Mostrando postagens com marcador Direita. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Direita. Mostrar todas as postagens

01 abril 2018

Gazeta do Povo: "Conservadores à deriva no Brasil"

Artigo publicado em 1º de abril de 2018 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

*   *   *


Conservadores à deriva no Brasil

Os conservadores brasileiros estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém, sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas... o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.

Entrementes, deixarei para comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em particular.

Historicamente, os conservadores começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo, a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal, direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).

Como se vê, o conservadorismo filosófico combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história, para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.

De qualquer maneira, a relação com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe notar que é de propósito que não estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e “progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se tornou famoso (Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da “esquerda” seria a promoção da igualdade. Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco? Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula a esquerda ao progresso, isto é, à concepção de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e (2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do “conservadorismo” e/ou do reacionarismo.

Assim, o problema que Bobbio não quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças (ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século XIX.

A concepção de que a esquerda seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais – tudo isso é público e notório.

O problema que se verifica no Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente nisso: em uma reação. São idéias e atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito; todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais –; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade, fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e desprezam a fraternidade.

Se a liberdade é a condição para o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas, tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade. Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade” que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas, além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Em nome da igualdade social, a esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.

Voltemos ao tema do conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados “conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.

Dito isso, desde 2013, uma estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao progresso e à esquerda.

Entretanto, essas diversas associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista: os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados; em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades, condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.

Em reação ao ensino cívico, civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a 1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser um projeto político, como no caso de Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político (seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel, durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.

O resultado das reflexões acima – das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados “conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais, morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes – em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos dois lados está efetivamente na direção correta.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.

15 maio 2017

Contra a retórica da violência

Nos últimos anos tem crescido no país um estilo retórico pleno de violência e agressividade, sob a justificativa de "reação ao politicamente correto".

Claro que o grande nome brasileiro dessa retórica é Olavo de Carvalho, mas ele está acompanhado por outros nomes, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Rodrigo Constantino e seus seqüazes - provavelmente não por acaso, todos de "direita". (Aliás, embora sejam brasileiros e refiram-se ao Brasil, com base em teorias da conspiração muitos deles auto-exilaram-se.)

Isso serve apenas para tornar o ambiente pior. O "politicamente correto" trouxe sérios danos à racionalidade e aos hábitos sócio-políticos, mas o fato é que não é por meio dos berros e dos xingamentos que se reverterá esses danos.

Adotar a agressividade como uma suposta forma de demonstrar "liberdade" e "ausência de preconceitos" é uma tolice - e uma perigosa tolice. Em vez de consagrar verdadeiramente a liberdade, a retórica da violência e a retórica violenta servem apenas para consagrar a própria violência. Em suma, a despeito de pretender-se a favor de padrões civilizatórios, a retórica violenta/da violência é um dos mais poderosos instrumentos contra a própria civilização; mais que uma reação, é reacionária e retrógrada.

Cabe aqui uma observação de Bertrand Russell, em um contexto um pouco diferente, mas perfeitamente aplicável ao presente caso: "se muitos dos problemas atuais decorrem da racionalidade, não é com menos racionalidade que esses problemas serão solucionados".

(Claro: o que eu disse acima aplica-se da mesma forma a toda a gente da "esquerda" - desde aqueles que pregam a morte à burguesia e a ditadura comunista até a suposta filósofa que afirmou que "a classe média é uma merda", passando por todos os que defendem anarquismos anticapitalistas.)

02 dezembro 2014

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

Gustavo Biscaia de Lacerda



Um dos motivos por que o Positivismo é visto como estranho para os dias de hoje e até mesmo (embora incorretamente) como "autoritário" é que ele afirma com clareza que há uma separação entre governo e sociedade civil e que a última não deve governar, seja por motivos práticos – se todos governarem, ninguém governará ninguém; além disso, se todos governaram, estabelecer-se-á a "soberania popular", que resulta em totalitarismo e/ou em arbítrio –, seja por motivos morais – quem governa deve dispor-se ao mando, ou seja, a uma forma particularmente forte de egoísmo (mesmo que oriente socialmente esse egoísmo).

*          *          *

O que se chama atualmente de "esquerda", hoje como desde o século XIX, é sistematicamente favorável à revolta contra o poder político e contra o poder econômico; além disso, com freqüência não hesita em sacrificar a liberdade em nome da igualdade. Nesse sentido, não deixa de ser extremamente significativo o fato de que são vivamente celebradas as concepções políticas e sociais ditas "contestatórias", "revolucionárias", "críticas": o objetivo dessas concepções é apresentar-se de maneira contrária às ordens estabelecidas, vistas sempre, por definição, como "autoritárias", "injustas", incorretas e, por vezes, contrárias ao progresso.

*          *          *

A teoria social e política contemporânea valoriza acima de tudo o anormal, o esquisito, o desviante, o marginal: a normalidade e o ajustamento são vistos com intensa desconfiança e como valores ou objetivos "conservadores". Da mesma forma, o conflito é visto como elemento central, necessário e positivo da sociedade; a harmonia, a paz e a concórdia são negativos, prejudiciais e, claro, "conservadores".

*          *          *

A esquerda é a favor do progresso, mas, não somente não o conceitua para além (1) da igualdade e da eqüalização contínuas e (2) das "mudanças" sociais contínuas, é incapaz de assumir a mais evidente conseqüência do progresso, que é a diferenciação social e, portanto, a produção de desigualdades sociais. Em contraposição, cria o sofisma que opõe as "diferenças" às "desigualdades".

A esquerda chama a si própria de "progressista", mas o parâmetro que adota para avaliar o progresso é apenas a realização de seus ideais; esses ideais, por sua vez, são meramente sonhos políticos, que ignoram a realidade sociológica, com freqüência em nome das "utopias". Em outras palavras, defendem mudanças sociais, mas não sabem, nem querem saber, se tais mudanças são possíveis ou desejáveis; mas quem critica essa política quimérica é tachado de "conservador" e "reacionário".

*          *          *

Causam-me profundo espanto todos aqueles indivíduos que, dizendo-se "progressistas", ainda assim professam crenças em variadas formas de teologia, sejam elas fetichistas, sejam elas politeístas, sejam elas principalmente monoteístas (no caso do Brasil, de modo geral católicos); da mesma forma, espantam-me afirmações segundo as quais o estímulo às teologias (fetichistas, politeístas, monoteístas) e às metafísicas seriam propostas "progressistas" e índices de progresso: é o mesmo que dizer que ir para trás é avançar.

Mas, por outro lado, também me espanto ao ver indivíduos ditos "progressistas" que, não crendo no sobrenatural, encerram-se no ateísmo e no individualismo, em vez de afirmarem o humanismo e a perspectiva social.

*          *          *

Todos aqueles que afirmam que a fórmula "ordem e progresso" busca limitar o progresso à ordem são incapazes de definir o progresso, em particular para além da definição geral de Condorcet, para quem o progresso é desenvolvimento contínuo, permanente e infinito. Ao contrário da fórmula da infinidade, o "ordem e progresso" definido por Augusto Comte estabelece as condições, as possibilidades e os limites do progresso, dizendo com clareza exatamente em que ele consiste. Em outras palavras, o "ordem e progresso" tira a idéia de progresso da vagueza e, portanto, da metafísica; ao contrário, quem rejeita essa fórmula em nome do progresso indefinido é simplesmente incapaz de entender a ordem de outra maneira que não como sendo "despotismo" ou "autoritarismo".

*          *          *

Há também a possibilidade de recusar-se o "ordem e progresso" devido a uma rejeição do próprio progresso, seja porque há um apego à ordem, seja porque se nega a idéia de progresso. Quem se apega à ordem já foi retrógrado, atualmente é reacionário; bem vistas as coisas, nos dias de hoje são relativamente poucos grupos que rejeitam qualquer progresso: por vezes limitam as ambições de outros grupos em um ou outro aspecto e o mais das vezes desejam limitar o desenvolvimento ao que já se obteve: esses poderiam ser denominados de "reacionários" ou "conservadores". Os grupos atuais que têm um caráter especificamente retrógrado são, não por acaso, os teológicos, majoritariamente cristãos, muçulmanos e até judeus (embora, saindo do espectro teológico, possamos também incluir também na rubrica de retrógrados os comunistas).

Já os que rejeitam a idéia de progresso não são necessariamente retrógrados, no sentido de rejeitarem melhorias: antes, são irracionalistas, que rejeitam a concepção de "leis sociológicas" e que consideram que a história humana consiste apenas e tão-somente de "som e fúria", de choques permanentes e infinitos entre os grupos humanos. Esse tipo de raciocínio freqüentemente é metafísico e, não por acaso, também com freqüência é possível determinar suas origens teológicas, tão próximas ao misticismo e à metafísica alemã. Se a vida é apenas choque permanente, além de não ser possível determinar sentido algum nesta vida, o máximo que se pode almejar em termos coletivos é a vida política e, em particular, a política do poder – em outras palavras, egoísmos coletivos, guerras e dominação de todos sobre todos. Inversamente, se a vida é apenas luta e disputa, o consenso é uma ilusão e/ou uma hipocrisia. Cumpre notar que, de modo geral, essa concepção irracionalista é especificamente acadêmica, isto é, ela é exposta e defendida por "intelectuais"; ironicamente, com freqüência esses intelectuais defendem essa concepção como sendo mais científica e/ou como mais avançada que suas rivais, de modo que, embora explicitamente critiquem o progresso, implicitamente defendem uma forma dele.

O "ordem e progresso" propõe a conciliação das necessidades da ordem social e das tendências de desenvolvimento humano. Em uma outra forma de considerar as dinâmicas políticas e sociais, muitos afirmam que é necessário em toda sociedade e em todo regime político a existência de situação e oposição ou, em termos parecidos, de "direita" e "esquerda". Situação e oposição, de um lado, e direita e esquerda, de outro lado, não são equivalentes a ordem e progresso: seja porque, no limite, podem ser oposições meramente formais, seja porque seus conteúdos específicos diferem bastante de ordem e progresso. A dupla "situação e oposição" refere-se apenas ao fato de que há alguém (ou algum grupo) que governa e alguém (ou algum grupo) que (nominalmente) não gosta de quem está no poder e que gostaria de governar em seu lugar: refere-se, portanto, apenas à disputa pelo poder (e, nesse sentido, esse par de conceitos é compatível com a rejeição irracionalista da idéia de progresso).

O par "direita e esquerda", por outro lado, tem conteúdos muito mais problemáticos, na medida em que, surgida essa oposição na Revolução Francesa, em mais de 200 anos ela já mudou inúmeras vezes de conteúdo. De modo geral, o pólo forte é a esquerda: é ela quem costuma definir os conteúdos respectivos de cada um dos pólos, seja por derivação lógica (se a esquerda define-se pela "justiça", à direita corresponderia a "injustiça"), seja por imputação voluntária direta (como quando a esquerda define como traço específico da direita o fascismo) – mas é claro que tal posição de superioridade lógica da esquerda nem sempre se verifica historicamente. De qualquer maneira, nem a esquerda pode ser sinônima automática de progresso e liberdade (embora seja sempre sinônimo de igualdade – o que, mais uma vez, não é sinônimo nem de progresso nem de liberdade), nem a direita é sinônima de autoritarismo (embora também não implique nem a liberdade nem a ordem).

Em suma: enquanto "ordem e progresso" corresponde, de fato, a um programa político e social claro, com liberdades e melhorias nas condições de vida, "direita e esquerda" é uma oposição vaga e freqüentemente estéril; "situação e oposição" é apenas uma formalização da disputa pelo poder, conforme a política britânica cristalizou.

*          *          *

Há quem proponha que, como os estudantes das Ciências Naturais tendem a ser mais conservadores e os estudantes das Ciências Humanas tendam a ser mais "revolucionários", isso se deva a que haveria uma divisão política entre C. Naturais e C. Humanas semelhante à polarização entre esquerda e direita. Essa concepção é equivocada e profundamente daninha: não porque não haja diferenças entre os ramos científicos, nem porque não seja possível, e por vezes necessário, politizar a prática científica, mas porque transporta para o âmbito da compreensão da realidade a dinâmica de oposição característica do mundo político. Em outras palavras, em vez de entender-se a relação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais como de complementaridade de resultados e mesmo de métodos (ainda que cabendo a presidência do sistema às Ciências Humanas), a transposição a esse par da dicotomia direita-esquerda dá a entender que no âmbito científico, isto é, no âmbito da compreensão da realidade é válida e aceitável a dinâmica estabelecida entre "situação" e "oposição" ou, por outro lado, que os desenvolvimentos havidos nas Ciências Humanas corresponderiam ao avanço da justiça ou, mais precisamente, da igualdade (lembrando que igualdade e justiça nem são sinônimas nem se implicam mutuamente) e os desenvolvimentos das Ciências Naturais corresponderiam a avanços da "ordem", do "status quo" e, no limite, do "autoritarismo". Nada disso faz sentido e, confirmando o que afirmamos acima, o resultado dessa forma de raciocinar é altamente prejudicial para a prática científica.

         *          *          *                      

Nos meses das campanhas eleitorais para Presidente da República de 2014, no Brasil, apresentaram-se com clareza grupos sociais que se definem como sendo de "direita". Muitos deles defenderam o retorno dos militares como árbitros da vida política nacional e, em particular, a realização de um golpe de Estado militar com vistas à substituição do governo encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) por um governo encabeçado por algum outro partido político que não se declare explicitamente como sendo de "esquerda". Outros apresentaram-se como "conservadores", ou seja, como contrários às concepções "progressistas", entendidas estas de modo geral como as defendidas pelo PT, embora haja aqueles que são "conservadores" de modo político mas não político-partidário, ao defenderem visões de mundo conservadoras (que, por sua vez, amparam-se de modo geral em concepções contrárias ao progresso, seja devido ao antiprogressismo irracionalista, seja devido à aplicação à política de idéias teológicas). Muitos de "direita" definem-se assim porque defendem as liberdades, em oposição ao igualitarismo defendido pela "esquerda".

Além do fato de que desde o final do regime militar, isto é, desde há cerca de 25 anos não havia grupos sociais no Brasil que se definiam como de "direita" – o que por si só é interessante –, essa nova direita é um movimento especificamente político, ou melhor, especificamente secularizada, no duplo sentido de que até o momento não apresentou características de ideário religioso (teológico) e de que os vários grupos teológicos (mais ou menos conservadores, mais ou menos progressistas, sejam eles católicos, sejam eles evangélicos) apoiam tanto a "direita" quanto a "esquerda". De qualquer modo, o que parece unificar, ou melhor, conferir uma certa identidade – sem dúvida alguma momentânea – a essa nova direita nacional é a sua oposição sistemática ao PT e ao governo federal.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

25 outubro 2014

Necessidade do "ordem e progresso"; superioridade sobre "direita-esquerda", "situação-oposição"

Todos aqueles que afirmam que a fórmula "ordem e progresso" busca limitar o progresso à ordem são incapazes de definir o progresso, em particular para além da definição geral de Condorcet, para quem o progresso é desenvolvimento contínuo, permanente e infinito. O "ordem e progresso" estabelece, ao contrário, as condições e as possibilidades do progresso, dizendo com clareza exatamente em que ele consiste. Em outras palavras, o "ordem e progresso" tira a idéia de progresso da vagueza e, portanto, da metafísica; ao contrário, quem rejeita essa fórmula em nome do progresso indefinido é simplesmente incapaz de entender a ordem de outra maneira que não como sendo "despotismo" ou "autoritarismo".

Há também a possibilidade de rejeitar-se o "ordem e progresso" devido a uma rejeição do próprio progresso, seja porque há um apego à ordem, seja porque se nega a idéia de progresso. Quem se apega à ordem já foi retrógrado, atualmente é reacionário; bem vistas as coisas, nos dias de hoje são relativamente poucos grupos que rejeitam qualquer progresso: por vezes limitam as ambições de outros grupos em um ou outro aspecto e o mais das vezes desejam limitar o desenvolvimento ao que já se obteve: esses poderiam ser denominados de "reacionários" ou "conservadores". Os grupos atuais que têm um caráter especificamente retrógrado são, não por acaso, os teológicos, majoritariamente cristãos, muçulmanos e até judeus.

Já os que rejeitam a idéia de progresso não são necessariamente retrógrados, no sentido de rejeitarem melhorias: antes, são irracionalistas, que rejeitam a concepção de "leis sociológicas" e que consideram que a história humana consiste apenas e tão-somente de "som e fúria", de choques permanentes e infinitos entre os grupos humanos. Esse tipo de raciocínio freqüentemente é metafísico e, não por acaso, também com freqüência é possível determinar suas origens teológicas, tão próximas ao misticismo e à metafísica alemã. Se a vida é apenas choque permanente, além de não ser possível determinar sentido algum nesta vida, o máximo que se pode almejar em termos coletivos é a vida política e, em particular, a política do poder – em outras palavras, egoísmos coletivos, guerras e dominação de todos sobre todos.

O "ordem e progresso" propõe a conciliação das necessidades da ordem social e das tendências de desenvolvimento humano. Em uma outra forma de considerar as dinâmicas políticas e sociais, muitos afirmam que é necessário em toda sociedade e em todo regime político a existência de situação e oposição ou, em termos parecidos, de "direita" e "esquerda". Situação e oposição, de um lado, e direita e esquerda, de outro lado, não são equivalentes a ordem e progresso: seja porque, no limite, podem ser oposições meramente formais, seja porque seus conteúdos específicos diferem bastante de ordem e progresso. Situação e oposição refere-se apenas ao fato de que há alguém (ou algum grupo) que governa e alguém (ou algum grupo) que não gosta de quem está no poder e que gostaria de governar em seu lugar: refere-se, portanto, apenas à disputa pelo poder. Direita e esquerda, por outro lado, têm conteúdos muito mais problemáticos, na medida em que, surgida essa oposição na Revolução Francesa, em mais de 200 anos elas já mudaram inúmeras e inúmeras vezes de conteúdo. De modo geral, o pólo forte é a esquerda, ou seja, é ela quem define os conteúdos respectivos de cada um dos pólos; mas nem a esquerda pode ser sinônima automática de progresso e liberdade (mas é sempre de igualdade, o que, mais uma vez, não é sinônimo nem de progresso nem de liberdade), nem a direita é sinônima de autoritarismo (embora também não implique nem a liberdade nem a ordem). Em suma: enquanto "ordem e progresso" corresponde, de fato, a um programa político e social claro, com liberdades e melhorias nas condições de vida, "direita e esquerda" é uma oposição vaga e freqüentemente estéril; situação e oposição é apenas uma formalização da disputa pelo poder, conforme a política britânica cristalizou.

(Reprodução permitida, desde que citada a fonte.)