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08 novembro 2015

Demétrio Magnoli: "Proposta do MEC para a História mata a temporalidade"

Devido à gravidade do problema, reproduzo abaixo um artigo de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, desenvolvendo um tema de que eles trataram há algumas semanas - a saber, as novas diretrizes para o ensino de História, propostas pelo Ministério da Educação. 

Essas novas diretrizes acabam com a própria idéia de "história", isto é, de cronologia, propondo em seu lugar um ajuntamento de perspectivas isoladas. 

Convém notar que, ao contrário dos preconceitos fortemente correntes, o Positivismo é radicalmente contra essa concepção ao mesmo tempo anti-histórica e particularística de história. Em outras palavras, o Positivismo é contra essa concepção revisionista e "acrítica".

Os autores do texto abaixo, embora tenham completa razão em sua crítica às propostas reacionárias do MEC, erram totalmente quando se referem ao Positivismo, evidenciando também o seu preconceito contra a doutrina e a prática fundada por Augusto Comte e desenvolvida em TODOS os continentes.

Para algumas considerações positivistas em apoio aos textos de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, ver a postagem intitulada "Demétrio Magnoli: 'História sem tempo'" (disponível aqui).

Para uma pequena refutação da idéia do Positivismo como eurocentrismo, ver a minha postagem justamente intitulada "Positivismo como eurocentrismo" (disponível aqui).

Para uma discussão sobre a ignorância geral sobre o Positivismo, prevalecente no Brasil, ver a minha postagem "A impossibilidade de 'estudos comtianos' no Brasil" (disponível aqui).

O texto abaixo foi publicado na Folha de São Paulo de 8.11.2015; o original pode ser lido aqui.

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Proposta do MEC para ensino de história mata a temporalidade


Ouvir o texto
RESUMO Este texto critica a visão de história da Base Nacional Comum Curricular proposta pelo Ministério da Educação. Ao abandonar a temporalidade em prol de certa noção de cultura, a BNC bane a ideia de história em construção e apaga dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais.
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O ensino de história deve se basear "em ensinamento crítico, mas sem descambar para ideologia". A recomendação apareceu no Facebook do já então ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, como uma crítica explícita à Base Nacional Comum Curricular (BNC) de história, divulgada quando ele ainda chefiava a pasta.

Por uma dessas extraordinárias coincidências, Janine pronunciou-se horas depois da publicação de artigo de nossa autoria sobre o mesmo assunto ("História sem tempo", "O Globo", 8/10). E, casualmente, ele repetiu um argumento nuclear daquele artigo. "Não havia, na proposta, uma história do mundo", escreveu, cutucando a ferida de um programa que ignorava "quase por completo o que não fosse Brasil e África".

Janine tem razão quando enquadra o debate na moldura dos direitos dos estudantes e enfatiza o tema, tão esquecido, da pluralidade. "É direito de todo jovem saber o trajeto histórico do mundo. Precisa saber sobre a Renascença, as revoluções, muita coisa. Mas não há uma interpretação única de nenhum desses fenômenos. E é esta diversidade que a educação democrática e de qualidade deve garantir." Aloizio Mercadante, novo titular do ministério, parece igualmente convencido de que há algo de fundamentalmente errado num documento com "muita África e história indígena e pouca história ocidental".

As críticas de Janine e Mercadante têm peso político suficiente para provocar algum tipo de reforma na BNC, mas apenas roçam a superfície do problema: atrás da abolição da "história ocidental" encontra-se a supressão do próprio sentido temporal que define a disciplina.

Marc Bloch disse que "a história é a ciência dos homens no tempo". Na direção oposta, os autores (anônimos e, assim, "especialistas") do documento do MEC investiram numa sociologia do multiculturalismo que esvazia a temporalidade e, com ela, a gramática da historiografia. De fato, se aplicada, a proposta oficial significará o cancelamento do ensino de história. A narrativa histórica canônica estrutura-se sobre um esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. De acordo com a BNC, alunos do 6º ano do ensino fundamental, com 11 ou 12 anos de idade, devem aprender a "problematizar" o "modelo quadripartite francês". Dali em diante, até o fim do ensino médio, o "modelo" nunca mais aparece.

Junto com ele, desintegra-se o ensino da Grécia clássica, do medievo das catedrais, do comércio e das cidades e, ainda, das rupturas filosóficas, culturais e religiosas que anunciaram a modernidade.

No lugar disso, segundo o documento do MEC, o ensino médio é chamado a se concentrar no estudo dos "mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros" (1º ano), dos "mundos americanos" (2º ano) e dos "mundos europeus e asiáticos" (3º ano). Assim, expulsa da escola, a temporalidade é substituída por supostos atores coletivos, construídos a partir de uma tosca noção de cultura.

TEMPORALIDADE

A história entrou na escola pelas mãos do Estado-Nação europeu, no século 19. Inexiste novidade na crítica ao paradigma temporal clássico, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo. Contudo superá-lo não implica suprimir a gramática da temporalidade.

O programa (mal) camuflado da BNC não é incorporar a África, a Ásia e a América pré-colombiana ao ensino de história, mas recortar dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais, erguidas sobre o princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.

Numa primeira versão da proposta, informa Janine, os autores orientavam o estudo de revoltas coloniais com a participação de escravos ou índios, mas "deixavam de lado a Inconfidência Mineira". Seria um equívoco concluir daí que a exclusão decorria, principalmente, da ausência de escravos ou índios no movimento dos inconfidentes. O alvo da censura situa-se mais abaixo: na presença das ideias iluministas que conectam Tiradentes às revoluções Americana e Francesa.

Há método no caos da BNC. Sem a ágora grega, praça de mercado e praça pública, os estudantes ignorarão as origens do individualismo e da democracia –e a relação que existe entre ambos. Sem a Idade Média europeia, jamais entenderão a importância das religiões monoteístas na formação de sociedades que, pela primeira vez, englobaram grupos geográfica e culturalmente diversos por meio de valores éticos universalistas. Sem o Antigo Regime, não serão apresentados à filosofia das Luzes, base do contrato político da cidadania e fonte da ideia de que as pessoas são donas de suas escolhas e seus destinos. Sem a contestação socialista ao liberalismo, que emergiu na Europa novecentista, não compreenderão a trajetória de afirmação dos direitos sociais e trabalhistas.
O vácuo dessas múltiplas ausências será preenchido pelo ensino de histórias paralelas de povos separados pela intransponível muralha da "cultura".

A "história ocidental" mencionada por Mercadante converteu-se, num certo ponto, em história universal, pois a expansão dos Estados europeus –um percurso balizado pelas navegações, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo– entrelaçou o mundo inteiro. O paradigma temporal clássico refletia a idealização desse processo. Uma educação democrática tem o dever de narrá-lo na sua inteireza, evidenciando suas luzes e suas sombras.

A herança ocidental abrange tanto a liberdade quanto a opressão: o habeas corpus e o tráfico escravista, a soberania popular e a tirania, a independência nacional e o colonialismo, a igualdade política e o racismo, os direitos humanos e o totalitarismo, a vacinação e a morte radioativa. A educação escolar tem o desafio de investigar tais complexidades e contradições. Mas, à abordagem dos educadores, a BNC contrapõe o método típico dos doutrinadores, fornecendo uma narrativa sobre mocinhos e bandidos que infantiliza professores e estudantes.

Quando Bloch define a história pela dimensão temporal, ele quer enfatizar seu caráter cronológico: o sentido de "processo", isto é, as relações e interações que promovem constantes mutações sociais.

A "história em construção" é precisamente aquilo que os formuladores da BNC pretendem dissolver, de modo a fabricar sujeitos a-históricos: grupos étnicos ou raciais identificados por supostas essências culturais e, portanto, impermeáveis à mudança. Eles não querem, como alegam, conferir visibilidade à história da África, da Ásia ou da América pré-colombiana, mas fabricar a "história dos africanos", a "história dos ameríndios" e a "história dos asiáticos", numa cartolina que incluiria, ainda, a "história dos europeus".

FETICHIZAÇÃO

Seria um equívoco interpretar a BNC como uma revolta contra o "ocidentalismo". De fato, não há nada mais "ocidental" que a fetichização da cultura. O essencialismo cultural deita raízes na "ciência das raças", elaborada à sombra do imperialismo, que falava do "fardo do homem branco" e produzia quadros descritivos sobre os "negros" (africanos), os "amarelos" (asiáticos) e os "vermelhos" (ameríndios). Atualmente, sob o mesmo registro operativo, difunde-se a tese neoconservadora do "choque de civilizações". Os autores convocados pelo MEC usam a linguagem e os conceitos do "choque de civilizações", fabricando uma cópia invertida da célebre narrativa sobre a "missão civilizatória" dos europeus.

A escritura da história segue caminhos diversos. A historiografia liberal enfatiza a política e o indivíduo. Os historiadores marxistas colocam os holofotes sobre as classes sociais e a economia. Mais recentemente, a nova história alargou e fragmentou o campo de investigação, abordando as mentalidades, ou seja, as representações sociais. A BNC, contudo, rejeita em bloco todo esse variado repertório, pois recusa a temporalidade. Nesse passo, acende uma fogueira destinada a consumir as obras consagradas e a melhor produção historiográfica acadêmica.

Para que serve o ensino de história? Na sua origem, a história escolar servia para inscrever a pátria no mármore da eternidade. A antiga visão utilitária reaparece, sob roupagem atualizada, na BNC.

Reagindo à crítica tardia de Janine, a professora Márcia Elisa Ramos, da Universidade Estadual de Londrina, defendeu a proposta do MEC recorrendo a uma alegação orwelliana de aparência banal: "O ensino de história deve não apenas estudar as diferenças mas compreender para respeitar. O currículo apenas contempla os objetivos do ensino de história, que são respeito à diversidade, pluralidades étnico-raciais, religiosa, de gênero etc.".

Não se ensina biologia para que os jovens aprendam regras de saúde e higiene. Não se ensina química para evitar a ingestão de substâncias tóxicas pelos alunos. Não se ensina física para alertar sobre o perigo de saltar da janela do edifício. Não se ensina português para treinar a habilidade de redigir solicitações de emprego. Não se ensina matemática para calcular os rendimentos da poupança. Tudo isso, bem como a aversão a preconceitos étnicos, raciais, religiosos ou de gênero, são subprodutos úteis da educação escolar. Mas o conhecimento serve a si mesmo: é um passaporte que garante acesso ao diálogo do mundo.
Diferentes indivíduos leem o mundo de formas diversas. Escola não é igreja: não é lugar de pregação, de tutela ou de retificação de mentes "desviantes".

A história, como as outras disciplinas, serve para acender a chama da curiosidade intelectual, ensinar os fundamentos do pensamento científico, habilitar os jovens para investigar, interpretar e refletir. Nossos doutrinadores de plantão, sábios "especialistas" que não declinam seus nomes, jamais concordarão com isso.


DEMÉTRIO MAGNOLI, 57, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.

ELAINE SENISE BARBOSA, 50, é professora de história, autora de "História das Guerras" (Contexto). 

02 novembro 2015

Concepção positiva do Dia dos Mortos

Dia dos mortos, 2 de novembro


Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

Origem histórica da data

No dia 2 de novembro comemora-se o Dia de Finados. Essa data tem uma origem católica que recua no tempo até o século II, quando os cristãos primitivos rezavam pelos mortos; no século V a Igreja solicitava que um dia do ano fosse dedicado àqueles que não era possível identificar. Essa prática atravessou os séculos e, no século XIII, definiu-se o dia 2 de novembro para essa homenagem, logo após o Dia de Todos os Santos, que é em 1° de novembro.

A bem da verdade, as orações cristãs no dia 2 de novembro não consistiam em "homenagens", mas em intercessões em favor das "almas" dos mortos. Essas intercessões, claro está, eram bem intencionadas mas eram, ao mesmo tempo, mais ou menos inúteis, considerando as doutrinas da predestinação e onisciência divina. O culto católico aos santos, existente desde o início do cristianismo, assim como o culto à Virgem Maria, que surgiu ao longo da Idade Média, são duas formas de contornar a impossibilidade prévia de remissão das almas dos mortos.


Concepção positiva do dia dos mortos

A Sociologia e a Moral Positiva indicam que, apesar de as "almas" como emanações etéreas não existam, o respeito aos mortos é um ato profundamente sociológico e altruísta. É sociológico porque as sociedades que existem atualmente devem sua existência, seus valores, seus recursos tecnológicos e materiais, suas idéias a todos aqueles que vieram antes. Aliás, essa é uma outra forma de dizer que o ser humano é um ser histórico.

Por outro lado, a homenagem aos antepassados e, de modo mais amplo, a todos os seres humanos convergentes que nos antecederam é uma forma de reconhecimento de nossas enormes e crescentes dívidas para com eles; é uma forma de estimularmos a veneração e a humildade, de reconhecermos nossa fraqueza atual face ao conjunto do passado. Em suma, essa homenagem é um poderoso instrumento de desenvolvimento do altruísmo e de compressão do egoísmo.

Assim, embora as motivações teológicas de respeito aos mortos sejam pura e simplesmente equivocadas, o fato é que o ato em si de homenagear é correto e salutar. O duplo aspecto da homenagem aos mortos – sociológico e moral – foi resumido pelo profundo gênio de Augusto Comte na seguinte máxima:

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos.


Essa frase, não por acaso, está no portão da Igreja Positivista do Brasil, conforme pode-se ver na imagem abaixo.

Fonte: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2015/11/dia-dos-mortos-2-de-novembro-cartaz.html.

Governo subjetivo dos mortos, não objetivo

Não se deve encarar essa máxima como sendo "macabra". Algo é macabro quando faz o elogio da morte e do morrer, em detrimento da vida: como vimos, a frase de Augusto Comte celebra justamente a vida. Da mesma forma, convém ressaltar: o "governo" que os mortos realizam sobre os vivos é um governo subjetivo, não objetivo: isso quer dizer "apenas" que a sociedade de hoje é o resultado da ação das dezenas, centenas, milhares de gerações que nos precederam e que, nesse sentido, somos hoje o resultado da ação dos que vieram antes de nós[1]. Dessa forma, concretamente, o que ocorre é que, com base nos materiais morais, tecnológicos, teóricos provenientes do passado (legados pelos mortos), os vivos dão continuidade à vida coletiva e individual e governam seus assuntos.

Dia dos Mortos no Positivismo

Nos dois calendários positivistas, de caráter sociológico – o calendário abstrato e o calendário concreto –, o último dia do ano é dedicado à comemoração geral dos mortos, de acordo com os parâmetros indicados acima. No calendário júlio-gregoriano, esse dia corresponde a 31 de dezembro e, nos anos bissextos, a 30 de dezembro.

Dia de Finados como proposta positivista

Como vimos, há uma coincidência parcial entre o Dia de Finados católico e o Dia Geral dos Mortos positivista. No caso brasileiro, como no final do século XIX a maioria da população brasileira era católica, a Igreja Positivista do Brasil resolveu aproveitar essa coincidência e buscar a positivização de um hábito já difundido na população: por esse motivo, propôs que o dia 2 de novembro fosse feriado nacional, de caráter cívico.






[1] A concepção objetiva do governo dos mortos é a apresentada pelas várias teologias, segundo as quais os mortos não estariam de fato mortos, mas estariam vivos em um outro "plano", "além" deste em que vivemos. Claro que essa concepção, apesar de pretender-se objetiva, baseia-se apenas na mais pura crença subjetiva; além disso, não apresenta prova nenhuma de que ocorre; por fim, em última análise, nos dias atuais, é uma forma de consagrar a irresponsabilidade individual e coletiva, ao atribuir ao "além" a condução efetiva dos assuntos humanos.

02 dezembro 2014

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Gustavo Biscaia de Lacerda

Um dos maiores problemas, para não dizer "erros", de quem se emancipa da teologia é, ao realizar essa emancipação, afirmar o individualismo, seja ele epistemológico, seja ele moral, seja ele sociológico. É fácil de entender essa passagem, pois o indivíduo tem que se afirmar pessoalmente, ou melhor, a pessoa tem que se afirmar claramente como indivíduo para superar, para deixar de lado as pressões sociais em favor da teologia e reconhecer que não faz sentido e que não importa a crença nos deuses para a condução da vida humana. É claro que, quanto mais secularizada uma sociedade e, o que às vezes é um pouco equivalente, quanto mais sociologicamente diversificada uma sociedade, menor a pressão exercida pela coletividade em favor da teologia e, portanto, mais facilmente ocorre essa emancipação.

Todavia, seja porque nessa passagem com freqüência é necessário afirmar-se uma individualidade, seja porque nessa afirmação também é necessário desvalorizar fortemente (quando não desprezar) o peso da coletividade, o resultado é que é bastante comum que a emancipação conduza ao individualismo, entendendo-se por essa expressão tanto a concepção segundo a qual é o indivíduo isoladamente tomado que "constrói" a realidade (consistindo, portanto, em uma forma de solipsismo), quanto entendendo por "individualismo" as idéias gêmeas de que o objetivo da vida é a realização dos próprios indivíduos (sendo, assim, um egoísmo) e que, como os agentes da vida social são os indivíduos, não existe a "sociedade". Reafirmando mais uma vez as idéias acima: é bastante claro que essas três formas de individualismo (solipsismo, egoísmo moral e individualismo metodológico) têm em comum a rejeição da idéia de sociedade[1].

Essas três conseqüências são problemáticas porque são erradas e falsas, isto é, porque consistem em concepções que não correspondem à realidade, e também porque são moralmente daninhas, seja porque não correspondem à realidade[2], seja porque impedem o desenvolvimento do altruísmo e estimulam diretamente o egoísmo. Além disso, como um resultado um tanto paradoxal mas não necessariamente imprevisto, embora tais formas de individualismo surjam como rejeição da teologia, o fato é que elas próprias aproximam-se bastante da teologia monoteísta, em particular dos cristianismos e, ainda mais, dos protestantismos[3].

Por que esses individualismos não correspondem à realidade? Porque, apesar do fato evidente de que as sociedades somente podem existir compostas por indivíduos, é apenas coletivamente e ao longo do tempo (ou seja, historicamente) que o conhecimento é produzido[4], que o altruísmo é passível de realização e que, portanto, é possível aos indivíduos terem satisfação pessoal. Nas três situações não se trata, portanto, do truísmo segundo o qual "ninguém pode viver sozinho": trata-se, sim, de que é por meio do esforço compartilhado e acumulado que se pode conhecer a realidade, por um lado, e, por outro lado, de que o "altruísmo" consiste em "viver para os outros" e que é somente na medida em que se vive para os outros que se pode obter uma satisfação plena e duradoura. Dessa forma, não se pode entender a sociedade como a simples agregação de indivíduos: a totalidade social é maior que a soma das partes individuais. Inversamente, recusar a característica social e histórica do ser humano é recusar o próprio ser humano.

O individualismo ateu, além disso, aproxima-se em sua concepção de mundo do individualismo protestante na medida em que reconhece apenas indivíduos e rejeita as mediações sociais: enquanto o individualismo ateu rejeita a sociedade (seja na solidariedade contemporânea, seja na continuidade histórica), o individualismo protestante rejeita a igreja, ao estabelecer uma comunicação direta, pessoal e intransferível entre o crente e a divindade; em ambos os casos a pessoa está sozinha no mundo e é a única responsável pela sua satisfação íntima. Aliás, não é por acaso que as "sociologias" derivadas de ambientes protestantes têm características individualistas, de que o maior exemplo é a obra de Max Weber, que concebia apenas interações individuais e recusava-se terminantemente a definir a "sociedade". Já as obras de Hobbes e Locke apresentam um aspecto misto, juntando a emancipação individualista da teologia com aspectos do protestantismo anglicano: essas duas características tornam os dois autores também individualistas, concebendo a sociedade como a união de indivíduos ou, no caso de Hobbes, rejeitando a própria idéia de sociedade com o indivíduo plenamente egoísta e racional.

Em suma: é por esses motivos todos que a emancipação relativamente à teologia não pode parar no individualismo; ou, considerando a questão de outro ângulo, é por todas essas razões que as várias formas de individualismo (epistemológico, moral e sociológico) correspondem à emancipação incompleta da teologia.





[1] Neste texto refiro-me em particular ao individualismo ateu, isto é, causado pelo ateísmo. Mas, como se verá, existem outras variedades de individualismo, ou melhor, outras fontes intelectuais e morais do individualismo, entre as quais as teologias. De qualquer maneira, como o filósofo francês Pierre Laffitte (discípulo de Augusto Comte) e o antropólogo também francês Louis Dumont argumentaram, a rejeição monástica da sociedade foi uma das fontes mais importantes e poderosas da produção do "individualismo", ocorrendo tanto no Ocidente quanto (por exemplo) na Índia.

[2] Nesse sentido, torna-se claro que a busca da verdade é em si mesmo um valor moral. Sem dúvida que o tempo todo o ser humano percebe que várias de suas concepções são erradas: o problema não está no erro sincero, mas na persistência no erro e também no erro voluntário e consciente. O erro sincero é honesto, o erro voluntário é mentiroso; além disso, as concepções que não correspondem à realidade dos fatos e, em particular, as concepções que não reconhecem e não valorizam a natureza humana (coletiva e individual) produzem miséria e infelicidade.

De qualquer forma, importa reconhecer que conceber dessa forma a relação entre o ser humano e a sociedade, de um lado, e a verdade e a busca da verdade, por outro lado, está fora dos hábitos mentais contemporâneos, do Zeitgeist das nossas sociedades ditas "pós-modernas", em que o irracionalismo e a "ironia" têm um peso tão grande; em outras palavras, buscar e valorizar a verdade é algo fora de moda. Evidentemente, como argumentava Galileu e argumentam todos os filósofos da ciência sérios, a verdade não é simplesmente uma questão de número, isto é, ela não é "democrática".

[3] À luz da lei dos três estados intelectuais, o surgimento do individualismo ateu aproximar-se do individualismo teológico não é um resultado necessariamente imprevisto, na medida em que tanto o individualismo quanto o ateísmo são concepções metafísicas – e, como argumentava Augusto Comte, embora a metafísica tenda à positividade, o fato é que ela consiste em uma forma degradada de teologia.

[4] Nesse sentido, a própria emancipação relativamente à teologia de qualquer indivíduo é sempre dependente das outras pessoas, ou seja, é dependente da sociedade e da história: por um lado, a teologia é uma etapa na constituição do conhecimento; por outro lado, a despeito da retórica – ultra-individualista, cumpre notar – que afirma a incomensurabilidade e a infinidade da imaginação individual, a possibilidade de alguém emancipar-se é dada também pelas condições sociais e históricas próprias a cada coletividade.


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)

17 novembro 2011

Dissertação sobre livro de Agliberto Xavier

Dissertação de Mestrado em Educação Matemática, da autoria de Fabiane Cristina Höpner Noguti, defendida em 2005 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro:

"O livro 'Théorie des approximations numériques et du calcul abrégé', de Agliberto Xavier"

Disponível aqui:


Agliberto Xavier foi positivista, discípulo de Benjamin Constant, professor durante várias décadas no Colégio D. Pedro II e membro da Igreja Positivista do Brasil.

21 agosto 2011

Sobre o estilo de Maquiavel e a Teoria Política moderna

Ao estudarmos a obra de Maquiavel, muitas vezes lemos que ele foi inovador e que, rompendo com uma tradição prévia – geralmente associada ao pensamento moral católico –, teria fundado a “Ciência Política moderna”.


Especificamente, o livrinho O príncipe, que é a obra mais famosa de Maquiavel, refletiria essas inovações, ao apresentar algumas observações teóricas com uma série de exemplos: mas as observações não são sistemáticas (por vezes resumem-se a algumas poucas linhas) e os exemplos freqüentemente têm várias páginas, de maneira que parecem desmesurados. Esse estilo de expor e raciocinar torna a compreensão do livro um tanto difícil – não porque o raciocínio seja complicado, mas porque com grande facilidade perdemos os fios da meada em meio aos exemplos.


O que muitos autores argumentam, ou sugerem[1], é que essa forma assistemática de argumentar seria devida ao ineditismo maquiaveliano. O raciocínio subjacente é o seguinte: ao romper com uma tradição “moralista” anterior, mais preocupada com o aconselhamento moral (em particular, a tradição dos “espelhos do príncipe”) que com a compreensão da realidade política prática, Maquiavel teria tido dificuldades para elaborar o seu pensamento – daí a assistematicidade combinada com a curiosa profusão de exemplos.


Ora, essa forma de raciocinar, embora à primeira vista seja tentadora, é errada. Antes de mais nada, porque se baseia em uma ilusão histórica, mais precisamente, em um anacronismo. O Ocidente não valoriza a Idade Média; por diversos motivos, considera-se que não se produziu intelectualmente nada nesse longo período. Todavia, isso é incorreto, pois considera-se que a fase medieval foi homogênea, isto é, como se não tivessem havido vários momentos social e intelectualmente diferentes entre si durante cerca de mil anos. Nesse sentido, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se pela decadência que se seguiu ao apogeu do domínio católico e da ordem feudal. Embora sempre tenha fortes havido disputas em toda a Idade Média, os seus séculos finais caracterizaram-se por inúmeras elaborações teóricas, que ao mesmo tempo procuravam justificar as contendas e dar um tratamento teórico às novas conjunturas políticas específicas.


Podemos pensar em duas disputas, em particular; essas duas disputas, na verdade, eram duas faces de uma única disputa maior, resultantes do reordenamento político e social da decadência da ordem católico-feudal. Por um lado, a oposição entre os dois poderes “universais” da época: a Igreja Católica, representada pelo Papado, que, a partir de sua supremacia espiritual, tencionava tornar-se politicamente superior a todos os chefes temporais; por outro lado, o Império Romano-Germânico, tornado “sagrado” pelo mesmo Papado que tentava deslegitimá-lo. Essa disputa durou séculos e teve episódios memoráveis dos pontos de vista prático e intelectual: podemos ficar somente na humilhação imposta pelo Papa Gregório VII ao Imperador Henrique IV, durante o inverno alpino na cidade de Canossa; mas o resultado dessa oposição, como sabemos, foi o enfraquecimento mútuo dos dois e o surgimento de condições para a afirmação da lealdade a um novo âmbito político. Esse novo âmbito era intermediário em termos de extensão territorial: nem “universal”, como o Papado e o Império, nem restrito, como os feudos; eram os reinos, que depois seriam chamados de estados nacionais modernos[2]. Entre inúmeros outros autores, podemos citar os famosos Dante e Guilherme de Ockham participando dessas lutas.


Ao mesmo tempo, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se, de uma perspectiva intelectual e artística, pelo Renascimento, ou seja, pela redescoberta européia das tradições gregas e romanas, a partir da sua difusão pelos árabes. O Renascimento, ao mesmo tempo em que forneceu elementos para as reflexões políticas envolvidas nas lutas entre Papado, Império e reis, também inspirou pensadores e políticos para tratarem das suas realidades específicas: pensamos nas “repúblicas renascentistas” sendo justificadas como a reafirmação, ou a continuidade, das antigas cidades-Estado da Grécia e de Roma.

Aliás, mesmo que não houvesse esses antecedentes imediatos, o Renascimento consistiu na retomada dos textos antigos, que continham reflexões extremamente sistemáticas sobre as realidades cósmica, social e moral: Aristóteles é o grande exemplo disso. Ora, Aristóteles não podia ser desconhecido de Maquiavel, pois Tomás de Aquino elaborou sua teologia procurando conjugar Sto. Agostinho com, precisamente, Aristóteles.

Em outras palavras, essas disputas políticas originaram uma grande elaboração intelectual; essa produção é desconsiderada quando se afirma que Maquiavel era radicalmente inédito ao escrever O príncipe.

Dito isso, poder-se-ia argumentar que a forma como O príncipe foi redigida é adequada ao seu objetivo, isto é, que corresponde precisamente a um manual prático para os chefes militares que desejem obter e manter o poder, fundando novas unidades políticas, adequadas à realidade do fim da Idade Média, isto é, adequadas à existência plena dos estados nacionais modernos[3].


Essa linha de argumentação é factível. Todavia, caso leiamos também os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ou simplesmente Discorsi, veremos que eles apresentam a mesma forma narrativa: algumas observações teóricas mais ou menos pouco sistemáticas seguidas de longos exemplos históricos. Embora os Discorsi tivessem também uma preocupação prática – a (re)organização das repúblicas italianas, em particular Florença –, o fato é que eles têm objetivos muito menos pragmáticos, revestindo-se de um caráter mais normativo.


Retornando ao estilo teórico maquiaveliano: as observações acima sugerem que o tatear da escrita de Maquiavel não era devido à sua novidade, ao ineditismo de sua elaboração, mas consistia especificamente em um traço pessoal. Ele não era inédito nem rompia com uma tradição prévia porque inúmeros outros autores redigiram reflexões políticas agudas, tanto em termos de realismo quanto em termos de utilidade prática. O que ele pode ter feito é ter jogado uma pá de cal nos manuais de aconselhamento do tipo “espelho do príncipe” – próprios, talvez, à Idade Média – e iniciado a tradição de manuais adequados à luta prática – “como obter o poder e manter-se nele”.


Uma reflexão crua sobre os meios necessários e disponíveis para a obtenção do poder têm, evidentemente, uma grande importância prática, além de servir para a reflexão teórica. Mais do que isso: Maquiavel adotou uma forma de raciocinar que, atualmente, é chamada de “Teoria Política historicamente informada”, em que procurava utilizar a experiência histórica não apenas como guia, como fonte de exemplos, como conselheira, mas também como fonte de elementos para uma reflexão mais sistemática[4]. Embora tanto O príncipe quanto os Discorsi tenham elementos de cada uma dessas abordagens, enquanto O príncipe usa mais a história como conselheira, os Discorsi revelam uma abordagem da história como fonte para entender-se os processos sociais subjacentes.


Também convém notar que a obra de Maquiavel originou várias correntes e interpretações teóricas, todas elas riquíssimas e que se mantêm contribuindo para a compreensão que temos da política. Sem ser exaustivo, podemos pensar em Jean-Jacques Rousseau afirmando ser O príncipe um aviso ao povo, contra os poderosos; em Frederico II, escrevendo seu Anti-Maquiavel; em Antônio Gramsci vendo o “príncipe moderno” na figura do partido político; nos teóricos elitistas italianos (Gaetano Mosca, em particular) e, mais recentemente, nas elaborações do neo-republicanismo, a que se ligam Quentin Skinner, John McCormick, Newton Bignotto, Ricardo Silva e inúmeros outros.

Ainda assim, embora a abordagem de Maquiavel seja útil e interessante – particularmente, esposamos a concepção de que a Teoria Política deve ser “historicamente informada”, a fim de ser mais realista – e ele tenha originado ou contribuído com inúmeras correntes teóricas importantes, a reflexão sobre o estilo de escrita maquiaveliano não é muito favorável a ele. “Não ser favorável” não significa que ele não tenha escrito coisas que mereçam a leitura e a reflexão, mas que seu ineditismo não é tão marcante nem sua contribuição tão fundamental. Na verdade, como vimos, pode-se argumentar seriamente contra o seu ineditismo (deixando de lado a obviedade de que, em princípio, todo autor que escreve é inédito): essa concepção vincula-se à falta de consciência histórica. Da mesma forma, a falta de sistematicidade de seu pensamento leva a pôr seriamente em dúvida suas contribuições. 

O resultado disso é que somos levados a concordar com Augusto Comte em sua avaliação de Maquiavel[5]

“Avant de quitter cette second phase, je dois signaler Hobbes et Bossuet comme ayant déjà préparé alors la rénovation de la philosophie politique. Machiavel, avant eux, avait fait quelques heureuses tentatives partielles pour rattacher l’explication de certains phénomènes politiques à des causes purement naturelles, quoiqu’il ait deparé son ouvrage par une appréciation tout à fait vicieuse de la sociabilité moderne, qu’il ne put jamais suffisamment distinguer de l’ancienne. La célèbre conception de Hobbes sur l’état de guerre primordial et le prétendu règne de la force, a presque toujours été méconnue ; mais, considérée d’une manière impartiale, on sentira qu’elle a constitué un puissant aperçu primordial, statique et dynamique, de la prépondérance des influences temporelles dans l’ensemble permanent des conditions sociales ; et, aussi, de l’état nécessairement militaire des sociétés primitives. C’est la une vue saine introduite au milieu des hypothèses fantastiques sur l’état de nature et le contrat social, et elle a, par conséquent, une éminent valeur. La participation de Bossuet à cette préparation est plus évidente et moins disputée. J’ai déjà signalé la valeur de son élaboration historique, où, pour la première fois, les phenomènes politiques sont envisagés comme assujettis à des lois invariables que permettent de les déterminer les uns par les autres. Quoique le principe théologique qui dominait cette lumineuse conception dût l’altérer profondément, il ne pouvait dissimuler tout à fait sa valeur, ni empêcher son heureuse influence sur les études historiques de la période suivante. On sente, du reste, qu’elle ne pouvait naître alors qu’au sein du catholicisme, dont elle constitue la dernière inspiration capitale, puisque l’instinct négatif empêchait ailleurs toute juste appréciation quelconque de l’évolution humaine. La nature de grande service qu’a rendu Bossuet ressort de sa destination, qui était de représenter l’histoire systématique comme la base nécessaire de l’éducation politique”[6].




[1] Não penso em nenhum autor em particular neste momento; os comentários que faço são de fato genéricos e “impressionistas”, baseados nas leituras que fiz na época de estudante de graduação e de mestrado – antes, portanto, de estudar com atenção a História das Idéias. De qualquer forma, para o presente argumento, como se verá, a ausência de algum nome específico que tenha proposto o senso comum que comento não é tão problemática.

[2] Uma ótima exposição dessas lutas é o livro de Raquel Kritsch, Soberania – a construção de um conceito (São Paulo: Humanitas, 2002).

[3] A realidade vivida por Maquiavel era da incapacidade das cidades-Estado italianas manterem-se mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa dificuldade foi aumentada bastante a partir das guerras da Itália, ou seja, a partir do momento em que dois novos estados nacionais – França e Espanha, particularmente a primeira – decidiram atuar na península.

[4] Uma exposição dos “estilos” das teorizações na Teoria Política pode ser lida no artigo de Ricardo Silva, “Identidades da teoria política: entre a ciência, a normatividade e a história” (Pensamento Plural, Pelotas, v. 3, p. 9-21, jul.-dez.2008. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/ppgcs/pensamento-plural/edicoes/03/01.pdf. Acesso em: 26.maio.2011). A abordagem do uso sistemático da história para teorizar na política corresponderia, no texto de Ricardo Silva, à parceria mantida na última década e meia por Quentin Skinner com Phillip Pettit.

[5] Fonte da citação: Auguste Comte, La philosophie positive d’Auguste Comte, condensée par Miss Harriet Martineau (T. II. Paris: Louis Bahl, 1895, p. 491-492).

[6] “Antes de concluir essa segunda fase, devo indicar Hobbes e Bossuet como já tendo então preparado a renovação da filosofia política. Maquiavel, antes deles, fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga. A célebre concepção de Hobbes sobre o estado de guerra primordial e o pretendido reino da força foram quase sempre mal conhecidos, mas, considerada de uma forma imparcial, sentimos que ela constituiu uma poderosa percepção primordial, estática e dinâmica, da preponderância das influências temporais no conjunto permanente das condições sociais e, assim, do estado necessariamente militar das sociedades primitivas. Essa é uma sã visão introduzida no meio das hipóteses fantásticas sobre o estado de natureza e o contrato social e ela tem, em conseqüência, um valor eminente. A participação de Bossuet nessa preparação é mais evidente e menos disputada. Já assinalei o valor de sua elaboração histórica, em que, pela primeira vez, os fenômenos políticos foram percebidos como sujeitos a leis invariáveis que permitem determiná-las umas pelas outras. Embora o princípio teológico que dominou essa luminosa concepção devesse alterá-la profundamente, ele não pôde dissimular de todo seu valor, nem impedir sua feliz influência sobre os estudos históricos do período seguinte. Sentimos, quanto ao resto, que ela não podia nascer em outro lugar que não no seio do catolicismo, em que ela constitui a última inspiração capital, desde que o instinto negativo impediu alhures toda e qualquer justa apreciação da evolução humana. A natureza do grande serviço que rendeu Bossuet evidencia sua destinação, que foi a de representar a história sistemática como a base necessária da educação política” (tradução minha).