25 julho 2016

Laicidade: garantia-dique para as liberdades públicas

Ilustração que representa de maneira brilhante a importância da laicidade do Estado - ainda que essa gravura tenha um evidente caráter anticlerical, com o qual, a princípio, discordamos.

As fraturas do dique sugerem os problemas crescentes que a laicidade enfrenta nos dias atuais. Aliás, entre esses desafios, estão os novos nomes que os inimigos da laicidade impingem-lhe: "laicismo", "laicidade positiva" etc. Esses novos nomes são formas de distorcer o conceito da laicidade e, portanto, a sua prática.

Por outro lado, seguindo as corretíssimas observações de Augusto Comte, convém notar que a laicidade do Estado não garante apenas as liberdades públicas contra os abusos das religiões, mas, inversamente, garante às próprias religiões as liberdades para exercerem-se e a impossibilidade de serem instrumentalizadas e conspurcadas pelo Estado para doutrinação pública. Em outras palavras, a laicidade é garantia de Estado republicano e de religiões dignificadas.



Fonte: https://ciclistasemdeus.wordpress.com/

Turquia caminha com rapidez para a teocracia

Aquela que é possivelmente a única república laica do Oriente Médio caminha para ser mais uma das inúmeras "repúblicas" teocráticas. Nesse sentido, reverte a progressista ação desenvolvida desde a década de 1920, a partir da obra de Kemal Ataturk (o "pai da pátria turca") e garantida, sim, pelos militares turcos contra os clérigos.

Fonte: https://global.britannica.com/biography/Kemal-Ataturk

Dois comentários preliminares, de menor envergadura: 
(1) ao contrário do que o autor usa logo no início do artigo, no Brasil, corretamente, não se fala "NATO", mas "OTAN" (Organização do Tratado do Atlântico Norte); 
(2) o regime que se desenha na Turquia não é "inspirado na teocracia", mas é uma teocracia que se implanta aos poucos e cada vez mais.
O original do texto encontra-se disponível aqui.

*   *   *

CONTRAGOLPE DE ESTADO

Governo da Turquia pode criar regime inspirado na teocracia

A Turquia foi o primeiro país com “democracia islâmica” a ingressar na Nato, a aliança militar europeia. Mas democracia, mesmo que islâmica, nunca foi o sonho do presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, que já declarou: “Democracia é um trem do qual você desce quando chega ao destino”. Aparentemente, Erdogan viu na tentativa frustrada de golpe na Turquia o ponto final da democracia.
A pergunta que se faz em todo o mundo, neste momento, é o que Erdogan quer colocar no lugar da “democracia islâmica”. O professor da Universidade de Zaytouneh, Ibraim Alloush, disse à publicação americanaRT que “a intenção de Erdogan é implantar no país uma teocracia islâmica — mesmo que finamente velada”.
Nisso o presidente tem o apoio de seu governo e de seu partido, o AKP, cuja sigla significa Partido da Justiça e do Desenvolvimento. O AKP, com maioria no Congresso turco e que vem ganhando todas as eleições desde 2002, segundo o The Economist, há tempos concede um poder quase autocrático ao chefe do partido, o presidente Erdogan.
“Erdogan e todos os seus aliados no governo e no congresso compõem uma ramificação da Irmandade Muçulmana, uma organização islâmica que se disseminou em todo o mundo árabe depois de ser fundada no Egito. A plataforma dos partidários de Erdogan não é apenas recriar um estado religioso, mas reencarnar o Império Otomano. Assim, ele está usando a tentativa de golpe para executar o golpe real”, ele disse.
A vontade de Erdogan, particularmente, seria instalar no país uma autocracia islâmica, em vez de uma teocracia. Como uma autocracia, ele já concentraria todo o poder em suas mãos, sem correr o risco de que a teocracia islâmica colocasse o poder nas mãos de uma divindade (e de seus sacerdotes), sob a égide do Alcorão ou de tornar a Xaria a lei oficial do país, diz o site Al Monitor.
Porém, é mais fácil se tornar um governo autocrático com uma base de sustentação religiosa, porque o apoio popular brota naturalmente. Assim, para ter apoio popular, ele precisa usar a religião. Porém, só pode fazer isso até um certo ponto, porque, embora o simbolismo religioso exerça uma forte atração no povo turco, a criação de um estado islâmico, baseado no Alcorão, não tem a mesma força.
Uma pesquisa do Pew Research Center, em 2013, para apurar as inclinações políticas do povo turco, revelou que apenas 21% da população gostaria de tornar a Xaria a lei oficial do país. Em contraste, 84% dos paquistaneses e 74% dos egípcios apoiavam a ideia.
A ideia foi testada em abril, quando o presidente do Congresso turco, Ismail Kahraman, declarou que a nova Constituição da Turquia deveria abster-se de mencionar o “secularismo”, um dos princípios em que se sustenta a separação igreja-Estado. E adotar uma “constituição religiosa”, que fizesse referência a Deus.
A declaração gerou controvérsias, protestos em algumas cidades turcas e pedidos para Kahraman renunciar. Uma das críticas foi a de que o AKP finalmente estava mostrando sua “verdadeira cara” e sua “verdadeira intenção”, que seria a de instalar uma teocracia islâmica no país. Como Kahramn é um dos principais aliados do presidente Erdogan, levantou-se suspeitas de que a proposta era parte de um esquema orquestrado pelo governo.
Enquanto maquina o ponto final da democracia e, finalmente, o advento do poder absoluto, Erdogan precisa eliminar alguns entraves. Um dos maiores entraves seria, certamente, o Judiciário, que precisaria ser enfraquecido — e tornar subserviente o que restar dele. Afinal, o Estado de Direito, preservado pelo Judiciário, não combina com qualquer regime autocrático.
Na quarta-feira (20/7), o número de juízes e promotores afastados chegou a 2.745 e mais de cem membros da Corte Constitucional da Turquia (que equivale ao Supremo Tribunal do Brasil) — entre eles dois ministros que tomaram decisões que desagradaram o governo também foram afastados. Além deles, foram suspensos 262 juízes e promotores da Justiça Militar da Turquia.
Com o Executivo e o Legislativo nas mãos e, quem sabe, o Judiciário e com a oposição no mundo acadêmico sendo devastada por afastamentos, o governo turco poderá instalar um regime que se inspira na autocracia, na teocracia ou no islamismo, mas não é nenhum deles. Seria um “erdoganismo” diz o site Al Monitor.
Nesse suposto regime, o islamismo exerceria papéis importantes, como o de angariar apoio popular e facilitar a imposição de “leis” convenientes, mas não seria o elemento preponderante. Se fosse, colocaria a Turquia no mesmo caminho do Irã, da Arábia Saudita e outras organizações do mundo árabe.
O “erdoganismo” se ergueria a exemplo do “putinismo”, diz o site. O jornalista Fareed Zakaria observou que o “putinismo” consiste de cinco fundamentos: religião, nacionalismo, conservadorismo social, capitalismo estatal e controle da mídia governamental. Está na agenda do “putinismo”, sustentado na Igreja Ortodoxa, “proteger cristãos perseguidos em todo o mundo”. A agenda do “erdoganismo”, sustentado no islamismo, seria “proteger muçulmanos perseguidos em todo o mundo”.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2016, 18h35

23 maio 2016

Carlos Esperança: "O Papa Francisco e a laicidade"

Reproduzo abaixo uma postagem feita no blogue Ponte Europa, por Carlos Esperança, no dia 22  de maio de 2016. O título da postagem é O Papa Francisco e a laicidade; sua reprodução deve-se ao fato de ele ser muito, muito interessante e valer tanto a leitura quanto a reflexão.


*   *   *


Em entrevista ao diário católico francês, La Croix, de 17 de maio, o Papa Francisco acusou a França «de exagerar a laicidade».

Na mesma entrevista, defendeu que um Estado não deve ser confessional, reconhecendo a laicidade, mas afirmando que «há um conflito radical entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens».

Pese embora o carácter dialogante do atual pontífice, que tem a santidade por profissão e estado civil, revela uma animosidade mal disfarçada, a assimilação genética do poder temporal que confunde com uma sociedade organizada pela lei de Deus, lei que, por ser divina, é irrevogável e alheia ao sufrágio. No fundo, a lei divina é a mais totalitária das leis. Nem o próprio Deus a pode revogar nem os que lhe são sujeitos a podem contestar.

Em primeiro lugar, o Papa disfarçou mal a azia que a laicidade lhe provoca, ao defini-la exagerada, como se a neutralidade pudesse ter graus, como se pudesse haver abstenções violentas e abstenções suaves.

A laicidade nunca foi obtida sem a repressão política do clero das diversas religiões e, sem ela, não há democracias, há teocracias, as formas mais violentas de ditaduras que ficam à mercê dos funcionários de Deus.

É evidente a existência de «conflito entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens». Basta comparar a Arábia Saudita com a França ou o Vaticano com a Itália. Deus, criado por homens e explorado por profissionais da fé, jamais fez prova de vida, mas pretende que o poder dos homens, não o das mulheres, seja vitalício e, se possível, hereditário.

É, alias, para submeter sociedades secularizadas à vontade de Deus que a Jihad islâmica sacrifica jovens assassinos, que são premiados com uma assoalhada no Paraíso e à razão de 72 virgens per capita.

Sem laicidade, voltaríamos à origem divina do poder e às monarquias absolutas. O Papa católico tem o dever de recordar o passado da sua Igreja e, se não quiser ver a sua, basta olhar para as outras que dominam os aparelhos de Estado e se confundem com eles.

A laicidade não consente adjetivos e jamais será excessiva ou escassa, é neutra. Sem ela não é possível que os Estados democráticos respeitem todos os crentes, descrentes e anti crentes, com absoluta indiferença sobre o que cada um pensa em matéria religiosa.

Felizmente, vivemos numa sociedade organizada pela lei dos homens e é fácil imaginar o pesadelo de uma outra «governada pela lei de Deus», de que há sinistros exemplos.

21 maio 2016

Anúncio do XX Congresso Humanista Internacional (São Paulo, agosto de 2017)

Tema: "Enfrentando desafios à separação entre igreja e estado"
São Paulo, 3 a 6 de agosto de 2017
A Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS) é uma das maiores organizações humanistas da América Latina, com 3500 membros. A LiHS vai sediar o 20º Congresso Humanista Mundial da União Humanista e Ética Internacional (IHEU): ‪#‎WHC2017‬.
O congresso acontecerá no Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo, de 3 a 6 de agosto de 2017.
O WHC2017 será um fórum singular para discutir o humanismo no Brasil e globalmente, cobrindo uma ampla gama de temas. É uma oportunidade de reunir pesquisadores, ativistas e intelectuais que querem discutir a relação entre estados e religiões em todo o mundo.
Andrew Copson, presidente da IHEU, diz que "A IHEU e nossas organizações membros de todo o mundo estamos muito satisfeitos por ir a São Paulo em 2017. No Brasil e em toda a América do Sul há algumas mudanças significativas de atitude em relação à ocorrência da religião e do secularismo. Cada vez mais pessoas se consideram não-religiosas, embora ao mesmo tempo estejamos vendo um endurecimento da religião conservadora e fundamentalista em muitas esferas. O Congresso (Humanista Mundial) é uma chance enormemente importante para humanistas, local e internacionalmente, aprenderem uns com os outros, compartilharem ideias e habilidades, e descobrirem como podemos trabalhar juntos melhor para defendermos os valores do humanismo e os princípios da democracia secular".
Mais detalhes em breve estarão disponíveis no site oficial: 
Também é possível obter informações na página da Associação Ética Humanista Internacional:

20 maio 2016

Ação popular contra passaporte especial para pastor

A notícia abaixo indica que, se o governo tem que se dobrar à mesquinharia política e social de muitas igrejas evangélicas (não todas, é evidente), pelo menos a sociedade civil brasileira não aceita a permanência dessa prática que enxovalha a República e a laicidade do Estado.

O original da notícia abaixo encontra-se aqui.

*   *   *

Ação popular pede cassação de passaporte diplomático a pastor evangélico

Um advogado de São Paulo foi à Justiça Federal pedir que seja suspensa a emissão de passaporte diplomático ao pastor da Assembleia de Deus Samuel Cássio Ferreira. A expedição do documento foi determinada na quarta-feira (18/5) por meio de portaria assinada pelo ministro das Relações Interiores, José Serra (PSDB-SP).
Em ação popular ajuizada nesta quinta-feira (19/5), o advogado Ricardo Amin Abrahão Nacle afirma que a concessão do passaporte diplomático a um pastor evangélico viola a legislação que regulamenta a questão, o Decreto 5.978/2006. Segundo a ação, Ferreira “não exerce função ou missão de interesse do país que possa justificar a concessão do passaporte diplomático e os benefícios dele decorrentes”.
Para conceder o benefício ao pastor, Serra se baseou no parágrafo 3º do artigo 6º do decreto. O artigo 6º faz um rol de autoridades que podem receber o passaporte, e o parágrafo 3º diz que o Itamaraty pode dar o passaporte a quem não estiver na lista “em função do interesse do país”.
A ação popular, no entanto, afirma não ver interesse do país em conceder o documento a um líder religioso, independentemente de qual religião. “Passaporte diplomático não é brinde cuja distribuição opera-se aleatoriamente, ou então, sob a justificativa da genérica e abstrata expressão ‘interesse do país’.”
Nacle, o signatário da ação, reclama ainda do fato de a portaria não ter sido motivada, ela apenas aponta o parágrafo 3º do artigo 6º do decreto, sem mais explicações. “Todos possuem o direito de saber qual razão está a evidenciar a emissão do passaporte diplomático na hipótese do ‘interesse do país’, pena de se abrir mais um campo voltado à transgressão do interesse público”, argumenta.
“A singela expressa ‘interesse do país’, com conteúdo semântico indeterminado, não serve para, sozinha, lastrear o ato administrativo, tampouco cumprir o dever inexorável da motivação”, diz a ação. “Exige-se que a invocação do ‘interesse do país’ ou ‘interesse público’ venha acompanhada das razões concretas capazes de evidenciá-las em cada caso específico.”
Cunha
Outro apontado problema da concessão do passaporte são as ligações do pastor Samuel Ferreira com o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente afastado da Câmara dos Deputados. De acordo com denúncia contra Cunha feita pela Procuradoria-Geral da República, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus foi usada para lavar propina paga ao deputado em 2012.
A denúncia diz que Samuel está no cadastro da Receita Federal como diretor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus e é filho de Abner Ferreira, pastor da Assembleia de Deus Madureira, a que Cunha frequenta.
Segundo a PGR, a igreja está envolvida em um esquema montado pelo deputado para receber propina oriunda do superfaturamento de contratos de compra de sondas para exploração de petróleo na costa da África. Essa narrativa faz parte do dito envolvimento de Eduardo Cunha na operação “lava jato”.
A PGR afirma que, em 2012, Fernando Soares, o Baiano, apontado como lobista do PMDB, procurou o doleiro Julio Camargo para cobrar uma quantia que faltava ser paga a Cunha. Baiano, então, indicou a Camargo que transferisse a quantia à Assembleia de Deus, e que pessoas ligadas à igreja o procurariam para tratar do assunto.
Em agosto de 2012, diz a Procuradoria, a igreja recebeu R$ 125 mil de uma empresa, R$ 125 mil de outra e R$ 250 mil de outra, todas de propriedade de Julio Camargo. E sempre com a rubrica “pagamento a fornecedores”.
O CNPJ que recebeu essas quantias era o da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, que está no nome do pastor Samuel Cassio Ferreira.
Clique aqui para ler a petição inicial da ação.
0011319-17.2016.4.03.6100

13 maio 2016

Ministério da Cultura lança campanha contra intolerância religiosa

Ministério da Cultura lança campanha contra intolerância religiosa

  • 10/05/2016 10h52
  • Brasília
Ana Cristina Campos - Repórter da Agência Brasil

Brasília - O ministro da Cultura, Juca Ferreira lança a campanha Filhos do Brasil, contra a intolerância religiosa (Antonio Cruz/Agência Brasil)
Brasília - O ministro da Cultura, Juca Ferreira, lança a campanha Filhos do Brasil, contra a intolerância religiosaAntonio Cruz/ Agência Brasil

O Ministério da Cultura lançou hoje (10) a campanha Filhos do Brasil. É contra a intolerância religiosa e será divulgada por meio de peças publicitárias a serem veiculadas na televisão e na Internet. A ação é uma iniciativa do Ministério da Cultura (MinC) e da Fundação Cultural Palmares.
Segundo o MinC, Filhos do Brasil, cujo embaixador é o cantor e compositor Arlindo Cruz, é uma campanha que tem como meta valorizar a diversidade religiosa e o respeito ao próximo.
O ministro da Cultura, Juca Ferreira, lembrou os atos de violência contra terreiros de candomblé e casas de umbanda: “Violência física, inclusive. A religião é um caminho para as pessoas se realizarem, terem contato com o divino. O direito à religião ou à falta de religião está previsto na Constituição. As pessoas que praticam a intolerância praticam um ato que não é permitido e é nocivo para a sociedade. É preciso estimular o respeito e coibir essa prática de intolerância.”
Agressividade
De acordo com ministro, a intolerância tem sido mais observada contra religiões de matriz africana. “É muito comum alguns líderes religiosos terem postura agressiva contra o candomblé e a umbanda. O Brasil é um país plural, com uma diversidade cultural enorme. Temos representação de praticamente todas as culturas do mundo. Com essas pessoas chegam suas culturas e religiões e a gente tem que criar um ambiente favorável de convivência pacifica e de respeito”, disse Juca.
Um dos casos que ganhou destaque no ano passado foi o da menina Kailane Campos, de 11 anos, apedrejada na saída de um culto de candomblé em junho, no Rio de Janeiro. Em novembro, um terreiro de candomblé foi incendiado no Núcleo Rural Córrego do Tamanduá, no Paranoá, Distrito Federal. O fogo começou por volta das 5h30 e destruiu o barracão da casa. Cinco pessoas dormiam na casa, mas ninguém ficou ferido.
No mês passado, a imagem do orixá Oxalá, instalada na Praça dos Orixás, foi incendiada de madrugada. Na praça, que fica na área conhecida como "Prainha", no Lago Sul, em Brasília, há mais 15 esculturas que representam orixás do candomblé, que não foram atingidas.
Segundo o ministério, a campanha conta com um hotsite e a população poderá enviar seus próprios vídeos em defesa da liberdade de crença e pela garantia dos direitos previstos na Constituição.
Edição: Kleber Sampaio

19 abril 2016

Credo Positivista, de Marechal Rondon

"Eu Creio:

Que o homem e o mundo são governados por leis naturais.

Que a Ciência integrou o homem ao Universo, alargando a unidade constituída pela mulher, criando, assim, modesta e sublime: simpatia para com todos os seres de quem, como poverello, se sente irmão.

Que a Ciência, estabelecendo a inateidade do amor, como a do egoísmo, deu ao homem a posse de si mesmo. E os meios de se transformar e de se aperfeiçoar.

Que a Ciência, a Arte e a Indústria hão de transformar a Terra em Paraíso, para todos os homens, sem distinção de raças, crenças,: nações – banido os espectros da guerra, da miséria, da moléstia.

Que ao lado das forças egoístas – a serem reduzidas a meios de conservar o indivíduo e a espécie – existem no coração do homem: tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais.

Nas leis da Sociologia, fundada por Augusto Comte, e por que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas: desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade.

Que, sendo, incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor.

Que a ordem material deve ser mantida, sobretudo, por causa das mulheres, a melhor parte de todas as pátrias e das crianças, as pátrias do futuro. 

Que no estado de ansiedade atual, a solução é deixando o pensamento livre como a respiração, promover a Liga Religiosa,: convergindo todos para o Amor, o Bem Comum, postas de lado as divergências que ficarão em cada um como questões de foro íntimo, sem perturbar a esplêndida unidade – que é a verdadeira felicidade".

Teológicos criticam referências a deuses no impedimento de Dilma Rousseff

É motivo de alegria saber que inúmeras instituições teológicas manifestaram-se contra as referências aos deuses na votação do impedimento de Dilma Rousseff: é importante afirmar e fortalecer o Estado laico.

O original da matéria abaixo pode ser lido aqui.

*   *   *

Religiosos criticam citações a Deus na sessão da Câmara que votou impeachment

  • 19/04/2016 06h37
  • Brasília
Isabela Vieira* - Repórter da Agência Brasil
As referências à religião e a Deus nos discursos de parte dos deputados que decidiram, no domingo (17), pela abertura de processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff incomodaram religiosos. Em defesa da separação entre a fé e a representação política, líderes de várias entidades criticaram as citações e disseram que os posicionamentos violam o Estado laico.
Durante a justificativa de voto, os parlamentares usaram a palavra “Deus” 59 vezes, quase o mesmo número de vezes que a palavra “corrupção”, citada 65 vezes. Menções aos evangélicos aparecem dez vezes, enquanto a palavra “família” surgiu 136, de acordo com a transcrição dos discursos, no site da Câmara dos Deputados. Ao votar, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse: “Que Deus tenha misericórdia desta Nação”. O apelo foi feito também por Cunha ao abrir a sessão: “Que Deus esteja protegendo esta Nação”.
Para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), composto pelas igrejas Evangélica de Confissão Luterana, Episcopal Anglicana do Brasil, Metodista e Católica, que havia se manifestado contra o impeachment, assim como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ligada à Igreja Católica, as menções não surpreenderam. A presidenta da entidade, a pastora Romi Bencke, disse que as citações distorcem o sentido das religiões. “Não concordamos com essa relação complexa e complicada entre religião e política representativa”, afirmou.
Segundo Romi, uma das preocupações dos cristãos é com o uso da religião para justificar posicionamento em questões controversas. A fé, esclareceu, pode contribuir, com uma cultura de paz, com a promoção do diálogo e com o fortalecimento das diversidades. Porém, advertiu, “tem uma faceta de perpetuar violência”, quando descontextualizada. “Infelizmente, vimos que os parlamentares que se pronunciaram em nome de Deus, ao longo do mandato, se manifestam contra mulheres, defendem a agenda do agronegócio e assim por diante. Nos preocupa bastante o fato de Deus ser invocado na defesa de pautas conservadoras – é ruim adjetivar, mas é a primeira palavra que me ocorre – e de serem colocadas citações bíblicas descontextualizadas. Não aceitamos isso e eu acho que é urgente refletir sobre o papel da religião na sociedade”.
O teólogo Leonardo Boff, que já foi sacerdote da Igreja Católica, expoente da Teologia da Libertação no Brasil e hoje é escritor, também criticou o discurso religioso dos parlamentares que, na sua opinião, colocaram em segundo plano os motivos para o pedido de impeachment, as pedaladas fiscais e a abertura de créditos suplementares pelo governo de Dilma
Golpe de 64
Em seu blog na internet, Boff disse que os argumentos apresentados se assemelharam aos da campanha da sociedade que culminou com o golpe militar em 1964, quando as marchas da religião, da família e de Deus contra a corrupção surgiram. Ele destacou o papel de parlamentares da bancada evangélica que usaram o nome de Deus inadequadamente.
“Dezenas de parlamentares da bancada evangélica fizeram claramente discursos de tom religioso e invocando o nome de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão”, afirmou. O teólogo também criticou aqueles que citaram suas famílias.
O Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, entidade que reúne representantes de várias religiões, o babalawó Ivanir dos Santos, comentou que os deputados transformaram o que deveria ser uma decisão política, neutra, em um ato messiânico. “As pessoas têm tentado fazer uma atuação messiânica, voltada a uma orientação religiosa, que não leva em conta a diversidade da sociedade, ao justificar ações no Congresso Nacional”, disse.
Ele alertou para os riscos de as convicções morais e religiosas, na política, serem usadas para atacar religiões com menos fiéis, como é o caso do candomblé e da umbanda.
“Parte das pessoas que falaram em Deus e religião, e que agora ganham mais força, persegue religiões de matriz africana”, denunciou. “A nossa preocupação é com as casas irresponsavelmente associadas ao diabo e incendiadas, as de candomblé, e com a educação sobre a África e a cultura afro-brasileira, onde dizem que queremos ensinar macumba”.
Budistas
Os budistas acreditam que os deputados misturaram religião e interesses particulares. O líder do Templo Hoshoji, no Rio, o monge Jyunsho Yoshikawa, se disse incomodado e lembrou que os representantes deveriam ter mais cuidado. “Não foi agradável ouvir os discursos em nome de Deus, como se representassem Deus e como se Deus estivesse falando ou decidindo”, advertiu. “Religião e política não se misturam. Política envolve interesses pessoais”.
O monge afirmou que, como seres humanos, os políticos são “imperfeitos”, e lamentou que o Congresso seja uma pequena mostra disso .“É preciso olhar no espelho. Tudo que vimos é o que a sociedade é. Se teve citação despropositada de Deus, um xingando o outro de 'bicha', se teve cusparada ou defesa do regime militar é porque nossa sociedade é assim. Não adianta querer melhorar a política se nós não buscamos nos tornar pessoas melhores”, disse Jyunsho, em relação ao episódio em que o deputado Jean Willys (PSOL) cuspiu em Jair Bolsonaro (PP).
Da mesma forma pensam ateus e agnósticos, aqueles que não acreditam em Deus ou qualquer outra divindade. O presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Daniel Sottomaior, também questionou a postura de deputados, evangélicos principalmente. Para ele, a falta de compreensão sobre um Estado Laico, neutro, fere a liberdade da população.
Discordando dos demais religiosos, o Conselho Político da Convenção Geral das Assembleia de Deus no Brasil viu nos discursos uma demonstração de “insatisfação” com ideias liberais. “Existe um grupo que luta para manter tradição, costumes, a fé em Deus, entre eles, os evangélicos, que tem como base principal, na sua vida e na sua atuação política, a palavra de Deus. Essas manifestações traduziram isso”, disse o presidente da entidade, pastor Lelis Washington.
Os evangélicos que estão no Congresso, explicou, estão comprometidos em evitar o avanço de leis que violem a liberdade de culto e de tradição. “Eu já vi tentativa de colocar em lei [relativa ao] meio ambiente a tese da união de pessoas do mesmo sexo, então, o que acontece, conceitualmente, é que os deputados que se manifestaram contra isso também.”


*Colaborou Nanna Pôssa, repórter do Radiojornalismo   //   A matéria foi ampliada às 11h16
Edição: Graça Adjuto

09 abril 2016

Entrevista sobre a crise política II

Mais uma entrevista que concedi a respeito da crise política por que passa o Brasil.

Ela foi publicada no jornal carioca Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

*   *   *


Impeachment seria ambíguo para o PT

 “A aceitação do pedido de impeachment por Eduardo Cunha ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável.” A declaração é do sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política e pós-doutor em Teoria Política também pela Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ele, entretanto, se Dilma não sair, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso. Além disso, Gustavo diz que PSDB e DEM não terão grande ganho com pensam com destituição de Dilma: “Se há algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.”

Gustavo Biscaia diz ainda que “uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente”. Em entrevista exclusiva ao MONITOR MERCANTIL, o sociólogo comenta vários assuntos referentes ao cenário político atual, como, por exemplo, a imagem do Lula, o Bolsa Família, as “elites reacionárias” e, é claro, o impedimento de Dilma.


Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, como fica a divisão de forças em Brasília?

– Desde já se percebe uma polarização muito marcada no Brasil como um todo; nesse sentido, Brasília simplesmente reproduz, em escala menor mas mais acentuada, o que se passa no resto do Brasil. Embora esteja longe de ser algo banal (devido aos efeitos que pode acarretar para o país), o pedido de impedimento de um presidente, por si só, não apresenta grande novidade: nos anos 90 o PT pediu várias vezes o impeachment de FHC. O que há de específico no presente caso é que o presidente da Câmara dos Deputados aceitou considerar o pedido contra Dilma; é verdade que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tomou essa decisão devido a motivos muito particulares (e mesquinhos), mas, por outro lado, convém notar que no final de 2014 a própria eleição de Cunha para presidente da Câmara já revelava uma divisão de forças em Brasília – divisão aliás desfavorável para Dilma, causada especificamente pela própria presidente. O impeachment acentuará alguns traços atuais da política brasileira, no sentido de que vários setores ficarão mais e mais polarizados – especificamente o PT e grupos ligados a ele. Por outro lado, o novo governo fará um grande esforço para aparecer como de união nacional, o que implica que tentará não ser radical nem polarizar.

O PT vai sentir os reflexos na próxima eleição presidencial?

– Sem dúvida alguma, mas, no fundo, o impedimento de Dilma, caso tenha êxito, será ambíguo para o PT, já a partir das eleições deste ano: por um lado, permitirá que o partido adote a retórica do “golpe”, das “elites reacionárias”, do “capitalismo internacional”, do “neoliberalismo”, ou seja, permitirá ao PT retomar a sua tradicional retórica oposicionista, a que se somará a partir deste ano a figura do “golpe”. Os movimentos sociais que sempre deram apoio ao PT foram sistematicamente cooptados pelo partido ao longo dos últimos 15 anos, por meio de generosos auxílios, além da participação direta na estrutura do Estado; tais grupos continuarão a apoiar o PT, seja devido a seus interesses corporativistas, seja devido a afinidades ideológicas, seja devido à confusão entre os dois fatores; mas, por outro lado, o fato é que a própria ocorrência do impedimento evidencia um desgaste muito grande do partido, isto é, da imagem que o PT possui junto aos vários segmentos da sociedade. Historicamente a taxa de rejeição ao PT sempre foi relativamente alta, em torno de 30%; Lula ganhou sua primeira eleição em 2001 porque, naquele momento, ele abandonou a sua tradicional retórica radical e, ao mesmo tempo, a taxa de rejeição ao PSDB e à imagem que esse partido possui aumentou muito. Mas desde 2013 a rejeição ao PT, ao governo de modo geral e a Dilma aumentaram muito, especialmente depois das eleições de 2014, em que a polarização aumentou e que o governo praticou um estelionato eleitoral (ao praticar exatamente as mesmas políticas que condenara nos seus adversários e que jurara que jamais faria). A crise econômica e as investigações da Lava Jato aumentam ainda mais essa insatisfação.

Em sua opinião, como fica o nome do ex-presidente Lula na história do país?

– Depende de quem pronuncia o seu nome. Indiscutivelmente ele foi um dos maiores líderes do país e suas eleições para presidente indicam um forte desejo da população brasileira de mudar alguns rumos do país, no sentido de promover a inclusão social. Sem embargo do seu caráter de grande líder, à medida que o tempo passa, isto é, à medida que se adota uma perspectiva histórica, de longo prazo, percebe-se que Lula falhou, quando não fracassou, em uma série de aspectos da vida nacional. A política econômica que seguiu teve efeitos positivos imediatos, mas também se beneficiou de um ambiente internacional extremamente favorável (alta do preço das commodities, taxas internacionais de juros reduzidas): ainda assim, a despeito dos vários anos de crescimento econômico, não ocorreram investimentos efetivos na infraestrutura econômica do país (limitados à “privatização” de determinados setores, na forma de concessão, como alguns aeroportos, rodovias etc.), nem se reverteu a desindustrialização nacional (bem ao contrário: investimos maciçamente nos setores primários e exportadores, transferindo a dependência em relação aos EUA para a China). Com Lula investiu-se em novas parcerias internacionais, mas, no final, essa multilateralização consistiu muito mais em trocar os antigos parceiros comerciais por outros que em ampliar o nosso leque. De passagem, convém notar que na década de 2000 tornamo-nos um dos principais propulsores da “globalização”. O Mercosul, nesse período, ficou travado em suas negociações comerciais, preso às restrições que o bloco impõe, aceitando as reiteradas violações comerciais praticadas pela Argentina e ainda nos sujeitando às diatribes da Venezuela de Hugo Chávez. Enquanto isso, o acordo comercial com a União Europeia não saiu do papel, mas outros países (Chile, México) avançaram muito em termos de comércio internacional. No que se refere à política internacional, embora tenha mantido relações amigáveis com os EUA, o fato é que o Brasil preferiu apoiar a aventura do bolivarianismo e vangloriou-se de celebrar um duvidoso e desnecessário acordo nuclear com o Irã.

Ainda no que se refere à política internacional, em 2007-2008 Lula apoiou pessoalmente a celebração do acordo do Brasil com o Vaticano – a Concordata – seguida pela aprovação do acordo no Congresso Nacional. A Concordata é uma violação clara e brutal da laicidade do Estado, ao conceder um caráter internacional para os numerosos privilégios que a Igreja Católica possui junto ao Estado brasileiro. Também é importante notar que Dilma Rousseff foi eleita e reeleita graças à indicação e ao apoio pessoais de Lula e sempre se apresentou como fiador político e moral de sua sucessora: nesse sentido, ele tem responsabilidade pelos destinos do país após 2010.

Mesmo em termos de políticas sociais, a atuação de Lula é menor do que ele afirma. Sem dúvida alguma, o Bolsa Família é um projeto importante, que encaminha alguns problemas brasileiros. Mas, por um lado, o Bolsa Família surgiu após o fiasco do Fome Zero e a partir da reunião e ampliação de uma série de políticas existentes pelo menos desde os anos 1990. Por outro lado, o Bolsa Família prevê dois aspectos, um paliativo e outro “prospectivo””: a parte paliativa é a mais visível e a mais criticada (incorreta e injustamente, é importante indicar), que é a do pagamento de valores financeiros para famílias de baixíssima renda; a parte “prospectiva” é a do investimento em infraestrutura e em recursos humanos, para combater a transmissão intergeracional da pobreza. A obrigatoriedade de as mães que recebem o Bolsa Família de mandarem os filhos para as escolas é algo importante, mas a falta de investimentos em infraestrutura e a má gestão econômica minam completamente esse lado da política. Dito tudo isso, é necessário lembrar que desde já há uma disputa sobre qual seria o “legado de Lula”. Essa disputa verifica-se na atual conjuntura de impedimento de Dilma Rousseff, mas é mais claramente visível, por exemplo, em livros escolares de História: muitos desses livros, que têm que passar pela chancela do MEC, são louvaminheiros em relação a Lula e, não por acaso, assumem o discurso político-partidário contra FHC, de maneira dicotômica.

Esse impeachment vai refletir no pleito municipal?

– O efeito imediato – que é o que se sentirá nas eleições municipais – é a radicalização dos discursos políticos, a favor e contra o PT, ou “contra o golpe” e “contra a corrupção”. De qualquer maneira, o PT já se encontra bastante enfraquecido e a tendência é que tenha resultados bastante minguados no final deste ano.

PSDB e DEM vão sair fortalecidos, caso a destituição de Dilma se concretize?

– Não me parece que nenhum desses dois partidos terá um grande ganho com o impedimento de Dilma. Há muitos anos o DEM está enfraquecendo-se paulatinamente, com seus quadros migrando para outros partidos, sejam eles estabelecidos ou novos (PSD, Solidariedade, Partido Novo etc.). Já o PSDB deve ter algum ganho com o impeachment. Por um lado, ele é o principal partido de oposição e é natural que assuma cargos em um eventual governo Michel Temer; por outro, esse mesmo eventual Governo Temer precisará de uma “base de apoio” e, nesse caso, o PSDB será importante. Ainda assim, o PSDB não lucrará tanto quanto se poderia pensar à primeira vista. O PT sofre um enorme desgaste por sua própria conta, mas isso integra um movimento mais amplo de perda geral de legitimidade dos políticos, vistos como corruptos, preocupados apenas com os próprios interesses, despreocupados com o bem-estar da população etc. Além disso, vários nomes de peso do PSDB, a começar por Aécio Neves e Geraldo Alckmin, têm sido ligados a esquemas de corrupção e/ou de comportamento antiético (consumo de cocaína, máfia dos trens de metrô etc.). Assim, se houver algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.

Em sua opinião há uma polarização política no país atualmente?

– Isso vem desde o início do Governo Lula, em 2002, por seu estímulo direto, que gostava de falar em “elites brancas”, “nunca antes na história deste país” etc. e que nunca deixou de comparar o seu governo com o de FHC. Mas durante os governos de Lula, essa retórica da divisão permaneceu no âmbito retórico; nas eleições presidenciais de 2010, a polarização apresentou-se de maneira clara, pois o candidato do PT já não era o mítico Lula e, por seu turno, o candidato do PSDB, José Serra, introduziu temas altamente sensíveis, com o objetivo de minar a candidatura de Dilma Rousseff: foram os temas do kit gay, tema sensível para os evangélicos, que, além disso, teve o nefasto efeito de minar a laicidade do Estado. Em 2013, a insatisfação popular com os políticos e com os serviços públicos resultou nas “jornadas de julho”. O governo, por ser governo, foi imediatamente criticado e perdeu apoio popular; a isso se soma a desastrosa reação de inúmeros políticos intelectuais ligados ou próximos ao PT, para quem as “jornadas de julho” eram manifestação de um (re)nascente fascismo brasileiro. Para piorar, no final desse ano divulgou-se a prática de maquiar o orçamento federal, a fim de disfarçar o déficit público.

Em 2014, a fraqueza do PT, de Dilma e até de Lula refletiram-se no fato de que Dilma somente foi reeleita no segundo turno e por uma ínfima diferença de votos. Também convém lembrar que parte da polarização de 2014 deve-se aos quase desesperados esforços de Dilma e do PT para “desconstruir” a candidatura de Marina Silva, que ganhou projeção graças a um acidente fatal e que era vista como uma possibilidade de “renovação na continuidade” da política brasileira. Nos meses seguintes às eleições, PSDB e Aécio propuseram algumas teses que, naquele momento, eram no mínimo discutíveis: impedimento imediato de Dilma Rousseff, novas eleições, cassação da chapa Dilma–Temer. Isso manteve o ambiente tenso. Mas, de qualquer maneira, o estelionato eleitoral de Dilma logo reacendeu as paixões, a que se somaram o avanço das investigações da Operação Lava Jato e os problemas das “pedaladas fiscais”.

Segundo alguns deputados da base do governo, caso Dilma seja destituída ou renuncie o PT pode ou não sair do mapa político do país?

– O PT não sairá do mapa político do país, simplesmente porque é um partido legal e legítimo. Ele tem força em várias partes do país e, de qualquer maneira, mantém uma estrutura partidária importante, com governadores, senadores, deputados, vereadores, prefeitos eleitos, com apoio de movimentos sociais e também de intelectuais e estudantes. Isso não equivale a dizer que o PT manterá a mesma importância atual: é um partido que tende a diminuir fortemente, embora isso possa demorar mais ou menos tempo. Da mesma forma, ele atualmente tem um sério problema de identidade (na verdade, sempre teve): não sabe se é governo ou se é socialista, se é renovação ou se é continuidade das práticas político-sociais brasileiras. A crítica que deputados e movimentos sociais ligados ao PT fazem à política econômica de Dilma Rousseff desde as eleições de 2014 – combatendo o necessário ajuste fiscal que o governo do próprio PT teria que implementar – revela o quanto o partido está confuso.

Alguns petistas estão comparando o atual momento político com o que o Jango passou em 1964; já linhas bem mais à esquerda, como o Partidão, não veem semelhança e dizem que a situação é outra. Em sua opinião, há ou não?

– A retórica do golpe é claramente exagero e pura retórica. O problema é que a retórica produz efeitos concretos na política, especialmente em momentos de grande tensão, como atualmente. Mas é necessário reconhecer que a comparação com 1964 – certa ou errada – acaba sendo inevitável: em 1964 a sociedade brasileira dividia-se em termos de direita e esquerda, em termos de anticomunismo e pró-comunismo; a isso se somava o caráter que as Forças Armadas de modo geral, e do Exército em particular, tinham de “Poder Moderador” da República. Nada disso se verifica hoje, a despeito dos rompantes anticapitalistas da extrema esquerda e dos desejos de intervenção militar da recém-surgida extrema direita. As manifestações atualmente são contra o PT, sem dúvida; mas são majoritariamente contra o PT porque se entende que esse partido não entregou o que prometeu em termos de progresso político e social e, ao contrário, produziu crise econômica e gigantescos escândalos políticos. Em suma, as manifestações atuais, em última análise, são mais contra a corrupção e contra um sistema político que se vê fortemente deslegitimado que contra uma proposta mais abstrata de sistema social e político.

Essa crise política pode dividir o país, uma vez que o ex-presidente Lula já deu declaração dizendo que pode convocar o “exército de Stédile” (MST) para proteger o PT e a Dilma?

– As chances de isso ocorrer são um tanto remotas, mas não podem ser desprezadas. Quais as variáveis importantes para evitar uma conflagração geral? Que os extremos políticos sejam controlados e permaneçam sob controle. No caso específico da declaração de Lula, ela foi, no mínimo, irresponsável. É claro que sempre é possível dizer que foi uma frase dita em um momento de arroubo, ou que ela deve(ria) ser entendida de maneira figurada etc. O problema é que Lula é uma pessoa que não faz a menor questão de controlar seus arroubos retóricos, ao mesmo tempo em que esse tipo de afirmação pode ser entendida de maneira literal por muitos grupos, resultando em problemas sociais mais adiante.

Então, essa declaração coloca mais lenha na fogueira ou é só uma figura de retórica?

– O Brasil precisa de apaziguamento, não de aumento das tensões – que, diga-se de passagem, são tensões que não se referem a clivagens profundas da sociedade brasileira, como ocorreu em outros momentos da nossa história.

Há possibilidade de o país viver uma ditadura? Ou sua primeira guerra civil? Ou guerra civil e ditadura no final?

– Antes de mais nada, é necessário notar que o Brasil já viveu guerras civis antes: a Revolução Farroupilha (1835-1845), as Revoltas da Armada e a Revolução Federalista (1892-1894), a Guerra de Canudos (1896-1897) e Revolução Constitucionalista (1932). No que se refere a uma ditadura, parece-me improvável. Como comentei antes, deixando de lado os grupos extremistas à esquerda e, principalmente, à direita, ninguém defende o fim da ordem constitucional vigente nem a interrupção das liberdades públicas; bem ao contrário, as manifestações que se vê baseiam-se nessas liberdades e celebram-nas. Uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente. As conclamações ao “exército do Stédile”, as reiteradas afirmações dos apoiadores do PT de que o processo de impedimento é “golpe” e manifestações desse tipo estimulam a polarização política do país; essa polarização, por sua vez, se se mantiver ao longo do tempo, pode cristalizar-se e aumentar ainda mais, resultando em conflitos físicos de grandes proporções entre os grupos opostos.

Se nada disso se concretizar e Dilma não sair do governo, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso?

– Infelizmente, não. É bem verdade que a aceitação do pedido de impedimento pelo presidente da Câmara ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável ao impedimento, Dilma já se mostrou incapaz de dirigir o seu governo e de negociar com o Congresso e uma parte expressiva, para não dizer a maior parte, dos atuais deputados federais já demonstrou uma grande venalidade no trato da coisa pública e do Estado brasileiro. Não que um eventual Governo Temer vá enfrentar uma situação muito diferente, ainda que a saída de Dilma via impedimento (ou renúncia) teria um efeito catártico na maior parte da população brasileira, a que se somaria um esforço de Michel Temer para constituir um governo de união nacional e de transição até 2018.


Marcelo Bernardes