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20 novembro 2023

Vídeos da palestra "A atuação republicana da IPB" (II Ciclo de Palestras do C. P. Lavradio)

No dia 14.Frederico.169 (18.11.2023) tivemos a oportunidade de participar do II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O evento contou com o apoio e um pequeno patrocínio da Igreja Positivista Virtual.

Naquele momento pronunciamos a palestra "A atuação republicana da Igreja Positivista do Brasil", que foi transmitida pela internet e também gravada em celular.


A gravação em celular, realizada por mim mesmo, está disponível no canal Positivismo, em duas partes, aqui:



Os vídeos das demais palestras - todas elas interessantíssimas e que realmente valem a pena de serem vistas - podem ser vistos a partir daqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/11/videos-do-ii-ciclo-de-palestras-do.html

18 novembro 2022

Crítica à República e desistência de uma utopia libertária, inclusiva e progressista

A República foi proclamada em 1899, tendo amplo apoio popular e de intelectuais. Nos anos seguintes à proclamação, muitos desses intelectuais republicanos passaram a desiludir-se com o novo regime político, pois esperavam mudanças sociais, políticas, econômicas imediatas. As mudanças sociais, como sabemos, são lentas por si sós; a implantação da República teve suas próprias dificuldades e, por fim, de fato muitas mudanças necessárias e desejadas acabaram não sendo implantadas.

A partir de então, esses intelectuais desiludidos passaram a criticar os limites, as falhas e as promessas não cumpridas da República.

O problema é que nessas críticas esses intelectuais - antigos entusiastas do republicanismo - passaram a abandonar moral, intelectual e politicamente a República. Ou seja, em vez de persistirem no projeto, em vez de cobrarem a realização das promessas e das necessidades sociais, eles passaram a deixá-lo de lado. Nessa toada associaram-se aos críticos novos intelectuais, que, por sua vez, tinham cada vez menos compromisso com o republicanismo e, em particular, com a defesa das liberdades.

Assim, esse abandono do projeto republicano, da parte dos intelectuais antigos entusiastas da República (e mesmo da parte de alguns novos intelectuais), teve pelo três ou quatro resultados, não necessariamente mutuamente excludentes:

(1) abriram espaço para a irresponsabilidade social, política e econômica das elites brasileiras;

(2) abriram espaço para a posterior rejeição da República, que acabou realizando-se na forma da Revolução de 1930, e, em particular, para os autoritarismos "puros" e/ou os autoritarismos que tendiam para os totalitarismos, próprios ao Brasil entre 1935 e 1945;

(3) permitiram que a memória da monarquia - tão corretamente criticada nas décadas de 1870 e 1880 (escravidão, castas, degradação do trabalho, filhotismo, igreja oficial, centralização autoritária, imperialismo internacional etc.) - fosse reabilitada, como se os inúmeros e profundos defeitos morais, intelectuais, sociais e políticos da monarquia nunca tivessem ocorrido e como se república não tivesse sido de fato um progresso necessário, com ou sem promessas não cumpridas;

(4) a transmutação, explícita ou implícita, de alguns desses intelectuais republicanos em defensores da monarquia;

(5) uma combinação variada desses aspectos todos.

Ora, bem vistas as coisas, a desistência do projeto republicano da parte desses intelectuais foi um enorme erro. Até então e desde o século XVIII, na história do Brasil o republicanismo era um ideal em si mesmo, uma concepção densa a concentrar, estimular e orientar os esforços morais, intelectuais, políticos, sociais - em outras palavras, o republicanismo era própria e verdadeiramente uma utopia.

Desde então, o Brasil ficou órfão dessa utopia. A muito custo, o republicanismo foi substituído pela "democracia"; mas, como se sabe, tal substituição foi demorada; mas, como não se sabe, a democracia é um substituto muito, muito imperfeito e inadequado para o republicanismo, na medida em que ela (a democracia) é o governo do povo, o que pode ser entendido como "massas", quer sejam as massas que nunca erram ("a voz do povo é a voz de deus", como poderia ser subscrito por Rousseau), quer sejam as massas de indivíduos justapostos (como pode ser subscrito pelos liberais). Quando se estuda a "democracia" de um ponto de vista da teoria política, levando em consideração o republicanismo, torna-se bastante evidente que ela, a democracia, só se torna um regime de liberdades com conteúdo social quando na verdade ela é apenas um nome que corporifica de fato e no fundo a República.

Desde os anos 1930, essa desistência do republicanismo da parte dos intelectuais antigos republicanos é estudada na academia como "crítica à república" e/ou como "crítica ao liberalismo", não como desistência do republicanismo. Em outras palavras, o enfoque básico nesses estudos é o da crítica social e, curiosamente, de um forte mas implícito "evolucionismo", em que nada do que veio antes dos "estudiosos contemporâneos" presta (e, em particular, nada do que veio antes da "democracia", presta); com isso, a história política, social e intelectual está sempre, perpetuamente, recomeçando. Aliás, como já indicamos, além desse curioso evolucionismo anti-histórico, tabula rasa, uma outra consequência dessa perspectiva é a revalorização da monarquia - em que se passa água sanitária sobre todos os sérios, inúmeros e profundos problemas da monarquia e em que esta passa a ser vista como um modelo de virtudes intelectuais, morais, sociais, políticas e econômicas.

Um representante perfeito dessa mentalidade tabula rasa é o famoso (mas, como é fácil de perceber, exageradamente celebrado) sociólogo Florestan Fernandes; antes dele, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda fez a mesma coisa (Sérgio Buarque tem o grave defeito adicional de repetir o preconceito anti-ibérico, ou antiportuguês, que considera que só os anglossaxões prestam e que os ibéricos são burros, preguiçosos, autoritários etc.).

Uma outra maneira de entender a perspectiva academicista básica para estudo dos intelectuais antigos republicanos é a seguinte: desiste-se do republicanismo e desiste-se da utopia republicana; mas, mais importante que isso, também se desiste de entender a desilusão dos intelectuais antigos republicanos como uma etapa de aprendizado intelectual, moral e político, em termos coletivos e históricos da realidade brasileira. Ou seja, desiste-se de entender que a desilusão desses intelectuais era correta e compreensível em um certo sentido; mas que eles erraram profundamente em passar da desilusão para a desistência do projeto republicano e, daí, que eles erraram em deixar o Brasil órfão da utopia republicana e de seu denso conteúdo social e libertário. (De passagem: na França e em Portugal não se cometeu esse erro; não por acaso, o republicanismo nesses países tem um conteúdo denso, ou seja, é uma utopia atual, verdadeira, pulsante.)

Em suma: lamentavelmente, apesar de si mesmos, os intelectuais antigos republicanos erraram - e nós insistimos em não aprender com esse erro.

Uma última observação. Muitos intelectuais antigos republicanos desiludiram-se com a república e acabaram desistindo do projeto republicano; essa perspectiva - a desilução-com-desistência - é a perspectiva-padrão das análises academicistas atuais: é o que argumentei até agora. Se a atuação dos intelectuais desiludidos-desistentes oferece a perspectiva atualmente celebrada e vista como correta, o resultado é que aqueles intelectuais que persistiram no republicanismo, que persistiram valorizando a República e sua utopia, passam a ser vistos como intelectuais alienados, tolos, idealistas, desconectados da realidade - ou, ainda pior, como defensores implícitos ou explícitos da exclusão social, do elitismo, das oligarquias etc. Ora, como os positivistas foram alguns, se não verdadeiramente os únicos, intelectuais organizados e públicos a defender a República e o republicanismo, naturalmente recaem sobre eles todos esses adjetivos negativos que acabamos de enumerar. Aí se evidencia um dos motivos do ridículo com que os academicistas gostam de apresentar os positivistas: não tem nada a ver com as propostas e os comportamentos efetivos dos positivistas, mas com preconceito, com recusa de aprender com a história e com a recusa em persistir em projetos sociais, libertários, inclusivos e progressistas.

20 junho 2018

Ivan Lins: "Sobre o 'Ordem e Progresso', de Gilberto Freyre"

O sociólogo Gilberto Freyre, que adaptou para o Brasil algumas técnicas antropológicas dos EUA ao descrever em detalhes a intimidade da sociedade colonial brasileira, publicou no final dos anos 1950 um livro chamado Ordem e Progresso.

Embora G. Freyre reconhecesse que seus informantes podiam ter suas memórias alteradas pelo tempo e pela afetividade, em vários casos tomou as recordações alheias ao pé da letra, como se fossem a descrição da verdade - e sem se preocupar em verificar se as afirmações obtidas correspondiam ou não à verdade.

Assim, nesse livro ele reproduz, chamando de "interessantíssimo", o relato de um monarquista idoso e ressentido, que narra uma história que poderia detratar a ação política de Benjamin Constant, o fundador da República.

Pois bem: Ivan Lins - o historiador, não o cantor - publicou um artigo em que comenta criticamente a história publicada e o procedimento de Gilberto Freyre, notando o quão injuriosos e incorretos eles foram.

Graças à internet e à digitalização de documentos, é possível (re)ler essa notável réplica de Ivan Lins. Ela foi publicada na revista História, da Universidade de São Paulo, em seu v. 24, n. 49, de 1962, e pode ser lida aqui.

29 setembro 2017

Feriados nacionais na I República - inspiração positivista

A laicidade do Estado, a valorização dos seres humanos, a inclusão social, as concepções universalistas de sociedade são princípios importantes para que se realize no Brasil (como, aliás, em todos os países) os ideais de liberdade, fraternidade e eqüidade. 

Entretanto, a despeito disso, nos últimos vários anos esses princípios têm sofrido ataques reiterados dos mais diversos lados, a partir de intelectuais e grupos sociais que, embora digam-se "progressistas", são na verdade retrógrados, particularistas, autoritários e/ou excludentes.

Face a isso, vale a pena reproduzir abaixo o texto do Decreto n. 155-B, de 14 de janeiro de 1890, que instituiu os feriados nacionais. Como é possível perceber, são todos feriados de caráter cívico e humanista, festejando seja a união dos povos, seja a vida coletiva brasileira.

Convém notar que esse calendário de comemorações foi sugerido pelo vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes, e levado à consideração do governo provisório da República pelo Ministro da Agricultura, Demétrio Ribeiro. Aliás, o mesmo procedimento foi adotado a respeito da lei de separação entre igreja e Estado, que se converteu no Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890.

Desde pelo menos 1930, entretanto, esse calendário de festividades vem sendo atacado, modificado - e pervertido e mutilado. Não por acaso, em 1930 assumiu o poder Getúlio Vargas, que tinha como um de seus apoios a Igreja Católica e diversos grupos que, depois, aproximar-se-iam do integralismo. Da mesma forma, há cerca de duas décadas o racismo oficial tem-se afirmado de diversas maneiras, também ganhando espaço na forma de feriados (ainda que, felizmente, sem haver - ainda - uma comemoração nacional do racismo).

Mantenho a grafia da época. Obtive o texto da coleção de leis mantida na internet pela Casa Civil da Presidência da República, mais precisamente aqui.

*   *   *


O GOVERNO PROVISORIO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL, considerando:

que o regimen republicano basêa-se no profundo sentimento da fraternidade universal;

que esse sentimento não se póde desenvolver convenientemente sem um systema de festas publicas destinadas a commemorar a continuidade e a solidariedade de todas as gerações humanas;

que cada patria deve instituir taes festas, segundo os laços especiaes que prendem os seus destinos aos destinos de todos os povos;

DECRETA:

São considerados dias de festa nacional:

1 de janeiro, consagrado á commemoração da fraternidade universal;

21 de abril, consagrada á commemoração dos precursores da Independencia Brazileira, resumidos em Tiradentes;

3 de maio, consagrado á commemoração da descoberta do Brazil;

13 de maio, consagrado á commemoração da fraternidade dos Brazileiros;

14 de julho, consagrado á commemoração da Republica, da Liberdade e da Independencia dos povos americanos;

7 de setembro, consagrado á commemoração da Independencia do Brazil;

12 de outubro, consagrado á commemoração da descoberta da America;

2 de novembro, consagrado á commemoração geral dos mortos;

15 de novembro, consagrado á commemoração da Patria Brasileira.

Sala das sessões do Governo Provisorio, 14 de janeiro de 1890, 2º da Republica.

- Manoel Deodoro da Fonseca.
- Ruy Barbosa.
- Q. Bocayuva.
- Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
- Eduardo Wanderkolk.
- Aristides da Silveira Lobo.
- M. Ferraz de Campos Salles.
- Demetrio Nunes Ribeiro.

12 junho 2017

Luís Antônio Cunha: Laicidade do Império à I República

Luís Antônio Cunha, fundador e pesquisador do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), publicou recentemente o livro A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. O livro está disponível em versão eletrônica gratuita aqui.

Com mais de 530 páginas, é uma obra de fôlego, essencial para quem quer entender a laicidade, a história da laicidade e mesmo partes importantes da história do Brasil.

06 outubro 2016

Livro "Laicidade na I República Brasileira: Os Positivistas Ortodoxos"

Está à venda o livro "Laicidade na I República Brasileira: Os Positivistas Ortodoxos", de minha autoria e publicado pela editora Appris.

O livro aborda a atuação dos positivistas ortodoxos brasileiros - Raimundo Teixeira Mendes em particular - em favor da separação entre igreja e Estado no Brasil, ou seja, em favor da laicidade.

Modestamente, é uma das mais importantes contribuições para a história da laicidade e para a história do Positivismo no Brasil.


Raimundo Teixeira Mendes

16 novembro 2015

15 de novembro – Proclamação da República Brasileira (1889)



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

 

No dia 15 de novembro comemoramos no Brasil a Proclamação da República[1]. Esse belo e importante acontecimento ocorreu por meio da conjunção de inúmeros indivíduos e grupos que, de diferentes maneiras, baseados em diversos princípios e com variadas intensidades, desde pelo menos 1789 almejavam que o Brasil fosse uma república livre e progressista. O movimento que resultou no fim da monarquia em 1889 teve a importantíssima participação dos positivistas brasileiros, de Norte a Sul do país, e foi liderada pelo professor de Matemática e Coronel do Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – ele também positivista e adepto da Religião da Humanidade.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães

Neste ano desejo celebrar a memória de Benjamin Constant por meio da apresentação de elementos da teoria republicana. Assim, creio, será possível entender um pouco das idéias que moveram esse grande cidadão e patriota; da mesma forma, creio que será possível percebermos que a República é um verdadeiro ideal político, capaz de orientar as ações dos cidadãos ainda por muitas e muitas gerações – se é que em algum dia ela deixará de ser um ideal.

Definindo a “República”

 

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade” (Augusto Comte, Système de politique positive, v. I, p. 70).

De acordo com o Positivismo, a República define-se pelo menos por duas características, uma negativa e outra positiva.

(1) Contra a monarquia, a favor da meritocracia

 

A característica negativa refere-se à oposição à monarquia. Isso não significa apenas que a sociedade deve ser governada por um presidente e não por um rei; que seus impostos devem remunerar governantes capazes e não toda uma casta que parasita a sociedade. A oposição à monarquia implica também o fim das sociedades de castas, de “estados”, de “ordens”, isto é, das sociedades em que a condição jurídica, política e até moral de cada indivíduo é dada pelo seu nascimento. Assim, em vez de termos “reis”, “príncipes”, “marqueses”, “duques”, “condes”, “barões” etc. – que, apenas por terem nascido nas famílias em que nasceram, valeriam mais ou menos que o comum das pessoas, como ocorre ainda hoje na Inglaterra, nos Países Baixos, na Espanha, na Suécia e em vários outros países –, temos apenas cidadãos.

Isso resulta em que o valor dos indivíduos é dado não por seu nascimento, mas pelo seu mérito individual. Ora, a valorização do mérito individual, ao mesmo tempo em que deve resultar na meritocracia, implica um sério problema prático, na medida em que as condições sociais concretas dificultam o desenvolvimento das capacidades de muitos cidadãos, em particular dos mais pobres. Para contornar esse problema e, no limite, remediá-lo, tanto o governo quanto a sociedade civil devem esforcem-se para conferir condições para que os mais pobres possam desenvolver suas capacidades.

Além disso, um outro procedimento é necessário; esse procedimento adicional é mais difícil, pois ele exige reflexão e ponderação e também porque ele é abstrato: o mérito individual deve ser avaliado abstratamente, não em termos concretos, considerando as contribuições que cada indivíduo dá para a coletividade. Assim, não é possível entender por “mérito” apenas a capacidade econômica de cada um, mas também outros aspectos, como aptidões artísticas, elaborações filosóficas, pesquisas científicas, manutenção de famílias saudáveis, estímulo à cooperação social e ao desenvolvimento do altruísmo.

Augusto Comte

Como argumentava Augusto Comte, a avaliação do mérito individual é a função social mais difícil de realizar, em virtude da sua grande complexidade: por esse motivo, deve ser feita por um órgão social (não governamental) especialmente dedicado a isso, que analise serenamente o conjunto da vida de cada cidadão e leve em consideração as várias circunstâncias envolvidas[2]: esse órgão é o sacerdócio positivista.

(2) Dedicação à coletividade, subordinando a política à moral

 

O aspecto positivo da definição da república consiste na dedicação à coletividade, a partir da subordinação da política à moral.

A dedicação à coletividade consiste em cada indivíduo buscar ser um cidadão útil, contribuindo ativamente da melhor maneira possível, dentro de suas condições, para a sociedade. Essas contribuições são de vários tipos: evidentemente, as atividades econômicas são as mais extensas e as mais básicas, mas não são as únicas, pois o ser humano não se limita nem se resume ao estômago. Assim, as contribuições também podem ser afetivas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas, organizacionais, familiares e assim por diante.

Cumpre notar também que todo cidadão desenvolve ao mesmo tempo pelo menos dois tipos de atividades: as particulares e as gerais. As particulares são as suas atividades específicas: suas profissões, seus trabalhos; já as gerais são aquelas que se referem à coletividade e que, de acordo com o senso comum, são chamadas de “políticas”. Esses dois tipos de atividades são complementares e, dessa forma, não faz sentido opor uma à outra: todo trabalhador é e deve ser um cidadão, todo cidadão é e deve ser um trabalhador.

Mas, por outro lado, é necessário reconhecer que as atividades particulares consomem bastante tempo, o que impede que o grosso dos cidadãos dediquem-se exclusivamente às atividades gerais; ao mesmo tempo, as sociedades modernas oferecem um sem-número de atividades de lazer, de possibilidades de gozo da vida individual, familiar, coletiva que não se referem ao que chamamos de “política”; essas atividades são legítimas e integram o que chamamos de “bem-estar”. Inversamente, há indivíduos que se dedicam exclusivamente à condução dos negócios gerais: tais indivíduos constituem o governo. Há uma separação clara entre governantes e governados, entre o Estado e os cidadãos; essa separação é boa, é correta e é necessária. Nesse quadro, o comum dos cidadãos participa da vida política principalmente do acompanhamento dos negócios públicos, no âmbito da sociedade civil e por meio da opinião pública.

A subordinação da política à moral consiste em que cada indivíduo, cada cidadão, cada empresa, cada organização, cada país, cada civilização deve visar à convergência em seus esforços, limitando as atividades divergentes e particularistas; deve buscar estimular e satisfazer o altruísmo, comprimindo os vários egoísmos e esforçando-se para orientá-los em direção ao altruísmo; deve fortalecer e estimular a atividade pacífica, evitando as guerras e resolvendo o máximo possível os conflitos por meio das negociações e com instrumentos pacíficos.

No ser humano, o egoísmo é mais forte que o altruísmo, assim como as formas que o egoísmo assume são mais variadas que as do altruísmo. O “egoísmo” significa a satisfação de necessidades e desejos individuais mas que visam a fins particulares; em contraposição, o altruísmo significa o estímulo e a satisfação de necessidades também individuais mas que visam a beneficiar outrem e/ou a coletividade. Assim, não é possível erradicar o egoísmo e nem faria sentido isso; mas daí não se segue que o egoísmo possa ser um fim em si mesmo. É necessário limitar o egoísmo e direcioná-lo para outros objetivos que não nós mesmos: a moralidade, portanto, consiste no estímulo e no desenvolvimento do altruísmo. Quando Augusto Comte afirmava que a política deve subordinar-se à moral ele queria dar a entender isso: que a política e o conjunto das atividades humanas devem orientar-se em direção ao altruísmo e não se resumir nem se consumir no egoísmo.

Ao definir o sentido positivo do seu conceito de “república”, Augusto Comte incluía um elemento que chamava “social”. Evidentemente, a definição de moralidade que apresentamos acima é “social”, pois o altruísmo consiste nos esforços em bem dos demais indivíduos e da coletividade de modo geral; mas o traço “social” da república, de modo específico, é melhor entendido em contraposição a uma definição estritamente política da república. Nesse sentido, para Augusto Comte e para o Positivismo, a república não pode ser apenas um regime político, que se opõe à monarquia, mas deve também ser uma forma de organização social que integre e valorize todos os seus membros; em particular, realizando a “incorporação social do proletariado”. Assim, o regime político cujo nome significa, literalmente, “coisa pública” e que, de acordo com Augusto Comte, caracteriza-se pelo primado do altruísmo e da preocupação com os demais, deve realizar na prática esse primado e essa preocupação a começar pela combate à miséria, pelas políticas de geração de renda, pelas políticas de geração de emprego e assim por diante.

As virtudes cívicas libertam, o “desejo” escraviza

 

Uma outra forma de entender a subordinação da política à moral é uma concepção mais clássica da “república”, a saber, que a república é o regime político e social mantido pelas virtudes cívicas, a que se contrapõe a corrupção. Quando falamos em “virtudes cívicas” queremos dar a entender as virtudes próprias à atividade política na República: o interesse pela coletividade, o espírito de grupo, a generosidade, a honestidade, a fraternidade, o respeito às opiniões divergentes, o entendimento de que as divergências devem ser solucionadas via argumentação racional e não por meios violentos, a convergência e a busca de amplos entendimentos e consensos.

As virtudes cívicas, portanto, andam bastante próximas da forte ênfase de Augusto Comte em relação aos deveres sociais. Sem serem impostos pelas leis, os deveres são regras de comportamento que obrigam entre si os cidadãos, no sentido indicado antes, ou seja, a favor do altruísmo, da incorporação social do proletariado e assim por diante. Conseqüentemente, ao rejeitar a sua definição nas leis, a noção de deveres baseia-se na opinião pública: cada indivíduo, cada cidadão deve aceitar voluntariamente essas obrigações, de tal sorte que elas definam comportamentos adotados de “dentro para fora” – afinal de contas, o altruísmo só é verdadeiro e só produz os seus melhores resultados quando é voluntário, não quando é imposto de fora e pela ameaça do uso da força (como ocorre com as leis).

Um famoso publicista brasileiro, que há pouco tempo foi Ministro da Educação, bem ao gosto “pós-moderno”, ao tratar da República afirmou que as virtudes cívicas devem ser contrapostas ao “desejo”, às vontades íntimas; segundo ele, a virtude coage e os desejos “libertam”. Essa concepção é claramente um sofisma, um jogo de palavras que distorce a realidade e tem péssimos resultados. A virtude não coage ninguém, sejam as virtudes cívicas (que beneficiam diretamente a vida coletiva), sejam as virtudes individuais (que regulam o comportamento individual: temperança, modéstia, humildade etc.). Como vimos, as virtudes regulam o comportamento humano, estimulam o altruísmo e orientam o egoísmo em favor do altruísmo: essa regulação é fundamental para uma verdadeira vida coletiva e pacífica. Em contraposição a isso, o “desejo” é a vontade individual em sua forma mais clara, ou seja, é o egoísmo. Enquanto a virtude cívica tempera algumas paixões pessoais e políticas por meio do uso da inteligência e do altruísmo, os desejos são as paixões humanas em estado puro, sem a mediação da inteligência e do altruísmo. Ou melhor, os desejos até usam a inteligência, mas apenas para buscarem sua satisfação: ora, a satisfação dos desejos é sempre uma satisfação pessoal, ou seja, egoísta; além disso, como se sabe há séculos (e mesmo milênios), as paixões e os desejos não se satisfazem nunca. Em outras palavras, exatamente ao contrário do que argumentou o publicista, as virtudes libertam e são condição da liberdade; o desejo é sempre elemento de egoísmo, de conflitos permanentes e de escravização pessoal e coletiva.

As virtudes cívicas contra a corrupção

 

A preocupação com o bem comum – que pode ser entendida como uma forma de resumir as várias virtudes cívicas – inclui o acompanhamento dos negócios públicos. É importante notarmos que “acompanhar os negócios públicos” não é o mesmo que “conduzir os negócios públicos”: a condução da vida política cabe antes de mais nada ao governo (aos “governantes”, ao “Estado”), mas os cidadãos têm o dever de acompanhar as decisões e as medidas adotadas. Esse dever impõe-se a todos não apenas porque a vida política diz respeito a todos; ele é necessário também porque os cidadãos “comuns” formam a sociedade civil, que, por sua vez, expressa-se por meio da opinião pública: para que a opinião pública opine de maneira racional, ela deve estar no mínimo bem informada. Além disso, o acompanhamento constante dos negócios públicos é o instrumento mais importante e mais poderoso para que os governantes desempenhem suas funções realmente em favor da coletividade e não em favor de si próprios: em outras palavras, a opinião pública ativa é o instrumento mais importante no combate à corrupção.

Concluindo: a República em memória de Danton, de Paris e da França

 

As concepções expostas acima estão bem longe de esgotar o conceito de República. A idéia e a prática da “república” começaram na Roma Antiga, no século VI a.e.a., foram retomadas na Idade Média em várias cidades italianas e neerlandesas, passaram pela Inglaterra, atravessaram o Oceano Atlântico e foram finalmente consagradas na França, em 1792, no curso dos tormentosos, mas gloriosos, eventos que chamamos de Revolução Francesa. O responsável pela proclamação da República na França foi o grande Georges Jacques Danton (1759-1794); ao fazê-lo, ele procurava realizar o programa duplo indicado acima: contra a monarquia, a favor da coletividade e do bem comum. Com isso, ele consagrava também os princípios da liberdade e da fraternidade, além da igualdade perante a lei.

Georges Danton

Igualdade perante a lei, liberdade e fraternidade: esses ideais são universais. Por meio da obra de Augusto Comte, os princípios consagrados pela República francesa foram aplicados e realizados no Brasil, graças à ação de inúmeros cidadãos e patriotas, entre os quais tiveram papel de destaque muitos e muitos positivistas: Benjamin Constant, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Júlio de Castilhos e outros.



Miguel Lemos

R. Teixeira Mendes

Júlio de Castilhos

A República no Brasil, assim, deve muito à França. Neste dia 15 de novembro de 2015, temos que nos lembrar tanto dos patriotas brasileiros do 15 de novembro de 1889, mas também temos que lamentar que o país que nos forneceu muitos dos nossos mais importantes valores tenha sido alvo de crimes radicalmente opostos aos nossos, apenas dois dias antes, ou seja, em 13 de novembro de 2015.





[1] Publico o presente artigo no dia 16 em vez de no dia 15 devido ao seguinte motivo. Após os crimes ocorridos em Paris, em que terroristas ligados ao Estado Islâmico mataram centenas de inocentes na noite do dia 13 de novembro, passei os dois dias seguintes lendo e escrevendo a respeito disso, procurando entender o que ocorrera e quais os desdobramentos de um tal acontecimento. Assim, não tive imediatamente condições intelectuais e morais para tratar de um assunto mais abstrato, como é a teoria da República.
[2] Nesses termos, parece claro que as acerbas disputas que têm ocorrido no Brasil em que se opõe o auxílio governamental do “bolsa-família” ao “mérito individual” são muito mal concebidas. Os defensores do “bolsa-família” desprezam, sem mais, uma verdadeira conquista civilizacional, que é a afirmação social do mérito; já os supostos defensores da meritocracia têm uma concepção estreita do mérito, cuja consequência no final das contas é também desprezar os méritos. Em ambos os casos as avaliações são rasas, apressadas e concretas.

19 novembro 2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

O dia 19 de novembro marca o Dia da Bandeira. Nessa data, no ano de 1889 a proposta feita por Raimundo Teixeira Mendes e pintada por Décio Villares foi apresentada por Benjamin Constant e aceita pelo governo provisório da nascente república brasileira (proclamada um pouco antes, no dia 15 de novembro): assim, é impossível separar a comemoração do Dia da Bandeira da própria Proclamação da República.

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

A bandeira republicana é ao mesmo tempo bonita, simples e profundamente filosófica. Ela é agradável à vista e em linhas gerais pode ser desenhada à mão por qualquer pessoa. Nesse sentido, aliás, ao contrário do que monarquistas, católicos e supostos especialistas em bandeiras afirmam, a bandeira nacional republicana não é complicada: se, por um lado, ela não tem a simplicidade banal de outras bandeiras que se limitam a justapor faixas coloridas, por outro lado ela não apresenta as complexas filigranas que outros pendões ostentam.

Mas, deixando de lado os aspectos estéticos da bandeira nacional, o mais importante é que ela contém em si uma importante combinação de história, de filosofia e de política. O quadrilátero verde e o losango amarelo eram elementos usados na bandeira imperial, correspondendo respectivamente às cores das casas dinásticas de Bragança e de Habsburgo; em versões mais recentes e bem mais populares, essas duas figuras geométricas significariam as matas e as riquezas minerais do país: o que importa notar, de qualquer maneira, é que a permanência dos elementos da bandeira imperial (de 1822 a 1889) na então nova bandeira republicana indicava a continuidade sociológica do Brasil, isto é, o fato simples e importante, mas freqüentemente esquecido ou desprezado, de que a sociedade brasileira continuava existindo ao longo do tempo, em meio aos seus desenvolvimentos e também às mudanças de regimes políticos.

A circunferência azul com a faixa branca contendo o "Ordem e Progresso" (em letras verdes) é ainda mais direta e claramente filosófica. As estrelas no céu lembram-nos de que todos os seres humanos submetem-se à ordem natural, cuja regularidade é enorme e sem a qual nós não existiríamos: sem os contínuos calor e luz do Sol, não haveria vida na Terra, da mesma forma que só é possível a vida neste nosso valioso planeta em virtude de condições geológicas e astronômicas especialíssimas. Mas, por outro lado, a observação das estrelas foi o início da ciência e, de qualquer maneira, é fonte de curiosidade e estímulo permanente à imaginação e à poesia.

O "Ordem e Progresso", por sua vez, é a afirmação do ideal sociopolítico que norteia o Brasil, ao buscar um regime político que permita ao mesmo tempo o progresso (político, econômico, moral) e garanta a ordem social. Proposta pelo filósofo francês Augusto Comte como devendo integrar todas as bandeiras do mundo, essa frase é passível de aceitação por todos os grupos sociais e políticos.

A esse respeito, há um erro de interpretação bastante comum. Ao contrário do que costumam afirmar variados esquerdistas – para quem o "Ordem e Progresso" quer dizer "progresso apenas dentro da ordem", ou seja, para quem o progresso é e sempre será anárquico –, no pensamento comtiano a "ordem" inclui o respeito às liberdades públicas, o bem-estar material de toda a população (em particular a mais pobre), a separação entre igreja e Estado, a fraternidade social e a paz universal etc. Dessa forma, o "Ordem e Progresso" só faz sentido se entendido como propunha originalmente Augusto Comte: na medida em que os elementos da ordem são respeitados e desenvolvidos, há progresso social.

Por fim, desde há alguns anos fala-se em incluir o "Amor" no "Ordem e Progresso". Costuma-se dizer que, ao elaborar a bandeira, Raimundo Teixeira Mendes teria desfigurado a fórmula original de Augusto Comte – que é "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim" –, ignorando a primeira parte. Na verdade, Teixeira Mendes seguiu ao pé da letra as orientações de Comte, que considerava que, enquanto não houver em cada sociedade e, depois, no mundo inteiro, um consenso a respeito da necessidade de unir a ordem ao progresso e de deixar para trás os grupos que querem a ordem de maneira retrógrada e o progresso de maneira anárquica, não será possível incluir o amor como elemento político. Nesse caso, não se trata de que as relações sociais não devam ser mais fraternas, mais pacíficas, mais cuidadosas e respeitadoras do "outro": o que ocorre é que, enquanto não há um consenso efetivo sobre os valores sociais mínimos, o Estado tem que se limitar a manter a ordem social e, dentro do possível, desenvolver as sociedades.


Assim, em seu conjunto, a bandeira brasileira é mais que um símbolo de um país – um símbolo que, aliás, comemora seus 125 anos em 2014 –: é a afirmação de um projeto social de longo prazo, de paz, de respeito, de liberdades, de integração, de bem-estar; em outras palavras, é um símbolo adequado da "república", da cidadania e da realização do ser humano.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar; membro do governo provisório republicano que, em 1889, apresentou ao governo federal a proposta da bandeira nacional. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "República" de Décio Villares (1851-1831), isto é, do mesmo artista que pintou a bandeira nacional republicana. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "Pátria" de Pedro Bruno (1888-1949); costuma-se afirmar que a família que borda a bandeira é a de Benjamin Constant. Fonte da imagem: wikipédia.

Augusto Comte (1798-1857), filósofo e sociólogo francês, fundador do Positivismo; suas idéias orientaram a elaboração da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

06 dezembro 2013

Problemas sobre o Positivismo, na revista História Viva n. 121

Alguns problemas na matéria "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim", publicada na revista História Viva n. 121, de novembro de 2013



Aproveitando a efeméride do aniversário da Proclamação da República, a revista História Viva, em seu número 121, de novembro de 2013, publicou um dossiê temático sobre a República no Brasil. Com vários artigos, o dossiê termina com uma matéria intitulada "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim" (p. 42-44), em que uma jornalista aborda tanto a doutrina positivista quanto a contribuição específica dos positivistas brasileiros para a Proclamação da República[1].
De modo geral, a matéria apresenta um tom interessado, apresentando detalhes importantes e interessantes: o fato de que o Positivismo é ao mesmo tempo uma filosofia, uma proposta política e uma religião; a ação de Benjamin Constant no movimento que resultou no 15 de novembro de 1889 etc.
Entretanto, a matéria apresenta – sempre a título de "criticidade"! – uma série de erros e problemas, muitos dos quais simplesmente consistem em repetir preconceitos e lugares-comuns acadêmicos: assim, é necessário convir que, no final das contas, a proposta da revista História Viva de apresentar o Positivismo fracassou.
Vejamos alguns dos problemas e preconceitos identificados[2].

1)   A fórmula sagrada máxima do Positivismo tem uma redação diferente da apresentada como título da matéria: é "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Augusto Comte foi muito claro a respeito da alteração dessa fórmula, entre a versão primitiva (que intitula a matéria) e a segunda e final; em vez de tratar-se de uma enumeração de elementos e características, a fórmula final apresenta um ordenamento lógico, social e moral, indicando que o progresso resulta da união do amor com a ordem, além de dever ser almejado pela união do amor com a ordem.
(Além disso, deve-se ter em mente que a "ordem" não se confunde com o status quo, nem com uma sociedade estática, avessa ao progresso: a ordem são as condições fundamentais da vida social – o que inclui, por exemplo, o bem-estar dos indivíduos e as liberdades de pensamento e de expressão, elementos que usualmente são apresentados como do "progresso".)

2)   A jornalista afirma que a lei dos três estados considera a passagem do estado teológico para o positivo: entretanto, também afirma que o estado teológico é "controlado pelo catolicismo" e que o estado positivo é "[controlado] pela ciência" (p. 43).
Há pelo menos três erros nessa afirmação. Em primeiro lugar, o que significa a palavra "controlado", conforme usada na frase, não está claro. Controlar é mandar, manter o controle, exercer a autoridade: ora, isso não faz sentido algum para a filosofia da história e para a filosofia política de Augusto Comte: seja porque o catolicismo não exerce nenhum poder de mando sobre as etapas específicas anteriores da teologia, seja porque ele não é a mais importante: bem ao contrário, o catolicismo é a etapa final da teologia.
Assim, em segundo lugar, a fase teológica mais importante é o politeísmo (seja em sua vertente conservadora – representada pelas teocracias –, seja em sua vertente progressista – representada pelos regimes militares da Antigüidade). Além disso, o catolicismo foi importante não devido à sua doutrina, mas devido à ação social, intelectual e política do clero católico durante a Idade Média (ou seja, entre os séculos V e XIV).
Em terceiro lugar, a fase final não é "controlada" (o que quer que isso queira dizer) pela "ciência", mas, sim, pela positividade. A positividade é o espírito relativo, simpático, útil; ou melhor, é o estado mental e social caracterizado pelos sete atributos da palavra "positivo": real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Também é necessário notar que, enquanto a ciência, ou melhor, as ciências – no plural – são sempre analíticas, a positividade apresenta um caráter sintético.

3)    A matéria repete chavões e lugares-comuns e é extremamente  fantasiosa, como na definição de "ditadura republicana": "[...] o francês [i. e., Augusto Comte] idealizou um programa político com um regime de Estado forte e antiliberal (com a submissão dos direitos individuais ao bem público): uma ditadura republicana" (p. 43).
Essa definição assustadora talvez provenha de livros de popularização do conhecimento (como o recém-publicado 1889), mas o fato é que essa suposta definição da "ditadura republicana" simplesmente não corresponde às idéias de Comte, nem na letra, nem no espírito.
Para Comte qualquer governo é "ditadura", especialmente em épocas de transição social, política e moral, como ele considerava que vive o Ocidente desde o século XV e especialmente após a Revolução Francesa. Se todo governo é ditadura, pode haver ditaduras progressistas e reacionárias, liberais e liberticidas. Além disso, a "ditadura republicana" em particular foi proposta por A. Comte como um regime de transição entre a época de crise e a "era normal"; esse regime, assim como a "era normal", caracterizar-se-iam pelas mais completas e amplas liberdades sociais e políticas (ou seja, pelas "liberdades individuais", que, de acordo com o infeliz relato da jornalista, seriam negados): o que ocorre, e como política e socialmente se sabe, as "liberdades individuais" são altamente deletérias se não houver uma preocupação social com o bem-estar da sociedade: é justamente a união das liberdades públicas com o bem-estar coletivo que caracteriza (por exemplo) os regimes do Estado de Bem-Estar Social.
Além disso, deve-se notar que o conceito de "ditadura republicana" pura e simplesmente é desconhecido no Brasil. Tanto pesquisadores ditos "profissionais" quanto o senso comum assumem a palavra "ditadura" no sentido adotado a partir da prática comunista de Lênin, que corporificou a "ditadura do proletariado" de Marx; com isso, ignoram o "contexto lingüístico" em que viveu e elaborou Augusto Comte, ou seja, que no século XIX Augusto Comte adotou nesse caso o hábito lingüístico da época, em que "ditadura" não tinha sentido negativo e que não era antiliberal.
Nesse sentido, a matéria não esclarece nada e aprofunda vários mitos. A observação de que a ditadura republicana é "antiliberal", para fazer algum sentido e não ser injusta, tem que ser entendida estritamente do ponto de vista da história das idéias, significando que a ditadura republicana não se filia ao liberalismo, especialmente no liberalismo laissez-faire – ou seja, no mesmíssimo sentido em que o Estado de Bem-Estar Social também não se filia ao liberalismo. Ora, usar a palavra "antiliberal" e não esclarecer que se trata estritamente de afastamento do liberalismo é querer dar a entender que se trata de um regime autoritário.
Da mesma forma, a expressão "Estado forte" também sugere autoritarismo: mas nem na obra de Augusto Comte, nem nos opúsculos dos positivistas brasileiros (como nos de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes) há qualquer referência seja a um "Estado forte" seja, principalmente, a qualquer defesa do que chamaríamos atualmente de "autoritarismo". Aliás, é digno de nota que a idéia da ditadura republicana como autoritária foi difundida no Brasil por pesquisadores explicitamente liberais (e católicos) que, ao mesmo tempo em que denunciavam o suposto autoritarismo da proposta, defendiam o regime militar iniciado em 1964 e suas variadas truculências.
Sem dúvida que a revista tem pouco espaço para apresentar suas idéias, o que talvez justificasse essa gigantesca "imprecisão conceitual". Infelizmente, essa limitação de espaço não pode justificar nem uma imprecisão tão grande nem a manutenção de um mito. Nesse sentido, a reprodução dos mitos na matéria, especialmente sem atribuir os mitos a alguém em particular, equivale a assumir os valores e as perspectivas do mito - como se sabe, isso é que os pesquisadores de comunicação chamam de "enquadramento". 
A imprecisão e os erros assumem maiores perspectivas quando se considera que há explicações detalhadas, a partir de perspectivas variadas, a respeito da idéia de "ditadura republicana": de Gustavo Biscaia de Lacerda, "O momento comtiano" (tese de doutorado em Sociologia Política, UFSC, 2010, especialmente a seção 7.1: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf; livro publicado pela Editora da UFPR: https://www.editora.ufpr.br/produto/405/momento-comtiano,-o--republica-e-politica-no-pensamento-de-augusto-comte) e "Teoria Política positivista: pensando com Augusto Comte" (Poiesis editora, 2013: http://www.poiesiseditora.com.br/publicacoes/teoria-política-positivista-pensando-augusto-comte); de Arthur Lacerda, "A república positivista. Teoria e ação no pensamento de Augusto Comte" (Juruá, 2003, 3ª ed.).

4)   Na p. 44 a matéria cita um famoso pesquisador, de acordo com quem os positivistas eram "sectários e fundamentalistas": o problema é que nem o pesquisador entrevistado nem a jornalista que escreveu a matéria apresentam os motivos para caracterizar os positivistas como "sectários e fundamentalistas".
Sectário e fundamentalista é uma pessoa que pensa apenas em termos do próprio grupo e de maneira irracional e absoluta no que se refere às próprias crenças, desrespeitando e desconsiderando sem mais as idéias e as propostas de outros indivíduos e grupos – o que não era o caso dos positivistas.
Em primeiro lugar, eles eram coerentes com a idéia de "ditadura republicana", ou seja, respeitavam escrupulosamente as liberdades públicas, não negando o direito de expressão a ninguém – ou seja, não impedindo a manifestação de interlocutores, ao mesmo tempo que se opondo às medidas governamentais tendentes a impedir as manifestações de idéias.
Em segundo lugar, o pesquisador citado sugere que o sinal de que os positivistas eram "sectários e fundamentalistas" eram as expulsões do grêmio positivista: ora, esse comentário foi extremamente especioso, pois descontextualizado e injusto. Os membros expulsos eram donos de escravos que não aceitavam o programa abolicionista, bem como aqueles supostos positivistas que queriam manter cargos públicos ao mesmo tempo em que faziam propaganda da doutrina (ou seja, eram indivíduos que se valiam do cargo para pregação, desrespeitando a separação entre Igreja e Estado): em outras palavras, eram indivíduos cujos comportamentos públicos e privados eram moralmente condenáveis, por serem degradantes e/ou hipócritas.
(Convém notar que, a esse respeito, os positivistas eram muito mais corretos, coerentes e orientados para o bem público que a maior parte das associações religiosas e políticas dos dias correntes: se isso é "fanatismo e sectarismo", a conclusão é que a nossa própria época é lamentavelmente merecedora de muita, muita reprovação.)
Além disso, é importante observarmos que o famoso pesquisador que foi consultado pela jornalista autora da matéria é apenas "famoso" - em grande parte porque ele é pesquisador de uma importante fundação de pesquisas (a Fundação Getúlio Vargas) -; entretanto, nem sua fama nem a sua filiação institucional conferem-lhe qualquer conhecimento, seja sobre a doutrina positivista, seja sobre a atuação específica dos positivistas no período considerado. Em outras palavras: na melhor das hipóteses, como se pode perceber pelos diversos problemas comentados nesta postagem, esse famoso pesquisador apenas emite palpites sobre o Positivismo.




[1] Pode-se consultar a revista História Viva neste endereço: http://www2.uol.com.br/historiaviva/. Aí é possível encontrar disponíveis diversas matérias, embora a que seja objeto de nossa crítica não esteja aberta ao público em geral.
[2] Os pontos abaixo baseiam-se em uma série de quatro mensagens eletrônicas trocadas com o editor da revista, sr. Dirley Fernandes, em 3 e 4 de dezembro de 2013 (sendo duas de nossas autoria e duas dele).
Embora os argumentos apresentados pelo sr. Dirley em defesa da matéria não nos tenham convencido, é necessário reconhecer a educação e a rapidez com que nos respondeu – características infelizmente incomuns no mercado editorial brasileiro –, bem como a atenção em responder de maneira clara e direta às nossas observações.
Por fim: acrescentamos alguns pontos e editamos diversos trechos das mensagens originais, de modo a evitar passagens mais duras e/ou que citavam nominalmente pessoas.

26 setembro 2013

Dicionário da Elite Política Republicana (1889-1930)

Para os interessados em História do Brasil, a Fundação Getúlio Vargas criou há alguns anos um dicionário eletrônico da elite política da I República (1889-1930), que é mais ou menos complementar ao dicionário de elites relativas ao período posterior a 1930 (disponível aqui).

A iniciativa é interessante; ainda assim, é importante notar que ela deixa muito a desejar: inúmeros nomes da "elite política" da I República pura e simplesmente não aparecem nesse dicionário.

Dois exemplos absolutamente escandalosos de omissões: os apóstolos da Humanidade, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que, com base na Igreja Positivista do Brasil, tanto fizeram em prol de uma cultura cívica republicana, do respeito aos trabalhadores, da dignidade da família, da separação entre Igreja e Estado.

Ausências desse gênero diminuem muito a relevância da iniciativa, em particular porque não há previsão de complemento no dicionário e não se aceitam verbetes complementares.

Não há dúvida alguma de que esse tipo de ausência reflete as decisões e as orientações teóricas e políticas tomadas por vários diretores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdocda Fundação Getúlio Vargas. Em outras palavras, esse núcleo de pesquisa pura e simplesmente decretou que o Positivismo não desempenhou papel algum na história brasileira e que, caso alguém discorde desse decreto, tal papel deve ser desconsiderado. É evidente que isso se afasta bastante do que qualquer cidadão poderia chamar de prática científica e política "sadia".

Enfim: para os interessados, esse Dicionário da I República está disponível aqui: http://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-republica.


Miguel Lemos (1854-1917)

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1827)