Mostrando postagens com marcador Responsabilidade política. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Responsabilidade política. Mostrar todas as postagens

14 fevereiro 2021

"Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'"

O artigo abaixo foi publicado em 8.2.2020 no jornal Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

Da mesma forma, ele foi publicado em 14.2.2021 no jornal Gazeta do Povo; o original pode ser lido aqui

*   *   *

Contra alguns mitos da “reforma administrativa”

A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em lições para a sociedade brasileira; entretanto, o início de 2021 já sinaliza que nós teimamos em não aprender com nossos erros e nossas tragédias. A nova retomada da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido. Essa “reforma” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular na contratação e na manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor de um novo AI-5 e que não esconde desgostar dos servidores públicos – “parasitas” cuja sindicalização deve ser proibida e os sindicalizados, demitidos.

A reforma administrativa pressupõe que o Estado brasileiro é “grande demais”; mas, na verdade, em termos de quantidade de servidores ou de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: mas a estrutura disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais. Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, deveriam lembrar que o Estado brasileiro não pode ser meramente o “regulador neutro do ambiente de negócios”. Como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade em conformidade com a opinião pública, além de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou dessas funções: a abertura econômica indiscriminada (a financeira em particular) é expressão disso. Assim, os servidores públicos têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; comparam-se duas coisas que seriam homogêneas, quando, na verdade, elas são heterogêneas. Nos dois setores, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) e três níveis federativos (nacional, estadual e municipal): todos os estudos sérios indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível estadual e daí para o municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que o Legislativo e estes são maiores que os do Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, também é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são sempre grandes – aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública –; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do Executivo. Quando se fala em supersalários no setor público – e a “reforma administrativa” é defendida em parte para combaterem-se os “supersalários” –, eles ocorrem no Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do Executivo; ainda assim, a reforma terá efeito apenas no Executivo civil federal, silenciando a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes.

O setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, com ascensão profissional, a partir de cursos feitos pelos servidores. É claro que os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores; mas, do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores especializam-se e ampliam suas habilidades. Só de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista essa maior qualificação é vista como correspondendo a “mais gastos”!

O setor privado tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação, mas espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, como são demoradas e caras, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal, pois há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e mais baratos (e não sindicalizados.) Assim, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou beneficia-se dos investimentos feitos pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A ausência de projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e que o país progressivamente se desindustrializa. Daí termos cada vez menos investimento na economia real, que gera renda e empregos, e termos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. Inversamente, um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas décadas, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida em ideal. Não falta engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

A reforma administrativa não resolverá nenhum desses problemas; na verdade, por opção das elites brasileiras, aumentará os existentes e criará outros, ao desestruturar um serviço público importante e qualificado mas insuficiente para as necessidades nacionais. No fundo, essa é uma contra-reforma, ou anti-reforma: carecemos de uma verdadeira reforma, a partir de um projeto nacional efetivo.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política.

07 maio 2020

Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral


Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado: essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.

Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas de investimento, dos especuladores financeiros.

Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma, podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional, isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados, professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os "youtubers", os "influenciadores" também entram nessa categoria.

Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.

Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.

Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem, seria estranho.

Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população, seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do pagamento de impostos.

Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras "modernidade" e "progresso".

(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra "fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)

Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e Progresso".

Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o "marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os servidores públicos é que seriam parasitários.)

Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à "burguesia" no final não passa de indignação política para adolescentes rebeldes.

Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha, é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro. Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus comportamentos.

O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo "Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez mais ricos.

(Não é por outro motivo que os representantes histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo, tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)

Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira - os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação - fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.

O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante no Ministro da Saúde!

É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo; com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos" (isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e - isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!

Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá algum país para que essa burguesia possa agir?  Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.

25 agosto 2015

Poder Espiritual, intelectuais e a conjuntura atual


Sempre me interessei por política, ou melhor, por estudos sobre a sociedade e sobre a história, além de pela ciência; a aproximação com as Ciências Sociais e, até certo ponto, com a chamada política prática foi algo natural. Ao mesmo tempo, em inúmeras ocasiões considerei seriamente em filiar-me a partidos políticos, mas dois motivos – muito próximos entre si, embora distintos – sempre me impediram de que eu desse o passo final nessa direção; um desses motivos é de ordem teórico-filosófica, o outro é de ordem prática.

O motivo teórico consiste em que, como positivista, isto é, como adepto da filosofia e da religião fundadas por Augusto Comte, entendo-me como integrante do poder Espiritual, cuja ação deve dar-se por meio do aconselhamento, por meio do guiar os sentimentos, as idéias e os valores; conforme Comte repetia continuamente, quem aconselha não pode mandar, sob o risco de degradar o conselho e tornar hipócrita o mando.

O motivo prático consiste em que jamais quis abrir mão da minha capacidade de criticar as bobagens realizadas por políticos práticos, nem, por outro lado, quis aceitar subscrever, devido à necessária fidelidade partidária, as tolices ditas e feitas pelos políticos profissionais. Isso não significa que eu não tivesse ou não tenha minhas preferências ou minhas simpatias político-partidárias; da mesma forma, isso não significa que eu perfilhe-me entre a "oposição", ou seja, naquele grupo que se define como tendo que se opor sistematicamente ao governo, ou à "situação", em desrespeito sistemático aos interesses do país e da Humanidade. Minha preocupação, nesse sentido, sempre foi com manter a capacidade e a possibilidade de poder dizer, com um mínimo de independência, que aquelas políticas que considero incorretas são, de fato, incorretas, sem me ver obrigado por filiações partidárias a afirmar que tais políticas seriam corretas ou, por outro lado, ser acusado de partidarismo ao fazê-lo.

No fundo, bem vistas as coisas, a minha precaução prática constitui-se na condição para realizar o comportamento proposto do ponto de vista teórico.

Além disso, cumpre notar que o conceito positivista de "poder Espiritual" sempre me pareceu mais legítimo que todas as outras concepções rivais, como a "hegemonia" gramsciana ou a "ética da responsabilidade" weberiana.

A "hegemonia" defendida por Gramsci nada mais é que o esforço empreendido por um partido de classe em dominar intelectual e moralmente o conjunto da sociedade: trata-se, portanto, de um mero recurso da luta de classes, em que uma parte da sociedade lança mão de expedientes com o objetivo de dominar outras partes da sociedade. Nesse quadro, tanto o "domínio" quanto a "luta de classes" devem ser entendidos literalmente, ou seja, em termos de guerra civil, ainda que disfarçada. Isso não é exagero nem uma suposta distorção da proposta de Gramsci e, antes dele, das propostas de Marx e Engels: a orientação belicista da "luta de classes" e, por extensão, da "hegemonia da classe proletária" sempre foi explícita e assumida por todos esses pensadores; não é à toa que Marx e Engels (mas também Lênin) são considerados filósofos da guerra. Nesse sentido, as interpretações correntes da "hegemonia" – segundo as quais ela é um simples consenso social em favor de valores universalmente válidos, como a "democracia" ou o "Estado de Direito" – ou são versões ingenuamente edulcoradas e falseadoras do pensamento de Gramsci, ou são mistificações da intenção subjacente ao pensamento de Gramsci e, portanto, são formas de enganar o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a independência moral e intelectual e a possibilidade de crítica estão radicalmente afastadas; mesmo no caso da crítica à classe combatida não há independência, pois os "argumentos" utilizados são elaborados de maneira estratégica e tática, ou seja, subordinados à mais rasteira conveniência política; em outras palavras, as idéias são manipuladas ao sabor das alianças políticas, resultando em cinismo e em hipocrisia.

Assim, a idéia gramsciana de "hegemonia" é radicalmente contrária à proposta positivista de "poder Espiritual", seja porque une estreitamente o aconselhamento ao mando, seja porque subordina o aconselhamento ao mando, seja porque finge que o aconselhamento não está a serviço do mando.

A idéia weberiana da "ética da responsabilidade" é intelectualmente mais satisfatória, mas ainda assim é inferior à proposta positivista do "poder Espiritual". A "ética da responsabilidade" forma par com a "ética da convicção"; nessa dupla, a primeira "ética" refere-se ao comportamento adotado pelos políticos, cuja é com as conseqüências de seus atos, no sentido de que devem pesar o que acontecerá se determinadas ações forem tomadas; a "ética da responsabilidade" corresponde ao comportamento adotado por aqueles indivíduos motivados por suas convicções íntimas e para quem, nesse sentido, não importam as conseqüências de sua ação, mas apenas a fidelidade às suas crenças íntimas. Weber comentava que, em sua tipologia, a "responsabilidade" não abre mão, necessariamente, das "convicções", pois os políticos de modo geral precisam de orientações morais e intelectuais para sua conduta; inversamente, a "convicção" nem sempre deixa de lado a "responsabilidade", pois pode considerar os efeitos de seu comportamento na consecução dos valores pelos quais se guia.

Analiticamente, a oposição entre as éticas da "responsabilidade" e da "convicção" é interessante; todavia, ela nada mais é que "interessante". Essa oposição não distingue entre os indivíduos e os grupos que, por um lado, dedicam-se explicitamente à atividade política, isto é, à tomada de decisões e aqueles que, por outro lado, dedicam-se à formulação e à difusão de idéias e valores.

Da mesma forma, essa oposição não estabelece os critérios que devem pautar uma organização sócio-política correta e adequada; ao apenas afirmar que há indivíduos mais preocupados com as conseqüências de seus atos e indivíduos mais preocupados com a fidelidade íntima a si mesmos, essa oposição deixa sem qualquer tipo de orientação os problemas fundamentais que consistem em saber o que é uma boa sociedade, qual é o "bem comum", qual a relação que se deve manter entre o mando e o aconselhamento, qual é a relação que se deve manter entre as classes sociais etc. Poder-se-ia, talvez, argumentar que Weber explicitamente era contrário a que categorias analíticas servissem também como guias para a ação prática; com todas as letras, ele era favorável à famosa "separação entre fatos e valores". Entretanto, embora de fato seja necessário que se respeitem as características e as condições próprias à compreensão racional do mundo, por outro lado também é necessário ter clareza de que, sem orientação prática, essa compreensão racional é vazia e destituída de sentido. Como argumentava Augusto Comte, o valor da ciência (e, de modo mais amplo, o valor da inteligência) consiste em atuar como conselheira dos sentimentos: ora, a oposição entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", bem como, de modo mais amplo, toda a filosofia da ciência de Weber rejeitam a concepção de subordinação da ciência aos sentimentos, ao considerar ilegítima essa subordinação.

A mera oposição analítica entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", portanto, é sugestiva para o estudo de alguns comportamentos e da "psicologia" de alguns indivíduos, mas ela esgota-se aí; para piorar, essa oposição é uma forma mais ou menos vazia, que pode aplicar-se a uma quantidade enorme de casos díspares e que, no fim, acaba tendo reduzido poder analítico. Por exemplo, é possível aplicar a idéia da "ética da convicção" tanto a Hitler, quanto a Stálin, quanto a Cromwell, quanto a Gandhi; ou a São Francisco de Assis e a Antônio Conselheiro; por outro lado, é possível aplicar o conceito de "ética da responsabilidade" tanto a Bismarck, quanto a Júlio César, quanto a Léon Gambetta, quanto a Fernando Henrique Cardoso: é até interessante pôr essas duas etiquetas em todos esses indivíduos, mas as perspectivas específicas e as condições sociais de todos eles são tão diferentes entre si que, de fato, pouco se aprende com as categorias "ética da responsabilidade" e "ética da convicção". Por fim, aplicar essas duas categorias a todos esses indivíduos diz pouco mais do que já se sabe a respeito de todos eles; na verdade, essas duas categorias apenas formalizam o que empiricamente, com base no mais elementar senso comum, já se sabe a respeito de todos eles.

Assim, a idéia de "ética da responsabilidade", embora seja analiticamente interessante, apresenta vários problemas teóricos e práticos: por um lado, é pouco explicativa e ainda menos descritiva; por outro lado, simplesmente não serve como guia prático.

Para resumirmos, podemos dizer que a idéia gramsciana de "hegemonia", embora baseie-se na união entre teoria e prática, estabelece um vínculo demasiadamente forte e estreito entre ambas as atividades, subordinando a teoria à prática e, portanto, degradando a teoria e tornando a prática profundamente cínica e hipócrita; além disso, a "hegemonia" baseia-se no estreito particularismo de uma classe, que busca dominar e eliminar outra classe, além de incentivar a beligerância. No caso do conceito weberiano de "ética da responsabilidade", embora ele distinga a teoria e a prática, ele leva muito longe essa distinção – na verdade, ele baseia-se na rejeição das imbricações entre teoria e prática –; assim, esse conceito é propositalmente inútil em termos práticos. Já em termos analíticos, isto é, teóricos, embora ele dê azo a algumas reflexões, no final das contas essas reflexões são bastante limitadas e rasas.

Por que faço essas reflexões todas? Porque a conjuntra atual do Brasil – que atravessa ao mesmo tempo intensas crises política e econômica, em que uma é causa e alimento da outra – tem suscitado as mais diferentes reações da parte dos chamados "intelectuais". É claro que o "público em geral" também tem reagido bastante a esses problemas: as inúmeras manifestações que têm ocorrido no Brasil nos últimos dois ou três anos e que se têm incrementado desde as eleições presidenciais de 2014 são a mais clara demonstração de um intenso ativismo social.

Mas a situação dos intelectuais é específica, pois a eles cabe ao mesmo tempo a análise intelectual dos problemas por que o Brasil passa e a indicação de caminhos para que essas crises sejam solucionadas – caminhos que devem ser indicados tanto para a sociedade civil quanto para o governo. Assim, os intelectuais têm um papel fundamental no atual cenário; na verdade, como deveria ser evidente para qualquer cientista social, os intelectuais são importantes em qualquer momento, mas nos períodos de crise essa importância aumenta, justamente devido às dificuldades próprias à legitimidade do governo. Além disso, convém notar que a grande maioria desses "intelectuais" é de professores universitários, que se valem dessa condição institucional para legitimarem-se perante a sociedade e perante o governo e que integram órgãos estatais e entidades civis para emitirem "opinões".

Ora, muitos desses intelectuais mantêm uma postura fortemente crítica contra o governo atual; a maior parte dessas críticas, para não dizer sua totalidade, é justa. Vários desses intelectuais não se preocupam nem com a estabilidade do país, nem, em conseqüência, com a sua governabilidade: em certo sentido, eles não são responsáveis, na medida em que, preocupados com sua críticas, não apontam rumos factíveis para o país superar seus sérios e profundos problemas.

Essa postura constitui o cerne da "oposição": ora, a idéia da "oposição" surgiu na Inglaterra, como sendo o conjunto minoritário de parlamentares, isto é, aqueles parlamentares que não dão apoio ao primeiro-ministro; a autoproclamada função desse grupo seria criticar sistematicamente o governo e elaborar propostas alternativas de políticas públicas, seja como forma de legitimar-se perante a opinião pública (com propostas que difeririam de qualquer maneira das políticas implementadas pelo governo, qualquer que seja a razoabilidade ou a viabilidade dessas propostas alternativas), seja como eventuais contribuições legítimas: em todo caso, a "oposição" basicamente serve para incomodar o governo. No Brasil, nas últimas três décadas, ou a "oposição" foi extremamente crítica, quando não reacionária, ou foi inerte e indistinguível do governo; em outras palavras, como "oposição" o PT sempre foi virulento e, ao tornar-se governo, teve a felicidade de lidar com rivais molengas, desarticulados e sem identidade.

Entretanto, desde as eleições presidenciais de 2014, o comportamento dessa oposição mudou bastante, principalmente devido à insatisfação social com o governo. Essa oposição deixou de ser apática e molenga e, mudando bastante o seu padrão de comportamento, assumiu uma postura cada vez mais radical, em que o que importa é criticar o governo e buscar obter o poder, independentemente de outras considerações. Nesse sentido, essa oposição passou a assumir as piores características que seus rivais mantinham antes de assumir o poder.

Essa oposição – é necessário dar nomes aos bois: o PSDB – é basicamente partidária, isto é, organizada em partido político. O importante a notar é que, embora haja diversos intelectuais vinculados oficialmente a essa oposição partidária, o grosso dos intelectuais que se opõe ao governo não é partidária, ou pelo menos não é vinculada ao principal partido da oposição. É bem verdade que vários desses intelectuais são vinculados a outros partidos políticos, alguns dos quais foram violentamente atacados pelo governo na última campanha presidencial, de sorte que têm mágoa e ressentimento – justificados – com o governo. Mas, ainda assim, muitos outros intelectuais são propriamente independentes, isto é, criticam o governo porque consideram que os atuais rumos e hábitos políticos do país são errados e conduzem a direções daninhas.

Nesse sentido, esses intelectuais "independentes" e, em menor medida, os intelectuais vinculados aos partidos que não o principal da oposição, levam a sério seu papel de "poder Espiritual", ainda que não conheçam e/ou não levem a sério a própria idéia do poder Espiritual; em outras palavras, seja empírica, seja sistematicamente, tais intelectuais que se mantêm críticos entendem que seu papel é formar e orientar a opinião pública.

Por outro lado, vários outros intelectuais buscam apoiar o governo como forma de legitimá-lo neste momento em que a crise de legitimidade também integra o rol de crises. Esse esforço de legitimação, todavia, não consiste em afirmar que várias políticas específicas e/ou que a orientação geral do governo são adequadas para a consecução de determinados fins socialmente necessários e/ou importantes; o que se vê é um esforço sistemático para afirmar a correção de todas as medidas governamentais e para desqualificar todos os que se opõem ao governo (geralmente por meio de sugestões viperinas, como, por exemplo, no sentido de que os críticos seriam quinta-colunas ou aristocratas ciumentos de seus privilégios); as críticas que porventura fazem ao governo vão na direção de que o governo deveria perseverar na direção que toma, independentemente de se tal direção é correta, adequada ou conforme o bem comum. Em outras palavras, são intelectuais simplesmente a serviço do governo: são uma forma cada vez mais desesperada de tentarem realizar a "hegemonia" gramsciana, mas, de qualquer maneira, submetem o aconselhamento ao mando e instrumentalizam o aconselhamento de acordo com as necessidades momentâneas do mando. Na medida em que são intelectuais, esses indivíduos degradam-se como seres humanos; como analistas das políticas públicas, esses indivíduos abrem mão de sua capacidade analítica e crítica; como cidadãos, esses indivíduos procuram apenas servir ao Estado.

Sendo bem franco: pessoalmente, considero assustador o comportamento dos intelectuais governistas, tal o grau de adesão que eles manifestam ao governo. Não se trata aqui de simplesmente apoiar o governo: afinal de contas, o governo existe para governar a sociedade e o normal é que ele seja, de fato, em geral apoiado. O problema aqui consiste em que os atuais intelectuais governistas sistematicamente ignoram problemas evidentes; afirmam que as críticas ao governo são motivadas por "falta de patriotismo" ou por mesquinharia de classe; apóiam propostas irracionais e criticam propostas que visam a racionalizar, a moralizar e a tornar mais eficiente o Estado e o serviço público. A isso se soma o fato de que esse comportamento é vinculado não ao Estado ou ao governo, mas ao partido político que atualmente exerce o governo. Assim, o assustador é que tais intelectuais, por vontade própria, deixam de ser intelectuais para tornarem-se apenas membros do partido político; embora tenham abandonado totalmente o poder Espiritual, valem-se de suas posições institucionais e de seus títulos acadêmicos para darem a impressão de que permanecem no poder Espiritual.

Sem negar os danos que o radicalismo, o extremismo, a exaltação de ambos os lados – do governo e da "oposição" – que a presente conjuntura acarretam e de que se alimenta, estou convencido de que essa verdadeira "traição dos clérigos" é o mais sério problema envolvendo intelectuais neste momento. Esse problema sem dúvida terá, como já está tendo, conseqüências nefastas e, infelizmente, duradouras.

26 junho 2015

"Grandes poderes trazem grandes responsabilidades": Homem-Aranha positivista?!

A matéria abaixo, publicada pelo jornal eletrônico BBC-Brasil, merece a leitura e a reflexão - não a respeito do problema que estava sendo disputado - a manutenção ou o fim dos direitos intelectuais de uma invenção -, mas a respeito da frase que a Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos citou para embasar sua decisão.

De fato, a frase "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades" é familiar aos aficcionados por gibis e, em particular, pelo Homem-Aranha; essa frase era dita pelo tio Ben, que era tio de Peter Parker (o alter ego do Homem-Aranha). 

O que deve ser notado, todavia, é que essa frase não é do "tio Ben" - nem, por extensão, do criador do Homem-Aranha, Stan Lee -; na verdade, ela é do fundador do Positivismo, Augusto Comte, que nos quatro volumes do seu monumental Sistema de política positiva (1851-1854) repete-a inúmeras vezes.

Qual o sentido da frase de Comte? Ela estipula que os poderosos - isto é, aqueles que têm poder e riqueza - devem agir de maneira a beneficiar a sociedade e não a usufruir egoisticamente seus recursos. Em associação a esse raciocínio, está a observação de Comte de que a riqueza é socialmente produzida e, portanto, deve ser revertida em benefício da sociedade.

A afirmação da responsabilidade social dos ricos e dos poderosos acompanha, implícita e explicitamente, o reconhecimento de que a riqueza e o poder político concentram-se em alguns grupos sociais - o que, bem vistas as coisas, não é uma observação chocante em si mesma, sendo o mais puro senso comum político e sociológico. O problema, claro, surge quando se afirma que a riqueza e o poder político devem ser distribuídos por toda a sociedade, de modo igual para todos, deixando de lado qualquer consideração sobre as possibilidades de geração e aumento da riqueza, por um lado, e sobre em que consiste exatamente o poder político, por outro lado. 

Em suma, esse tipo de raciocínio só pode ser formulado por aqueles que não perdem tempo e recursos preciosos sendo contra o capital e o Estado, mas que se preocupam com o emprego socialmente responsável dessas instituições.

Em todo caso, não deixa de ser curioso como, ao repetir essa frase, o Homem-Aranha revela-se positivista!

A publicação original da matéria pode ser consultada aqui.

*   *   *

Suprema Corte dos EUA cita Homem Aranha ao proferir decisão
  • 22 junho 2015


A 'arma' do Homem Aranha para lançar teias foi objeto de um processo judicial nos Estados Unidos movido pelo inventor da 'ferramenta' contra a empresa criadora do super-herói

Em um 'recadinho' especial para os fãs de quadrinhos, a Suprema Corte americana usou várias referências ao famoso desenho do Homem Aranha em uma decisão judicial envolvendo um processo contra a própria Marvel Comics, criadora do personagem.
A decisão foi favorável à empresa de entretenimento em uma batalha legal com o inventor da luva que dispara fios de espuma, Stephen Kimble – a invenção interessou a criadora do Homem Aranha para o super-herói utilizá-la na hora de "disparar" suas teias.
"Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades", escreveu a juíza Elena Kagan, fazendo referência à frase de Benjamin Parker, o "Tio Ben" do Homem Aranha na história em quadrinhos.
A Marvel comprou a patente das luvas em 2001 e aceitou pagar uma porcentagem sobre os produtos vendidos que usassem este sistema. A batalha legal agora era a respeito da continuidade do pagamento dos royalties – a Marvel diz que a patente expirou em 2010, enquanto o inventor das luvas alega que o acordo era pelo pagamento da porcentagem "para sempre".
"As partes não estabeleceram uma data final para o pagamento de royalties, aparentemente considerando que ele iria continuar enquanto as crianças quisessem imitar o Homem Aranha (fazendo tudo o que uma aranha pode fazer)", escreveu Kagan.
A frase tem outra referência à história em quadrinhos, tirada da música tema do programa de TV do Homem Aranha em 1967. A letra da música em inglês dizia exatamente o que foi mencionado pela juíza no fim "Spider-Man, Spider-Man, does whatever a spider can" ("Homem Aranha, Homem Aranha, faz tudo o que uma aranha pode fazer", na tradução livre).
O caso foi decidido com uma votação de 6 a 3 em favor da Marvel.
No julgamento, a Marvel mencionou uma decisão judicial de 1964 nos Estados Unidos que libera as empresas de pagarem patentes que já expiraram.
Kimble pedia, porém, que a Justiça passasse por cima da decisão anterior da Corte americana. Ao final, a juíza reconheceu que o Tribunal poderia passar por cima de decisões anteriores, mas que isso deveria ser usado "com moderação".
O inventor da luva já ganhou mais de US$ 6 milhões da Marvel em pagamentos de royalties pelo brinquedo.

13 setembro 2013

Manifestações públicas, rostos cobertos e responsabilidades políticas

A Lei n. 6.528/2013 do estado do Rio de Janeiro, votada em 11.9.2013, que proíbe o uso de máscaras e adereços que impeçam a identificação visual dos indivíduos em manifestações públicas, devido à sua importância política, seja em termos teóricos, seja devido à sua repercussão nacional, conduziu-me a algumas reflexões, que exponho abaixo.

Estamos em um regime de liberdades e em uma república. Quem se manifesta tem que se responsabilizar pelo que se manifesta. Assim como a manifestação é pública, a responsabilização tem que ser pública. Tapar o rosto é impedir que se identifique o manifestante, ou seja, é permitir uma espécie de anonimato na manifestação política.

Assim como se exigiu - corretamente - que os parlamentares do Congresso Nacional tenham seus votos abertos, deve-se exigir que os manifestantes tenham seus rostos abertos. Na verdade, não faz sentido e não é aceitável que a sociedade que se representa a si mesma por meio de manifestações de rua queira responsabilizar-se menos por suas opiniões que os seus representantes, que ela (a sociedade) exigiu que se responsabilizassem por suas opiniões.

Não me parece justificável, de maneira alguma, o suposto privilégio de os manifestantes populares poderem esconder o rosto. Como comentei há pouco, isso é uma forma de anonimato, que é politicamente imoral em um regime de liberdades, mas, de qualquer maneira, torna-se ainda menos defensável e ainda mais incoerente agora que se obteve, após mais de 120 anos de República no Brasil, a publicidade dos votos dos parlamentares.

Não estamos nem em regime de exceção nem em regime de força: vivemos em uma "democracia". Os discursos contrários ao capitalismo, de inspiração marxista, servem apenas como cortina de fumaça para a necessidade da publicidade das ações políticas, ao sugerirem uma eterna perseguição. A perseguição, aliás, existe para aqueles que se negam a identificar-se e para aqueles que se valem precisamente do anonimato para a depredação e para o vandalismo: em outras palavras, ocorre perseguição para quem é contra a publicação e o pacifismo das manifestações, dois dos princípios basilares da política republicana.

Mesmo que, em tese, estivéssemos sob um regime de força, seria um regime de força bastante curioso, pois é um regime que tolera manifestações maciças e alastradas por todo o país, que paralisam vias públicas durante várias horas e ocupam órgãos públicos durante semanas. 

Mas em regimes de força a importância da identificação, isto é, da responsabilização é ainda maior: o sacrifício pessoal inspira e é capaz de mobilizar muito mais as mudanças sociais. As manifestações de massa contrárias ao regime militar de 1964 eram todas feitas com o rosto descoberto e não se pode esquecer o jovem chinês que em 1989 desafiou, também de rosto descoberto, os tanques na Praça da Paz Celestial.