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25 julho 2020

Aforismos sociológicos X: anotações sobre o politicamente correto


Anotações sobre o politicamente correto

-        Antes de mais nada, é importante notar que a expressão “politicamente correto” é uma tradução incorreta para o português do original em inglês “political correctness”, que, adequadamente traduzido, significa “correção política”

-        A origem remota da expressão está na adequação e na submissão de opiniões quaisquer às disputas políticas travadas pelo Partido Comunista soviético; nesse sentido, muitas opiniões não poderiam ser manifestadas caso entrassem em choque com a doutrina oficial do partido, fosse diretamente, fosse porque sugeriria uma nuança na argumentação empregada

o   Assim, a origem da expressão está ligada ao controle das opiniões e, portanto, à submissão (servil, além de tudo) do poder Espiritual ao poder Temporal

-        A partir dos anos 1980, talvez um pouco antes, a esquerda estadunidense passou a propagar mudanças de valores que refletiriam na linguagem utilizada; essas mudanças propostas passaram a ser chamadas também de “politicamente corretas”

o   O politicamente correto[1] dos anos 1980 baseava-se por um lado na política identitária (ou seja, correspondia ao abandono de um projeto universalista) e, por outro lado, no pós-modernismo (ou seja, nas concepções ultrassubjetivistas, ultra-relativistas e textualistas da realidade)

o   Esse politicamente correto buscava respeitar os grupos identitários, modificando expressões consideradas ofensivas, degradantes, “subalternizantes” etc.

§  Até onde sei, não há continuidade entre o controle político exercido pelos soviéticos sobre as opiniões quaisquer e a prática desenvolvida pela esquerda estadunidense

§  A vinculação da expressão “politicamente correto” à política identitária dos anos 1980 ocorreu pelos críticos à direita (conservadores) dessa mesma política identitária; independentemente da nossa concordância ou discordância com essa prática política, talvez a intenção dos seus críticos fosse associá-la ao controle mental exercido pelos soviéticos

§  O caráter lingüístico e ao mesmo tempo identitário do politicamente correto torna-o bastante arredio (para não dizer refratário) à noção de cidadania, na medida em que esta é ao mesmo sócio-política, universalizante e includente

o   A nova “política lingüística” instituída pelo politicamente correto substituiu a política “real”, isto é, a política que se concentra(va) em questões de classe, de poder (e, no caso dos EUA, de raça)

o   O raciocínio empregado pela política lingüística é ambígüo, considerando que mudanças lingüísticas podem resultar com o passar do tempo em mudanças reais ou, em uma versão mais forte da tese, que essas mudanças lingüísticas são tudo o que importa para a política

-        As críticas ao politicamente correto são variadas:

o   Critica-se a pretensão de que as mudanças lingüísticas conduzam necessariamente a mudanças reais

o   Também se critica a pretensão de que as mudanças lingüísticas bastem, desconsiderando as mudanças reais

o   De um ponto de vista lingüístico, as críticas acima opõem-se à “hipótese Whorf-Sapir”, que em sua versão forte é de fato insustentável[2]

o   Também se critica a instituição de uma polícia lingüística, estabelecida e mantida por grupos político-sociais e que, a partir do controle das expressões, acaba controlando as idéias

o   Em um sentido menos duro que a crítica anterior, também se critica o uso reiterado de eufemismos para descrever grupos sociais, em substituição a expressões consideradas “duras” (como “maior idade” ou “melhor idade” no lugar de “idosos”)

§  No caso dos eufemismos, com freqüência se busca empregar longos circunlóquios para descrever situações ou coisas que se pode descrever com uma ou poucas palavras (sejam eufemísticas ou não essas poucas palavras)

§  Em sentido semelhante ao item anterior, critica-se a censura a expressões habituais como “criado-mudo” (suposta apologia à opressão de trabalhadores, em particular trabalhadores negros) ou “a situação ficou preta” (suposto racismo) – sendo que tais expressões não são necessariamente degradantes (seja em sua origem, seja em seu uso atual)

o   Uma forma radical de “política lingüística” instituída pelo politicamente correto é a pretensão ­– de origem claramente identitária – de realizar uma completa revolução lingüística a partir de parâmetros estritamente políticos, como no caso de forçar no português a neutralidade de gênero para todos os casos, por meio da substituição das desinências “o” e “a” por “x” e/ou “e” (por exemplos: “pessoes” ou “pessoxs” no lugar de “pessoas”)

§  Esse projeto, além de tudo, é encarado por seus defensores como eminentemente “progressista”

-        Uma avaliação positiva do politicamente correto segue as seguintes linhas:

o   Antes de mais nada, vale notar que o sentido original da “correção política” é inaceitável: o controle político das idéias não pode ocorrer nunca, em nenhuma situação

§  Para que o controle político das idéias não ocorra, é necessário respeitar-se criteriosamente a separação entre os dois poderes (Espiritual e Temporal)

§  Essa advertência inicial é tão mais necessária quanto considera-se que os movimentos que defendem o politicamente correto são movimentos “políticos”, no duplo sentido de que têm em vista objetivos políticos e que desprezam os procedimentos morais; além disso, os movimentos que defendem o politicamente correto são “revolucionários” e apodam a defesa da moralidade como “conservadora”[3]; mas o principal é que tais movimentos elegem a ação política como preferencial, o que significa que tendem a querer que suas pautas sejam implementadas, ou melhor, impostas pelo Estado

o   A inspiração afetiva básica do politicamente correto atual é aceitável e em linhas gerais é correta, na medida em que seu objetivo é evitar-se expressões degradantes e ofensivas

§  Essa inspiração corresponde tanto a uma aplicação específica do altruísmo quanto à fraternidade, em que a inteligência seleciona expressões que não correspondem aos sentimentos atuais de respeito ao ser humano e à diversidade social

§  A atenção a ser dada ao emprego de determinadas palavras e expressões corresponde a um refinamento da nossa sensibilidade, bem como a uma atualização dessa sensibilidade, em que se presta maior atenção à correspondência entre os valores professados e as expressões empregadas correntemente

o   O meio selecionado pelo politicamente correto basicamente atua no âmbito do poder Espiritual, pois refere-se aos valores e às palavras empregadas para expressar tais valores, além de alguns valores cristalizados (ou, quem sabe, fossilizados) em algumas expressões

§  Parte das críticas sofridas pelo politicamente correto devem-se ao desajuste entre os valores próprios ao politicamente correto e o conjunto da sociedade, no sentido de que o conjunto da sociedade resiste a rever seus valores e a agir em conformidade com essa revisão

§  Embora em si mesmas as mudanças propostas pelo politicamente correto compitam ao poder Espiritual, a origem revolucionária do movimento politicamente correto leva-o a adotar meios políticos para problemas espirituais

o   Para qualquer pessoa sensata, e para qualquer pessoa com sensibilidade histórica, deve ser claro que qualquer mudança social implica também uma alteração lingüística, no sentido de que novas expressões tornam-se correntes, outras perdem relevância, outras mudam de sentido e outras são explicitamente rejeitadas

§  Na verdade, o politicamente correto inverte radicalmente a ordem das mudanças: em vez de haver mudanças sociais seguidas por mudanças lingüísticas, ele quer que as mudanças linguísticas ocorram antes das mudanças sociais

§  No caso do politicamente correto, a mudança social é vista como ocorrendo apenas ou principalmente por meio da mudança lingüística; assim, a língua concentra as disputas sociais

o   A indução de mudanças sociais por meio de alterações lingüísticas é aceitável; em certo sentido, isso corresponde precisamente à atuação do poder Espiritual

§  As mudanças sociais a partir das mudanças lingüísticas não ocorrem apenas porque as palavras mudam, mas porque as sensibilidades, as idéias e os valores alteram-se

§  A lógica do poder Espiritual, portanto, corresponde à seguinte seqüência: mudança de valores e idéias à mudança de sensibilidade à mudança de palavras

§  A lógica do politicamente correto pode ser descrita pelo seguinte esquema: mudança de palavras à mudança de sensibilidade à mudança de valores e idéias

§  O esquema acima deixa claro que, em relação à lógica positiva, em vez de o politicamente correto adequar-se à inspiração afetiva e, a partir daí, alterar de maneira conforme os sinais empregados (ou seja, a linguagem), ele despreza a lógica positiva, despreza a origem afetiva e quer forçar os sentimentos por meio dos sinais

o   Por outro lado, a maior parte das críticas ao politicamente correto são acertadas:

§  ele não é relativista e, ao contrário, é absoluto, anti-histórico e antissociológico

§  despreza a historicidade das expressões (ou seja, as expressões e as palavras mudam de sentido com o passar do tempo); ela também força interpretações negativas em palavras e expressões que, em si mesmas, não são ofensivas e cujos sentidos originais perderam-se com o tempo

§  reduz a subjetividade humana apenas à linguagem; em vez de buscar regular e sistematicamente acordos e consensos nessa subjetividade (mesmo que reduzida), transforma a linguagem em palco de disputas políticas

§  a concepção de política que adota freqüentemente não tem em vista a coletividade, a harmonia nem o bem comum, mas tem um caráter bélico (amigos vs. inimigos) e particularista (afinal, é identitária)

§  tem uma visão adolescente da vida social e política: adota um tudo-ou-nada e a lei de Talião como princípios diretivos, assim como a culpa e o inculpar-se como princípios de justiça

§  em vez de pautar-se pelo altruísmo e pela fraternidade universal, o princípio afetivo que o orienta é o ressentimento

§  tende a desprezar a realidade, no sentido de que adota a interpretação textualista do pós-modernismo e que rejeita a realidade material da sociedade

-        Em suma: de modo geral, o politicamente correto é um desvio, mesmo uma corrupção, do altruísmo, que, imbuído de um espírito crítico, assume um direcionamento revolucionário, violento e político, em vez de manter-se no poder Espiritual, estritamente no âmbito do aconselhamento, com a aplicação cuidadosa e circunstanciada da revisão das palavras como passo seguinte à mudança geral de sentimentos

o   Além disso, falta ao politicamente correto o emprego altruísta dos sentimentos altruístas, no sentido de que como regra o politicamente correto não formula a hipótese mais simpática, dando sempre ênfase às hipóteses mais negativas e destruidoras

o   Vale notar que o politicamente correto de modo geral assume um caráter repressivo, que está de acordo com a inspiração geral da sociedade estadunidense, marcadamente protestante nesse como em outros aspectos 



[1] Embora, como vimos, a tradução adequada de political correctness seja “correção política”, usarei “politicamente correto” por uma questão de comodidade.

[2] Em termos bastante simples, a hipótese Whorf-Sapir estabelece que os limites da compreensão que um grupo social (e, por extensão, cada indivíduo) tem é dado pelos limites descritivos de cada língua; assim, para que um determinado grupo social amplie compreensão do mundo ele deve “importar” palavras de outras línguas. De qualquer maneira, a versão forte da hipótese propõe que a ampliação da língua é condição sine qua non para ampliação do entendimento, em vez de ser sua conseqüência. Vale notar que os próprios Edward Lee Whorf e Edward Sapir não elaboraram a hipótese a eles atribuída, pelo menos em sua versão forte.

[3] Para tais grupos, a moralidade só é aceitável na medida em que for a própria moralidade e em que eles próprios defendam pautas morais; a moralidade de outros grupos, especialmente aquelas de quem eles discordam, é sempre, por definição, vista como “conservadora”, “dominadora” e hipócrita. Além disso, a moralidade não raro é entendida como um meio para um fim, em vez de ser ela mesma um fim em si própria.

27 agosto 2015

Comte: ambição política dos teóricos como sinal de fraqueza moral e intelectual

“Toda avidez pecuniária, como toda ambição temporal, tornar-se-á logo uma fonte legítima de suspeição relativamente aos que, aspirando ao governo espiritual da Humanidade, indicam assim ao povo sua insuficiência moral, ordinariamente ligada a uma secreta impotência mental”


(Augusto Comte, Sistema de política positiva, 4ª ed., 1929, v. I, p. 194).

25 agosto 2015

Poder Espiritual, intelectuais e a conjuntura atual


Sempre me interessei por política, ou melhor, por estudos sobre a sociedade e sobre a história, além de pela ciência; a aproximação com as Ciências Sociais e, até certo ponto, com a chamada política prática foi algo natural. Ao mesmo tempo, em inúmeras ocasiões considerei seriamente em filiar-me a partidos políticos, mas dois motivos – muito próximos entre si, embora distintos – sempre me impediram de que eu desse o passo final nessa direção; um desses motivos é de ordem teórico-filosófica, o outro é de ordem prática.

O motivo teórico consiste em que, como positivista, isto é, como adepto da filosofia e da religião fundadas por Augusto Comte, entendo-me como integrante do poder Espiritual, cuja ação deve dar-se por meio do aconselhamento, por meio do guiar os sentimentos, as idéias e os valores; conforme Comte repetia continuamente, quem aconselha não pode mandar, sob o risco de degradar o conselho e tornar hipócrita o mando.

O motivo prático consiste em que jamais quis abrir mão da minha capacidade de criticar as bobagens realizadas por políticos práticos, nem, por outro lado, quis aceitar subscrever, devido à necessária fidelidade partidária, as tolices ditas e feitas pelos políticos profissionais. Isso não significa que eu não tivesse ou não tenha minhas preferências ou minhas simpatias político-partidárias; da mesma forma, isso não significa que eu perfilhe-me entre a "oposição", ou seja, naquele grupo que se define como tendo que se opor sistematicamente ao governo, ou à "situação", em desrespeito sistemático aos interesses do país e da Humanidade. Minha preocupação, nesse sentido, sempre foi com manter a capacidade e a possibilidade de poder dizer, com um mínimo de independência, que aquelas políticas que considero incorretas são, de fato, incorretas, sem me ver obrigado por filiações partidárias a afirmar que tais políticas seriam corretas ou, por outro lado, ser acusado de partidarismo ao fazê-lo.

No fundo, bem vistas as coisas, a minha precaução prática constitui-se na condição para realizar o comportamento proposto do ponto de vista teórico.

Além disso, cumpre notar que o conceito positivista de "poder Espiritual" sempre me pareceu mais legítimo que todas as outras concepções rivais, como a "hegemonia" gramsciana ou a "ética da responsabilidade" weberiana.

A "hegemonia" defendida por Gramsci nada mais é que o esforço empreendido por um partido de classe em dominar intelectual e moralmente o conjunto da sociedade: trata-se, portanto, de um mero recurso da luta de classes, em que uma parte da sociedade lança mão de expedientes com o objetivo de dominar outras partes da sociedade. Nesse quadro, tanto o "domínio" quanto a "luta de classes" devem ser entendidos literalmente, ou seja, em termos de guerra civil, ainda que disfarçada. Isso não é exagero nem uma suposta distorção da proposta de Gramsci e, antes dele, das propostas de Marx e Engels: a orientação belicista da "luta de classes" e, por extensão, da "hegemonia da classe proletária" sempre foi explícita e assumida por todos esses pensadores; não é à toa que Marx e Engels (mas também Lênin) são considerados filósofos da guerra. Nesse sentido, as interpretações correntes da "hegemonia" – segundo as quais ela é um simples consenso social em favor de valores universalmente válidos, como a "democracia" ou o "Estado de Direito" – ou são versões ingenuamente edulcoradas e falseadoras do pensamento de Gramsci, ou são mistificações da intenção subjacente ao pensamento de Gramsci e, portanto, são formas de enganar o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a independência moral e intelectual e a possibilidade de crítica estão radicalmente afastadas; mesmo no caso da crítica à classe combatida não há independência, pois os "argumentos" utilizados são elaborados de maneira estratégica e tática, ou seja, subordinados à mais rasteira conveniência política; em outras palavras, as idéias são manipuladas ao sabor das alianças políticas, resultando em cinismo e em hipocrisia.

Assim, a idéia gramsciana de "hegemonia" é radicalmente contrária à proposta positivista de "poder Espiritual", seja porque une estreitamente o aconselhamento ao mando, seja porque subordina o aconselhamento ao mando, seja porque finge que o aconselhamento não está a serviço do mando.

A idéia weberiana da "ética da responsabilidade" é intelectualmente mais satisfatória, mas ainda assim é inferior à proposta positivista do "poder Espiritual". A "ética da responsabilidade" forma par com a "ética da convicção"; nessa dupla, a primeira "ética" refere-se ao comportamento adotado pelos políticos, cuja é com as conseqüências de seus atos, no sentido de que devem pesar o que acontecerá se determinadas ações forem tomadas; a "ética da responsabilidade" corresponde ao comportamento adotado por aqueles indivíduos motivados por suas convicções íntimas e para quem, nesse sentido, não importam as conseqüências de sua ação, mas apenas a fidelidade às suas crenças íntimas. Weber comentava que, em sua tipologia, a "responsabilidade" não abre mão, necessariamente, das "convicções", pois os políticos de modo geral precisam de orientações morais e intelectuais para sua conduta; inversamente, a "convicção" nem sempre deixa de lado a "responsabilidade", pois pode considerar os efeitos de seu comportamento na consecução dos valores pelos quais se guia.

Analiticamente, a oposição entre as éticas da "responsabilidade" e da "convicção" é interessante; todavia, ela nada mais é que "interessante". Essa oposição não distingue entre os indivíduos e os grupos que, por um lado, dedicam-se explicitamente à atividade política, isto é, à tomada de decisões e aqueles que, por outro lado, dedicam-se à formulação e à difusão de idéias e valores.

Da mesma forma, essa oposição não estabelece os critérios que devem pautar uma organização sócio-política correta e adequada; ao apenas afirmar que há indivíduos mais preocupados com as conseqüências de seus atos e indivíduos mais preocupados com a fidelidade íntima a si mesmos, essa oposição deixa sem qualquer tipo de orientação os problemas fundamentais que consistem em saber o que é uma boa sociedade, qual é o "bem comum", qual a relação que se deve manter entre o mando e o aconselhamento, qual é a relação que se deve manter entre as classes sociais etc. Poder-se-ia, talvez, argumentar que Weber explicitamente era contrário a que categorias analíticas servissem também como guias para a ação prática; com todas as letras, ele era favorável à famosa "separação entre fatos e valores". Entretanto, embora de fato seja necessário que se respeitem as características e as condições próprias à compreensão racional do mundo, por outro lado também é necessário ter clareza de que, sem orientação prática, essa compreensão racional é vazia e destituída de sentido. Como argumentava Augusto Comte, o valor da ciência (e, de modo mais amplo, o valor da inteligência) consiste em atuar como conselheira dos sentimentos: ora, a oposição entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", bem como, de modo mais amplo, toda a filosofia da ciência de Weber rejeitam a concepção de subordinação da ciência aos sentimentos, ao considerar ilegítima essa subordinação.

A mera oposição analítica entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", portanto, é sugestiva para o estudo de alguns comportamentos e da "psicologia" de alguns indivíduos, mas ela esgota-se aí; para piorar, essa oposição é uma forma mais ou menos vazia, que pode aplicar-se a uma quantidade enorme de casos díspares e que, no fim, acaba tendo reduzido poder analítico. Por exemplo, é possível aplicar a idéia da "ética da convicção" tanto a Hitler, quanto a Stálin, quanto a Cromwell, quanto a Gandhi; ou a São Francisco de Assis e a Antônio Conselheiro; por outro lado, é possível aplicar o conceito de "ética da responsabilidade" tanto a Bismarck, quanto a Júlio César, quanto a Léon Gambetta, quanto a Fernando Henrique Cardoso: é até interessante pôr essas duas etiquetas em todos esses indivíduos, mas as perspectivas específicas e as condições sociais de todos eles são tão diferentes entre si que, de fato, pouco se aprende com as categorias "ética da responsabilidade" e "ética da convicção". Por fim, aplicar essas duas categorias a todos esses indivíduos diz pouco mais do que já se sabe a respeito de todos eles; na verdade, essas duas categorias apenas formalizam o que empiricamente, com base no mais elementar senso comum, já se sabe a respeito de todos eles.

Assim, a idéia de "ética da responsabilidade", embora seja analiticamente interessante, apresenta vários problemas teóricos e práticos: por um lado, é pouco explicativa e ainda menos descritiva; por outro lado, simplesmente não serve como guia prático.

Para resumirmos, podemos dizer que a idéia gramsciana de "hegemonia", embora baseie-se na união entre teoria e prática, estabelece um vínculo demasiadamente forte e estreito entre ambas as atividades, subordinando a teoria à prática e, portanto, degradando a teoria e tornando a prática profundamente cínica e hipócrita; além disso, a "hegemonia" baseia-se no estreito particularismo de uma classe, que busca dominar e eliminar outra classe, além de incentivar a beligerância. No caso do conceito weberiano de "ética da responsabilidade", embora ele distinga a teoria e a prática, ele leva muito longe essa distinção – na verdade, ele baseia-se na rejeição das imbricações entre teoria e prática –; assim, esse conceito é propositalmente inútil em termos práticos. Já em termos analíticos, isto é, teóricos, embora ele dê azo a algumas reflexões, no final das contas essas reflexões são bastante limitadas e rasas.

Por que faço essas reflexões todas? Porque a conjuntra atual do Brasil – que atravessa ao mesmo tempo intensas crises política e econômica, em que uma é causa e alimento da outra – tem suscitado as mais diferentes reações da parte dos chamados "intelectuais". É claro que o "público em geral" também tem reagido bastante a esses problemas: as inúmeras manifestações que têm ocorrido no Brasil nos últimos dois ou três anos e que se têm incrementado desde as eleições presidenciais de 2014 são a mais clara demonstração de um intenso ativismo social.

Mas a situação dos intelectuais é específica, pois a eles cabe ao mesmo tempo a análise intelectual dos problemas por que o Brasil passa e a indicação de caminhos para que essas crises sejam solucionadas – caminhos que devem ser indicados tanto para a sociedade civil quanto para o governo. Assim, os intelectuais têm um papel fundamental no atual cenário; na verdade, como deveria ser evidente para qualquer cientista social, os intelectuais são importantes em qualquer momento, mas nos períodos de crise essa importância aumenta, justamente devido às dificuldades próprias à legitimidade do governo. Além disso, convém notar que a grande maioria desses "intelectuais" é de professores universitários, que se valem dessa condição institucional para legitimarem-se perante a sociedade e perante o governo e que integram órgãos estatais e entidades civis para emitirem "opinões".

Ora, muitos desses intelectuais mantêm uma postura fortemente crítica contra o governo atual; a maior parte dessas críticas, para não dizer sua totalidade, é justa. Vários desses intelectuais não se preocupam nem com a estabilidade do país, nem, em conseqüência, com a sua governabilidade: em certo sentido, eles não são responsáveis, na medida em que, preocupados com sua críticas, não apontam rumos factíveis para o país superar seus sérios e profundos problemas.

Essa postura constitui o cerne da "oposição": ora, a idéia da "oposição" surgiu na Inglaterra, como sendo o conjunto minoritário de parlamentares, isto é, aqueles parlamentares que não dão apoio ao primeiro-ministro; a autoproclamada função desse grupo seria criticar sistematicamente o governo e elaborar propostas alternativas de políticas públicas, seja como forma de legitimar-se perante a opinião pública (com propostas que difeririam de qualquer maneira das políticas implementadas pelo governo, qualquer que seja a razoabilidade ou a viabilidade dessas propostas alternativas), seja como eventuais contribuições legítimas: em todo caso, a "oposição" basicamente serve para incomodar o governo. No Brasil, nas últimas três décadas, ou a "oposição" foi extremamente crítica, quando não reacionária, ou foi inerte e indistinguível do governo; em outras palavras, como "oposição" o PT sempre foi virulento e, ao tornar-se governo, teve a felicidade de lidar com rivais molengas, desarticulados e sem identidade.

Entretanto, desde as eleições presidenciais de 2014, o comportamento dessa oposição mudou bastante, principalmente devido à insatisfação social com o governo. Essa oposição deixou de ser apática e molenga e, mudando bastante o seu padrão de comportamento, assumiu uma postura cada vez mais radical, em que o que importa é criticar o governo e buscar obter o poder, independentemente de outras considerações. Nesse sentido, essa oposição passou a assumir as piores características que seus rivais mantinham antes de assumir o poder.

Essa oposição – é necessário dar nomes aos bois: o PSDB – é basicamente partidária, isto é, organizada em partido político. O importante a notar é que, embora haja diversos intelectuais vinculados oficialmente a essa oposição partidária, o grosso dos intelectuais que se opõe ao governo não é partidária, ou pelo menos não é vinculada ao principal partido da oposição. É bem verdade que vários desses intelectuais são vinculados a outros partidos políticos, alguns dos quais foram violentamente atacados pelo governo na última campanha presidencial, de sorte que têm mágoa e ressentimento – justificados – com o governo. Mas, ainda assim, muitos outros intelectuais são propriamente independentes, isto é, criticam o governo porque consideram que os atuais rumos e hábitos políticos do país são errados e conduzem a direções daninhas.

Nesse sentido, esses intelectuais "independentes" e, em menor medida, os intelectuais vinculados aos partidos que não o principal da oposição, levam a sério seu papel de "poder Espiritual", ainda que não conheçam e/ou não levem a sério a própria idéia do poder Espiritual; em outras palavras, seja empírica, seja sistematicamente, tais intelectuais que se mantêm críticos entendem que seu papel é formar e orientar a opinião pública.

Por outro lado, vários outros intelectuais buscam apoiar o governo como forma de legitimá-lo neste momento em que a crise de legitimidade também integra o rol de crises. Esse esforço de legitimação, todavia, não consiste em afirmar que várias políticas específicas e/ou que a orientação geral do governo são adequadas para a consecução de determinados fins socialmente necessários e/ou importantes; o que se vê é um esforço sistemático para afirmar a correção de todas as medidas governamentais e para desqualificar todos os que se opõem ao governo (geralmente por meio de sugestões viperinas, como, por exemplo, no sentido de que os críticos seriam quinta-colunas ou aristocratas ciumentos de seus privilégios); as críticas que porventura fazem ao governo vão na direção de que o governo deveria perseverar na direção que toma, independentemente de se tal direção é correta, adequada ou conforme o bem comum. Em outras palavras, são intelectuais simplesmente a serviço do governo: são uma forma cada vez mais desesperada de tentarem realizar a "hegemonia" gramsciana, mas, de qualquer maneira, submetem o aconselhamento ao mando e instrumentalizam o aconselhamento de acordo com as necessidades momentâneas do mando. Na medida em que são intelectuais, esses indivíduos degradam-se como seres humanos; como analistas das políticas públicas, esses indivíduos abrem mão de sua capacidade analítica e crítica; como cidadãos, esses indivíduos procuram apenas servir ao Estado.

Sendo bem franco: pessoalmente, considero assustador o comportamento dos intelectuais governistas, tal o grau de adesão que eles manifestam ao governo. Não se trata aqui de simplesmente apoiar o governo: afinal de contas, o governo existe para governar a sociedade e o normal é que ele seja, de fato, em geral apoiado. O problema aqui consiste em que os atuais intelectuais governistas sistematicamente ignoram problemas evidentes; afirmam que as críticas ao governo são motivadas por "falta de patriotismo" ou por mesquinharia de classe; apóiam propostas irracionais e criticam propostas que visam a racionalizar, a moralizar e a tornar mais eficiente o Estado e o serviço público. A isso se soma o fato de que esse comportamento é vinculado não ao Estado ou ao governo, mas ao partido político que atualmente exerce o governo. Assim, o assustador é que tais intelectuais, por vontade própria, deixam de ser intelectuais para tornarem-se apenas membros do partido político; embora tenham abandonado totalmente o poder Espiritual, valem-se de suas posições institucionais e de seus títulos acadêmicos para darem a impressão de que permanecem no poder Espiritual.

Sem negar os danos que o radicalismo, o extremismo, a exaltação de ambos os lados – do governo e da "oposição" – que a presente conjuntura acarretam e de que se alimenta, estou convencido de que essa verdadeira "traição dos clérigos" é o mais sério problema envolvendo intelectuais neste momento. Esse problema sem dúvida terá, como já está tendo, conseqüências nefastas e, infelizmente, duradouras.

08 agosto 2011

Sobre a desconsideração da subjetividade na Teoria Política

A teoria política de Augusto Comte reconhece de maneira radical dois âmbitos da ação social: os poderes Temporal e Espiritual. Cada qual tem suas particularidades sociológicas e seu domínio político; as recomendações de Comte levam sempre em conta essa diversidade. Ora, a Teoria Política, pelo menos desde Hobbes, mas com certeza desde Guilherme de Ockham, desconsidera o poder Espiritual e afirma somente o Temporal; daí a facilidade com que as recomendações de Comte destinadas ao poder Espiritual sejam lidas como sendo para o Temporal, com a conseqüente interpretação de “autoritarismo” (basta ler-se Stuart Mill para evidenciar-se a utilização sistemática dessa falácia). (Aliás, deve-se juntar a isso a hipocrisia teórica, que assume que a citação comtiana de Hobbes é um sinal seguro de seu “autoritarismo”, como se Marx, Weber e toda a tradição política ocidental, com a exceção de Hannah Arendt, não afirmassem que o Estado funda-se em última análise na violência física: basta ler-se Roberto Romano para comprovar-se o emprego dessa falácia.)

Por outro lado, em sentido inverso, o problema subjacente à má interpretação da teoria política de Comte indica um empobrecimento muito grande da Teoria Política de modo geral, que só entende a política em termos de Estado, dominação, “aparelhos coercitivos”, “interesses” etc., de modo a ignorar os elementos ideacionais da política, ou a encará-los de maneira cínica e instrumental.

A acusação de que A. Comte é autoritário revela um brutal empobrecimento teórico da Teoria Política: seu resultado prático é fácil de prever e de comprovar: é a política da força, é afirmação de que o único meio aceitável para a vida política é por meio do Estado e, last but not the least, a doutrina oficial de Estado.

Uma outra conseqüência desse empobrecimento teórico, agora de caráter metodológico, é o desenvolvimento das propostas “interpretativas” nas C. Humanas: como o movimento moderno é em direção ao “materialismo” e, ao mesmo tempo, a Teoria Política enfatiza o poder, as concepções que desconsideram a subjetividade perdem importância. Isso, por sua vez, permite que a metafísica da “vontade”, da “ontologia”, do máximo subjetivismo tenha espaço: daí as propostas “interpretativistas”.