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18 outubro 2015

Pela Sociologia do conhecimento, contra a "regra Saramago"

Circula na internet, faz tempo, uma suposta citação de José Saramago, segundo a qual não se deve escrever para influenciar pessoas, mas para compartilhar opiniões; a "regra Saramago" ainda afirma que quem deseja influenciar os demais, na verdade, pratica uma espécie de "colonialismo mental".

Essa "regra Saramago", embora impressionante, parece-me ser uma bobagem demagógica e uma bobagem sem tamanho. Da minha parte, eu escrevo, sim, para influenciar pessoas: da mesma forma como leio o que os outros escrevem para eventualmente ser influenciado, eu escrevo para poder influenciar os demais.

Não duvido de que haja pessoas que não querem influenciar e que desejam apenas trocar idéias, entenderem-se em comunidade com outras e assim por diante. Mas daí a dizer que todos os que desejam influenciar são "colonizadores" é um salto gigantesco e um disparate.

Eu tenho minhas opiniões e julgo-as mais ou menos adequadas. Elas são "mais ou menos" adequadas porque é sempre possível que haja argumentos, perspectivas e fatos que possam indicar alguma inadequação no que penso: é por esse motivo que leio e escuto as idéias alheias, para confrontá-las às minhas e melhorar minhas concepções. Inversamente, acredito que meus conhecimentos, minhas perspectivas e meus raciocínios têm algum valor político, intelectual e, portanto, social: quero participar dos debates públicos e, dessa forma, quero, sim, influenciar os demais.

Se a "regra Saramago" for para valer, o resultado será um hiper-individualismo, em que há apenas idéias individuais, em que há apenas pessoas fechadas em si mesmas, em que não há troca de idéias, valores e perspectivas, em que as pessoas buscam apenas o reconhecimento individual e mútuo. A "regra Saramago" é a afirmação e a consagração do mais puro solipsismo, isto é, da concepção segundo a qual existe apenas eu no universo e que eu crio isoladamente todas as minhas opiniões, valores e idéias.

Quem, em alguma parte do planeta Terra, em algum momento da história, já teve qualquer opinião que não tenha sido fruto do diálogo e da influência alheia? Por outro lado, qual progresso (moral, mental, material, social) já surgiu em decorrência do fechamento dos indivíduos em seus felizes e egoístas solipsismos? Convém dizê-lo com todas as letras: o recusar a ser influenciado é uma forma aparentemente elegante de justificar a ortodoxia e o absolutismo mental.

Por outro lado, na medida em que Saramago era escritor e era comunista, a observação que ele fez parece-me profundamente hipócrita.

Em suma, a "regra Saramago" é sociologicamente errada, é moralmente indefensável e é pessoalmente hipócrita.

*   *   *

P. S.: Alguns conhecidos observaram-me que Saramago ter sido o autor da frase indicada no início desta postagem é algo duvidoso e que, mesmo no caso de ele ter sido o seu autor, a frase deve estar fora de contexto. Isso é possível, sem dúvida alguma: afinal de contas, a internet é um vespeiro de boatos. Por outro lado, vejo essa frase há questão de alguns anos e até o momento não vi nenhuma retificação a seu respeito, seja sobre a autoria, seja sobre o contexto.

P. S. 2: A observação de que Saramago pode não ter sido o autor e o "P. S." redigido acima somente confirmam as minhas observações e põem em questão na prática o que chamei (de maneira certa ou errada) de "regra Saramago".

27 agosto 2015

Comte: ambição política dos teóricos como sinal de fraqueza moral e intelectual

“Toda avidez pecuniária, como toda ambição temporal, tornar-se-á logo uma fonte legítima de suspeição relativamente aos que, aspirando ao governo espiritual da Humanidade, indicam assim ao povo sua insuficiência moral, ordinariamente ligada a uma secreta impotência mental”


(Augusto Comte, Sistema de política positiva, 4ª ed., 1929, v. I, p. 194).

25 agosto 2015

Poder Espiritual, intelectuais e a conjuntura atual


Sempre me interessei por política, ou melhor, por estudos sobre a sociedade e sobre a história, além de pela ciência; a aproximação com as Ciências Sociais e, até certo ponto, com a chamada política prática foi algo natural. Ao mesmo tempo, em inúmeras ocasiões considerei seriamente em filiar-me a partidos políticos, mas dois motivos – muito próximos entre si, embora distintos – sempre me impediram de que eu desse o passo final nessa direção; um desses motivos é de ordem teórico-filosófica, o outro é de ordem prática.

O motivo teórico consiste em que, como positivista, isto é, como adepto da filosofia e da religião fundadas por Augusto Comte, entendo-me como integrante do poder Espiritual, cuja ação deve dar-se por meio do aconselhamento, por meio do guiar os sentimentos, as idéias e os valores; conforme Comte repetia continuamente, quem aconselha não pode mandar, sob o risco de degradar o conselho e tornar hipócrita o mando.

O motivo prático consiste em que jamais quis abrir mão da minha capacidade de criticar as bobagens realizadas por políticos práticos, nem, por outro lado, quis aceitar subscrever, devido à necessária fidelidade partidária, as tolices ditas e feitas pelos políticos profissionais. Isso não significa que eu não tivesse ou não tenha minhas preferências ou minhas simpatias político-partidárias; da mesma forma, isso não significa que eu perfilhe-me entre a "oposição", ou seja, naquele grupo que se define como tendo que se opor sistematicamente ao governo, ou à "situação", em desrespeito sistemático aos interesses do país e da Humanidade. Minha preocupação, nesse sentido, sempre foi com manter a capacidade e a possibilidade de poder dizer, com um mínimo de independência, que aquelas políticas que considero incorretas são, de fato, incorretas, sem me ver obrigado por filiações partidárias a afirmar que tais políticas seriam corretas ou, por outro lado, ser acusado de partidarismo ao fazê-lo.

No fundo, bem vistas as coisas, a minha precaução prática constitui-se na condição para realizar o comportamento proposto do ponto de vista teórico.

Além disso, cumpre notar que o conceito positivista de "poder Espiritual" sempre me pareceu mais legítimo que todas as outras concepções rivais, como a "hegemonia" gramsciana ou a "ética da responsabilidade" weberiana.

A "hegemonia" defendida por Gramsci nada mais é que o esforço empreendido por um partido de classe em dominar intelectual e moralmente o conjunto da sociedade: trata-se, portanto, de um mero recurso da luta de classes, em que uma parte da sociedade lança mão de expedientes com o objetivo de dominar outras partes da sociedade. Nesse quadro, tanto o "domínio" quanto a "luta de classes" devem ser entendidos literalmente, ou seja, em termos de guerra civil, ainda que disfarçada. Isso não é exagero nem uma suposta distorção da proposta de Gramsci e, antes dele, das propostas de Marx e Engels: a orientação belicista da "luta de classes" e, por extensão, da "hegemonia da classe proletária" sempre foi explícita e assumida por todos esses pensadores; não é à toa que Marx e Engels (mas também Lênin) são considerados filósofos da guerra. Nesse sentido, as interpretações correntes da "hegemonia" – segundo as quais ela é um simples consenso social em favor de valores universalmente válidos, como a "democracia" ou o "Estado de Direito" – ou são versões ingenuamente edulcoradas e falseadoras do pensamento de Gramsci, ou são mistificações da intenção subjacente ao pensamento de Gramsci e, portanto, são formas de enganar o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a independência moral e intelectual e a possibilidade de crítica estão radicalmente afastadas; mesmo no caso da crítica à classe combatida não há independência, pois os "argumentos" utilizados são elaborados de maneira estratégica e tática, ou seja, subordinados à mais rasteira conveniência política; em outras palavras, as idéias são manipuladas ao sabor das alianças políticas, resultando em cinismo e em hipocrisia.

Assim, a idéia gramsciana de "hegemonia" é radicalmente contrária à proposta positivista de "poder Espiritual", seja porque une estreitamente o aconselhamento ao mando, seja porque subordina o aconselhamento ao mando, seja porque finge que o aconselhamento não está a serviço do mando.

A idéia weberiana da "ética da responsabilidade" é intelectualmente mais satisfatória, mas ainda assim é inferior à proposta positivista do "poder Espiritual". A "ética da responsabilidade" forma par com a "ética da convicção"; nessa dupla, a primeira "ética" refere-se ao comportamento adotado pelos políticos, cuja é com as conseqüências de seus atos, no sentido de que devem pesar o que acontecerá se determinadas ações forem tomadas; a "ética da responsabilidade" corresponde ao comportamento adotado por aqueles indivíduos motivados por suas convicções íntimas e para quem, nesse sentido, não importam as conseqüências de sua ação, mas apenas a fidelidade às suas crenças íntimas. Weber comentava que, em sua tipologia, a "responsabilidade" não abre mão, necessariamente, das "convicções", pois os políticos de modo geral precisam de orientações morais e intelectuais para sua conduta; inversamente, a "convicção" nem sempre deixa de lado a "responsabilidade", pois pode considerar os efeitos de seu comportamento na consecução dos valores pelos quais se guia.

Analiticamente, a oposição entre as éticas da "responsabilidade" e da "convicção" é interessante; todavia, ela nada mais é que "interessante". Essa oposição não distingue entre os indivíduos e os grupos que, por um lado, dedicam-se explicitamente à atividade política, isto é, à tomada de decisões e aqueles que, por outro lado, dedicam-se à formulação e à difusão de idéias e valores.

Da mesma forma, essa oposição não estabelece os critérios que devem pautar uma organização sócio-política correta e adequada; ao apenas afirmar que há indivíduos mais preocupados com as conseqüências de seus atos e indivíduos mais preocupados com a fidelidade íntima a si mesmos, essa oposição deixa sem qualquer tipo de orientação os problemas fundamentais que consistem em saber o que é uma boa sociedade, qual é o "bem comum", qual a relação que se deve manter entre o mando e o aconselhamento, qual é a relação que se deve manter entre as classes sociais etc. Poder-se-ia, talvez, argumentar que Weber explicitamente era contrário a que categorias analíticas servissem também como guias para a ação prática; com todas as letras, ele era favorável à famosa "separação entre fatos e valores". Entretanto, embora de fato seja necessário que se respeitem as características e as condições próprias à compreensão racional do mundo, por outro lado também é necessário ter clareza de que, sem orientação prática, essa compreensão racional é vazia e destituída de sentido. Como argumentava Augusto Comte, o valor da ciência (e, de modo mais amplo, o valor da inteligência) consiste em atuar como conselheira dos sentimentos: ora, a oposição entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", bem como, de modo mais amplo, toda a filosofia da ciência de Weber rejeitam a concepção de subordinação da ciência aos sentimentos, ao considerar ilegítima essa subordinação.

A mera oposição analítica entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", portanto, é sugestiva para o estudo de alguns comportamentos e da "psicologia" de alguns indivíduos, mas ela esgota-se aí; para piorar, essa oposição é uma forma mais ou menos vazia, que pode aplicar-se a uma quantidade enorme de casos díspares e que, no fim, acaba tendo reduzido poder analítico. Por exemplo, é possível aplicar a idéia da "ética da convicção" tanto a Hitler, quanto a Stálin, quanto a Cromwell, quanto a Gandhi; ou a São Francisco de Assis e a Antônio Conselheiro; por outro lado, é possível aplicar o conceito de "ética da responsabilidade" tanto a Bismarck, quanto a Júlio César, quanto a Léon Gambetta, quanto a Fernando Henrique Cardoso: é até interessante pôr essas duas etiquetas em todos esses indivíduos, mas as perspectivas específicas e as condições sociais de todos eles são tão diferentes entre si que, de fato, pouco se aprende com as categorias "ética da responsabilidade" e "ética da convicção". Por fim, aplicar essas duas categorias a todos esses indivíduos diz pouco mais do que já se sabe a respeito de todos eles; na verdade, essas duas categorias apenas formalizam o que empiricamente, com base no mais elementar senso comum, já se sabe a respeito de todos eles.

Assim, a idéia de "ética da responsabilidade", embora seja analiticamente interessante, apresenta vários problemas teóricos e práticos: por um lado, é pouco explicativa e ainda menos descritiva; por outro lado, simplesmente não serve como guia prático.

Para resumirmos, podemos dizer que a idéia gramsciana de "hegemonia", embora baseie-se na união entre teoria e prática, estabelece um vínculo demasiadamente forte e estreito entre ambas as atividades, subordinando a teoria à prática e, portanto, degradando a teoria e tornando a prática profundamente cínica e hipócrita; além disso, a "hegemonia" baseia-se no estreito particularismo de uma classe, que busca dominar e eliminar outra classe, além de incentivar a beligerância. No caso do conceito weberiano de "ética da responsabilidade", embora ele distinga a teoria e a prática, ele leva muito longe essa distinção – na verdade, ele baseia-se na rejeição das imbricações entre teoria e prática –; assim, esse conceito é propositalmente inútil em termos práticos. Já em termos analíticos, isto é, teóricos, embora ele dê azo a algumas reflexões, no final das contas essas reflexões são bastante limitadas e rasas.

Por que faço essas reflexões todas? Porque a conjuntra atual do Brasil – que atravessa ao mesmo tempo intensas crises política e econômica, em que uma é causa e alimento da outra – tem suscitado as mais diferentes reações da parte dos chamados "intelectuais". É claro que o "público em geral" também tem reagido bastante a esses problemas: as inúmeras manifestações que têm ocorrido no Brasil nos últimos dois ou três anos e que se têm incrementado desde as eleições presidenciais de 2014 são a mais clara demonstração de um intenso ativismo social.

Mas a situação dos intelectuais é específica, pois a eles cabe ao mesmo tempo a análise intelectual dos problemas por que o Brasil passa e a indicação de caminhos para que essas crises sejam solucionadas – caminhos que devem ser indicados tanto para a sociedade civil quanto para o governo. Assim, os intelectuais têm um papel fundamental no atual cenário; na verdade, como deveria ser evidente para qualquer cientista social, os intelectuais são importantes em qualquer momento, mas nos períodos de crise essa importância aumenta, justamente devido às dificuldades próprias à legitimidade do governo. Além disso, convém notar que a grande maioria desses "intelectuais" é de professores universitários, que se valem dessa condição institucional para legitimarem-se perante a sociedade e perante o governo e que integram órgãos estatais e entidades civis para emitirem "opinões".

Ora, muitos desses intelectuais mantêm uma postura fortemente crítica contra o governo atual; a maior parte dessas críticas, para não dizer sua totalidade, é justa. Vários desses intelectuais não se preocupam nem com a estabilidade do país, nem, em conseqüência, com a sua governabilidade: em certo sentido, eles não são responsáveis, na medida em que, preocupados com sua críticas, não apontam rumos factíveis para o país superar seus sérios e profundos problemas.

Essa postura constitui o cerne da "oposição": ora, a idéia da "oposição" surgiu na Inglaterra, como sendo o conjunto minoritário de parlamentares, isto é, aqueles parlamentares que não dão apoio ao primeiro-ministro; a autoproclamada função desse grupo seria criticar sistematicamente o governo e elaborar propostas alternativas de políticas públicas, seja como forma de legitimar-se perante a opinião pública (com propostas que difeririam de qualquer maneira das políticas implementadas pelo governo, qualquer que seja a razoabilidade ou a viabilidade dessas propostas alternativas), seja como eventuais contribuições legítimas: em todo caso, a "oposição" basicamente serve para incomodar o governo. No Brasil, nas últimas três décadas, ou a "oposição" foi extremamente crítica, quando não reacionária, ou foi inerte e indistinguível do governo; em outras palavras, como "oposição" o PT sempre foi virulento e, ao tornar-se governo, teve a felicidade de lidar com rivais molengas, desarticulados e sem identidade.

Entretanto, desde as eleições presidenciais de 2014, o comportamento dessa oposição mudou bastante, principalmente devido à insatisfação social com o governo. Essa oposição deixou de ser apática e molenga e, mudando bastante o seu padrão de comportamento, assumiu uma postura cada vez mais radical, em que o que importa é criticar o governo e buscar obter o poder, independentemente de outras considerações. Nesse sentido, essa oposição passou a assumir as piores características que seus rivais mantinham antes de assumir o poder.

Essa oposição – é necessário dar nomes aos bois: o PSDB – é basicamente partidária, isto é, organizada em partido político. O importante a notar é que, embora haja diversos intelectuais vinculados oficialmente a essa oposição partidária, o grosso dos intelectuais que se opõe ao governo não é partidária, ou pelo menos não é vinculada ao principal partido da oposição. É bem verdade que vários desses intelectuais são vinculados a outros partidos políticos, alguns dos quais foram violentamente atacados pelo governo na última campanha presidencial, de sorte que têm mágoa e ressentimento – justificados – com o governo. Mas, ainda assim, muitos outros intelectuais são propriamente independentes, isto é, criticam o governo porque consideram que os atuais rumos e hábitos políticos do país são errados e conduzem a direções daninhas.

Nesse sentido, esses intelectuais "independentes" e, em menor medida, os intelectuais vinculados aos partidos que não o principal da oposição, levam a sério seu papel de "poder Espiritual", ainda que não conheçam e/ou não levem a sério a própria idéia do poder Espiritual; em outras palavras, seja empírica, seja sistematicamente, tais intelectuais que se mantêm críticos entendem que seu papel é formar e orientar a opinião pública.

Por outro lado, vários outros intelectuais buscam apoiar o governo como forma de legitimá-lo neste momento em que a crise de legitimidade também integra o rol de crises. Esse esforço de legitimação, todavia, não consiste em afirmar que várias políticas específicas e/ou que a orientação geral do governo são adequadas para a consecução de determinados fins socialmente necessários e/ou importantes; o que se vê é um esforço sistemático para afirmar a correção de todas as medidas governamentais e para desqualificar todos os que se opõem ao governo (geralmente por meio de sugestões viperinas, como, por exemplo, no sentido de que os críticos seriam quinta-colunas ou aristocratas ciumentos de seus privilégios); as críticas que porventura fazem ao governo vão na direção de que o governo deveria perseverar na direção que toma, independentemente de se tal direção é correta, adequada ou conforme o bem comum. Em outras palavras, são intelectuais simplesmente a serviço do governo: são uma forma cada vez mais desesperada de tentarem realizar a "hegemonia" gramsciana, mas, de qualquer maneira, submetem o aconselhamento ao mando e instrumentalizam o aconselhamento de acordo com as necessidades momentâneas do mando. Na medida em que são intelectuais, esses indivíduos degradam-se como seres humanos; como analistas das políticas públicas, esses indivíduos abrem mão de sua capacidade analítica e crítica; como cidadãos, esses indivíduos procuram apenas servir ao Estado.

Sendo bem franco: pessoalmente, considero assustador o comportamento dos intelectuais governistas, tal o grau de adesão que eles manifestam ao governo. Não se trata aqui de simplesmente apoiar o governo: afinal de contas, o governo existe para governar a sociedade e o normal é que ele seja, de fato, em geral apoiado. O problema aqui consiste em que os atuais intelectuais governistas sistematicamente ignoram problemas evidentes; afirmam que as críticas ao governo são motivadas por "falta de patriotismo" ou por mesquinharia de classe; apóiam propostas irracionais e criticam propostas que visam a racionalizar, a moralizar e a tornar mais eficiente o Estado e o serviço público. A isso se soma o fato de que esse comportamento é vinculado não ao Estado ou ao governo, mas ao partido político que atualmente exerce o governo. Assim, o assustador é que tais intelectuais, por vontade própria, deixam de ser intelectuais para tornarem-se apenas membros do partido político; embora tenham abandonado totalmente o poder Espiritual, valem-se de suas posições institucionais e de seus títulos acadêmicos para darem a impressão de que permanecem no poder Espiritual.

Sem negar os danos que o radicalismo, o extremismo, a exaltação de ambos os lados – do governo e da "oposição" – que a presente conjuntura acarretam e de que se alimenta, estou convencido de que essa verdadeira "traição dos clérigos" é o mais sério problema envolvendo intelectuais neste momento. Esse problema sem dúvida terá, como já está tendo, conseqüências nefastas e, infelizmente, duradouras.

14 outubro 2014

Sobre a política brasileira em 2014

Eu lembro-me de que, em 2002, eu comentava com alguns amigos e colegas do mestrado que Lula e o PT tinham que passar pelo governo para deixarem de ser principistas e quiméricos; na ocasião, virtualmente todos os meus colegas eram petistas.

Importa reconhecer que a mudança operada então, do PSDB para o PT na Presidência da República, foi necessária; o PDSB já não conseguiria satisfazer as ambições nacionais; mas, mesmo assim, o PT não correspondia exatamente a esses anseios, haja vista que, ao contrário do que aconteceu com FHC nas suas duas eleições, nem Lula nem o PT jamais ganharam a Presidência no primeiro turno.

Comparando o apoio maciço e idealista dos meus colegas, amigos, conhecidos e intelectuais em geral em favor do PT, de 2002, com a profunda desilusão, com o cinismo e até com a profunda rejeição que esse partido sofre hoje, não deixa de ser chocante o resultado. Se em 2002 eu esperava um choque de realidade para o PT, hoje eu observo que esse choque foi bem mais intenso do que eu esperava.

Absolutamente TODAS as práticas que o PT condenava, por vezes de maneira histérica e cansativa, foram aplicadas. Para piorar, quando essas práticas eram, e são, praticadas pelos outros partidos, ou melhor, pelos partidos com quem o PT disputa cargos, essas práticas são criticadas como sendo "fisiológicas", "privatistas", "antidemocráticas", "preconceituosas" etc.; quando é o PT e/ou seus partidos de apoio que as praticam, são "necessidades", é "sabedoria política", é "habilidade política".

Longe de mim justificar o injustificável e afirmar que o PT está certo e que os outros estão errados, ou vice-versa, isto é, que os outros estão certos e o PT, errado: todos estão errados - e esse é um dos maiores descalabros da política brasileira em 2014. 

O "choque de realidade" do PT e seus efeitos sobre a (moral) política nacional possivelmente é um dos grandes motivos das manifestações de 2013, juntamente com uma versão brasileira da "revolução silenciosa" (proposta em 1972 por R. Inglehart).

André Singer definiu o principismo petista como o "espírito de Sion" e o pragmatismo petista como o "espírito de Anhembi". Indiscutivelmente foi bom para o país que o PT abandonasse o "espírito de Sion", isto é, todas as quimeras socialistas que ele acalentava em virtude da união dos intelectuais e dos católicos esquerdistas (ditos, ou autonomeados, "progressistas"). Mas ao jogar a água do banho, levou com ela o bebê: um certo espírito republicano nas práticas políticas foi embora também. Os programas sociais aumentados desde 2004 (excluo o histrionismo do "Fome Zero") são a parte aproveitável desse "espírito de Sion", embora esses mesmos programas sejam programaticamente incoerentes, na medida em que são focalistas e particularistas e não universalistas, ou seja, seguem o "neoliberalismo" e ampliam as políticas criadas desde os governos de FHC e que o PT então chamava de "esmolas".

(A assinatura da criminosa Concordata com o Vaticano, em 2008, e o apoio à Igreja Universal NÃO são traições ao "espírito de Sion": integram o rol de práticas e idéias do PT desde sempre.)

Por fim, deixando de lado os puros militantes, sejam eles teóricos, sejam eles práticos, que constituem parcela de apoio cada vez menor do PT, espanta-me que haja intelectuais que simplesmente negam os deslizes, os erros, as malversações, as incoerências e até os crimes do PT. Uma coisa é haver intelectuais que reconhecem tudo isso mas que, em nome da continuidade dos programas (ou melhor, de alguns programas) defendem o PT e a reeleição de Dilma Rousseff; outra coisa são os "intelectuais" que fazem malabarismos teóricos para justificar o injustificável, lançando mão dos mais variados sofismas políticos ou lógicos. 

Nesse sentido, esses intelectuais especificamente petistas correspondem à negação prática do "poder Espiritual" proposto por Augusto Comte. Deixando de lado a terminologia estranha para os dias de hoje, Comte defendia que o "poder Espiritual" deveria ser autônomo em relação ao governo e ao Estado, a fim de manter sua capacidade crítica; não "crítica" no sentido de aporrinhar e de negar o que o partido rival faz, mas crítica no sentido de ser o órgão, o intérprete, o guia da opinião pública, ou seja, o conjunto de indivíduos que, submetendo-se à autoridade material do Estado, estabeleciam as condições de legitimidade das políticas públicas, do governo, do Estado, do regime político. Em vez de serem membros da opinião pública, esses intelectuais fazem questão de serem "intelectuais orgânicos", ou seja, profissionais da justificação teórica das atitudes práticas do partido político a que estão ligados.

Por que a referência específica aos intelectuais petistas? Porque, como observei no início desta postagem, em 2002 a quase totalidade dos intelectuais que eu conhecia eram petistas. Os danos que esse partido fez ao ambiente intelectual brasileiro são enormes. Mas, bem vistas as coisas, o PT não fez o que fez apenas devido à "lógica política": fez o que fez porque os indivíduos que o comandam assim o desejaram e porque, em um nível mais profundo, as idéias que os orientam conduzem a isso: não desenvolvimento nacional, integração social e humanismo, mas lutas de classes, "maquiavelismo" político e cinismo teológico-metafísico.

08 agosto 2011

Sobre a desconsideração da subjetividade na Teoria Política

A teoria política de Augusto Comte reconhece de maneira radical dois âmbitos da ação social: os poderes Temporal e Espiritual. Cada qual tem suas particularidades sociológicas e seu domínio político; as recomendações de Comte levam sempre em conta essa diversidade. Ora, a Teoria Política, pelo menos desde Hobbes, mas com certeza desde Guilherme de Ockham, desconsidera o poder Espiritual e afirma somente o Temporal; daí a facilidade com que as recomendações de Comte destinadas ao poder Espiritual sejam lidas como sendo para o Temporal, com a conseqüente interpretação de “autoritarismo” (basta ler-se Stuart Mill para evidenciar-se a utilização sistemática dessa falácia). (Aliás, deve-se juntar a isso a hipocrisia teórica, que assume que a citação comtiana de Hobbes é um sinal seguro de seu “autoritarismo”, como se Marx, Weber e toda a tradição política ocidental, com a exceção de Hannah Arendt, não afirmassem que o Estado funda-se em última análise na violência física: basta ler-se Roberto Romano para comprovar-se o emprego dessa falácia.)

Por outro lado, em sentido inverso, o problema subjacente à má interpretação da teoria política de Comte indica um empobrecimento muito grande da Teoria Política de modo geral, que só entende a política em termos de Estado, dominação, “aparelhos coercitivos”, “interesses” etc., de modo a ignorar os elementos ideacionais da política, ou a encará-los de maneira cínica e instrumental.

A acusação de que A. Comte é autoritário revela um brutal empobrecimento teórico da Teoria Política: seu resultado prático é fácil de prever e de comprovar: é a política da força, é afirmação de que o único meio aceitável para a vida política é por meio do Estado e, last but not the least, a doutrina oficial de Estado.

Uma outra conseqüência desse empobrecimento teórico, agora de caráter metodológico, é o desenvolvimento das propostas “interpretativas” nas C. Humanas: como o movimento moderno é em direção ao “materialismo” e, ao mesmo tempo, a Teoria Política enfatiza o poder, as concepções que desconsideram a subjetividade perdem importância. Isso, por sua vez, permite que a metafísica da “vontade”, da “ontologia”, do máximo subjetivismo tenha espaço: daí as propostas “interpretativistas”.