19 dezembro 2023

Uma sugestão conceitual: pela expressão "II Guerra dos 30 Anos"

No dia-a-dia, usamos as expressões "I Guerra Mundial" (1914-1919), "Período entre-guerras" (1919-1939) e "II Guerra Mundial" (1939-1945). Isso se deve a uma conjugação de proximidade histórica e de comodidade narrativa.

Mas, na verdade, o mais adequado é falarmos em "II Guerra dos 30 Anos", começando em 1914, terminando em 1945 e apresentando três grandes fases claramente marcadas: "I Grande Guerra", "Período da Paz Armada" e "II Grande Guerra".

(A I Guerra dos 30 Anos ocorreu entre 1618 e 1648 e, da mesma forma, compôs-se de diversas fases, algumas de guerra, outras de armistícios, envolvendo diferentes países em diferentes momentos.)

Substituir as expressões "guerras mundiais" por "grandes guerras" é necessário para evitar confusões terminológicas, ao mesmo tempo em que se recupera a terminologia empregada no período 1914-1919.

A expressão "Período da Paz Armada" é mais complicada, pois houve, sim, guerras no período: para citar apenas algumas, a guerra civil russa, a guerra externa russa, a guerra civil espanhola, a invasão italiana sobre a Etiópia, o imperialismo japonês em todo o Leste Asiático, as invasões nazistas sobre a Áustria e, depois, sobre a Tchecoslováquia. Então, correndo o (sério) risco de dar a impressão de que não houve conflitos armados no período, a expressão "Período da Paz Armada" tem as virtudes de indicar que se tratou de uma fase de rearmamento e que não houve uma conflagração geral. (Talvez seja possível usar expressões como "Fase do Tratado de Versalhes" ou "Fase da Liga das Nações"; em todo caso, "Período da Paz Armada", apesar de suas limitações, parece-me mais adequado.)

Em todo caso, um exame cuidadoso de todo esse período, isto é, do que começa em 1914 e termina em 1945, logo indica que é uma única grande conjuntura, marcada pelo belicismo e pelo revanchismo, pela ânsia em guerrear como forma adequada de solucionar as disputas políticas internacionais (e mesmo os problemas internos). Além disso, esse período caracteriza um longo e dolorosíssimo interregno nas aspirações humanistas, pacifistas, internacionalistas da Humanidade, com as conseqüências em termos de regimes políticos (foi um período de autoritarismos, rejeição das liberdades, estímulo das violências etc.).

13 dezembro 2023

Programação de final de ano (169/2023)

Eis a programação do final de ano para 169/2023 da Igreja Positivista Virtual:

- 5 de dezembro (terça-feira): prédica normal

- 12 de dezembro (terça-feira): prédica normal

- 19 de dezembro (terça-feira): prédica normal

- 26 de dezembro (terça-feira): prédica normal

- 1º de janeiro (segunda-feira): celebração da Festa da Humanidade

- 19 de janeiro (sexta-feira): celebração do nascimento de Augusto Comte; celebração de Rosália Boyer

- 2 de janeiro a 22 de janeiro: recesso

Napoleão avaliado pelo Positivismo

No dia 10 de Bichat de 169 (12.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a avaliação feita por Augusto Comte sobre Napoleão Bonaparte, considerando o lançamento, no final de novembro de 2023, do filme homônimo dirigido por Ridley Scott.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (https://l1nq.com/pDP30) e Igreja Positivista Virtual (https://acesse.one/BHE41). Infelizmente, devido a problemas técnicos causados pela empresa NET-Claro, o sinal de internet pifou por volta de 28 min 57 s, interrompendo a transmissão no canal Positivismo. Como a empresa Meta-Facebook decidiu tirar do ar as transmissões após o prazo de 30 dias, a fim de manter a memória dessa prédica baixamos o respectivo vídeo do canal Igreja Positivista Virtual e carregamo-lo no canal Positivismo.

O sermão começa aos 51 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *


Napoleão à luz do Positivismo
 

-        No final de novembro de 2023 estreou o filme Napoleão, dirigido por Ridley Scott e interpretado por Joaquim Phoenix

o   Ridley Scott já dirigiu grandes filmes históricos, como Cruzada (embora tenha feito algumas tolices, como a ficção espacial Alien e, em menor medida, Blade Runner)

-        O caso de Napoleão é exemplar da situação em que um “grande homem” não é a mesma coisa que alguém a ser celebrado e/ou valorizado

o   Outro caso, mais contemporâneo para nós, é o de Hitler

-        Aliás, o caso de Napoleão é interessante porque permite de uma única vez desfazer três mitos:

o   O mito de que existiria a chamada “história positivista” e que ela consistiria no “culto aos grandes homens”

§  A história positivista é, acima de tudo, uma sociologia que se desenvolve ao longo do tempo, ao mesmo tempo em termos intelectuais, políticos e morais

·         Mas, ao mesmo tempo, Augusto Comte tinha clareza de que muitas vezes os “acidentes históricos” são determinantes (assassinato de Júlio César; morte de Hoche e ascensão de Napoleão)

§  O culto aos grandes homens realmente existe no Positivismo, mas ele tem um caráter cultual, de valorização das ações construtivas dos seres humanos, e não propriamente intelectual, de explicação sociológica

o   O mito de que basta ser um “grande homem”, ou melhor, um “homem famoso”, ou um líder com grande poder, para que esse homem/líder mereça ser celebrado, no âmbito do culto público

o   O mito de que Napoleão, em particular, merece ser valorizado e/ou celebrado

§  Nesse sentido, é notável que muitas pessoas, que se dizem “críticas” reclamem que o filme em questão não seja elogioso e/ou um retrato mais fiel do tirano retrógrado

§  Na verdade, há gente que se diz “plural”, “aberta” e/ou “democrata” mas que consegue ao mesmo tempo criticar o militarismo no Brasil e, contraditoriamente, elogiar Napoleão como um “grande líder”!

-        No âmbito do Positivismo, além dos aspectos indicados acima, Napoleão integra várias outras reflexões:

o   Por um lado, ele integra plenamente a reflexão sobre a Revolução Francesa e, assim, a filosofia da história proposta por Augusto Comte – em particular, em termos de traição, degradação e corrupção dos altos, esperançosos e fraternos ideais e das práticas revolucionárias

§  Na edição da editora Akal (Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012[1]), a avaliação de Napoleão por Augusto Comte estende-se pelo menos da página 1021 até a página 1034 e encontra-se presente na lição n. 57 do Sistema de filosofia positiva, dedicada principalmente ao exame sociológico da Revolução Francesa

o   Por outro lado, o culto retrógrado e militarista a Napoleão é substituído pelo culto republicano a Joana d’Arc

-        Dito isso, algumas datas mínimas, para termos clareza do que tratamos:

o   Nascimento em 1769, na Córsega (então recém-incorporada à França)

o   1789: início da Revolução Francesa

o   1792: início do governo da Convenção Nacional

o   1793: generalato, no comando do Exército da Itália

o   1794: proclamação da República, após a execução de Luís XVI

o   1798: campanha do Egito

o   1799: golpe civil-militar, com o estabelecimento do Consulado; torna-se o “Primeiro Cônsul”

o   1802: restabelecimento da escravidão no império francês, em particular no Haiti

o   1804: coroado “imperador dos franceses”

o   1812: derrota na campanha da Rússia

o   1813-1814: derrota perante a Sexta Coligação; invasão da França e ocupação de Paris; exílio em Elba (na costa da Itália)

o   1814: entronização de Luís XVIII

o   1815: retorno no período dos Cem Dias; derrota em Waterloo e exílio em Santa Helena (no meio do Atlântico Sul)

o   1816: retorno de Luís XVIII

o   Morte em 1821, no exílio, aos 51 anos

-        Quando a Revolução Francesa estava em seus momentos finais, a ditadura militar era cada vez mais o desfecho previsível e mesmo necessário

o   A ditadura militar tornou-se cada vez mais inevitável, na medida em que as guerras revolucionárias afastavam-se da defesa contra invasões externas, levavam os exércitos para solos e costumes estrangeiros, afastavam-nos dos assuntos internos, vinculavam-se menos com o patriotismo geral, identificavam-se mais com os líderes militares, deixavam de subordinar-se ao poder civil; por fim, as agitações metafísicas pareciam requerer, para sua compressão, a atuação militar

o   Lázaro Hoche (1768-1797) era o grande general que se divisava como provável líder progressista dessa ditadura militar, mas sua morte prematura deu lugar ao imerecido Napoleão

o   Eis o trecho em que Augusto Comte avalia o advento de Napoleão, no curso da Revolução Francesa:

Por tanto, era sin lugar a dudas imposible que el conjunto de tal situación no condujese enseguida a la instalación espontánea de una verdadera dictadura militar, cuya tendencia, retrógrada o progresiva, por lo demás, a pesar de la influencia natural de una reacción pasajera, tenía que depender en gran medida, y sin ninguna duda más que en ningún otro caso histórico, de la disposición personal de aquel que habría de honrarse de ello, entre tantos ilustres generales que la defensa revolucionaria había suscitado. Debido a una fatalidad eternamente deplorable, esta inevitable supremacía, a la que el gran Hoche parecía estar en un principio tan oportunamente destinado, le cayó en suerte a un hombre casi ajeno a Francia, surgido de una civilización retrasada, y especialmente animado, bajo el secreto impulso de una naturaleza supersticiosa, por una involuntaria admiración hacia la antigua jerarquía social, mientras que la inmensa ambición que le devoraba no se encontraba realmente en armonía, pese a su vasto charlatanismo característico, con ninguna eminente superioridad mental, salvo la relativa a un indiscutible talento para la guerra, mucho más ligado, sobre todo en nuestros días, a la energía moral que a la fuerza intelectual (Filosofia, lição 57, p. 1023)[2]

-        Vários aspectos da avaliação de Napoleão por Augusto Comte:

o   Napoleão não entendeu o espírito da época, preferindo (mesmo que secretamente, ou melhor, hipocritamente) o Antigo Regime e sentindo-se à vontade apenas nele; além disso, mesmo em meio à necessária ditadura militar que teria lugar na França, Napoleão poderia e deveria ter estimulado e orientado melhor os esforços nacionais para a reorganização social, no sentido da positividade, da paz, da fraternidade – como esteve muito claro para líderes que foram grandes chefes militares e grandes estadistas, anteriores a Napoleão, como Cromwell, Richelieu e Frederico II

o   Napoleão foi ativamente militarista, monarquista e traidor dos ideais da Revolução Francesa: ele realizou a “ressurreição oficial do catolicismo”; o “estimulo sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado” (Catecismo, p. 444)[3]

o   A defesa nacional forçada pelas contínuas e generalizadas guerras de conquista provocadas por Napoleão foi o único meio de conjugar a glória nacional francesa com a preservação da memória desse líder degradante:

“La vergonzosa forma de este indispensable derrocamiento ha constituido desde ese momento la única base sobre la que se ha hecho posible establecer, con una especie de éxito pasajero, una aparente solidaridad entre nuestra propia gloria nacional y la memoria individual de aquel que, más nocivo para el conjunto de la humanidad que ningún otro personaje histórico, siempre fue especialmente el más peligroso enemigo de una revolución de la que una extraña aberración ha obligado a veces a proclamarlo el principal representante (Filosofia, lição 57, p. 1028-1029)[4]

o   Napoleão pretendeu criar uma nova dinastia, com a pretendida reconstituição – degradada e servil – do catolicismo oficial, sob a justificativa de conceder estabilidade ao regime

o   É necessário afirmar que o militarismo ativo era o meio empregado para que não se evidenciasse o ridículo da renovada monarquia napoleônica

o   Napoleão corrompeu a moral nacional francesa, estimulando a tirania e oferecendo a Europa de butim como contrapartida à degradação moral

§  O conjunto da política imperial levou a França a oscilar entre duas vergonhas: ou a violência de suas armas ou a traição de seus princípios

§  Ele pôs a França em perigo e estimulou a retrogradação na Europa, ao estimular a criação de coalizões retrógradas contra o imperialismo napoleônico

o   Contra as intenções militaristas, imperialistas, monarquistas e clericalistas de Napoleão, as “invasões imperiais” estimularam os anseios de liberdade e independência nos povos invadidos, o que, indiretamente, de fato favoreceu a difusão dos ideais revolucionários

-        O culto a Napoleão era considerado por Augusto Comte como irracional e imoral; além disso, o seu nacionalismo chauvinista era encarado como desprezível e indigno da França

o   O culto a Napoleão baseava-se no estímulo direto da vaidade nacional francesa, além de um estímulo geral aos vícios próprios a todos os seres humanos

§  Como indicamos antes, o culto a Napoleão exigia o militarismo ativo, a fim de distrair a atenção para o ridículo da coisa

o   No lugar do culto a Napoleão, Augusto Comte afirmava a necessidade de substituição pelo culto a Joana d’Arc, que conduziu a França à vitória final – em particular, garantindo a independência do reino – no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)

§  Como indicamos antes, o culto positivista a Joana d’Arc, realizado pelo menos até a I Guerra Mundial, era plenamente republicano e secular

§  A afirmação pública do culto a Joana d’Arc em substituição ao de Napoleão foi feita por Augusto Comte na conclusão de um de seus cursos de história da Humanidade, sendo efusivamente aplaudido

o   Adicionalmente, vale notar que Augusto Comte, ao começar a projetar o culto público e o calendário positivista concreto em 1847, considerou que o último dia do ano deveria ser consagrado à reprovação pública de alguns tipos

§  Considerações posteriores indicaram que um tal tipo de prática pública seria antipositiva e contrária ao altruísmo, ao estimular o ódio e, no final das contas, ao também celebrar personagens que devem ser desprezadas

§  De qualquer maneira, Augusto Comte considerou inicialmente três nomes, depois reduzidos para dois: o imperador Juliano, o apóstata; Felipe II (depois excluído dessa consagração às avessas) – e, acima de todos, Napoleão

-        É perfeitamente válida a aproximação da figura de Napoleão da de Hitler

o   Aspectos de aproximação:

§  Ambos foram militaristas e imperialistas

§  Ambos ansiaram dominar toda a Europa

§  Ambos foram, portanto, profunda e violentamente retrógrados

o   Aspectos de distanciamento:

§  O projeto hitleriano envolvia necessariamente o genocídio racista dos judeus e de outros grupos sociais; além disso, as ações de Hitler resultaram na destruição e posterior divisão da Alemanha: os alemães não se esquecem do segundo elemento e o mundo não perdoa o primeiro elemento

§  Napoleão não destruiu a França; mas é claro que suas ações institucionais permitiram a substituição orgânica do seu império pela monarquia que tinha sido gloriosamente extinta cerca de 20 anos antes

§  Sendo bem franco: é o chauvinismo francês mantém o mito napoleônico – estimulado desde o início pelo próprio Napoleão!

·         Inversamente, o genocídio praticado por Hitler, o seu sistemático antissemitismo, a destruição total que ele causou à Alemanha e a reação universal contra o nazismo tornaram (não por acaso e com justiça) inaceitável qualquer menção a ele

o   Por certo que Augusto Comte viveu quase um século antes de Hitler; mas podemos sugerir o seguinte:

§  Sem desculpar nada das ações de Hitler, o fato é que ele consistiu claramente em um “ponto fora da curva” e, portanto, apresenta um caráter excepcional

§   Napoleão, por outro lado, atuou inserido no processo histórico da Revolução Francesa; podendo liderar esse processo, ele conscientemente escolheu trair e corromper os ideais desse processo

·         Assim, Napoleão não foi um “ponto fora da curva”, mas ele escolheu levar a curva para a direção errada



[1] Vale notar que essa edição é bastante ambígüa. Por um lado, é uma tradução bem feita, do francês para o espanhol, de muitos capítulos do Sistema de filosofia positiva, em particular as lições 46 a 57, ou seja, os volumes 4, 5 e metade do 6. Injustificadamente o organizador decidiu deixar de lado as lições 58 a 60, que concluem a referida obra. Todos esses capítulos – do 46 ao 60 – correspondem à fundação da Sociologia de Augusto Comte, errada mas propositalmente chamada de “Física Social”. Por fim, o tradutor – Juán R. Goberna Falque – redigiu uma longa introdução, bem como inseriu muitas notas explicativas; refletindo a ofensiva ambigüidade do emprego da expressão “Física Social”, tanto a introdução quanto muitas das notas são aviltantes e desmerecem profundamente, a partir do mais banal cientificismo academicista, a obra de Augusto Comte. Em suma, resta apenas a tradução (incompleta) da primeira Sociologia de Augusto Comte.

[2] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

[3] Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934.

[4] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

06 dezembro 2023

Pix da positividade

 


Martins Fontes: Spiritualis pudor

Spiritualis pudor

A honestidade é um íntimo prazer
Que nos eleva à comunhão divina;
Mas louvar essa graça feminina
Ninguém, jamais, o deverá fazer.

Não pelo que se diga ou possa haver, 
Não pelo que se sabe ou se imagina,
Prezemos a pureza peregrina
Pelo próprio respeito do dever.

Do homem honrado ou da mulher honesta
Não se gabe a virtude: é obrigação
Que não se patenteia ou manifesta.

Exaltemos, porém, a devoção
Que transparece no segredo desta
Prova terrestre de Incorporação.

(Fonte: José Martins Fontes. Nos jardins de Augusto Comte. São Paulo: Comissão Glorificadora de Martins Fontes, 1938, p. 77.)

05 dezembro 2023

Sobre razão e fé para o Positivismo

No dia 3 de Bichat de 169 (5.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (agora em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a famosa oposição, de origem teológica, entre "fé" e "razão".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/A7KaN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/U4ucH). O sermão começou em 45 min 31 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão estão reproduzidas abaixo.

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N. B.: nas anotações originais e, daí, na exposição oral fizemos duas pequenas confusões. Augusto Comte retoma a oposição entre fé e razão, mas sua abordagem muda a razão pelo amor; além disso, no que se refere ao Catecismo positivista, essa oposição encontra-se na terceira conferência, dedicada ao conjunto do culto, e não na segunda conferência (dedicada à teoria da Humanidade), como sugerimos ao vivo. Esses dois lamentáveis equívocos ocorreram porque os sermões são, quase sempre, elaborados  sem consulta direta às obras de Augusto Comte para as citações: como é comum a memória trair-nos, tivemos esses problemas no presente caso. Apesar desses dois equívocos, a argumentação apresentada não sofreu grande alteração, sendo necessário fazer apenas algumas modificações tópicas. Por fim, incluímos também os interessantes comentários que nosso amigo Hernani Gomes da Costa teceu logo após a prédica, em caráter privado, via Facebook.

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Sobre razão e fé 

-        Um dos temas mais abordados quando falamos de “religião” é a famosa oposição entre “razão” e “fé”

o   Essa dicotomia opõe a inteligência, o raciocínio, à crença em alguma coisa

§  No âmbito da “razão” também entra o conhecimento empírico (embora a razão, por si só, seja apenas o raciocínio, isto é, a atividade cerebral)

o   Essa dicotomia foi elaborada já nos primórdios do catolicismo (Santo Agostinho empregou-a), mas foi retomada e assumiu maior importância após a Idade Média, na decadência do catolicismo, e representa o caráter cada vez mais inaceitável dos dogmas teológicos

o   No âmbito da teologia, especialmente do monoteísmo, na medida em que, fatalmente, instala-se o conflito entre fé e razão, apenas duas soluções são possíveis:

§  (1) ou a razão é sacrificada pela fé, instaurando-se às claras o irracionalismo

§  (2) ou postula-se que fé e razão têm “domínios separados” e que seria possível pensar de maneira positiva e “crer” de maneira teológica

·         Esta segunda possibilidade instaura também um irracionalismo, mas disfarçado de solução filosoficamente aceitável

·          De qualquer maneira, a “solução” dos dois domínios rompe claramente com qualquer possibilidade unidade cerebral e, portanto, de harmonia humana

-        De uma perspectiva positiva, considerando os termos propostos pela teologia, a dicotomia entre razão e fé não faz sentido e não é aceitável:

o   A “fé”, ou seja, o ato da crença não pode ser desvinculado do conteúdo da crença, ou seja, da “razão”

o   Dessa forma, a fé tem que ser compatível com a razão: isso só é possível se a razão prover o conteúdo da fé

-        Augusto Comte retoma parcialmente essa dicotomia (por exemplo, na terceira conferência do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do culto):

o   Ao retomar essa dicotomia, Augusto Comte muda os termos, de razão e fé para amor e fé

o   A. Comte considera que a fé consiste na inteligência (o que, portanto, incorpora a razão na dicotomia anterior); por sua vez, o amor desdobra-se em amor propriamente dito e nas ações práticas

§  A conseqüência da incorporação da razão à fé é evidenciar aquilo que, em qualquer outra situação, torna-se claro com pouco esforço para qualquer pessoa de boa vontade que considere a questão: que a fé consiste em crenças e que, como tais, elas consistem em idéias (e, portanto, na razão)

§  Uma outra conseqüência da incorporação da razão à fé é que a fé distingue-se da razão propriamente dita por um elemento de confiança nas concepções (e, portanto, na razão) alheia

o   Assim, temos os três elementos da religião: sentimentos (amor propriamente dito), inteligência (razão/fé) e ações práticas (segundo elemento do amor)

o   Augusto Comte observa que nos estados normais a razão deve subordinar-se à fé e que as necessidades sociais com freqüência permitem tal subordinação (por exemplo, durante a Idade Média)

o   A plena subordinação da razão à fé só é possível com a positividade, em que ambas são relativas e que, portanto: (1) a fé (ou melhor, o amor) inspira e orienta a razão; (2) em que a razão é conselheira (nem mestra nem escrava) da fé; (3) em que a fé (ou melhor, o amor e as atividades práticas) é a reguladora da razão, ao estabelecer a fonte e os objetivos da razão

-        A incompatibilidade entre fé e razão indica que há um problema, seja com a “fé”, seja com a “razão”, seja com ambas:

o   A fé, no caso, consiste na fé teológica, isto é, na crença na divindade; a razão, por outro lado, consiste tanto no racionalismo quanto no conhecimento empírico e, portanto, pode ser tomada grosso modo e para os presentes propósitos como equivalente ao conhecimento científico

o   À medida que o método objetivo desenvolve-se, a fé torna-se cada vez mais acuada pela razão, pois os conhecimentos positivos paulatinamente expulsam da realidade humana as concepções absolutas, em particular as teológicas

o   Quando a positividade avança até a ciência da Moral, a antiga fé fica totalmente expurgada do teologismo, mas, ainda assim, não se garante a positividade dos conhecimentos humanos

o   Assim, após a conclusão do método objetivo, em que a razão expurga a fé de seus elementos teológicos, é necessário que a fé seja plenamente renovada, o que ocorre com a renovação preliminar do método subjetivo

§  Importa lembrar: o método subjetivo consiste na aplicação da perspectiva de conjunto, do relativismo e do subjetivismo às várias concepções humanas

o   Com a renovação do método subjetivo, a fé revê e renova o conjunto dos conhecimentos humanos, ajustando então a razão à fé

-        A dificuldade e, portanto, a importância da renovação da fé na forma do método subjetivo pode ser exemplificada pela existência dos chamados “positivistas heterodoxos”

o   Os chamados “positivistas heterodoxos” são os positivistas incompletos, ou cientificistas, que apresentam um caráter mais anticlerical que positivo

o   Os “positivistas heterodoxos” aceitam que a fé seja acuada pela razão, mas rejeitam a efetiva renovação da fé pelo espírito positivo e, a partir daí, a renovação da razão pela fé positiva

o   É interessante notar que os “positivistas heterodoxos” raciocinam por meio da adição de “blocos”, como no brinquedo Lego: esse procedimento é adequado ao racionalismo cientificista, mas é inadequado à renovação da fé e à aplicação da fé positivida-subjetivada à razão

o   Inversamente, a efetiva aceitação da unidade da carreira de Augusto Comte – que, nominalmente, é o ponto que separa os positivistas completos dos incompletos – implica a efetiva aceitação da Religião da Humanidade e do método subjetivo (subentendendo-se aí a aplicação do último ao conjunto dos conhecimentos humanos)

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Comentários do meu amigo Hernani Gomes da Costa, feitos privadamente via Facebook, logo após a prédica, na noite do dia 3.Bichat.169 (5.12.2023). (Versão editada para divulgação pública.)

Muito boa noite, Gustavo! Como sempre, é um imenso prazer ver a realização de mais um passo dado nessa sua longa e perseverante jornada da leitura comentada do Catecismo Positivista. Não sei se você se deu conta, mas foi possível em seu sermão realizar uma interessante e nova “costura” ao tratar da questão entre a razão e a fé.

 Digo isso pelo seguinte: há um uso corrente da palavra fé que é diferente do uso que o Positivismo faz dessa expressão. E em seu sermão você conseguiu com muita habilidade “surfar” entre esse conceito usual e o nosso, ora se expressando nos termos de um desses usos, ora no outro.

Em geral, como você bem notou, a oposição que o teologismo estabelece entre a razão e a fé refere-se à antítese radical fixada entre o que se supõe serem os frágeis recursos da razão humana quando confrontada com a necessidade de uma fé absoluta em um ser que já é definido a princípio como estando além de toda capacidade de compreensão.

Postas as coisas nesses termos pelo teologismo, a fé deve poder justificar-se plenamente por si mesma e por si mesma existir, não só dispensando a razão, como vendo na necessidade de recorrer a ela em seu socorro como o produto de uma fraqueza que denuncia tibieza e excesso de prudência – e, portanto, “pouca fé”.

O exemplo clássico que se invoca em apoio a essa perspectiva é o episódio em que Jesus diz a Tomé que ele acreditou na sua ressurreição apenas por Tomé ter tocado Jesus ressurrecto, sendo que mais bem aventurados seriam aqueles que puderem crer sem a necessidade de tais evidências.

A fé teológica é pois necessariamente passional, tanto no sentido afetivo de “paixão” quanto no sentido intelectual e mesmo prático de “passividade”.

Porém, o sentido constante da idéia de fé em Augusto Comte não se refere diretamente ao sentimento.

Um teólogo pode supor sua fé assim. Mas um positivista não. O dogma teológico, conquanto pretenda oferecer um sentido às coisas e dessa forma prover-nos de bases intelectivas para compreender o mundo e a nossa situação nele, só o faz ao preço de complicar ainda mais as coisas, interpondo entre o homem e o mundo toda sorte de mitos e mistérios que se chocam com a razão.

Um positivista, porém, não vê o que em que consistiria efetivamente a afirmada divisão entre fé e razão.

Tanto isso é assim que no Catecismo positivista o que temos não é uma divisão da religião fundamentada no binômio fé e razão, mas no binômio amor e fé.

Vê-se por aí que no Positivismo a questão da compatibilidade entre a fé e a razão é uma questão que se desenvolve toda ela no âmbito da própria fé.

É no interior da própria fé que se chega a julgar se ela é mais ou menos compatível com a razão e nunca mediante uma oposição a priori, segundo a qual uma e outra já seriam dadas como necessariamente incompatíveis e correspondendo a domínios distintos.

Assim, (1) podemos ter uma fé inteiramente sustentada pela razão quando suas evidências são claras; (2) podemos ter uma fé mais ou menos sustentada pela razão, caso em que essas evidências sejam então, por qualquer motivo, obscuras e duvidosas; (3) podemos ter, por fim, uma fé diretamente antitética à razão, ou seja, a célebre fé no que é impossível, a fé de Tertuliano, do credo quia absurdum est.

Mas o que cabe notar aí é que, independentemente do resultado a que se chegue a respeito de saber qual tipo de fé tem-se diante de si, o exame inteiro da questão da racionalidade maior, menor ou nula da fé, é algo que só se pode dar no campo da fé, no âmbito da fé, no interior da fé.

Assim, o modo pelo qual o Positivismo chega a superar o que se entende usualmente por conflito entre razão e fé não se desenvolve por intermédio de uma conciliação propriamente dita entre dois campos tomados por distintos, mas por meio de uma crítica ao próprio critério que foi estabelecido para justificar uma divisão que na verdade é bastante equívoca.

Nunca se trata realmente, no fundo, de conciliar razão e fé, mas de reconhecer que uma fé pode ser mais (ou menos) racional que outra fé.

Você foi particularmente hábil em servir-se tanto da definição teológica de fé, quanto de sua definição positiva, apenas me parecendo que nessa apresentação de seu sermão você referiu-se à fé como algo que corresponde ao campo do amor, quando em termos positivos a fé – tanto teológica quanto a nossa – é compreendida igualmente como uma tentativa de racionalizar as coisas, de compreender o mundo exterior e de situarmo-nos melhor nele, sendo portanto a fé sempre um aspecto intelectual da religião.

É assim que chegamos a ver, por fim, que o caráter passional da fé teológica, conquanto pareça fundamentar-lhe, não é senão um dos resultados colaterais de sua falta de sustentação teórica, ao passo que a nossa fé, a nossa crença, corresponde à fé na existência geral de leis naturais constatáveis, bem como na fé que depositamos na Humanidade, que as descobre e aplica-as para o nosso bem.

A fé positiva vai, pois, além da razão, sem, no entanto, contrapor-se-lhe, visto como o universo inteiro não nos será jamais inteiramente conhecido e visto também que não fomos nós pessoalmente que descobrimos e demonstramos as leis naturais que tomamos por verdadeiras. Ora, se nós aceitamos as leis naturais nessa condição, fazemo-lo por uma questão de confiança; em outras palavras, aceitando as leis naturais como um dos aspectos de nossa na Humanidade.

Temo que, talvez, eu não tenha sido claro.

Afirmar que o Positivismo concilia razão e fé subentende pelo menos duas coisas: (1) que existam de fato esses dois campos; (2) que eles sejam ou tenham sido postos em oposição.

Porém, desde que se compreende que o conflito não é – nunca foi! – exatamente entre razão e fé, mas um conflito entre a racionalidade maior ou menor que pode ser atribuída a diferentes fés, então a questão inteira de examinar a compatibilidade entre razão e fé cessa de existir, não encontrando mais justificativa para ser sequer colocada.

29 novembro 2023

Martins Fontes: "Ao maior dos filósofos"

Ao maior dos filósofos

Da vida ascendente, criador de uma religião demonstrável

A Graco Silveira

Augusto Comte foi o primeiro romântico.
E, ao render-lhe meu culto, honrando o romantismo,
Bendigo o criador da palavra - Altruísmo -
Na Mátria espiritual que há para além do Atlântico.

Amando o Grande-Ser e o feitiço geomântico,
Se angeliza a Mulher, praticando o lirismo,
Bem merece esse amor feito do fanatismo,
Com que os crentes a um Deus rezam, erguendo um cântico!

Nada mais belo sei do que o seu testamento,
No qual se vê que a vida é na verdade ideal,
E a civilização nasce do sentimento.

Sentiu, mostrou, provou, máximo cerebral,
Que vem do coração todo bom pensamento,
E que a vida, a ascender, se traduz na espiral!


(Fonte: José Martins Fontes. Nos jardins de Augusto Comte. São Paulo: Comissão Glorificadora de Martins Fontes, 1938, p. 163.)