02 dezembro 2021

Comemorações de 168-234 (2022)


Centenários

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

1.           

Anacreonte

563 aec-478 aec

2.500 anos de morte

3.Homero

31.jan.

2.           

Berthollet

1748-1822

200 anos de morte

19.Bichat

21.dez.

3.           

Cujácio

1522-1590

500 anos de nasc.

15.Descartes

22.out.

4.           

Delambre

1749-1822

200 anos de morte

5.Gutenberg

17.ago.

5.           

Shelley

1792-1822

200 anos de morte

27.Dante

11.ago.

6.           

MOLIÈRE

1622-1673

400 anos de nasc.

21.Shakespeare

30.set.

7.           

S. Francisco de Sales

1567-1622

400 anos de morte

25.Dante

9.ago.

8.           

Varignon

1654-1722

300 anos de morte

3.Bichat

5.dez.

 

“Cinqüentenários”

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

9.           

Anaxágoras

500 aec-428 aec

2.450 anos de morte

4.Aristóteles

1.mar.

10.         

Arquitas

428 aec-347 aec

2.450 anos de nasc.

12.Aristóteles

9.mar.

11.         

Broussais

1772-1838

250 anos de nasc.

27.Bichat

29.dez.

12.         

Coligny

1519-1572

550 anos de morte

8.Frederico

12.nov.

13.         

Constantino

272-337

1750 anos de nasc.

8.São Paulo

28.maio

14.         

Duclos

1704-1772

250 anos de morte

12.Descartes

19.out.

15.         

Fourier

1772-1837

250 anos de nasc.

13.Bichat

15.dez.

16.         

Geoffroy

1672-1731

350 anos de nasc.

18.Bichat

20.dez.

17.         

Johan de Witt

1625-1672

350 anos de morte

11.Frederico

15.nov.

18.         

Pedro Damião

1007-1072

950 anos de morte

16.Carlos Magno

3.jul.

19.         

PLATÃO

428 aec-348 aec

2.450 anos de nasc.

28.Aristóteles

25.mar.

20.         

Ramus

1515-1572

450 anos de morte

4.Descartes

11.out.

21.         

S. Bonifácio

672-754

1.350 anos de nasc.

16.São Paulo

5.jun.

22.         

Tancredo

1072-1112

950 anos de nasc.

9.Carlos Magno

26.jun.

 

N

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

1.             

Arsène Kin

11.10.1822-4.1.1890

200 anos nasc.

4.Descartes

FONTES: Wikipédia; “Apêndice” de Apelo aos conservadores (autoria de Augusto Comte; Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899), organizado por Miguel Lemos; Comité des travaux historiques et scientifiques (http://cths.fr/)

NOTAS:

1.     As datas de vida foram pesquisadas na internet (basicamente na wikipédia), considerando que esse procedimento permitiria obter o que há de mais atualizado a respeito das diversas biografias; além disso, cotejaram-se essas datas com as disponíveis no “Apêndice” do Apelo aos conservadores.

2.     Letras maiúsculas em negrito: nomes de meses.

3.     Letras maiúsculas simples: chefes de semanas.

4.     Letras em itálico: tipos adjuntos, considerados titulares nos anos bissextos.

5.     Os artigos da Wikipédia foram selecionados basicamente em português, mas em diversos casos ou só havia em outra(s) língua(s) ou eram melhores em outra(s) língua(s) (espanhol, francês, inglês).

18 novembro 2021

Sobre a peça "Medéia" e sua "atualização" brasileira

Recentemente li a peça Medéia, de Eurípedes (480 aec-408 aec), em uma desafiadora tradução de Trajano Vieira, publicada pela ed. 34. Vale notar que Eurípedes integra o calendário positivista concreto (o "calendário histórico"), no mês de Homero (o segundo mês do ano, dedicado à poesia antiga), na semana de Ésquilo.



A história é terrível e impressionante. Medéia era uma princesa-bruxa que vivia no extremo oriental do Mar Negro. Traindo sua família, ela ajudou Jasão a obter o velo de ouro. Depois de muitas aventuras e de terem um par de filhos, ao chegarem a Corinto Jasão renega a esposa, para casar-se com a princesa local. Medéia fica profundamente encolerizada e, para vingar-se do ex-marido, após matar o rei local e a nova esposa de Jasão, mata os próprios filhos. E, ao contrário do que ocorre em outros ciclos terríveis (como o ciclo de Édipo ou a Oréstia), em que é o destino que impõe aos indivíduos os sofrimentos, na Medéia é a vontade autônoma que decide e realiza os atos.

Ao mesmo tempo, lembro-me da peça A gota d'água, de Chico Buarque. Essa peça, escrita em 1974 em coautoria com Paulo Pontes, "atualiza" e "contextualiza" "criticamente" a peça de Eurípedes. Embora tenha ganhado prêmios, seja sucesso de vendas etc., a versão de Chico Buarque parece-me uma porcaria. A "atualização contextualizada" significa mudar alguns nomes (em particular o de Medéia, que vira "Joana") e inserir a tragédia de Medéia em um ambiente de favela com vistas a criticar a luta de classes.

Não tenho nada contra peças e obras que abordem a luta de classes, nem que tratem da situação social brasileira. Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, está à disposição de todos e é muito eficiente no que se propõe. Mas Gota d'água joga fora o elemento trágico de Medéia e da "solução" assassina que ela trama para vingar-se do ex-marido (o assassinato dos filhos). Não que na versão brasileira não haja esse assassinato, mas não há o sacrifício inicial de Medéia (que renega as próprias família e pátria por amor a Jasão); por outro lado, a versão brasileira insere a loucura de Medéia em um conflito de classes e, em particular, caracteriza a nova esposa e o novo sogro de Jasão como desprezíveis e exploradores burgueses.

Em suma, enquanto na peça de Eurípedes tem-se clareza do drama que se desenrola, na peça de Chico Buarque não se sabe o que importa, se a vingança assassina de Medéia-Joana ou se o conflito de classes (em que a traição de classes é recompensada pela infanticídio dos favelados). O resultado é que nem o drama de Medéia é efetivamente valorizado nem a luta de classes é "denunciada". Como eu disse antes, o resultado é uma porcaria. Mas, mesmo assim, os autores ganharam prêmios e recebem direitos autorais por isso.

15 novembro 2021

Entendendo a série "Lost"

Saindo um pouco do âmbito habitual deste blogue, apresento aqui algumas reflexões sobre a série televisiva Lost, no sentido de entender o que (e quais) são os principais grupos e personagens dela. Como se verá, embora refira-se a um seriado comercial, os mistérios de fundo da séria exigem uma solução que não é trivial - ainda que seja profundamente teológico-metafísica.

Como o canal pago Sy-Fy repete sem cessar a série Lost (produzida e exibida entre 2004 e 2010), resolvi acompanhá-la desde o início. Vendo todos os episódios, muita coisa na história faz sentido, mas o conjunto da trama exige um distanciamento analítico.

A série apresenta elementos que realmente chamam e prendem a atenção; mas, por outro lado, quando ela terminou, na sexta temporada, uma quantidade enorme de problemas e mistérios apresentados ao longo da história ficaram simplesmente sem solução, isto é, sem resposta, o que, claro, é muito insatisfatório. Além disso, a dubiedade moral de várias personagens incomoda muito – pelo menos, incomoda a mim. Isso tudo fez-me pensar em como entender a intrincada trama exposta ao longo das seis temporadas: as anotações abaixo são o resultado das minhas reflexões. 

Antes de mais nada, durante muito, muito tempo fiz questão de manter distância da história confusa apresentada na série. Eu só passei a assistir a ela porque, mais ou menos na terceira temporada (ou seja, em 2006 ou 2007), o ator que interpretou a personagem de Benjamin Linus – o inglês Michael Emerson – recebeu um prêmio por sua atuação e agradeceu de maneira tão gentil, tão cortês, que fiquei impressionado com seu comportamento e, a partir disso, com vontade de ver a atuação que lhe rendeu o prêmio.

Parece-me que a série teve três atrativos principais. O primeiro e mais evidente eram os seus curiosos mistérios: por exemplo, logo no episódio inicial vimos ursos polares em florestas tropicais, monstros de fumaça negra durrando árvores e assim por diante. Entretanto, esses mistérios, à medida que se acumulavam sem serem explicados com facilidade, acabavam não sendo tão atrativos quanto se poderia pensar à primeira vista (no meu caso, assim como no de várias outras pessoas, foi a esquisitice desses mistérios que me afastou da série desde o início). E não podemos deixar de lado o trocadilho: o nome "Lost" ("Perdidos") refere-se tanto às personagens retratadas na série quanto aos expectadores; uns e outros tentam entender o que se passa na "ilha".

O segundo fator atrativo é a estrutura narrativa da série, em que cada episódio entremeava ações comuns a todas as personagens e no presente com cenas no passado, específicas de uma das personagens principais. Na verdade, a partir da quarta temporada as cenas no passado deram lugar a cenas no futuro, enquanto na sexta temporada elas deram lugar a cenas de uma realidade paralela (que, depois, descobrimos que também são cenas no futuro). Enfim, essa alternância entre os tempos da narrativa deu um bom ritmo à série.

Em terceiro lugar, em parte como decorrência do elemento anterior, as personagens principais eram realmente interessantes, densas e carismáticas (cada uma à sua maneira). Assim, víamos os mocinhos enfrentando problemas pessoais e profissionais desafiadores, vilões realizando atos generosos, anti-heróis alternando entre a generosidade, a canalhice e a diversão etc. A estrutura narrativa com alternância entre ações no presente e no passado também permitia desenvolver mais e melhor essas personagens, indicando como e porquê elas chegaram a ser quem eram na história e, da mesma forma, como e porquê chegaram, afinal, à ilha em que estavam perdidos.

Passando agora para o entendimento da série: sem maiores rodeios, o quadro mais geral é dado pela “ilha”, que consiste em u’a metáfora para a mitologia monoteísta judaico-cristã (o deus caprichoso, ora violento, ora distante, do Velho Testamento; a divina trindade do Novo Testamento). Tudo isso tem a pista do “pastor cristão” (Christian Shepard) que aparece esporadicamente ao longo de toda a série. E, claro, há a referência evidente a Jacó (“Jacob”), que, na mitologia judaico-cristã, é o fundador dos israelitas e que também é irmão-rival de Esaú (a quem trapaceia e com quem entra em conflito). Jacó (“Jacob”) e seu preposto Ricardo (“Richard”) Alpert no fundo são criminosos; o grupo chamado “Os Outros” é um culto de fanáticos (também criminosos); Benjamin Linus e Charles Widmore meramente disputam a liderança do culto de fanáticos, estabelecendo uma guerra civil. Todas (todas!) as outras personagens são vítimas dessas quatro pessoas e de seus seguidores fanáticos. Por fim, esse conjunto é disfarçado com uma cobertura de confeitos de nomes de pensadores liberais (Edmund Burke, John Locke, David Hume, Jeremy Bentham - embora tenham faltado John Stuart Mill e seu pai James Mill; Thomas Hobbes e Francis Bacon) - que no fundo são pequenas piadas, com a função de distrair e confundir.

Esse quadro, todavia, só se torna claro quando se assiste a todos os episódios, em particular da quarta temporada em diante, e quando se deixam de lado os dramas pessoais e coletivos que constituem o grosso do drama.

Sumariando tudo, o que temos é isto:

-        um líder imortal que assassina o irmão e gera um conflito multimilenar insolúvel; que, extremamente à distância, estimula a criação de um culto de fanáticos por meio de um preposto; que se apresenta como um dos “mocinhos” e manipula a vida de dezenas de pessoas para que tenham vidas miseráveis e sejam obrigados a chegar à “ilha”; como líder imortal, é o “defensor” da “ilha” e assim é uma emanação dessa “ilha”;

-        um preposto tornado imortal que organiza o culto de fanáticos mas atua como eminência parda desse culto ao aceitar-indicar o líder da vez do culto de fanáticos;

-        um irmão imortal assassinado pelo líder imortal em última análise porque desejava sair da “ilha” e que, assim, vê-se transformado em um “monstro” de fumaça capaz de assumir a forma de pessoas mortas; na medida em que é um “monstro”, é também uma emanação da “ilha”;

-        um culto de fanáticos que manipula, chantageia, seqüestra, faz lavagem cerebral, estimula a síndrome de Estocolmo e/ou mata todos os que têm a desgraça de chegar à “ilha”, em particular durante sua guerra civil;

-        uma equipe de pesquisadores bem intencionados mas com inclinação para o misticismo e com alguns integrantes perturbados;

-        vários grupos de náufragos e de sobreviventes de acidentes aéreos que são manipulados e/ou que têm o azar de chegarem à “ilha”;

-        uma “ilha” que “age certo por meio de linhas tortas”, com “poderes” imensos mas de emprego arbitrário e caprichoso; que pode fazer muito mas também, por algum motivo, precisa ser “defendida”; que age às vezes diretamente, às vezes por meio de prepostos; que tem um “defensor” imortal adventício que é também a própria “ilha”; que tem prepostos, profetas, intérpretes e seguidores fanáticos.

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


*     *     *




O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

04 novembro 2021

Augusto Comte e militância editorial na edição nova de “Os pensadores”

          A Folha de S. Paulo recentemente lançou uma nova edição da famosa e importante coleção “Os pensadores”. É uma coleção bonita, bem acabada, com volumes extremamente bem produzidos: papel de qualidade, capa dura, artes agradáveis nas capas. Muitos dos volumes são sumamente interessantes e informativos; entre os 30 volumes dessa nova edição figura, como segundo publicado, uma obra de Augusto Comte, o seu Discurso sobre o espírito positivo. A inclusão de Comte e, em particular, desse volume específico, suscitam algumas reflexões; mas, para tratarmos disso, temos antes que considerar o conjunto da nova coleção.

1. Sobre o viés identitário-crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”

A coleção foi lançada em 24 de outubro de 2021, em 30 volumes, com os números 1 e 2 lançados promocionalmente juntos, como é habitual; são os volumes dedicados respectivamente a Platão (A República) e a Augusto Comte (Discurso sobre o espírito positivo)[1]. Na página eletrônica promocional (https://pensadores.folha.com.br/index.html) não há indicação de quem seria o seu organizador (está na moda falar-se em “curadoria”); na página dos volumes impressos dedicada aos dados bibliográficos há apenas a menção às responsáveis pela “Organização geral do projeto”: Ana Paula Duarte, Letícia Carvalho e Mariana Dalmaso, as três do jornal Folha de S. Paulo. Sobre Letícia Carvalho e Ana Paula Duarte obtemos informações apenas na matéria propagandística de outra coleção do jornal, lançada no início de 2021 e dedicada a fotografias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/colecao-de-livros-da-folha-revisita-fotos-memoraveis-do-jornal-dos-ultimos-100-anos.shtml): Carvalho é “gerente geral de marketing” e Duarte é analista de projetos. A partir de seu perfil na rede Linkedin (https://br.linkedin.com › in › mariana-dalmaso-603471133), descobrimos que Mariana Dalmaso é “analista de marketing sênior”. Como é difícil ver de que maneira especialistas em propaganda teriam qualificações para decidir questões de filosofia, o resultado é que simplesmente não é possível saber quem de fato organizou a coleção; todavia, na absoluta ausência de indicações de quem de fato selecionou os volumes da presente coleção e com quais critérios, resta a essas três profissionais os ônus das escolhas efetivamente feitas.

Vale a pena prestarmos atenção ao nome da coleção: é “coleção Folha Os Pensadores”. Bem vistas as coisas, não se trata de uma edição nova de “Os pensadores”, anteriormente publicada pela editora Abril e subsidiárias; de fato, é uma coleção inteiramente nova. Assim, o que a Folha de S. Paulo fez foi valer-se de um nome já consagrado para lançar e divulgar o seu próprio projeto comercial-editorial (e político).

Dito isso, a nova coleção distingue-se bastante das edições anteriores, seja pela quantidade de volumes, seja pelos títulos incluídos.

Em relação à quantidade de volumes, ela é bastante limitada: pelo menos em uma primeira leva, são apenas 30, o que a distingue muito das edições anteriores, em particular da primeira e da segunda, que tiveram mais de 60 volumes, alguns com obras de vários autores encartados em um único livro.

Em relação aos títulos incluídos, eles chamam a atenção por serem inovadores em vários aspectos: por um lado, em vez de os volumes publicarem excertos de várias obras (às vezes artigos isolados), com ou sem traduções de obras completas, a nova edição publica um único título de cada autor. Por outro lado, autores que anteriormente já haviam sido publicados receberam traduções de novos títulos, como nos casos de Augusto Comte – que, por exemplo, recebeu uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo (de 1844, até então publicado apenas pela Martins Fontes), em vez de dos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (de 1830-1842, vulgarmente chamado de Curso de filosofia positiva), dos 2/3 iniciais do capítulo 1 do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (de 1848) e da integralidade do Catecismo positivista (de 1853). Por fim – e isto é o mais importante –, vários “novos” autores foram incluídos, resultando em que, embora o conjunto da seleta de título não seja muito coerente, o viés geral é bastante claro: trata-se de uma coleção organizada para ser “crítica” e militante, com um certo pendor identitário.

O viés identitário-crítico-militante salta aos olhos com os seguintes autores e títulos:

  • bell hooks – Ensinando a transgredir (v. 3)
  • Voltaire – O preço da justiça (v. 6)
  • Michel Foucault – A sociedade punitiva (v. 9)
  • Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres (v. 10)
  • Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (v. 11)
  • Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos (v. 14)
  • Carter G. Woodson – A (des)educação do negro (v. 16)
  • Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista (v. 20)
  • Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária (v. 21)
  • John Stuart Mill – Sobre a liberdade (v. 24)
  • Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão (v. 25)
  • Edison Carneiro – Ladinos e crioulos (v. 27)
  • Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo (v. 28)

A seqüência de títulos não segue a ordem cronológica, nem de nascimento dos autores nem, portanto, de publicação das obras; na verdade, não parece haver nenhum critério de lançamento. Enfim, dos 30 volumes inicialmente propostos, podemos considerar que 13, ou seja, 43,33%, têm o perfil aproximado de identitário-crítico-militantes. Essa classificação, não há dúvida, pode ser discutida, como nos casos de Boétie e de Stuart Mill: o primeiro por ser medieval e o segundo por ser comum ao liberalismo; mas, ainda assim, salta à vista as editoras terem escolhido logo esses autores e esses títulos em meio a centenas de outros possíveis. Por outro lado, as escolhas de Bell Hooks, Michel Foucault, Mary Wollstonescraft, Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx, além das novidades na coleção Carter Woodson, Luiz Gama e Edison Carneiro dão o inequívoco tom crítico-militante e identitário. Voltaire era claramente um polemista e podemos considerar que Schopenhauer integra a relação por ser seu livro um manual de manipulação da verdade e do discurso, ou seja, é um manual de produção de desinformação. (O que dissemos sobre Schopenhauer pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao volume escolhido de Sto. Agostinho.)

Há alguns autores cuja inclusão é discutível ou estranha: Lévi-Strauss é bem-vindo, mas o seu Antropologia estrutural 1 é um livro estritamente técnico e acadêmico, não sendo passível de consumo pelo grande público; melhor seria incluir o Antropologia estrutural dois, o Antropologia estrutural 3, algum dos vários volumes das Mitológicas, o Pensamento selvagem, o Totemismo hoje ou até os Tristes trópicos. O mesmo pode ser dito, a fortiori, de Aristóteles: sua Política ou sua Ética nicomaquéia, quem sabe mesmo sua Constituição de Atenas, seria muito mais adequado ao perfil da coleção (e tanto a Política quanto a Ética nicomaquéia são infinitamente superiores à República de Platão, ou melhor, a qualquer coisa de Platão). De Maquiavel escolheram A arte da guerra: entretanto, essa é uma obra menor (de um autor também menor): dele poderia ser publicado, com muito mais proveito, os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De Sto. Agostinho, suas Confissões seriam uma escolha mais interessante que a estranha escolha feita de Sobre a mentira.

Essa pequena coleção apresenta alguns títulos que satisfarão também os liberais: Bastiat, Mises, Léo Strauss e, novamente, Stuart Mill; quem sabe Weber e Adam Smith. Além disso, há volumes mais claramente morais, como os de Descartes, Sto. Agostinho, Adam Smith. Por fim, os volumes de Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Durkheim e Hobbes servem, talvez, para indicar que a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça têm que ser entendidos de maneira relativa e nos quadros de sociedades estruturadas em termos de culturas e de estados e, nesse sentido, integram o viés crítico-militante da coleção. Se adicionarmos aos 13 volumes inicialmente relacionados como “identitário-crítico-militantes” os quatro volumes sociológicos, teremos 17 volumes; se somarmos a esses os volumes liberais – cuja inclusão pode ser entendida também como uma forma de a militância crítico-identitária conhecer os argumentos de seus adversários –, teremos um total de 22 volumes, correspondentes a 73,33%, isto é, cerca de 3/4 do total. (Esse valor é subestimado, pois deixamos de lado Sto. Agostinho, Maquiavel e Augusto Comte: com esses três volumes adicionais, teríamos 25 livros crítico-militantes, ou 83,33%.)

Em suma, a relação de títulos selecionados para a nova edição da coleção “Os pensadores” é variada e incoerente a respeito de vários títulos; essa incoerência talvez tenha o objetivo de satisfazer a diversos públicos. Ainda assim, o conjunto da coleção exibe uma orientação bastante clara; seu objetivo não é meramente informar, ilustrar e fornecer elementos intelectuais e morais para a edificação dos leitores e a sua ampliação do entendimento do mundo. Em vez disso, o objetivo da coleção é fornecer elementos intelectuais para a militância política e social, com um sentido “crítico” e identitário – em outras palavras, em favor do combate da metafísica esquerdista contra a metafísica direitista.

Feitas essas considerações iniciais, podemos avaliar a inclusão do volume Discurso sobre o espírito positivo, de Augusto Comte.

2. Sobre a inclusão de Augusto Comte na atual coleção “Os pensadores”

Em face do viés caracterizado acima, torna-se legítima perguntar: por que incluíram Augusto Comte nessa nova edição de “Os pensadores”? De modo mais específico: por que incluíram uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo?

Na matéria propagandística que anunciava o lançamento da coleção (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/colecao-folha-os-pensadores-reune-escritos-essenciais-do-pensamento-ocidental.shtml), somos informados que Durkheim é o “‘fundador’” da Sociologia – a palavra “fundador” posta entre aspas na matéria acima: “Isso para não falar no "fundador" da sociologia como ciência, Émile Durkheim, em As regras do método sociológico”. Augusto Comte é considerado apenas “filósofo” (como se não tivesse fundado a Sociologia) e fundador do Positivismo. A explicação dada pela matéria para a inclusão de Augusto Comte é esta: “O segundo [volume] é o Discurso sobre o espírito positivo, em que o francês Auguste Comte formulou a doutrina do positivismo – inspiradora do lema inscrito na bandeira do Brasil”.

As matérias propagandísticas servem apenas para divulgar para o grande público um determinado produto; como se sabe, elas combinam informação, desinformação, omissões e exageros; no caso de uma coleção de livros de filosofia, essas características acentuam-se, na medida em que se torna muito difícil vender conceitos filosóficos. Ainda assim, as propagandas em questão têm algo de sugestivo.

Parece-nos que Augusto Comte foi incluído pelo menos por dois motivos, ambos vinculados ao atual contexto político brasileiro. O primeiro motivo é que, devido à renovada militarização promovida por Bolsonaro no governo federal, fala-se muito em “Positivismo” – embora de maneira extremamente errada e mentirosa[2] –; esse motivo é o que se depreende da propaganda indicada acima. Apesar de o motivo anterior poder vincular-se ao viés crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”, o fato é que podemos conceber outro motivo, mais diretamente crítico-militante, para a inclusão de Augusto Comte nessa coleção: trata-se de uma afirmação do valor social, político e moral da ciência e – é importante dizê-lo com clareza: a despeito das idéias e das intenções do próprio Comte – também é a busca de um cientificismo anticlericalista. Senão, vejamos.

As três obras presentes nas versões anteriores da coleção “Os pensadores” oferecem dificuldades intransponíveis para os objetivos crítico-militantes e editoriais da coleção.

  • Cada um dos volumes publicados nesta nova edição apresenta a obra completa: ora, o Sistema de filosofia positiva foi originalmente publicado em seis volumes e 60 capítulos, dos quais apenas os dois primeiros capítulos foram publicados nos “Pensadores” anteriores. É possível crer que a extensão dessa obra completa inviabilizou a sua inclusão na presente edição dos “Pensadores”.
  • Já o Discurso sobre o conjunto do Positivismo é menor, com seis capítulos (grandes), oferecendo a vantagem – supostamente desejada pela edição nova dos “Pensadores” – de expor as idéias centrais do Positivismo. Entretanto, contrariando o viés crítico-militante da coleção, Augusto Comte afirma com todas as letras em Religião da Humanidade nessa obra. Além disso, os 2/3 iniciais do capítulo 1 desse livro expõem as características principais do espírito positivo e criticam o espírito teológico; mas o 1/3 final desse mesmo capítulo 1 critica o espírito metafísico, que é justamente o espírito que informa o materialismo marxista e, de modo mais amplo, o viés crítico-militante da atual “Pensadores”. (Não por acaso, o tradutor desse trecho foi o marxista José Artur Gianotti, que omitiu o 1/3 final do capítulo 1 para não fornecer instrumentos para a crítica ao seu próprio marxismo.)
  • O Catecismo positivista foi a única obra comtiana publicada na íntegra nas edições anteriores dos “Pensadores”; entretanto, esse livro oferece o evidente problema de que se trata de um “catecismo”, isto é, da exposição sistemática de uma “religião”. Isso vai de encontro à militância crítica da edição atual dos “Pensadores” e, em particular, à projetada perspectiva cientificisto-anticlericalista desejada em Comte.

Outras obras de Comte, aliás também já traduzidas para o português, poderiam ter sido publicadas (talvez retraduzidas): os seus Opúsculos de juventude (1819-1828) e o Apelo aos conservadores (1855). O primeiro desses volumes – cuja segunda tradução é da autoria dos positivistas Ivan Lins e João Francisco de Souza e foi publicada em 1972 pela Universidade de São Paulo – é muito interessante e apresenta em germe inúmeras das perspectivas de Comte; entretanto, essas perspectivas estão presentes apenas em germe e há o emprego de expressões que produzem equívocos, como no caso da “física social” (equívocos que, claro, são amplamente explorados pela desinformação inspirada em preocupações políticas). Em todo caso, não consigo identificar o motivo para as organizadoras da atual coleção “Os pensadores” terem preferido o Discurso sobre o espírito positivo e não os Opúsculos de juventude – ainda que essa escolha pareça-me acertada, pela maturidade maior do Discurso em relação aos Opúsculos. Já o Apelo aos conservadores é também uma obra pequena e de divulgação, com a vantagem de ser eminentemente política; sua tradução para o português data de 1899 e foi feita por Miguel Lemos (fundador e diretor da Igreja Positivista do Brasil). Se o objetivo da atual coleção “Os pensadores” fosse expor as perspectivas filosóficas do Positivismo tendo em vista apenas a conjuntura política atual, esse livro seria ideal; mas, como estamos argumentando, o objetivo da inclusão de Comte na coleção foi um pouco diferente.

Augusto Comte, fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade, também fundador da Sociologia, da Moral Positiva e da História das Ciências, era radicalmente contrário ao anticlericalismo e ao cientificismo. Sua oposição ao anticlericalismo e ao cientificismo baseava-se em motivos históricos, sociológicos, filosóficos e morais: essas duas perspectivas são absolutistas e antirrelativistas; elas negam a historicidade e desviam o ser humano da fraternidade, do altruísmo, do conhecimento e da atividade positiva; elas estimulam a arrogância, a vaidade, o orgulho, a violência, o intelectualismo. Em suma, são contra o amor, a ordem e o progresso.

As organizadoras da atual coleção “Os pensadores” com toda a certeza ignoram todas as afirmações e concepções indicadas no parágrafo acima, provavelmente porque se limitam a ser crítico-militantes.O Discurso sobre o espírito positivo consiste na verdade no discurso de abertura do curso público ministrado por Augusto Comte durante algumas décadas, intitulado “Curso filosófico de Astronomia popular”. Esse curso era dedicado à instrução científica dos proletários parisienses e oferece de maneira exemplar uma forma filosófica de estudo das ciências, em termos de seus métodos, de seus principais resultados específicos e de suas importâncias filosóficas. Nesse curso, o discurso inicial expunha os princípios filosóficos que orientavam a apresentação e o entendimento subseqüentes da Astronomia; mas não se trata de mera exposição epistemológica e metodológica do curso. São várias idéias concatenadas aí; senão, vejamos.

A ciência é o resultado da busca humana de entendimento da realidade conjugada com a busca de soluções para os problemas práticos; satisfazendo necessidades gerais da natureza humana (que se desenvolve ao longo do tempo, em face das realidades sociais e ambientais), a ciência é o resultado de um longo processo de desenvolvimento de modos de satisfazer essas necessidades – desenvolvimento que passou antes pelos absolutos teológico-metafísicos e que agora entre na positividade científica. Todavia, apesar da importância dos resultados próprios a cada ciência, cada uma delas tende a fechar-se em si mesma, a ignorar as demais e desconsiderar totalmente as necessidades humanas profundas, ou seja, as ciências entregues a si mesmas tendem a ser incoerentes e a tornarem-se absolutas: a única solução possível é elaborar uma filosofia que organize os vários resultados das ciências, de modo a permitir que elas relacionem-se entre si de maneira permanente e sistemática; que elas mantenham-se sempre no âmbito do relativismo; que – e isto é o principal – elas atenham-se à satisfação das necessidades humanas. Essa filosofia não é uma “filosofia científica”, pois não se trata da aplicação dos métodos da ciência à filosofia; ao contrário, é a reflexão filosófica sistematizando, organizando e orientando a prática e a reflexão científicas. Com isso, fica evidente que há diferenças entre o “espírito científico” (próprio à atividade cotidiana dos cientistas) e o “espírito positivo” (mais amplo, generalizante, coordenador e orientador). As conseqüências práticas disso eram evidentes para Augusto Comte desde o início, seja em termos políticos e sociais, seja em termos morais e intelectuais; o desenvolvimento e a sistematização dessas concepções levaram o fundador do Positivismo a fundar também a Religião da Humanidade nos anos seguintes, em parte graças à poderosa ação moral e intelectual exercida sobre ele por Clotilde de Vaux.

O Discurso sobre o espírito positivo, assim como todas as demais obras de Comte, apresenta um forte espírito histórico: por si só isso já rejeita o anticlericalismo, isto é, o combate sistemático às religiões teológicas, predecessoras da religião positiva que afirma o ser humano. Da mesma forma, a cuidadosa distinção entre a prática científica e a avaliação filosófica dos resultados das ciências rejeita o que se chama atualmente de cientificismo. Nas obras posteriores de Comte essas duas perspectivas estarão ainda mais claras, como no Sistema de política positiva e na Síntese subjetiva. Mas, de qualquer maneira, publicado em 1844, o Discurso sobre o espírito positivo é a derradeira obra pré-religiosa de Augusto Comte – não por acaso, posterior ao Sistema de filosofia positiva (1830-1842) mas um pouco anterior ao seu intenso, breve e respeitoso relacionamento com Clotide de Vaux (no “ano sem par” – 1845-1846). A próxima obra escrita e publicada por A. Comte já evidenciaria a Religião da Humanidade e também o viés marcadamente político e social do Positivismo, como efeitos tanto de Clotilde quanto da II República Francesa (1848-1851): o Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848.

A inclusão do Discurso sobre o espírito positivo na versão nova da coleção “Os pensadores” apresenta, portanto, um caráter bastante ambígüo. A publicação em si desse volume tem quer comemorada; o fato de ele ser vendido promocionalmente em conjunto com o v. 1 certamente o disseminará de uma forma que os demais volumes não conseguirão. Entretanto, os motivos profundos que levaram à sua inclusão baseiam-se em preconceitos; enquanto Augusto Comte desejava superar a oposição suicida entre a ordem e o progresso, as organizadoras da versão nova dos “Pensadores” insistem nessa oposição, transformando e mantendo, por um lado, a ordem em uma ordem retrógrada e o progresso em um progresso anárquico.

3. Sobre a edição e a tradução do Discurso na atual coleção “Os pensadores”

Para concluir, convém fazermos alguns comentários sobre as presentes edição e tradução do Discurso.

Como dissemos logo no início deste texto, os livros da nova coleção “Os pensadores” estão bastante bem cuidados em termos editoriais: papel de qualidade (Chambril Avena 80 g/cm2, agradável ao tato), tamanho aceitável (16,3 x 23,8 cm), capa dura, arte da capa agradável. A edição é boa e, além do sumário no início do livro, há também uma tabela sinóptica no final, indicando os temas de cada um dos parágrafos do livro.

 

Fonte: https://pensadores.folha.com.br/index.html.

 

Todavia, essa edição apresenta uma série de pequenos erros que incomodam e que podem atrapalhar um pouco a leitura; todos esses erros são devidos às decisões editoriais, mas alguns deles poderiam ter sido sanados antes da publicação caso a editora tivesse tomado a decisão simples – e, aliás, muito razoável – de consultar positivistas para rever a tradução e/ou a edição; por outro lado, alguns outros erros foram impostos pelo lamentável acordo ortográfico de 1990 (cujo objetivo, no fundo, era aumentar o mercado editorial brasileiro nos países lusófonos, especialmente africanos).

Comecemos pelo nome do autor: Augusto Comte. Desde que o Positivismo passou a ser difundido no Brasil, em meados do século XIX, a versão em português do nome francês “Auguste” era corrente; assim, em todos os bem mais de 500 títulos da Igreja Positivista do Brasil, publicadas entre c. 1880 e c. 1930, o nome do filósofo está devidamente em português: Augusto. Esse hábito saudável, de verter para a língua pátria os prenomes estrangeiros, manteve-se até bem depois, como se pode ver na capa da tradução de Ivan Lins para os Opúsculos de filosofia social, de 1972. Esse hábito de traduzir para a língua pátria é comum também nos países de línguas espanhola, inglesa, francesa e alemã.

 

Fonte: https://www.estantevirtual.com.br/sebotraca/augusto-comte-biblioteca-dos-seculos-opusculos-de-filosofia-social-2615776725?show_suggestion=0

 

Entretanto, em meados dos anos 1980, talvez já na década de 1970, passou a constituir-se no Brasil um estranho consenso, no sentido de que os prenomes não seriam traduzíveis. É verdade que há nomes que são, de fato, intraduzíveis, na medida em que não há versões em português para eles: nomes em japonês ou em mandarim apresentam em particular essa dificuldade. Acessoriamente, pode-se considerar o respeito aos países de origem e, portanto às suas culturas. Mas o fato é que nenhuma dessas considerações obriga-nos a rejeitar a tradução dos prenomes. É evidente que “Pierre”, “Pietro” e “Peter” são as versões em francês, italiano e inglês para “Pedro” e, como sabem por exemplo os hispanofalantes, não há nenhum problema, nem há nenhuma ofensa, em ler no original “Pierre”, “Pietro” ou “Peter” e passar para “Pedro” na tradução. Adicione-se a isso o fato de que o nome “Augusto” já estava consagrado no Brasil (e, convém notar, também em Portugal), com um uso extremamente difundido e, acima de tudo, mais que centenário.

Um outro problema derivado do nome do autor, mas agora relativo ao seu sobrenome, é o adjetivo derivado de “Comte”. Mais uma vez: tradicionalmente, por um hábito mais que centenário, sempre se usou no Brasil o adjetivo “comtiano”. O “i” surgiu da pronúncia carioca dessa palavra, o que não é problema nenhum. Mas, contrariando a forma consagrada, o malogrado acordo ortográfico de 1990, entre suas inúmeras e equívocas previsões estipulou que o nome de origem deve ser rigorosamente seguido para que se forme o respectivo adjetivo. Dito de outra maneira: devido ao acordo, literalmente por decreto deixou-se de lado o “comtiano” e passou-se ao “comteano”, a partir do nome “Comte”.

Vejamos o título do livro. Na capa aparece apenas “Discurso sobre o espírito positivo”; até aí, tudo bem: está conforme o título original. Mas na folha de rosto percebemos um estranho subtítulo: “ordem e progresso” – e, pior, em caixa baixa (isto é, em letras minúsculas). Mas o original não possui esse tal subtítulo, ainda que o “Ordem e Progresso” seja uma das máximas do Positivismo.

Essa estranha inclusão de subtítulo poderia ter sido decidida arbitrariamente pela editora, como se achasse bonito, ou conveniente, ou sagaz (em uma “sacada” comercial). Mas há algumas referências no texto que nos informam que o texto de base seria uma “segunda edição”, publicada em 1908, sendo que a “primeira edição” seria de 1898. Uma busca rápida pelo portal Internet Archive logo nos fornece o resultado que esclarece a situação; veja-se a imagem abaixo, que corresponde à folha de rosto da edição francesa usada na tradução do volume ora publicado na coleção “Os pensadores”.

 


Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n11/mode/2up.

 

O “Ordem e Progresso”, que o tradutor (Walter Sólon) entendeu ser um subtítulo, atua na folha de rosto do original precisamente como o que é: u’a máxima política; se quiserem, pode ser entendida como uma epígrafe, mas de maneira nenhuma como um subtítulo. Vejamos a capa de um opúsculo da Igreja Positivista do Brasil escolhido um pouco ao acaso e que ilustra o que argumentamos.

 

Fonte: arquivo pessoal.

 

Esse opúsculo, que é uma prestação pública de contas (financeiras mas, acima de tudo, políticas) de 1892, apresenta uma grande quantidade de elementos informativos; alguns são elementos de instituição, data e lugar, outros referem-se ao tema (o título, o subtítulo, a epígrafe) e outros referem-se aos valores religiosos e políticos mobilizados: neste último caso, as máximas positivistas encontram-se entre a instituição promotora (“Relijião da Humanidade”, com a ortografia simplificada proposto por Miguel Lemos) e o título do opúsculo. Deve-se notar que, mesmo em meio à profusão de informações, não há a menor dúvida de que as frases “O Amor por Princípio i a Ordem por Baze; o Progresso por Fim”, “Viver para outrem” e “Viver às claras” não integram o título ou o subtítulo e que poderiam, em certo sentido, ser entendidas como epígrafes do documento.

Certo: podemos admitir, sem dificuldade, que o erro de inserir o “Ordem e Progresso” como subtítulo acaba sendo fácil de cometer. Mas é exatamente essa a questão: sendo fácil de cometer, bastaria às organizadoras da coleção e/ou ao tradutor do livro que fizessem uma simples consulta aos positivistas brasileiros para dirimir a dúvida.

Ao longo deste texto comentamos em vários momentos que o Discurso é de 1844; entretanto, a informação dada logo no início da tradução é que a “primeira edição” seria de 1898 e a “segunda”, de 1908. Esses dois erros são bem menos escusáveis e são bem mais devidos às decisões das organizadoras da coleção e/ou do tradutor. A decisão que eles tomaram, juntamente com a inclusão de um suposto subtítulo, foi a exclusão às referências de que a edição que empregaram para traduzir o livro era a edição comemorativa do centenário de nascimento de Augusto Comte. No alto da folha de rosto do original está escrito com todas as letras, de maneira muito clara e em caixa alta: “Edição do centenário de Augusto Comte”. Mais do que isso: na suposta “primeira edição”, há apenas um “Aviso do editor”; no final desse “Aviso” há uma nota adicional, cujo início é o seguinte: “Nesta segunda edição...”. Embora haja aí uma ambigüidade a respeito da “segunda” edição, o fato é que não há nenhum título, como aparece na atual versão brasileira (“Nota do editor à 2ª edição”) e, de qualquer maneira, deveria ser evidente que se trata de uma segunda edição em relação à versão comemorativa anteriormente publicada. Nada disso está claro na atual versão da coleção “Os pensadores”; mas, como já indicamos, uma simples consulta aos positivistas brasileiros resolveria tudo isso com rapidez e facilidade.

 

 

Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n21/mode/2up.

 

Por fim: limitando-nos à “Nota do editor da 1ª edição” (cuja tradução correta seria “Aviso do editor”), notamos que na edição brasileira o ano de 1851 – em que o v. 1 do Sistema de política positiva foi publicado – aparece como sendo 1951. Mais uma vez, um erro que poderia ser muito facilmente sanado com uma consulta simples aos positivistas brasileiros.

Para concluir estes comentários, vale a pena lembrarmos que não é só a atual versão dos “Pensadores” que trata mal o volume dedicado a Augusto Comte: as edições anteriores cometeram também erros mais ou menos graves no volume dedicado a Augusto Comte; esses erros foram deliberados desde o início e sua perpetuação, ao longo das várias edições da coleção, foi igualmente deliberada. Sem nos deter em pormenores, podemos de pronto indicar quatro problemas:

1)      o emprego da forma francesa para o prenome do pensador, contra o uso consagrado no Brasil;

2)      o uso de “h” minúsculo para escrever “Humanidade” – que, tanto nos originais de Comte quanto nos escritos da Igreja Positivista do Brasil e dos positivistas brasileiros de modo geral, sempre foram escritos com “h” maiúsculo –;

3)      a inclusão de um parágrafo presente no “Prefácio” da primeira edição francesa do Catecismo positivista, em que A. Comte refere-se ao czar Nicolau I: esse parágrafo Comte decidiu suprimir das edições seguintes, o que foi feito na tradução brasileira desse volume, da lavra de Miguel Lemos, mas que a editora Abril Cultural, por obra de J. A. Gianotti, decidiu incluir novamente – sem que essa inclusão indevida fosse explicada ou justificada e ainda menos afirmada com clareza para os leitores –;

4)      um erro tipográfico presente no título do Calendário positivista concreto, o famoso “Calendário histórico” positivista. O título correto é “Calendário positivista para um ano qualquer ou quadro concreto da preparação humana”; entretanto, na palavra “preparação” faltou o “p” inicial, convertendo a palavra em “reparação”. O sentido de cada uma das duas palavras é muito diferente e, sem sombra de dúvida, gera equívocos.

 



[1] Eis a relação completa dos títulos, por ordem de lançamento:

  1. Platão – A República
  2. Auguste Comte – Discurso sobre o espírito positivo
  3. bell hooks – Ensinando a transgredir
  4. René Descartes – Regras para a orientação do espírito
  5. Max Weber – Ciência e política: duas vocações
  6. Voltaire – O preço da justiça
  7. Claude Lévi-Strauss – Antropologia estrutural
  8. Santo Agostinho – Sobre a mentira
  9. Michel Foucault – A sociedade punitiva
  10. Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres
  11. Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
  12. Nicolau Maquiavel – A arte da guerra
  13. Adam Smith – Teoria dos sentimentos morais
  14. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos
  15. Frédéric Bastiat – A lei
  16. Carter G. Woodson – A (des)educação do negro
  17. Aristóteles – Sobre a alma
  18. Ludwig von Mises – As seis lições
  19. Immanuel Kant – Crítica da razão pura
  20. Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista
  21. Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária
  22. Ruth Benedict – Padrões de cultura
  23. Émile Durkheim – As regras do método sociológico
  24. John Stuart Mill – Sobre a liberdade
  25. Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão
  26. Friedrich Hayek – O caminho da servidão
  27. Edison Carneiro – Ladinos e crioulos
  28. Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo
  29. Thomas Hobbes – Leviatã
  30. Leo Strauss – Direito natural e história

[2] A esse respeito, cf. meus textos “Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira” (disponível em https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira/) e “Os conservadores entre alguns acertos e muitos erros – avaliando o conservadorismo à luz do Positivismo” (disponível em https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2021/10/a-revista-insight-inteligencia-em-sua.html).