos, são mais favoráveis à ação política, outros buscam constituir um corpo de laicato, outros preferem ações “de base”, outros são mais litúrgicos e assim por diante.

No conservadorismo brasileiro atual há uma dificuldade adicional da maior importância quando se define o conservadorismo pela tradição católica: o fato simples e direto de que uma parcela minoritária, mas numericamente crescente e politicamente agressiva, não é católica, mas evangélica. Embora católicos e evangélicos definam-se genericamente como “cristãos”, os elementos que os separam são muito mais numerosos que os que os unem. Para começar, excetuando-se talvez a Assembleia de Deus, os demais evangélicos que despontam na política e que mobilizam o atual conservadorismo brasileiro – gozando em particular da simpatia da família Bolsonaro e de alguns ministros de Estado – são igrejas relativamente novas, ou seja, são qualquer coisa menos “tradicionais”. Em segundo lugar, enquanto o catolicismo brasileiro desde sempre é fortemente influenciado pelas determinações da Santa Sé e tem um caráter transnacional, os evangélicos brasileiros têm uma origem associada a pregadores norte-americanos e não manifestam o esforço católico de “unidade na diversidade”. Existem diversos outros elementos, é certo; mas o que vale notar aqui é que católicos e evangélicos, tão heterogêneos entre si, unem-se apenas graças à afirmação de um vago “cristianismo” – que esvazia as doutrinas e as igrejas de seus conteúdos específicos – e, de modo mais importante, no antipetismo e na oposição à “esquerda”.

As diferentes origens de católicos e evangélicos levam-nos também a refletir sobre quais seriam as tradições brasileiras a que eles fazem referência. Afinal, o que seria uma “tradição”? Podemos entendê-la como hábitos persistentes, existentes desde há muito tempo; ora, o conservadorismo brasileiro afirma que seria necessário “retomar as tradições”, do que se depreende que determinados hábitos longevos foram suspensos; em tal suspensão, o peso moral e histórico das tradições diminui, não há dúvida. Mas isso nos leva a refletir sobre quais seriam os hábitos longevos próprios ao Brasil. Sendo bastante polêmico, aqui a escravidão durou bem mais de 350 anos, enquanto a liberdade de todos os cidadãos tem pouco mais de 130; enquanto vigeu, sem dúvida a escravidão foi “tradicional”. O apoio-controle do Estado sobre a Igreja Católica, específico do padroado, durou também vários séculos, enquanto a laicidade do Estado não tem nem 130 anos. No caso particular da laicidade, vale notar que enquanto o catolicismo foi a religião oficial de Estado, não havia liberdade religiosa (no Brasil Colônia) e apenas os luteranos, os calvinistas e, no fim do II Império, os positivistas eram tolerados – entre muitos outros, os evangélicos eram desprezados e rejeitados.

Não duvido de que os exemplos acima são polêmicos para o público conservador, mas eles não são anedóticos. Vinculando-se à liberdade de crença e ao fim da escravidão estão a República e a igualdade perante a lei, bem como o direito ao voto: a República tem 130 anos e a isonomia e o voto têm sido ampliados aos poucos desde 1889, com o fim do voto censitário em 1890, a instituição do voto feminino em 1934 e do voto de analfabetos em 1988. O que devemos considerar como tradicional aí, para ser valorizado pelo conservadorismo? A sociedade de castas monárquica (350 anos) ou a isonomia republicana (130 anos)? A liberdade de expressão foi afirmada em 1889 e durou até 1937; depois voltou em 1946 para ser restringida (duramente) em 1964 e, ainda mais, em 1968, voltando apenas após 1979, para que se transformasse em “cláusula pétrea” em 1988. Durante a República, a liberdade de expressão durou bem mais que a censura e a repressão; ainda assim, temos que perguntar: o que seria “tradição” nesse caso?

Do ponto de vista econômico e de política internacional, a variedade de “tradições” não é menos importante. A República – novamente ela! – proclamou a fraternidade universal, o fim das guerras como ideal e a busca do arbitramento para solução de controvérsias; durante a I República afirmava-se o liberalismo econômico mas o Estado constantemente protegia a indústria, com vistas ao desenvolvimento, e após 1930 o desenvolvimento econômico, social e político tornou-se política pública, com a inclusão e a proteção dos trabalhadores. Aliás, a proteção aos trabalhadores como policy é uma preocupação que se iniciou em 1930 e que está de acordo com o catolicismo, mas que se distancia radicalmente do individualismo evangélico. Até há pouco tempo, a noção de “Ocidente” era encarada no Brasil como sinônima de “universalismo”; da mesma forma, as negociações internacionais e o multilateralismo tornaram-se parte da tradição nacional em política e comércio internacional. Rejeitar o multilateralismo e a arbitragem, estimular conflitos internacionais, incentivar o individualismo e largar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará – isso integra alguma tradição brasileira?

As indagações e os comentários acima não visam a denegrir conservadores, católicos ou evangélicos. Bem ao contrário, são um esforço – um pedido, na verdade – para que os conservadores brasileiros atuais deixem de lado sua agenda negativa (antipetismo, rejeição à esquerda) e passem a definir de maneira afirmativa uma agenda; que deixem de dizer o que não querem e passem a indicar o que desejam, em particular o que desejam conservar. Não se trata aqui de atribuir “tradições” à direita ou à esquerda, a católicos, a evangélicos, a comunistas, a militaristas, a pacifistas: em meio a uma pluralidade de tradições brasileiras, trata-se de definir o que deve ser preservado – e, portanto, o que deve ser deixado de lado.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política (UFSC).

19 novembro 2019

A patada do Ministro da Educação e o desrespeito à República

Muitas pessoas estão afirmando que a violenta patada que o Ministro da Educação (!!!) deu foi “correta” ou “adequada” ou “justa”. Isso está errado, qualquer que seja o critério que se adote; infelizmente, muitas pessoas não percebem o erro. Assim, é necessário ser didático a respeito.

O Ministro da Educação não é um simples particular; aliás, por definição, ele não é “particular”, pois ocupa um eminente cargo público. Participando do segundo escalão da República, ele é um dos líderes do país. Se ele não gostou do comentário da moça – e, evidentemente, ele tem todo o direito de não gostar –, o que ele deveria ter feito era manter-se em silêncio ou simplesmente dito à moça: “você tem todo o direito de manifestar as suas opiniões”.

Em outras palavras, ele deveria ter agido conforme exige o decoro do alto cargo que ocupa. Ele não é um torcedor de time de futebol em um estádio durante uma partida; ele é chefe de uma das mais importantes burocracias do país, com caráter estratégico e um orçamento gigantesco.

A resposta do Ministro evidencia – mais uma vez – o seu caráter e a baixa qualidade do governo de que participa. A resposta do Ministro revela – mais uma vez – uma falha brutal no seu caráter. Quem considera que a resposta dele foi “adequada” não percebe que há diferenças substanciais entre os cidadãos comuns e os líderes políticos, entre o âmbito privado e a atividade pública.

No fundo, tanto o Ministro (e seu chefe, o Presidente da República) quanto todos aqueles que apoiam, aceitam e justificam a patada não entendem que vivemos em sociedade, ou melhor, que vivemos em uma República e que não somos apenas “indivíduos”, mas somos cidadãos. Dito de outra maneira, aceitar, apoiar e justificar a violenta grosseria do Ministro evidencia que seus apoiadores entendem as pessoas como particulares, como indivíduos fechados em seus mundinhos privados e que ignoram, quando não desprezam, a atuação pública, a atuação cívica. Em outras palavras, elas são individualistas, mesquinhas e egoístas.




15 novembro 2019

Folha de S. Paulo: Positivismo inspirou República e tem seguidores hoje

Em comemoração aos 130 anos da Proclamação da República, a Folha de S. Paulo publicou uma bela matéria sobre o Positivismo, a Religião da Humanidade e a Igreja Positivista de Porto Alegre.

Ela está reproduzida abaixo. Para os assinantes do jornal, o original pode ser lido aqui.


Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/filosofia-que-inspirou-republica-tem-seguidores-130-anos-apos-proclamacao.shtml

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/filosofia-que-inspirou-republica-tem-seguidores-130-anos-apos-proclamacao.shtml

República: valorizar o ideal, reconhecer e resolver os problemas

Os brasileiros – e isso é algo específico do Brasil – têm um triste hábito: gostam de falar mal de si mesmos.

Por exemplo: hoje se comemora a gloriosa Proclamação da República, em seus 130 anos.

O evento em si mesmo foi um avanço; a República é um regime superior à monarquia. E, aliás, o 
presidencialismo também é superior ao parlamentarismo.

Além de ser um regime concreto, a República é um ideal sociopolítico de ordem e progresso, de inclusão e desenvolvimento, de justiça, respeito e tolerância.

Em vez de comemorarem-se esses valores todos, o que é que se faz no aniversário de 130 anos da República?

Afirma-se que ela é fracassada, que ela não presta, que ela traiu seus ideais... tudo isso dito de maneira “crítica” e “politizada”, supostamente com grande seriedade e profundidade.

Pelo jeito, é bonito falar mal da República. O problema é que o ideal que ela representa é simplesmente jogado fora com essa “criticidade” extremamente ácida. Ora, se a República não presta, não há porque a manter; se não há porque a manter, ela não será mantida.

Entre 1930 e 1937, críticas à República em tudo semelhantes às que se fazem (no dia de) hoje eram difundidas e repetidas. Qual foi o resultado? Revolução em 1930, guerra civil em 1932, golpe autoritário em 1937. A mesmíssima dinâmica entre 1961 e 1964, com os resultados que todos conhecemos. (Isto é, que deveríamos conhecer.)

Aliás, a mesma dinâmica ocorreu em outros países: França, Portugal, Espanha... nesses lugares, as críticas aos problemas concretos das repúblicas levaram ao envenenamento e à morte da República como ideal, resultando em regimes autoritários retrógrados, precedidos ou não por guerras civis. Em tais lugares, a muito, muito custo as liberdades foram reconquistadas, justamente no quadro de repúblicas (com a exceção da Espanha – mas lá a monarquia foi um presente do assassino e psicopata Francisco Franco ao seu pupilo, o futuro rei Juán Carlos II).

Em vez de os brasileiros alegre mas burramente repetirmos que a República é ruim, deveríamos fazer como os estadunidenses sempre fizeram: reconhecer os problemas e as deficiências, mas ao mesmo tempo reafirmar os valores e os ideais, para, a partir disso, buscar as soluções das dificuldades.

07 novembro 2019

Novo livro: "O momento comtiano"

A Editora da UFPR está lançando o livro O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte, de minha autoria.

É a mais completa obra em português abordando o pensamento político de Augusto Comte, sendo, portanto, referência obrigatória em todo e qualquer curso de teoria política, filosofia política, ciências sociais, história das idéias.

Muito mais do que uma obra acadêmica, esse livro faz-nos refletir sobre a nossa época, em que a ordem e o progresso insistem em digladiar-se, para prejuízo mútuo. Em face disso, o livro consiste em uma contribuição inestimável e fundamental para os nossos debates contemporâneos, ao examinar e aprofundar a proposta comtiana, ou positivista, de união radical e da superação da oposição entre a ordem e o progresso.

O livro pode ser adquirido aqui.

Fonte: https://www.editora.ufpr.br/produto/405/momento-comtiano,-o--republica-e-politica-no-pensamento-de-augusto-comte

26 outubro 2019

Gazeta do Povo: "Conservadores brasileiros rumo ao desastre"

O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.

*   *   *


Os conservadores brasileiros rumo ao desastre

Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.

Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo sem dúvida o desejo de manter o status quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.

O que importa notar do que se vê acima é que o conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos (!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo, assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.

O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que, aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo, são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas mentais.

Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram especialmente sectários.

Elementos básicos da tradição ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo, o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações e fake news, sugerindo que em ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do Ministro da Educação, não há nada de tolerância, de respeito, de “agree to desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a própria doença.

Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de “direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações, são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.


Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e Sociólogo da UFPR.

20 outubro 2019

Comemoração do nascimento de Benjamin Constant, o Fundador da República Brasileira

No dia 11 de Descartes de 48 (18 de outubro de 1836) - no dia de Vauvenargues - nascia em Niterói (então capital da província do Rio de Janeiro) Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Seu nome foi uma homenagem que seu pai rendeu ao pensador liberal franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830), falecido alguns anos antes e que produziu algumas reflexões políticas memoráveis, como a famosa conferência pronunciada no Athenée Royal em 1819, Da liberdade dos modernos comparada à dos antigos.


Benjamin Constant Botelho de Magalhães
Fonte: Wikipédia.

Como muitas pessoas de sua época, Benjamin Constant Botelho de Magalhães ingressou no Exército devido às difíceis condições econômicas de sua família, seguindo a carreira técnica como engenheiro e preferindo, acima de tudo, a docência. Participou da Guerra da Tríplice Aliança (a Guerra do Paraguai, 1865-1870) por um curto período de tempo - 1866-1867 -, voltando à Corte devido a problemas de saúde. Durante sua presença no campo de batalha redigiu cartas pessoais em que considerava de maneira bastante negativa a condução da guerra e a atuação do futuro Duque de Caxias.

Foi professor de Matemáticas em diversas escolas superiores, como a Escola Politécnica, onde teve inúmeros alunos ilustres, entre os quais os futuros Diretor e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, respectivamente Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), além do engenheiro e escritor Euclides da Cunha (1866-1909) e do engenheiro militar e indianista Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o "Marechal da Paz".

Chegou a ser tutor dos netos de d. Pedro II. Inteligência brilhante e professor de altíssimas qualidades didáticas, foi aprovado em primeiro em três concursos para o magistério superior; nessas três ocasiões, a despeito de apresentar-se como "sábio", como "cultor das artes e das ciências", como "estadista", o Imperador nomeou para os cargos os candidatos que tinham ficado em segundo lugar, preterindo o mérito docente e intelectual de Benjamin Constant.

Desde cedo perfilhou o Positivismo e a Religião da Humanidade; em suas cartas escritas na frente paraguaia, Benjamin Constant refere-se ao Positivismo como sendo "a minha religião". A modernidade, a clareza, o altruísmo, o republicanismo pregados pelo Positivismo, somados ao caráter honesto e reto de Benjamin Constant levaram a ser altamente respeitado por seus alunos da Escola Militar. Além disso, perfilhava com o Positivismo o combate à escravidão, o que tornava toda sua atuação intelectual motivo de respeito e também de interesse político.

Docência, abolicionismo e republicanismo

Os sacrifícios que os soldados brasileiros fizeram durante a Guerra da Tríplice Aliança foram desprezados pelos governantes após 1870; ao mesmo tempo, o republicanismo e o abolicionismo tornaram-se temas da pauta pública a partir daquela data. O desrespeito do governo ao Exército configurava-se de diversas maneiras: a existência paralela da Guarda Nacional, de caráter civil e miliciano, embora de muito mais prestígio; a vedação à participação política franca dos militares, embora os oficiais fossem constantemente chamados a ocupar cargos públicos; os baixos salários, a falta de preparo e o baixíssimo prestígio do Exército.

Na década de 1880 houve sérios problemas políticos entre os civis e alguns militares que externavam opiniões políticas, no que foi chamado de "Questão Militar". O baixo prestígio geral de que a tropa gozava uniu-a corporativamente e levou os militares paulatinamente a oporem-se ao governo, senão à própria monarquia.

Em 1887 as duas grandes partes do Exército - os "troupiers", a gente sem formação teórica mas habituados à vida militar, e os "doutores", os militares formados nas escolas superiores - criaram em conjunto o Clube Militar, por meio da associação e da amizade pessoal dos dois grandes líderes de cada uma dessas partes: Deodoro da Fonseca, Presidente do Clube, e Benjamin Constant, vice-Presidente da associação. O Clube Militar tornou-se o órgão político do Exército; uma de suas primeiras medidas foi negar o apoio ao escravagismo da monarquia, ao recusar-se a caçar os escravos fugidos.

O papel de liderança intelectual, moral e política levou Benjamin Constant a tornar-se líder do movimento republicano, em especial pondo-se à frente dos cadetes da Escola Militar que ansiavam, justamente, um líder da modernidade, do esclarecimento, do republicanismo, da abolição da escravatura.

Assim, se na manhã de 15 de novembro de 1889 foi Deodoro da Fonseca quem fez a proclamação da República, foi Benjamin Constant quem articulou o movimento, quem convenceu Deodoro, quem evitou a violência.

Deposta a monarquia, Benjamin Constant integrou o governo provisório na pasta da Guerra (novembro de 1889 a março de 1890) e, em seguida, na recém-criada pasta da Instrução Pública (março de 1890 a janeiro de 1891).

Foi um dos principais responsáveis pela separação entre igreja e Estado no Brasil - estabelecida pelo Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890 - e também pela nossa atual bandeira nacional (de autoria de Teixeira Mendes, com arte de Décio Villares) - estabelecida no dia 19 de novembro de 1889.

Morto em 22 de Moisés de 103 (22 de janeiro de 1891), recebeu o título de "Fundador da República Brasileira" pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Como foi Diretor do Instituto de Meninos Cegos, essa instituição recebeu em 1891 o nome de Instituto Benjamin Constant. Além disso, a casa em que morava no bairro carioca de Santa Tereza virou o Museu Casa de Benjamin Constant. Em 1926 foi inaugurado na Praça da República um monumento em homenagem a Benjamin Constant, de autoria dos artistas positivistas Décio Villares e Eduardo de Sá.


Inauguração do monumento a Benjamin Constant na Praça da República, em 1926.
Fonte original: revista O Malho. Reproduzido de Inventário de Monumentos do Rio de Janeiro (http://inventariodosmonumentosrj.com.br/?iMENU=catalogo&iiCOD=66&iMONU=Benjamim%20Constant).


Importância histórica e legado de Benjamin Constant

Logo após sua morte, Raimundo Teixeira Mendes publicou uma alentada biografia em dois volumes, intitulada Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brazileira (disponível aqui) - biografia que, aliás, permanece como a maior e melhor obra sobre a vida de Benjamin Constant até hoje

Observava Teixeira Mendes que Benjamin Constant não era um positivista completo nem seguia sempre as orientações de Augusto Comte, nem mesmo demonstrava a energia necessária em todos os momentos; mas, a despeito desses defeitos, ele mostrou-se à altura das necessidades do momento, em particular em 1889, além de sempre se ter afirmado positivista e adepto da Religião da Humanidade.

De nossa parte, queremos enfatizar que a atuação de Benjamin Constant era positiva e seguia o Positivismo em alguns aspectos centrais, que servem de exemplo até - e mesmo principalmente - nos dias de hoje:

1) afirmava a decadência social do militarismo;

2) afirmava a liberdade de pensamento e de expressão;

3) afirmava a preeminência social, intelectual e moral do pacifismo;

4) afirmava a necessidade da cultura afetiva juntamente com o conhecimento científico e a atividade produtiva.

Em outras palavras, embora devido às suas necessidades materiais fosse um militar de carreira, Benjamin Constant não era militarista e, entendendo o sentido histórico da civilização ocidental, compreendia que o pacifismo e as liberdades de pensamento e de expressão constituem os traços permanentes de nossas sociedades. 

Nesse sentido, por exemplo, propunha a doutrina do soldado-cidadão, em que o soldado deveria antes de mais nada ser um cidadão, um membro produtivo, pacífico e respeitador das leis - ao contrário do que, duas décadas depois, Olavo Bilac proporia, afirmando que os cidadãos deveriam ser soldados. Não é à toa que o ensino de Benjamin Constant tenha sido, depois, ao longo do século XX, combatido ativamente por militares que se revelariam fascistas, golpistas e autoritários - militares como Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, Olympio Mourão Filho, Cordeiro de Farias (entre muitos outros), vinculados à "Liga da Defesa Nacional", à revista A Defesa Nacional e, acima de tudo, às missões militares alemãs e francesas.

11 outubro 2019

Luís Lagarrigue: "Sinais sociolátricos"

A imagem abaixo foi recentemente encontrada na Casa de Augusto Comte (Maison d'Auguste Comte), em Paris, e compõe-se de fotos do positivista ortodoxo chileno Luís Lagarrigue (1864-1949) fazendo sinais sociolátricos com as mãos.




A série de imagens tem o título "Sinais sociolátricos". O texto que segue diz o seguinte:
[SINAIS SOCIOLÁTRICOS] Espontaneamente formados com o auxílio das mãos por diferentes povos, ao longo das épocas e utilizado para o culto positivista pelo sr. Luís LAGARRIGUE, no Círculo Proletário Sociocrático de SANTIAGO do CHILE.
No sentido anti-horário, as legendas dos sinais indicados dizem o seguinte:
N. 1 - Abstinência
N. 2 - Castidade
N. 3 - Relaxamento (a tradução literal é "abandono")
N. 4 - Paz
N. 5 - Trabalho
N. 6 - Submissão
N. 7 - Moléstia
N. 8 - Apego
N. 9 - Veneração
N. 10 - Bondade
As imagens centrais têm por legenda a fórmula sagrada do Positivismo: "O amor por princípio e ordem por base; o progresso por fim".

08 outubro 2019

Redes sociais, infantilização, críticas e "haters"

As redes sociais têm muitos aspectos positivos, mas, infelizmente, nos últimos anos são os aspectos negativos que, merecidamente, têm recebido destaque.

Um desses aspectos negativos é a infantilização que ela realiza.

A infantilização não é apenas tornar diretamente as pessoas mais infantis; ela também consiste em tornar os adultos menos responsáveis, isto é, menos adultos. No final, os dois processos encontram-se ao tornarem as pessoas mais bobocas e bem menos à altura das necessidades sociais e individuais.

Pois bem: um dos traços da infantilização como menos maturidade, da infantilização como tornar as pessoas menos adultas, é o uso da expressão "hater" ("odiador") para designar qualquer pessoa que faz críticas a outra(s).

Evidentemente, entre as pessoas que fazem críticas há sempre quem manifeste ódio a pessoas, grupos, idéias, práticas; mas daí a usar de maneira sistemática o hater para referência a toda e qualquer crítica é equivalente a exigir que todo comentário seja sempre de elogio.

Da mesma forma, isso ignora que, embora não seja nada ideal, na vida há muitos casos, situações, idéias que devem, sim, ser objeto de ódio ou, pelo menos, de forte repulsa (o nazismo é um exemplo fácil disso).

Não dá. A vida não é um programa de auditório nem é um concurso de popularidade. Fazer críticas não é ser hater; mas, inversamente, exigir que toda crítica seja sempre a manifestação de um hater é o sinal mais claro de infantilização.

20 setembro 2019

Novo livro: "Intervenções políticas: laicidade, cidadania e Positivismo"

Está em fase de pré-lançamento, para ser oficialmente lançado no dia 9 de outubro, o meu mais novo livro: Intervenções políticas: laicidade, cidadania e Positivismo, publicado pela Editora Poiesis.

O volume, exclusivamente eletrônico, pode ser comprado diretamente na página da editora (aqui) ou na Amazon (aqui).

Segue abaixo o resumo do livro, elaborado a partir do prefácio.

*   *   *

É comum sustentar a impressão de que o Positivismo teria morrido no Brasil em 1927-1930, após cerca de seis décadas de forte influência no país, que medeiam 1870 (final da Guerra da Tríplice Aliança, ou Guerra do Paraguai) e 1927 (falecimento de Raimundo Teixeira Mendes, vice-Diretor da Igreja e Apostolado Positivista Brasileiro). Esse período, aliás, por acaso corresponde com precisão ao declínio da monarquia no Brasil (1870-1889) e a quase todo o período da I República brasileira (1889-1930).

Entretanto, como afirma nosso autor Gustavo Biscaia de Lacerda, na verdade o Positivismo não morreu e a impressão de sua morte é apenas e tão-somente isso, uma impressão – aliás, consciente e propositalmente criada por grupos político-ideológicos de grande influência no país, tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. Assim, o presente livro é uma demonstração em contrário dessa impressão indicada há pouco; ele consiste em quase uma trintena de artigos de extensão variável e publicados no diário curitibano Gazeta do Povo, além de alguns outros textos publicados no blogue pessoal do autor. Os temas cobertos por esses artigos são os mais variados, embora se refiram sempre a questões políticas e baseiem-se invariavelmente no Positivismo, isto é, na filosofia, na política e na religião criada por Augusto Comte.

A primeira parte do livro aborda a laicidade, em particular no sentido de expô-la, explicá-la e procurar defendê-la contra os sistemáticos ataques que as igrejas teológicas (católica e evangélicas) realizam contra ela nos mais variados âmbitos e locais. A segunda parte do livro trata de temas mais variados, que vão desde a teoria política e a cultura política até problemas de regime político. Por fim, a terceira parte apresenta diversos artigos em que se apresenta diretamente o Positivismo e suas relações com a política, em alguns casos explicando mal-entendidos, em outros aplicando o Positivismo a questões sociopolíticas e em outros defendendo o Positivismo de erros.

Com este livro, o autor dá continuidade a um dos deveres mais elementares de todos os positivistas, qual seja, aplicar a doutrina às questões contemporâneas, procurando aconselhar e orientar sem que, nessa atividade, jamais ocupe o poder político ou o poder econômico; em outras palavras, é o esforço de constituir um novo poder Espiritual – humanista, altruísta, pacifista, científico e relativo.

16 setembro 2019

A sociedade industrial para Augusto Comte - roteiro de uma prédica

No dia 15 de setembro de 2019 fiz uma prédica na Igreja Positivista do Rio Grande do Sul sobre a "sociedade industrial", conceito sociológico elaborado por Augusto Comte em sua Sociologia Dinâmica para entender a realidade contemporânea e orientar a ação prática.

Para essa prédica elaborei um pequeno roteiro, que foi mais ou menos seguido na ocasião - os improvisos e as digressões são parte de qualquer exposição oral. Reunindo as anotações iniciais com algumas das observações feitas de improviso, apresento o resumo abaixo, que é razoavelmente explicativo. É claro que se os leitores tiverem dúvidas ou sugestões, elas serão bem-vindas.


*   *   *


-        É um ótimo exemplo de conceito que reúne considerações sociológicas, históricas, filosóficas e morais – e também políticas
o   Assim, é um exemplo de aplicação prática dos preceitos religiosos da Religião da Humanidade
-        A “sociedade industrial” é o conceito com que Augusto Comte define a organização social, política e econômica das sociedades modernas
o   Um paralelo com “capitalismo”, de Marx, é útil: ambos os conceitos referem-se mais ou menos às mesmas coisas e ao mesmo período, igualmente com juízos de valor subjacentes; mas para Marx o “capitalismo” é um sistema totalmente impessoal que deve ser destruído por meios revolucionários em prol do comunismo; já a “sociedade industrial” é uma organização social e política vigente que deve ser aperfeiçoada, mas que permite o desenvolvimento das forças humanas
-        A melhor forma de expor a idéia da sociedade é industrial é adotando o procedimento de Comte, ou seja, por meio da contraposição com as sociedades militares
-        Na verdade, isso consiste na conjugação das leis dinâmicas do entendimento humano, que correspondem às leis VII a IX da Filosofia Primeira:

2ª série: leis dinâmicas do entendimento
1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)
2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)
3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (IX)

-        As sociedades militares foram as características da Antigüidade e da Idade Média, em que as concepções mais amplas de sociabilidade eram a família e a pátria (Antigüidade) e a pátria e a igreja (Idade Média)
o   Como são concepções parciais, a família e a pátria tendem a gerar competições entre as várias famílias e as várias pátrias: essas competições logo se transformaram em guerras
o   É necessária uma concepção universal para que se instaure a paz: somente a Humanidade pode gerar a paz mundial e perpétua
o   O Império Romano, embora baseasse-se na idéia de pátria, tinha uma concepção tendencialmente universalista de ser humano, o que o politeísmo facilitava, ao permitir com maior ou menor facilidade a incorporação dos vários grupos sociais; os romanos diziam, acertadamente, que “faziam a guerra para levar os hábitos da paz”
§  O Império Romano extinguiu até certo ponto as guerras de conquistas, incessantes na Europa e na Ásia Menor até então e criou uma enorme área de relativa estabilidade política, jurídica, econômica (e monetária e de pesos e medidas) na Europa e ao redor do Mar Mediterrâneo; com isso, lançou as bases necessárias para a civilização católico-feudal e para o desenvolvimento posterior da sociedade industrial
o   Na Idade Média o catolicismo permitiu a conjugação da pluralidade política (feudal) com a unidade de fé (católica); mas o caráter absoluto do catolicismo impede a sua plena universalização e, de qualquer maneira, ele entra em choque com outros sistemas absolutos, em particular o Islã
-        A atividade militar, então, foi inicialmente conquistadora (Antigüidade) e depois defensiva (Idade Média)
o   A partir de meados da Idade Média – grosso modo, no século XI – começa a ocorrer um movimento importante: a emancipação das comunas, isto é, das cidades, dos burgos (os habitantes dos burgos eram os burgueses), especialmente pelos reis
o   Essa expressão – “emancipação dos burgos” – significa o seguinte: até então os burgos estavam submetidos à autoridade política e social dos nobres, dos senhores feudais; com a emancipação, os burgos passaram a submeter-se apenas à autoridade dos reis e/ou a ter grande autonomia decisória à as repúblicas italianas, do Norte da Europa e outras surgiram dessa forma
o   As comunas obtiveram essa emancipação porque seus habitantes eram ativos politicamente e pressionavam nesse sentido; da mesma forma, eram artesãos, comerciantes, banqueiros etc., isto é, eram indivíduos e grupos que trabalhavam e produziam bens, serviços e riquezas
o   A emancipação das comunas indica, portanto, a mudança na organização social, que passava de militar e rural para industrial e urbana
-        A sociedade industrial, portanto, surge como um desenvolvimento das sociedades militares
o   Embora surja do desenvolvimento das sociedades militares, a sociedade industrial não é uma continuação delas: antes de mais nada, a sociedade industrial é pacífica
o   Na sociedade industrial há geração da riqueza e não somente espólio e rapinagem, como na atividade militar
-        A sociedade industrial gera riqueza; mas essa “geração de riqueza” não é só ou principalmente o acúmulo de riquezas: é a produção de bens e serviços com vistas ao bem-estar humano
o   Importa lembrar e afirmar com todas as letras: a ação militar visa à destruição dos bens e à morte dos inimigos; se há a busca de algum bem-estar, é da sociedade que conquista, não a da que é conquistada
o   Assim, enquanto as sociedades militares buscam a glória, as sociedades industriais buscam o bem-estar e o conforto
-        Uma precondição fundamental da sociedade industrial é a valorização do trabalho
o   Nas sociedades militares o trabalho é desvalorizado, sendo reservado aos escravos e/ou aos servos da gleba
o   A valorização do trabalho resulta também na repulsa à escravidão e na valorização dos trabalhadores, cuja dignidade é afirmada
o   Aliás, em contraposição às sociedades militares, a sociedade industrial valoriza a vida humana
-        A sociedade industrial suceder as sociedades militares não é somente uma questão de antecedentes e conseqüentes históricos; é necessário ativamente aperfeiçoar a sociedade industrial
o   Antes de mais nada, é necessário ultrapassar os hábitos militares, a busca da glória, o desejo da dominação, o estímulo ao militarismo
o   A noção militar de pátria tem que ser substituída pela concepção pacífica e altruísta de mátria
o   Os trabalhadores têm que ser valorizados e suas condições de vida têm que ser dignas
o   A burguesia (mesquinha e egoísta) tem que ser substituída pelo patriciado positivo (altruísta, generoso, de vistas e ações largas)
o   Os meios violentos têm que ser substituídos radicalmente pelos meios pacíficos
o   O poder Espiritual tem que ter um ascendente sobre a sociedade, em contraposição à ação violenta do poder Temporal
o   Os positivistas devem deixar de ser militares ou, caso permaneçam sendo militares, que orientem suas ações para fins positivos à apoio decidido ao civilismo dos militares
§  Exemplos máximos no Brasil: Benjamin Constant e Marechal Rondon
§  Ensino civilista de Benjamin Constant no Exército à não é à toa que a ação de Benjamin Constant foi duramente combatida pelos militaristas (Jovens Turcos, revista A Defesa Nacional, Olavo Bilac, Missão Alemã, Missão Francesa) e pelos fascistas (Góes Monteiro)
§  Benjamin Constant e doutrina do “soldado-cidadão”: ênfase no “cidadão” e na “civilização” da caserna, ao contrário do que Olavo Bilac pregava, que era a ênfase no “soldado” e na militarização da sociedade
§  Marechal Rondon: o “Marechal da Paz”; frase característica: “morrer se for preciso, matar nunca”
o   O militarismo antigo e medieval era justificável e aceitável; o militarismo moderno é aberrante e inaceitável
§  O nazismo, o fascismo e até o comunismo são militarismos modernos
§  O nacionalismo do século XX apresenta todos os defeitos ligados ao militarismo: xenofobia, intolerância, violência, busca da glória nacional, conservadorismo; situação exemplar do caso Dreyfus (1895-1905)
·         Caso Dreyfus: Exército francês reacionário, monarquista, belicista, xenófobo e antissemita; a libertação de Dreyfus e a reversão de sua condenação uniu vitoriosamente os republicanos e os progressistas franceses contra os grupos reacionários (monarquistas, Igreja Católica, alto comando do Exército, intelectuais literários)
-        Augusto Comte propôs um conjunto de medidas com vistas à consolidação e ao aperfeiçoamento da sociedade industrial, já com vistas à sociocracia

SUMÁRIO DAS MEDIDAS ESPECÍFICAS À TRANSIÇÃO ORGÂNICA

MEDIDAS
ÂMBITO DAS MEDIDAS
COMENTÁRIOS
Liberdade especulativa com o fim dos orçamentos teóricos
Temporal
Necessárias em todos os lugares
Substituição das Forças Armadas pela polícia
Instituição do triunvirato sistemático
Desenvolvimento do culto histórico
Espiritual
Estabelecimento das escolas positivistas
Ascendente do Positivismo sobre o comunismo
Decomposição dos grandes estados
Resume as duas séries anteriores