Mostrando postagens com marcador república. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador república. Mostrar todas as postagens

18 novembro 2022

Crítica à República e desistência de uma utopia libertária, inclusiva e progressista

A República foi proclamada em 1899, tendo amplo apoio popular e de intelectuais. Nos anos seguintes à proclamação, muitos desses intelectuais republicanos passaram a desiludir-se com o novo regime político, pois esperavam mudanças sociais, políticas, econômicas imediatas. As mudanças sociais, como sabemos, são lentas por si sós; a implantação da República teve suas próprias dificuldades e, por fim, de fato muitas mudanças necessárias e desejadas acabaram não sendo implantadas.

A partir de então, esses intelectuais desiludidos passaram a criticar os limites, as falhas e as promessas não cumpridas da República.

O problema é que nessas críticas esses intelectuais - antigos entusiastas do republicanismo - passaram a abandonar moral, intelectual e politicamente a República. Ou seja, em vez de persistirem no projeto, em vez de cobrarem a realização das promessas e das necessidades sociais, eles passaram a deixá-lo de lado. Nessa toada associaram-se aos críticos novos intelectuais, que, por sua vez, tinham cada vez menos compromisso com o republicanismo e, em particular, com a defesa das liberdades.

Assim, esse abandono do projeto republicano, da parte dos intelectuais antigos entusiastas da República (e mesmo da parte de alguns novos intelectuais), teve pelo três ou quatro resultados, não necessariamente mutuamente excludentes:

(1) abriram espaço para a irresponsabilidade social, política e econômica das elites brasileiras;

(2) abriram espaço para a posterior rejeição da República, que acabou realizando-se na forma da Revolução de 1930, e, em particular, para os autoritarismos "puros" e/ou os autoritarismos que tendiam para os totalitarismos, próprios ao Brasil entre 1935 e 1945;

(3) permitiram que a memória da monarquia - tão corretamente criticada nas décadas de 1870 e 1880 (escravidão, castas, degradação do trabalho, filhotismo, igreja oficial, centralização autoritária, imperialismo internacional etc.) - fosse reabilitada, como se os inúmeros e profundos defeitos morais, intelectuais, sociais e políticos da monarquia nunca tivessem ocorrido e como se república não tivesse sido de fato um progresso necessário, com ou sem promessas não cumpridas;

(4) a transmutação, explícita ou implícita, de alguns desses intelectuais republicanos em defensores da monarquia;

(5) uma combinação variada desses aspectos todos.

Ora, bem vistas as coisas, a desistência do projeto republicano da parte desses intelectuais foi um enorme erro. Até então e desde o século XVIII, na história do Brasil o republicanismo era um ideal em si mesmo, uma concepção densa a concentrar, estimular e orientar os esforços morais, intelectuais, políticos, sociais - em outras palavras, o republicanismo era própria e verdadeiramente uma utopia.

Desde então, o Brasil ficou órfão dessa utopia. A muito custo, o republicanismo foi substituído pela "democracia"; mas, como se sabe, tal substituição foi demorada; mas, como não se sabe, a democracia é um substituto muito, muito imperfeito e inadequado para o republicanismo, na medida em que ela (a democracia) é o governo do povo, o que pode ser entendido como "massas", quer sejam as massas que nunca erram ("a voz do povo é a voz de deus", como poderia ser subscrito por Rousseau), quer sejam as massas de indivíduos justapostos (como pode ser subscrito pelos liberais). Quando se estuda a "democracia" de um ponto de vista da teoria política, levando em consideração o republicanismo, torna-se bastante evidente que ela, a democracia, só se torna um regime de liberdades com conteúdo social quando na verdade ela é apenas um nome que corporifica de fato e no fundo a República.

Desde os anos 1930, essa desistência do republicanismo da parte dos intelectuais antigos republicanos é estudada na academia como "crítica à república" e/ou como "crítica ao liberalismo", não como desistência do republicanismo. Em outras palavras, o enfoque básico nesses estudos é o da crítica social e, curiosamente, de um forte mas implícito "evolucionismo", em que nada do que veio antes dos "estudiosos contemporâneos" presta (e, em particular, nada do que veio antes da "democracia", presta); com isso, a história política, social e intelectual está sempre, perpetuamente, recomeçando. Aliás, como já indicamos, além desse curioso evolucionismo anti-histórico, tabula rasa, uma outra consequência dessa perspectiva é a revalorização da monarquia - em que se passa água sanitária sobre todos os sérios, inúmeros e profundos problemas da monarquia e em que esta passa a ser vista como um modelo de virtudes intelectuais, morais, sociais, políticas e econômicas.

Um representante perfeito dessa mentalidade tabula rasa é o famoso (mas, como é fácil de perceber, exageradamente celebrado) sociólogo Florestan Fernandes; antes dele, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda fez a mesma coisa (Sérgio Buarque tem o grave defeito adicional de repetir o preconceito anti-ibérico, ou antiportuguês, que considera que só os anglossaxões prestam e que os ibéricos são burros, preguiçosos, autoritários etc.).

Uma outra maneira de entender a perspectiva academicista básica para estudo dos intelectuais antigos republicanos é a seguinte: desiste-se do republicanismo e desiste-se da utopia republicana; mas, mais importante que isso, também se desiste de entender a desilusão dos intelectuais antigos republicanos como uma etapa de aprendizado intelectual, moral e político, em termos coletivos e históricos da realidade brasileira. Ou seja, desiste-se de entender que a desilusão desses intelectuais era correta e compreensível em um certo sentido; mas que eles erraram profundamente em passar da desilusão para a desistência do projeto republicano e, daí, que eles erraram em deixar o Brasil órfão da utopia republicana e de seu denso conteúdo social e libertário. (De passagem: na França e em Portugal não se cometeu esse erro; não por acaso, o republicanismo nesses países tem um conteúdo denso, ou seja, é uma utopia atual, verdadeira, pulsante.)

Em suma: lamentavelmente, apesar de si mesmos, os intelectuais antigos republicanos erraram - e nós insistimos em não aprender com esse erro.

Uma última observação. Muitos intelectuais antigos republicanos desiludiram-se com a república e acabaram desistindo do projeto republicano; essa perspectiva - a desilução-com-desistência - é a perspectiva-padrão das análises academicistas atuais: é o que argumentei até agora. Se a atuação dos intelectuais desiludidos-desistentes oferece a perspectiva atualmente celebrada e vista como correta, o resultado é que aqueles intelectuais que persistiram no republicanismo, que persistiram valorizando a República e sua utopia, passam a ser vistos como intelectuais alienados, tolos, idealistas, desconectados da realidade - ou, ainda pior, como defensores implícitos ou explícitos da exclusão social, do elitismo, das oligarquias etc. Ora, como os positivistas foram alguns, se não verdadeiramente os únicos, intelectuais organizados e públicos a defender a República e o republicanismo, naturalmente recaem sobre eles todos esses adjetivos negativos que acabamos de enumerar. Aí se evidencia um dos motivos do ridículo com que os academicistas gostam de apresentar os positivistas: não tem nada a ver com as propostas e os comportamentos efetivos dos positivistas, mas com preconceito, com recusa de aprender com a história e com a recusa em persistir em projetos sociais, libertários, inclusivos e progressistas.

26 outubro 2022

A bandeira nacional republicana não é fascista

Em face da presente situação social e política por que atravessa o Brasil - e, na verdade, bem vistas as coisas, o Ocidente de modo geral -, consideramos que não podemos omitir-nos; assim, elaboramos uma declaração, convertida em abaixo-assinado.

O abaixo-assinado está disponível aqui: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.

*   *   *

A bandeira nacional republicana não é fascista

Os abaixo-assinados – quer sejam positivistas, quer não sejam positivistas; reconhecendo e respeitando os valores e princípios subjacentes aos símbolos nacionais brasileiros, em particular a bandeira nacional republicana; reconhecendo a dramática situação política, social, intelectual e econômica vivida pelo Brasil no ano de 2022; considerando a apropriação cada vez mais reiterada dos símbolos nacionais por grupos sociais e políticos particularistas, violentos e intolerantes – têm a dizer o seguinte.

1. Os valores da bandeira nacional

A bandeira republicana brasileira foi instituída como símbolo nacional em 19 de novembro de 1889, quatro dias após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Ela foi elaborada por Raimundo Teixeira Mendes a partir das indicações precisas do fundador da Sociologia, do Positivismo e da Religião da Humanidade, Augusto Comte.

Símbolo nacional maior por excelência, ela une de maneira simples, elegante e harmônica o desenvolvimento histórico e a continuidade social, ao manter o fundo verde e amarelo da bandeira monárquica e ao inserir a esfera estrelada azul e a divisa política “Ordem e Progresso”, próprias à evolução republicana do país. Assim, essa bandeira segue a inspiração de “preservar melhorando”, de acordo com as leis da sociologia dinâmica descobertas por Augusto Comte.

A frase “Ordem e Progresso” representa o ideal de unir indissoluvelmente duas perspectivas políticas até então opostas, o respeito à ordem e a necessidade de progresso. Separadas, cada uma dessas perspectivas torna-se antagônica em relação à outra, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância.

Em particular, o respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante. Nada disso é liberdade ou cidadania, mas autoritarismo, militarismo e submissão abjeta.

2. A política positiva

A bandeira nacional republicana, bem como a divisa “Ordem e Progresso”, inspiram-se e representam os conceitos da política positiva; estes, por sua vez, podem ser sumariados como seguem:

-        subordinação da política à moral: subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade; subordinação das perspectivas específicas e particulares às concepções gerais e mais amplas; primado da publicidade e da racionalidade na vida coletiva, em particular nas ações com resultados públicos; afirmação dos deveres sociais, em particular responsabilizando claramente os fortes, os poderosos e os ricos por suas ações e omissões;

-        separação entre os poderes Temporal e Espiritual: rejeição de todo e qualquer clericalismo (teológico, metafísico e científico); rejeição do uso do Estado para promoção ou repressão de crenças, exceto no caso em que elas estimulem e/ou provoquem a violência; rejeição da eleição ou da indicação de sacerdotes para cargos públicos; defesa das liberdades de pensamento, de expressão e de associação;

-        pacifismo: rejeição de toda e qualquer violência na política (seja do Estado contra os cidadãos, seja dos cidadãos entre si), em particular na forma das agressões de policiais contra cidadãos; rejeição da atuação de militares e policiais na política; possibilidade de manifestar livremente as idéias e as concepções pessoais sem correr nenhum risco (físico e/ou profissional) por isso;

-        relativismo: prática da tolerância para com as diferentes crenças e religiões; respeito e proteção às comunidades indígenas; condenação de toda prática violenta na vida social.

3. Os fascistas contra o Positivismo

Desde pelo menos 2019, grupos fascistas e de extrema-direita têm manifestado a pretensão de tomar exclusivamente para si, de maneira sectária, a bandeira nacional republicana, incluindo aí o “Ordem e Progresso”. Diversas manifestações desses mesmos grupos evidenciam, entretanto, não somente que eles afastam-se dos ideais expressos na bandeira nacional republicana e no “Ordem e Progresso” como, ainda mais, são opostos e desprezam esses valores.

Assim, por exemplo, o mote do atual governo federal, que resume o programa fascista, é “Brasil acima de tudo e deus acima de todos”. Essa única frase rejeita ao mesmo tempo os princípios (1) da subordinação de todas as pátrias aos supremos interesses da Humanidade e (2) da separação dos poderes Temporal e Espiritual; inversamente, ela (1) estabelece como parâmetro de conduta o nacionalismo mais estreito e (2) estabelece a imposição oficial de doutrina teológica. Se isso não bastasse, o verso “Brasil acima de tudo” não por acaso retoma a frase empregada pelo regime nazista, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles).

Da mesma forma, não podemos esquecer as reiteradas manifestações de profundo ódio e preconceito político desses grupos contra o Positivismo, com o que mais uma vez evidenciam que desprezam os valores da bandeira nacional e o “Ordem e Progresso”:

-        “Os positivistas são lixo que necessitam ser expurgados” (Carlos Bolsonaro, 8/3/2020)

-        “Os positivistas são o pior câncer do Brasil” (Carla Zambelli, 5/7/2020)

-        “Enquanto a gente não resolver o positivismo, a gente não consegue desmontar o comunismo, socialismo, a esquerda no Brasil” (Abraham Weintraub, 27/6/2022).

4. Declaração final

Os valores, os ideais, as concepções subjacentes à totalidade da bandeira nacional republicana, incluindo aí a divisa “Ordem e Progresso”, condensam os melhores e mais altos princípios da política moderna. Todos esses princípios são profundamente estranhos à filosofia e à prática do fascismo. Mais do que isso: como se sabe, o fascismo baseia-se no estímulo sistemático e no uso político da violência; na militarização e na “policialização” da sociedade; na imposição de crenças pelo Estado e na busca de supressão das crenças não oficiais; no nacionalismo extremado, na xenofobia, na intolerância.

É em virtude de todos esses motivos que afirmamos sem medo de errar:

A BANDEIRA NACIONAL REPUBLICANA NÃO É FASCISTA!

02 maio 2022

Revista Mediações: "Teoria política histórica: o republicanismo comtiano"

A revista Mediações, da Universidade Estadual de Londrina, em seu v. 27, n. 1, de janeiro-abril de 2022, publicou o artigo "Uma teoria política histórica: o republicanismo comtiano".

Esse artigo divide-se em duas partes: na primeira expõem-se os elementos do pensamento comtiano, ou melhor, do Positivismo que configuram a sua historicidade e o seu historicismo; na segunda parte expõem-se elementos do seu pensamento republicano, a partir das concepções históricas apresentadas antes.

O artigo está disponível aqui (ou na página da revista, aqui).

O resumo do artigo é este:

O presente artigo apresenta a teoria política proposta por Augusto Comte, também indicando a sua inspiração histórica, em termos teóricos, políticos e epistemológicos. Para Comte, o conhecimento é histórico, no sentido de que se exige uma elaboração teórica e metodológica cumulativa para que a realidade possa ser conhecida; por outro lado, a teorização sociológica exige a compreensão dessa historicidade, o que resulta em um relativismo epistemológico e político. Esses elementos, entre outros, sustentam o republicanismo comtiano, entendido como um regime humano, laico, racional e altruísta. A república é o regime que consagra o bem comum e é a realização política da “sociocracia”, a organização social própria à modernidade positiva. O artigo possui um caráter teórico, baseando-se na consulta direta aos textos comtianos e em literatura interpretativa secundária.


15 dezembro 2021

Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República. 

Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.

Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.

O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).


*   *   *


Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.

Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.

O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.

Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.

Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.

Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).

Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.

A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.

Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.

Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.

Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.

A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.

Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.

Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.

  

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

31 outubro 2020

Mensagem enviada a Federico Finchelstein sobre Augusto Comte

Federico Finchelstein é um historiador argentino, radicado nos EUA, que teve um livro recém-publicado no Brasil, Uma breve história das mentiras fascistas (Belo Horizonte, ed. Vestígio, 2020).

O livro é interessante e corresponde a uma necessidade urgente - conhecer e entender como o fascismo mente, quais são as mentiras que ele difunde, quais são os efeitos sociais e políticos disso.

Exatamente devido a essa importância foi que percebi, com tristeza e alarme uma observação casual, mas profundamente errada e mesmo venenosa, em que o autor em poucas palavras repete mitos e desinformações sobre Augusto Comte. Assim, enviei-lhe a mensagem abaixo; a importância do combate a esses mitos leva-me a publicar a mensagem enviada.

*   *   *

Caro Prof. Federico:

Meu nome é Gustavo Biscaia de Lacerda; sou Doutor em Sociologia Política, Sociólogo da Universidade Federal do Paraná e especialista em história das idéias. Como você é argentino, creio que posso escrever em português sem o receio de não ser entendido.

Como cidadão brasileiro, a política recente de meu país tem sido fonte de grande apreensão desde 2018, sendo muito maior e pior neste ano de 2020, com a pandemia de covid-19, as queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal e vários outros crimes e loucuras cometidos pelo fascista Bolsonaro. Por esses motivos, comprei com grande interesse a edição brasileira de seu livro A Brief History of Fascist Lies, recém-lançado no país.

O seu livro é muito interessante e cumpre um importante papel político neste momento. Uma passagem dele, todavia, chamou-me a atenção, pois está totalmente errada, o que diminui um pouco o brilho de seu livro; a passagem em questão afirma que Augusto Comte (1) seria um autor “antidemocrático” e “anti-individualista” e (2) que desejaria uma “verdade absoluta na política”; além disso, ao relacioná-lo a Joseph de Maistre, você (3) sugere que Comte seria um autor reacionário e, portanto, claramente dá a entender que ele seria um ancestral dos fascistas. (Isso está no cap. 2, p. 43, da edição brasileira.)

No que se refere a Comte, é com tristeza que noto que suas afirmações são equivocadas do início ao fim, não tanto nas expressões empregadas, mas no sentido que você empresta a elas; o problema, portanto, é semântico.

Sobre o “anti-individualismo”: esse mito, que cumpre funções de desinformação, tem origem em uma tradição intelectual radicalmente individualista e anticoletivista, que entende qualquer consideração “social”, radical e necessariamente, como sendo anti-indivíduo. Essa tradição tem origem pelo menos na Inglaterra do século XIX, com ninguém menos que Stuart Mill, e seguiu no século XX com ultraliberais como Hayek e (em uma tradição particularmente estadunidense) Ayn Rand.

Comte era contra o individualismo, mas não contra os indivíduos e as individualidades; em outras palavras, ele era contrário ao egoísmo erigido em norma político-social e em parâmetro de análise sociológica. Ao contrário de tradições sociológicas “holísticas”, em Comte a afirmação da primazia lógica e histórica da sociedade sobre o indivíduo não implica a negação da realidade política e moral do indivíduo; muito ao contrário, essa primazia permite situar social e historicamente cada indivíduo e, ao mesmo tempo, estabelece parâmetros morais para as atividades desses mesmos indivíduos. (Como eu disse antes, aqui se trata de um problema semântico.)

A “antidemocracia” de Comte refere-se ao caráter metafísico da “democracia” e da “soberania popular”, que sempre foram afirmadas como maneiras de negar a soberania divina dos reis, transferindo o capricho arbitrário dos reis para o capricho arbitrário dos “povos” (que, por sua vez, são representados pelos “líderes”). Na crítica filosófico-política que Comte faz à democracia não há nada que se refira às liberdades individuais, às liberdades de pensamento e de expressão, às garantias constitucionais de proteção aos indivíduos etc. Evidentemente, para Comte a democracia não é o regime das liberdades; em vez de falar em “democracia”, ele fala em “República”. (Como eu observei antes, trata-se aqui, mais uma vez, de um problema semântico.)

No que se refere ao desejo de uma “verdade absoluta na política”, eu fico sem saber de onde ela pode ser surgido. Comte era um autor que desde o início de sua carreira afirmava, com todas as letras, que “o único absoluto é que só existe o relativo”; a negação do absolutismo filosófico e a afirmação do relativismo foi uma das maiores constantes da carreira de Comte, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passava. A referida rejeição da “democracia”, por exemplo, baseava-se exatamente nisso: tanto a “soberania divina dos reis” quanto a “soberania dos povos” eram absolutas - e, por isso mesmo, arbitrárias, caprichosas e sem o menor controle racional e/ou social -, devendo ser substituídas pelo relativismo do regime republicano, com liberdades públicas dirigidas ao bem comum. Aliás, enquanto no caso do “anti-invididualismo” e do “antidemocratismo” de Comte o problema é de manipulação semântica, no caso de uma “política absoluta” o problema é de outra ordem: trata-se da projeção aos inimigos dos defeitos próprios, isto é, os inimigos de Comte projetam nele os seus próprios desejos de uma “política absoluta”... é triste perceber que esse procedimento seja inadvertidamente adotado em um livro que combate as manipulações fascistas.

Por fim, a aproximação de Comte a De Maistre é um procedimento velho, que escamoteia totalmente a igual proximidade de Comte com Diderot, Condorcet, com os republicanos franceses de 1848, com sua oposição a Napoleão III etc.

Se tiver tempo e interesse, há vários livros que tratam dessas questões em profundidade. Há um antigo, de Jean Lacroix, La Sociologie d’Auguste Comte, assim como um mais recente, de Laurent Fedi, Comte.

Eu mesmo tenho inúmeros livros sobre essas questões, como pode ver aqui; também é possível ler a versão original da minha tese de doutorado (PhD thesis) aqui.

Saúde e Fraternidade,

Dr. Gustavo Biscaia de Lacerda.

08 maio 2020

O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo abaixo foi escrito como réplica a um outro texto, publicado alguns dias antes, no jornal Gazeta do Povo. Embora eu faça referência expressa a esse artigo inicial, lendo a minha réplica torna-se logo evidente que não faz muita diferença a leitura do primeiro texto; em outras palavras, a minha réplica sustenta-se por si mesma e apresenta informações e interpretações por si só.

A minha réplica foi publicada em 8.5.2020 e está disponível aqui. A versão abaixo é um pouco maior que a publicada na Gazeta do Povo.

O artigo também foi publicado - com acesso aberto - no jornal carioca Monitor Mercantil, na edição de 23 a 25 de maio de 2020; ele encontra-se disponível aqui. Lá embaixo porei também a versão JPG do artigo.

N. B.: A data de publicação do meu artigo não poderia ser mais emblemática: em 8 de maio de 1945 a Alemanha nazista rendeu-se de maneira incondicional aos Aliados, encerrando a luta contra o fascismo na Europa.


*   *   *


O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo, em um esforço aparentemente coordenado contra essa doutrina nas últimas semanas. Em virtude disso, merece uma réplica que seja minimamente detalhada.

Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva (1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública. De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.

Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.

Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.

A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)

O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.

Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964. A partir de conversas pessoais que mantive com eles e também de relatos de amigos meus, para eles quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas”; não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”, que enquanto viveu fez o possível para combater com agressividade os positivistas militares. Por outro lado, o tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros. A nova direita, embora afirme defender a “liberdade” e combater a “tecnocracia”, não vê problema nenhum em celebrar Góes Monteiro e Roberto Campos e em atribuir os defeitos de gente como eles ao “Positivismo”.

Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!

Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um dos filhos do Presidente da República.

Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação. Desde há alguns anos vivemos um novo tenentismo, com crescentes grupos paramilitares bastante agressivos, de origem castrense e civil; esse novo tenentismo não tem sido reprimido pelas Forças Armadas, que o tolera como se não fosse profundamente perturbador, tanto da ordem político-social quanto da própria disciplina militar.

Nesses termos, os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida atualmente pela direita nacional. De modo mais específico, a difusão renovada dessa desinformação integra uma campanha promovida pela direita histérico-política desde há algumas semanas no sentido de incentivar os militares – que cada vez mais integram o governo, movidos, sem dúvida, por um sincero embora equivocado senso de dever e de patriotismo – a abandonarem o comportamento constitucional e republicano de obediência às regras e de limitação da atividade propriamente política (felizmente interpretados pela direita como sinais de Positivismo) e a adotarem um renovado comportamento político ativista, intervencionista e autoritário.

A crítica ao Positivismo, assim, é uma nuvem de fumaça e um código da direita para um eventual golpe militar fascista.

Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor em Sociologia Política.

Fonte: https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira

24 fevereiro 2020

Hernani Gomes da Costa: "Comentários a 'O momento comtiano'"

Comentários a O momento comtiano – República e Política no Pensamento de Augusto Comte, de Gustavo Biscaia de Lacerda

Hernani Gomes da Costa 

Desejo expressar aqui toda a minha satisfação pela recente leitura que fiz d’O momento comtiano, elaborado pelo meu amigo Gustavo Biscaia de Lacerda (e por ele defendido inicialmente como tese de doutorado há uma década) em 2010.



Se algum valor especial deve-se dar aos comentários de quem por cinco anos realizou as conferências dominicais no Templo da Humanidade (e de quem por 14 anos – desde 1986 até 2000 – envolveu-se nas alegrias e sobretudo nos dissabores daqueles que vieram a ser os últimos anos de vida do movimento positivista no Rio de Janeiro) então, não parecerão deslocados os meus esforços para, de novo tentar sorrir em gratidão àquilo que eu só posso chamar de um verdadeiro ACONTECIMENTO.

Com efeito, por tudo quanto me foi dado compreender do ideário político do positivismo, eu penso que seja a partir dessa obra, que o exame de tal programa alcançou enfim – entre nós e no resto do mundo – sua plena maturidade; com toda a liberdade e responsabilidade que tal maturidade encerra.

Ela alcançará, estou certo, um merecido lugar de destaque junto às seletas produções intelectuais que, embora vindas do meio acadêmico e a ele destinadas, obtiveram pela força irresistível de seu encanto, de sua verdade, de sua utilidade – e mesmo de sua incidental beleza – um destino bem maior que o comportável por aquelas estreitas e, por vezes, tão mesquinhas fronteiras.

Eu diria mesmo que tornou-se hoje IMPOSSÍVEL realizar-se um exame vasto e profundo da TOTALIDADE das concepções políticas do fundador da sociologia[1] sem uma longa estadia em suas páginas. Mais do que uma obra de referência ela se firmará, pois, como uma sorte de crivo para discernir – dentre a nova safra de comentadores do positivismo – os honestos e competentes, dos que não o são. E a julgar pela felicidade com que o autor soube esgotar seu tema, eu acrescentaria que ele conseguiu – decerto sem o desejar e disso suspeitar – não só tornar por muito tempo desnecessárias quaisquer outras produções que no mesmo sentido ainda venham a ser tentadas; quanto – ousaria dizê-lo – permitir ao leitor dispensar-se (se assim o desejar) de um contato direto com a grande obra sociológica de Comte, ao menos para tudo quanto refira-se especificamente aos ideais políticos do positivismo.

Até aqui, os comentários sobre as idéias de Comte padeceram sob o jugo de dois graves estorvos: considerando-se que sua obra capital (A Política Positiva) ainda não existe em português, os pretendentes a comentadores que não dominam seu idioma original (mas que ainda assim insistem em tomar o positivismo como alvo de suas especulações) acabarão cedo ou tarde frente a um dilema. Ou eles necessitarão buscar como fontes primárias, textos que por sua ortodoxia estejam a salvo de qualquer suspeita quanto a não espelharem o mais fielmente os reais pontos de vista de Comte – e então NÃO HAVERÁ ALTERNATIVA senão destilarem – das mais de quinhentas publicações do Apostolado Positivista do Brasil – a quintessência da doutrina; ou, então – se renunciarem a isto – precisarão adentrar, sem muito critério e mesmo sem maiores escrúpulos, num verdadeiro dédalo (por vezes sedutor, diga-se) de sinopses superficiais, condenatórias e truncadas, vindas das mais variadas linhas de pensamento, e de autores que estiveram bem longe de VIVER tudo quanto pretenderam criticar. Perdidos nesse labirinto e embriagados pelos muitos brilhos, matizes e contrastes de tais obras, os estudiosos não disporão de outro meio de se situar, senão guiando seu caminho por entre aquelas ditas “mais consagradas” o que, na verdade, seria o pior que poderiam fazer: longe de constituírem-se no que há de mais seguro sobre a vida e os escritos de Comte, elas costumam representar apenas um farto e desconexo lote de preconceitos e de mal entendidos a partir dos quais seus autores lançam-se a arrojadas extrapolações tanto mais desembaraçadas quanto mais inconsequentes, o que (além das graças naturais de um estilo brilhante) é tudo quanto basta para erguerem-se mais alto que suas congêneres mais modestas e menos desonestas.

Mas antes que me acusem de “vitimizar” o positivismo frente ao julgamento desses intérpretes oficiais do pensamento universal, apresso-me em dizer que tal situação não se restringe às idéias comtianas. Longe disso, confusões dessa natureza parecem ferir em maior ou menor grau a todos os filósofos, muito particularmente aos criadores de grandes sistemas largamente fundamentados em informações históricas e em fatos colhidos das ciências naturais. Assim, por exemplo (e apenas para citar um antagonista – igualmente sistemático – de Comte) eu estou certo de que a recente edição em cinquenta volumes, da obra completa de Marx haverá de deslindar outras tantas distorções semelhantes às ocorridas com o positivismo; distorções que não raro determinaram o pesado fardo de adesões a este (e ao materialismo dialético) por motivos opostos aos de tudo quanto uma e outra destas duas doutrinas sempre se propuseram como mais fundamental; e tendo como implicação direta disto a aproximação maciça a elas, de pessoas que apenas vieram desmentir na prática seus princípios em nome deles, e tanto mais, quanto mais prontificaram-se em louvá-los, justificá-los e aplicá-los à vida. Esta me parece, sobretudo hoje, uma dificuldade grave e generalizada; que inclusive ameaça abalar a estrutura do próprio ensino da filosofia, da história, da sociologia e da psicologia como um todo; dificuldade que tanto mais se aprofunda quanto mais fácil torna-se em aparência a comunicação humana, mediante os recursos que a internet quase nos obriga a utilizar.

Acrescente-se que a opção por comentar uma obra tomando-se por matéria-prima outros comentários (ao invés dos textos do próprio autor) não se deve apenas àqueles inconvenientes citados, mas a certos hábitos intelectuais que, por assim dizer, imperam no mundo acadêmico os quais persistiriam mesmo se todas as facilidades ao acesso dos textos originais lhes fossem oferecidas[2].

Chegamos até a pensar que não se deseja nunca aí, a que nós leitores fiquemos em igualdade de condições com os comentadores; e que, bem ao contrário, eles fazem de tudo para deixar claro o quanto julgam-se dispensados de nos fornecer os mais amplos trechos de suas vítimas, em abono ao que contra elas nos mostram como peças de acusação. E tudo quanto, na falta disso, nos oferecem por magra indenização é apenas uma fastidiosa bibliografia (que a rigor poderia desdobrar-se indefinidamente não nos dando, aliás, segurança alguma de haver sido lida) na qual as obras do autor apenas mereceram, quando muito, o duvidoso privilégio de aí constarem à parte e em primeiro lugar. Eis como é que a leitura de um comentário acadêmico vem se tornando cada vez mais o exercício de uma fé tão ingênua quanto mal investida.

E se completarmos esse quadro com o fato de que a tendência aí é a de só depositar confiança, e a de só creditar imparcialidade a opiniões oferecidas sob uma ótica desfavorável, teremos compreendido como foi que tantos trabalhos sem o menor valor teórico puderam impunemente ganhar fama e mesmo um número maior de edições que a própria obra original que souberam explorar, conquanto apresentassem críticas que um mero cotejo com estas tê-las-ia inutilizado. Tal é (para citar um exemplo típico disso que entre nós se tornou quase um gênero de literatura filosófica) um dos mais detestáveis livrecos já escritos sobre (?) as doutrinas comtianas e que consta de nada menos de dez edições: o volume 72 da coleção Primeiros Passos O que é o Positivismo, de João Ribeiro Jr.

Ora, da mesma forma como procedemos quando nos vemos acusados injustamente (quando então de pronto cobramos pelas devidas comprovações do que nos está sendo imputado) deveríamos também agir requerendo e mesmo EXIGINDO de um comentarista filosófico as provas cabais do que afirma; sob pena de cairmos vítimas (ou de nos entretermos) com calúnias. E que outra evidência maior poderia haver, nesse sentido, que uma boa coleção de trechos do próprio autor cujo pensamento se intenta apresentar? E como não ver como incompleto (para dizer o mínimo) um exame sem o próprio objeto do que é examinado?

No entanto, parece que a lógica torna-se bem outra quando o caso não nos toca diretamente e quando aquelas afirmações gratuitas são de uma natureza mais intelectual que moral: desde que não nos sejam oferecidas no calor das discussões (mas sob a distante e respeitável forma de livros, teses e comentários) e desde que os autores já tenham há muito falecido (como é o caso da maioria daqueles sobre os quais a crítica acadêmica recai) não podendo reivindicar direito algum de resposta, mesmo judicial; então não há limites à covardia, tudo torna-se válido e o crime perfeito. Descortina-se o campo da boataria inteiramente livre e desimpedido como em nenhum outro setor[3].

Eu devi insistir tanto sobre esse único ponto, tendo em vista que uma das diferenças mais flagrantes a quem apenas folheie O momento comtiano é o grande número de citações que o autor faz ao filósofo[4] fora e dentro do texto. Não há praticamente uma só página onde, para nosso conforto e segurança, não sejamos brindados com elas. Ora, se APENAS nesse único bom exemplo – se apenas nessa única lição – pudesse residir todo o legado desta obra, somente isso bastaria para muito elevar-se o nível geral dos textos acadêmicos no Brasil.

Aliás, com a exceção de um trabalho de natureza introdutória – A república positivista– do meu amigo Arthur Virmond de Lacerda; O momento comtiano, insisto, oferece COMO NENHUMA OUTRA obra sobre o ideário político de Comte essa preciosa garantia teórica: a de não haver JAMAIS resvalado em concluir algo que já não estivesse contido na generosa coleção de passagens do filósofo, num constante e tocante escrúpulo a que ambos os autores ativeram-se, a fim de não trair o pensamento de seu mestre comum, aplicando – já à elaboração mesma dos textos – a máxima positivista de que “todo progresso é o desenvolvimento da ordem correspondente”. Ora, são estas constantes citações que revestem – tanto O momento comtiano quanto (o que acabou por se tornar o seu natural prelúdio) A república positivista – dessa autoridade única; impossível, aliás, sob quaisquer outras circunstâncias.

Mas eu não devo limitar-me apenas ao impacto d’O momento comtiano junto ao mundo letrado. Se como exposição geral e teórica ele já se faz oportuno; são, por outro lado, esses nossos tempos nada comtianos que o tornaram, por assim dizer, indispensável. E se a exigência dos espíritos preocupados com os destinos humanos deve incliná-los a uma especial atenção aos grandes quadros de referência concebidos para o entendimento dos fenômenos sociais (e se é, inclusive, por conta dessas angústias, que devemos a invasão por vezes irritante às prateleiras das livrarias, de uma avalanche de todo tipo de obras de discussão político-ideológica) O momento comtiano oferecerá para além daqueles quadros teóricos mais difundidos – mas sempre como consequência da consistente adoção de UM deles – e para além daquelas apreensões e daquele caos de opiniões desencontradas; uma singular, enérgica e otimista resposta frente a urgências práticas de toda sorte.

Com estas páginas, o Brasil acha-se, enfim, munido de um instrumento (quase ia dizendo de uma arma) com a qual tornamo-nos capazes de entrar na arena desses confusos debates, confiantes do sucesso junto à tarefa tornada imperiosa de apresentar o positivismo pelo que ele verdadeiramente é; e COM ISSO desnudar todo o cinismo de um governo que profana as cores e a divisa da bandeira nacional até pervertê-las no seu exato inverso, invocando-as como se estas pudessem representar – ou ter alguma vez representado – uma espécie de subliminar convite à tirania.

Ora, se como eu espero, O momento comtiano alcançar a tempo todo o sucesso que merece (o que dependerá apenas de uma boa difusão) isso determinará inclusive a que esses fascistas vejam-se forçados doravante a combater o positivismo comtiano com uma ferocidade igual – senão maior – àquela com a qual dedicam-se a combater o que confusamente denominam “comunismo”, para maior honra de ambos os sistemas. Nós veremos então, como é que estes mesmos fascistas que tão camaleonicamente travestem-se de verde-e-amarelo e cujos discursos estão sempre tão transbordantes de “ordem e progresso” ver-se-ão forçados – tão logo sintam-se seguros de sua ALIANÇA PELO BRASIL – a arrancar da bandeira aquele lema, em prol de algum malsoante dístico teológico de última hora, ou mesmo de algum versículo bíblico ostensivamente teocrático; coisa que (eu não duvidaria) talvez já conste de um dos secretos itens da pauta desse “novo” partido.

Mas se uma obra tão inocente como O momento comtiano (inocente no sentido de não haver sido concebida para fins de polêmica) pode nos servir de modo tão eficaz como meio de luta, isso é algo a que devemos atribuir antes de tudo à sua natural universalidade. De fato, dentre seus muitos méritos paralelos, está o de nos oferecer a mais completa relação dos erros até hoje já alinhados contra o positivismo. Ora, são exatamente esses erros que, uma vez trazidos à luz e destruídos, desfazem de vez qualquer tentativa ignorante ou malévola de ressuscitar a falsa afinidade e o falso vínculo que se forjou entre o golpe de 1964 e o positivismo. Decerto O momento comtiano haverá de complicar bastante o ofício de todos que ainda imputam ao ideário comtiano o desastre político em que chafurdamos, o qual segundo nos querem fazer crer, não passaria de um híbrido teratológico entre o oportunismo evangélico da criatura que hoje habita o Palácio do Planalto – última dejeção gestada por aquele golpe – com o positivismo, representado iconograficamente pelas cores e pelo lema sociológico inscrito na bandeira nacional.

Assim, O momento comtiano é essa obra por excelência que nos ajudará como povo, a arrancar o véu verde-e-amarelo desse tenebroso personagem e de seu séquito, a fim de revelar quais são as suas verdadeiras cores, que aliás ninguém – talvez, no fundo, nem eles mesmos – saibam.

O momento comtiano auxiliará pois, não só a aprofundarem-se as opiniões dos simpatizantes da doutrina positivista (e dos que desejam estuda-la a sério) como a robustecer os ideais de todos que, fora dela, prezam a justiça histórica, a liberdade de ensino, as liberdades civis e de expressão, a laicidade do estado, a transparência da administração da coisa pública, a defesa das tradições, crenças, cultura e territórios indígenas, o internacionalismo, a fraternidade inter-racial, o congraçamento universal de todas as pátrias em torno da Humanidade (ao invés do “Brasil Acima de Tudo”, simples transposição do Deutschland Über Alles) a igualdade de oportunidades, a condenação do trabalho infantil e juvenil; dentre tantas outras grandes causas – todas, diga-se, tornadas em tempo real, tema de intervenção dos apóstolos positivistas Miguel Lemos e Teixeira Mendes – e todas, agora, sistematicamente afrontadas e ameaçadas pelo atual governo fascista.

Tendo sido vista a importância teórica e prática d’O momento comtiano, cumpre ainda uma última observação antes de comentarmos O momento comtiano capítulo a capítulo.

Será preciso agora tentar compreender as razões e o significado de não haver disposto o Brasil, até aqui, de textos dessa envergadura, embora a carência por algo assim já devesse ter sido sentida há muito. De fato, como entender essa lacuna, decerto involuntária, que acabou por se tornar desde a morte de Teixeira Mendes em 1927, um longo mutismo?

Penso que seria preciso ir buscar as raízes de tal fenômeno no próprio perfil psicológico de uma organização religiosa, e nas dificuldades especiais que estas encontram diante do NOVO, ou mesmo do simplesmente DIFERENTE.

Lembremo-nos que nem Miguel Lemos nem Teixeira Mendes desejaram realizar nada além de simples comentários episódicos sobre a doutrina que professavam. Tudo quanto propuseram-se a oferecer por escrito, resumiu-se a tentativas de aplicá-la (sem criticá-la ou mesmo aperfeiçoá-la) como articulistas atentos que eram da realidade nacional; ilustrando-a com fatos de seu próprio tempo e lugar considerados como de maior peso e repercussão social e política.

Outrossim, o que eles desejaram ACIMA DE TUDO com isso, foi estimular a que seus leitores voltassem suas atenções PARA A OBRA DE COMTE; obra que então, diga-se, ainda conseguia corresponder a algo mais legível do que hoje, quer devido às peculiaridades do estilo do filósofo (tornado cada vez mais distante daquele que acabou prevalecendo) quer à então maior popularidade da língua francesa entre nós.

Foi assim que – bem ou mal a propósito – os apóstolos decidiram-se POR PRINCÍPIO a evitar audaciosas expedições teóricas, na forma de longas TESES ou TRATADOS; coisa que seria, segundo criam, a usurpação de um trabalho genuinamente reservado aos efetivos críticos e aperfeiçoadores da doutrina (os sacerdotes da Humanidade). Duas únicas exceções a isso foram a Filosofia Química e as Últimas Concepções de Augusto Comte, ambas de autoria de Teixeira Mendes, correspondendo às duas únicas ocasiões em que optou-se por aquilo que, tornado frequente, teria de fato correspondido a uma verdadeira “tentação” a ser religiosamente evitada... Tentação a qual o meu amigo Gustavo teve o bom senso de sucumbir...

Assim quando os apóstolos faleceram, tudo quanto restou à Igreja além do vazio pela perda de dois dedicadíssimos propagadores, foi de um lado, uma tentativa canhestra de manter aquela tradição em apenas compor pequenos folhetos de ocasião e, de outro, uma espécie de preconceito contra quem sonhasse mais alto: “se NEM MESMO os apóstolos julgaram-se capazes de escrever tratados sociológicos... que diremos nós”...

Mas apesar de todo o virulento contágio com o qual aqueles limites auto impostos por Lemos e Mendes acabaram por involuntariamente paralisar a produção teórica de todo o grêmio da igreja, pode-se dizer que há mais aparência que verdade na afirmação de que jamais houve um tratado sociológico positivista entre nós: de fato, se rastrearmos com paciência o conjunto daquela vasta coleção apostólica decerto reaveremos (e mesmo recomporemos) a totalidade das teorias políticas do positivismo, representadas de pleno, e em seu mais puro estado; coisa que, porém, não se obterá jamais a não ser como o prêmio de contínuos, complicados e demorados esforços; aqueles mesmos, diga-se, que o PRIMEIRO TRATADO BRASILEIRO DE SOCIOLOCIA POSITIVA, o nosso MO(NU)MENTO COMTIANO vem hoje (afinal!) tornar inúteis...

Isto posto, passemos agora ao exame detido de cada um de seus capítulos.

(Continua.)



[1] Há uma crítica renitente, injusta e no fundo tola segundo a qual Comte não teria fundado a Sociologia porque não teria feito pesquisas sociológicas... evidentemente, para nós, isso é tolo, mas o que está subjacente é que Comte não teria feito pesquisa “com pranchetinha”, surveys. Ora, bastaria que se lesse os volumes 4 a 6 do Sistema de filosofia positiva ou 2 e 3 do Sistema de política positiva para saber-se o quanto isso é tolo; mas, ainda assim, esse preconceito existe e é largamente difundido. Uma caracterização (sem maiores esclarecimentos) de Comte como o criador de um sistema “abstrato” subrepticiamente pareceria apoiar essa tolice.

[2] Entre esses hábitos temos o excessivo espírito de detalhe e a cisão entre “científico” e “empírico”, de um lado, e o “filosófico” e “abstrato”, de outro. Ora, em Comte científico e empírico andam de mãos dadas com o filosófico e o abstrato, sem que seu sistema recaia em um desprezível “empiricismo”. Essa é, aliás, uma das suas principais características que o distanciam do academicismo e o tornam tão estranho aos hábitos acadêmicos. Quanto ao excessivo espírito de detalhe, vale notar que a Sociologia de Comte é a ciência geral da sociedade; as divisões acadêmicas atuais, tão sofregamente buscadas, entre Sociologia da Religião, da Política, Política, da Linguagem, histórica, institucional etc. etc. etc., além da Antropologia (vista como ciência à parte da Sociologia!) e da Ciência Política (vista como se tivesse existência autônoma em relação à Sociologia!) – todas essas divisões são vistas exatamente como divisões, em que o espírito analítico desenvolve-se sem freios e em que o caráter ao mesmo tempo social e histórico do ser humano perde-se radicalmente. A falta de eficácia social da Sociologia, entendida como ciência geral da sociedade, deve-se, aliás, em larga medida à sua fragmentação, à ciosa divisão acadêmica em dezenas de especializações. Desenvolvida por esse mesmo espírito analítico encontra-se também a Ciência Política cindida em “Ciência Política”, destinada à política interna, e “Relações Internacionais”, dedicada à política internacional. Aí é necessário criar modelos que consigam restabelecer a unidade da política e da sociedade, entre os âmbitos interno e externo. Ora, isso foi exatamente essa cisão o que Comte procurou evitar.

[3] Começamos mesmo a ver hoje, no cenário das discussões políticas, o reflexo direto de tal situação. Na prática a boataria filosófica e seus verdadeiros institutos para a produção e desenvolvimento de fofocas oficiais tornaram-se hoje um problema insolúvel. O contra-ataque a essas forças tão rápidas e numerosas exigiria não só um contingente semelhante de defensores, como o uso de estratégias eticamente questionáveis. À era dos falsos argumentos, representados pelos antigos sofistas, sucede-se hoje a era ainda mais odiosa e estúpida dos falsos fatos representados por robôs replicantes de Fake News.

[4] Embora em diversos momentos desses comentários eu devesse observar que Comte foi um filósofo, e que sua obra é filosófica, isso EM ABSOLUTO deve ser interpretado como uma forma de diminuir ou obscurecer o caráter sociológico e político de suas contribuições teóricas. Aliás, a universalidade do conhecimento teve em Comte o seu último verdadeiro cultor. E embora em sua época a separação entre “cientistas” e “filósofos” já estivesse bastante consagrada (não à toa Miguel Lemos criou em português a palavra “cientista”, na tradução do Apelo aos Conservadores), Comte faz considerações filosóficas sobre afirmações científicas tanto quanto, inversamente, considera do ponto de vista científico afirmações filosóficas. 

02 dezembro 2019

Gazeta do Povo: Quais tradições dos conservadores?

O artigo abaixo foi publicado na Gazeta do Povo em 28.11.2019. O original pode ser lido aqui.

*   *   *

Quais tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje?

Não é segredo para ninguém que os conservadores têm o poder no Brasil, hoje; esses conservadores identificam-se como tais, especialmente no que se refere aos “costumes” e, acima de tudo, em sua oposição à “esquerda”, no “antipetismo”. Mas, além da autoidentificação – isto é, de um certo rótulo autoimpingido – e da negação de uma perspectiva sociopolítica, o que é que define, de maneira afirmativa e substantiva, esses conservadores no Brasil?

Essa não é uma pergunta secundária ou desprezível; ela exige que se apresente de maneira clara os princípios que constituem uma determinada visão de mundo e a partir da qual se realiza uma atividade política. Mais do que isso, vale notar que um rótulo por si só não quer dizer muita coisa; no limite, é apenas uma casca para um conteúdo a ser determinado. Além disso, por si só, a oposição a algum grupo intelectual e sociopolítico não evidencia muita coisa, pois limita-se a negar e não a afirmar e, de qualquer maneira, essa mera oposição pode juntar grupos que, de outra forma, estariam em campos muito, muito diferentes.

Uma primeira resposta é esta: os conservadores valorizam a tradição. Mas qual tradição? No caso específico do Brasil, a resposta mais fácil é: a tradição católica. Isso ainda não resolve o problema; deixando de lado a distinção entre a “igreja conservadora” e a “igreja progressista”, o fato é que existe um catolicismo do alto clero e outro do baixo clero, sem contar as inúmeras clivagens representadas pelas ordens – os jesuítas são diferentes dos franciscanos, que são diferentes dos carmelitas, que são diferentes dos mais recentes carismáticos etc. Também há diferentes possíveis “aplicações” da religião, no sentido de que alguns católicos, como católicos, são mais favoráveis à ação política, outros buscam constituir um corpo de laicato, outros preferem ações “de base”, outros são mais litúrgicos e assim por diante.

No conservadorismo brasileiro atual há uma dificuldade adicional da maior importância quando se define o conservadorismo pela tradição católica: o fato simples e direto de que uma parcela minoritária, mas numericamente crescente e politicamente agressiva, não é católica, mas evangélica. Embora católicos e evangélicos definam-se genericamente como “cristãos”, os elementos que os separam são muito mais numerosos que os que os unem. Para começar, excetuando-se talvez a Assembleia de Deus, os demais evangélicos que despontam na política e que mobilizam o atual conservadorismo brasileiro – gozando em particular da simpatia da família Bolsonaro e de alguns ministros de Estado – são igrejas relativamente novas, ou seja, são qualquer coisa menos “tradicionais”. Em segundo lugar, enquanto o catolicismo brasileiro desde sempre é fortemente influenciado pelas determinações da Santa Sé e tem um caráter transnacional, os evangélicos brasileiros têm uma origem associada a pregadores norte-americanos e não manifestam o esforço católico de “unidade na diversidade”. Existem diversos outros elementos, é certo; mas o que vale notar aqui é que católicos e evangélicos, tão heterogêneos entre si, unem-se apenas graças à afirmação de um vago “cristianismo” – que esvazia as doutrinas e as igrejas de seus conteúdos específicos – e, de modo mais importante, no antipetismo e na oposição à “esquerda”.

As diferentes origens de católicos e evangélicos levam-nos também a refletir sobre quais seriam as tradições brasileiras a que eles fazem referência. Afinal, o que seria uma “tradição”? Podemos entendê-la como hábitos persistentes, existentes desde há muito tempo; ora, o conservadorismo brasileiro afirma que seria necessário “retomar as tradições”, do que se depreende que determinados hábitos longevos foram suspensos; em tal suspensão, o peso moral e histórico das tradições diminui, não há dúvida. Mas isso nos leva a refletir sobre quais seriam os hábitos longevos próprios ao Brasil. Sendo bastante polêmico, aqui a escravidão durou bem mais de 350 anos, enquanto a liberdade de todos os cidadãos tem pouco mais de 130; enquanto vigeu, sem dúvida a escravidão foi “tradicional”. O apoio-controle do Estado sobre a Igreja Católica, específico do padroado, durou também vários séculos, enquanto a laicidade do Estado não tem nem 130 anos. No caso particular da laicidade, vale notar que enquanto o catolicismo foi a religião oficial de Estado, não havia liberdade religiosa (no Brasil Colônia) e apenas os luteranos, os calvinistas e, no fim do II Império, os positivistas eram tolerados – entre muitos outros, os evangélicos eram desprezados e rejeitados.

Não duvido de que os exemplos acima são polêmicos para o público conservador, mas eles não são anedóticos. Vinculando-se à liberdade de crença e ao fim da escravidão estão a República e a igualdade perante a lei, bem como o direito ao voto: a República tem 130 anos e a isonomia e o voto têm sido ampliados aos poucos desde 1889, com o fim do voto censitário em 1890, a instituição do voto feminino em 1934 e do voto de analfabetos em 1988. O que devemos considerar como tradicional aí, para ser valorizado pelo conservadorismo? A sociedade de castas monárquica (350 anos) ou a isonomia republicana (130 anos)? A liberdade de expressão foi afirmada em 1889 e durou até 1937; depois voltou em 1946 para ser restringida (duramente) em 1964 e, ainda mais, em 1968, voltando apenas após 1979, para que se transformasse em “cláusula pétrea” em 1988. Durante a República, a liberdade de expressão durou bem mais que a censura e a repressão; ainda assim, temos que perguntar: o que seria “tradição” nesse caso?

Do ponto de vista econômico e de política internacional, a variedade de “tradições” não é menos importante. A República – novamente ela! – proclamou a fraternidade universal, o fim das guerras como ideal e a busca do arbitramento para solução de controvérsias; durante a I República afirmava-se o liberalismo econômico mas o Estado constantemente protegia a indústria, com vistas ao desenvolvimento, e após 1930 o desenvolvimento econômico, social e político tornou-se política pública, com a inclusão e a proteção dos trabalhadores. Aliás, a proteção aos trabalhadores como policy é uma preocupação que se iniciou em 1930 e que está de acordo com o catolicismo, mas que se distancia radicalmente do individualismo evangélico. Até há pouco tempo, a noção de “Ocidente” era encarada no Brasil como sinônima de “universalismo”; da mesma forma, as negociações internacionais e o multilateralismo tornaram-se parte da tradição nacional em política e comércio internacional. Rejeitar o multilateralismo e a arbitragem, estimular conflitos internacionais, incentivar o individualismo e largar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará – isso integra alguma tradição brasileira?

As indagações e os comentários acima não visam a denegrir conservadores, católicos ou evangélicos. Bem ao contrário, são um esforço – um pedido, na verdade – para que os conservadores brasileiros atuais deixem de lado sua agenda negativa (antipetismo, rejeição à esquerda) e passem a definir de maneira afirmativa uma agenda; que deixem de dizer o que não querem e passem a indicar o que desejam, em particular o que desejam conservar. Não se trata aqui de atribuir “tradições” à direita ou à esquerda, a católicos, a evangélicos, a comunistas, a militaristas, a pacifistas: em meio a uma pluralidade de tradições brasileiras, trata-se de definir o que deve ser preservado – e, portanto, o que deve ser deixado de lado.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política (UFSC).