21 janeiro 2022

Hernani Gomes da Costa: "Figuras da IPB com quem convivi"

O texto abaixo é a versão escrita e estendida de anotações que o meu querido amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa leu no dia 1º de janeiro de 2022, como uma celebração da Festa Geral dos Mortos (ocorrida na véspera, no dia 31 de dezembro). Tal celebração ocorreu no lançamento da Rede Humanidade, iniciativa informal de Érlon Jacques de Oliveira.

As anotações abaixo servem de registro biográfico e também institucional de algumas das figuras mais belas e mais emblemáticas da Igreja Positivista do Brasil (IPB), entre as décadas de 1980 a 2000, e que revelam também o quanto o Positivismo pode ser, e de fato é, uma fonte de beleza, de ternura e de energia para o congraçamento e a melhoria da Humanidade.


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Figuras da Igreja Positivista do Brasil com quem convivi

Celebração da Festa Geral dos Mortos

(1.1.2022)

 

Hernani Gomes da Costa

 

Quero dedicar este momento de gratidão à celebração da memória de alguns dos amigos e amigas que eu conheci do Templo da Humanidade, da Capela da Humanidade e do Centro Positivista do Paraná. Embora não mais se achando objetivamente entre nós, eles estão bem vivos em mim, na lembrança que tenho das imagens deles, nos doces sentimentos que estas evocam e nos hábitos que eu preciso imitar se quiser ser tão feliz como eles foram nessa existência tão rica quanto sóbria a que o Positivismo nos convida ao mais completo e perfeito desfrute e que a morte mesma só faz avivar.

-        Stella da Cunha Santos: Aquela cuja fala pausada e calma fazia-me prestar uma atenção dupla a cada vírgula do que me dizia (aliás nunca antes vírgulas puderam ser tão audíveis...). É também aquela com quem eu busco obter a virtude dessa serenidade que nada tem de fria e distante, assim como a aguda penetração psicológica que só possuem aqueles que se inclinam a ouvir com respeito o que uma outra alma tem a dizer, por mais tolo ou incompreensível que a princípio nos pareça.

-        Beatriz Torres Gonçalves, a Bia: jamais eu vi em outro rosto humano uma expressão tão gentil e que eu diria mesmo parecer haver se fixado, de tão habituais tornaram-se nela os exercícios dos músculos que à essa terna alegria correspondem. Dela eu busco obter (no que me couber) a exuberância de uma vitalidade que parecia transcender à fragilidade de um corpo de mais de 90 anos.

-        Wally Leal Freire de Souza: a pequena, bem humorada e por vezes rascante professora de música, cuja fala lembrava uma rápida sequência de minúsculas explosões, vindas de alguma artilharia de brinquedo; é também aquela de quem eu espero poder obter toda a inquebrantável altivez caso a vida me empurre a situação de ter de enfrentar, como essa corajosa mulher o fez, algum mal corpóreo incurável que não me permita senão um último ano de vida.

-        Sofia Torres Gonçalves, a irmã da Bia. Ela era de uma vozinha quase inaudível, um sussurro emanado de um corpo cuja severa e dolorosa escoliose eu logo me encarreguei de livrá-la na construção da imagem interior que dela formei, mesmo antes de sua transformação (e sem que a ausência desse estorvo oferecesse o menor prejuízo à realidade de sua vida subjetiva). Se da Wally eu obtive a coragem frente ao abalo de uma surpresa fatal, da Sofia eu obtive o exemplo complementar da resignação, diante de um longo convívio com limites físicos que, sem provocarem a morte ou encurtarem a vida, colocam-nos frente a única alternativa honrosa de aprender a melhor nos adaptarmos a eles pelo único caminho do suportar.

-        Tasso Bolívar Garcia Paula. O maior contador dos “causos” humorísticos e pitorescos de nossa Igreja, aquele que vendo em mim uma esperança apostólica, me proveio de um subsídio mensal tão logo eu comecei a realizar as prédicas dominicais. Um episódio tocante permitirá mostrar como era o seu carinho pela obra e pela pessoa de Comte. Certa vez ele declarou a mim que sempre foram muito difíceis os seus estudos da doutrina, através das leituras da Filosofia e da Política positiva, revelando-me também que certas passagens (e às vezes páginas inteiras consecutivas) escapavam-lhe totalmente à compreensão. Ele porém dizia que, mesmo assim, não se arrependia desse seu estudo, uma vez que também podemos sentir toda a beleza do canto de um pássaro sem no entanto compreender uma só palavra do que ele esteja querendo dizer.

-        Henrique Batista da Silva Oliveira, o Almirante Henrique, a quem eu encontrava no Clube Positivista, onde conversávamos longamente sobre a doutrina. Ele foi, ao que eu saiba, o nosso último confrade a receber o sacramento da destinação paramentado como aspirante ao apostolado da Humanidade. Foi a pessoa com quem eu mais me senti seguro em tudo o que se refere à formação teórica do Positivismo. E aquele portanto a quem, mesmo sem saber, eu gostava de me espelhar em todas as ocasiões em que se faziam necessárias exposições sintéticas do conjunto da doutrina. Sua personalidade dava-me uma sensação única de estar sobrepairando bem acima dos problemas do tempo presente. Jamais me foi possível ver tão bem combinados como em sua conversa o caráter solene de um assunto com o tom jovial de um simples e despretensioso bate-papo informal. Havia mesmo nele um certo sorriso de Gioconda e que o fazia parecer estar falando da glória a que está reservada a Humanidade nos tempos futuros, não como um teórico, mas como se ele próprio fosse um de seus habitantes, que nos houvesse voltado ao passado para nos dar mais uma chance. Devo confessar que ainda estou bem longe de aprender como é que se faz isso...

-        Rubem Descartes de Garcia Paula, a única pessoa nascida no século XIX que eu conheci em minha idade adulta; nós éramos unidos por uma ciência cultivada em comum – a Química – de onde ambos obtivemos os mais diretos subsídios teóricos para alcançar o estado positivo do entendimento. Seu livro Religião, uma criação da Humanidade, que eu li antes mesmo de minha primeira visita ao templo (livro que foi um dos pouquíssimos a manter o interesse do meu pai além da página cinco), proporcionou-me uma impressão que só hoje, enquanto escrevo essas linhas, pude notar como importou para o meu desejo de conhecer mais a fundo o Positivismo. Seu Descartes foi para mim o primeiro autor positivista contemporâneo a escrever (com a leveza e o frescor de um escritor contemporâneo) sobre a nossa doutrina, o que me permitiu num momento decisivo de minha formação reconhecer, já a partir do estilo, antes mesmo que pelo conteúdo, toda a atualidade da Religião da Humanidade, e que uma obra mais antiga talvez não me pudesse evidenciar.

-        Ruyter Demaria Boiteux, o médico com quem eu conversava sobre assuntos biológicos, foi o ser mais próximo da santidade que eu tive a ventura de conhecer na Igreja. Condecorado por heroísmo ao conseguir extrair um projétil explosivo da perna de um soldado, poupando-o da amputação, ele dedicava como médico boa parte de suas horas de trabalho a atendimentos gratuitos de quantos chegassem ao consultório. Seu bom humor auxiliado por uma generosa expressividade mímica eram tão envolventes e a medicina compunha de tal modo o seu ser que, ao conversar com ele, tinha-se a sensação de um vigor salutar renovado, de se estar falando mais rápido, respirando melhor e mesmo sacudindo partes do corpo que até então manteríamos prudentemente quietas.

-        Mozart Pereira Soares. Financiado pelo Doutor Ruyter, eu viajei à Capela da Humanidade para integrar aquele que seria o penúltimo encontro anual de positivistas; de que ele, Ruyter, fôra sempre o seu esteio. E foi na casa do Professor Mozart que eu e um outro confrade, Arthur Virmond de Lacerda, nos hospedamos por toda a duração do encontro, que embora breve, bastou para que eu obtivesse da amistosidade de seu caráter e de sua vasta erudição uma impressão perene junto a todas as demais pessoas aqui retratadas e com quem eu convivi por tão mais tempo. O meu carinho e respeito por ele tem um sabor todo especial, tendo o Professor Mozart me convidado para assistir ao filme do Batman (aquele contra o Pinguim), ocasião em que ele não perdeu nenhuma oportunidade de tecer considerações éticas às principais situações de sua trama.

-        Paulo de Tarso Monte Serrat, O psiquiatra paranaense que anualmente vinha nos brindar com suas práticas calorosas, sempre de grande impacto emocional. Dono de uma voz privilegiada, que conseguia a um tempo ser alta sem tornar-se agressiva e grave sem tornar-se lúgubre; suas conferências eram a ocasião esperada em que se podia experimentar todo o prazer das reverberações acústicas do Templo da Humanidade e cuja eficiência parecem desafiar as leis da Física. Ele era a meu ver o único confrade a fazer do otimismo diante da vida e das pessoas a sua principal plataforma religiosa. Por vezes somos, como positivistas, seduzidos a um perigo moral que consiste em acabarmos transformando o nosso amor à Humanidade numa falsa justificativa com a qual chegamos ao paradoxal resultado de gostar mais da Humanidade do que de gente. Contra esse perigo, as prédicas do Doutor Paulo de Tarso funcionaram sempre, e antes de tudo, como um santo remédio.

-        Alfredo de Moraes Filho: foi, de todos os vultos aqui retratados nestas brevíssimas pinceladas, aquele com quem eu convivi de mais perto e por mais tempo, juntamente com sua esposa, Ondina de Moraes. Seu temperamento enérgico porém não era de molde a nos permitir grandes aproximações. E se por um lado essa acolhida parcimoniosa e mesmo permanentemente desconfiada pôde ter servido como um filtro que evitou tanto quanto possível franquear-se a Igreja a todo tipo de pessoa, também infelizmente acabou isolando-a do mundo atual, em oposição ao que mais desejariam os apóstolos Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Guardo dele, porém, a imagem daquele que, depois dos dois apóstolos, foi, ao meu ver, quem mais se dedicou e se sacrificou pela Igreja e pelo movimento positivista, inclusive em tempos de repressão política; onde a campanha do “Petróleo é Nosso” irmanou comunistas e positivistas num aspecto comum do trabalho de ambos em prol de um mundo mais justo.

Faltam algumas outras pessoas que o tempo de que disponho não me permite acrescentar aqui senão os nomes, mas sobre as quais eu teria tanto a dizer quanto já o fiz: Ondina de Moraes; Francisco Ribeiro Dantas; Ângelo Torres; Jorge Torres Gonçalves; Júlio Costa e Tales de Muriaé Garcia Paula.

Eduardo de Sá: "Rosália Boyer consagrando Augusto Comte à Humanidade"




Celebração do nascimento de Augusto Comte (19.1)

O roteiro abaixo serviu de base para uma celebração ao vivo, transmitida no Facebook, a partir das 19h do dia 19 de janeiro de 2022. Esse vídeo pode ser visto aqui.


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1.      A presente celebração é um evento importante por dois motivos: por si mesmo, como comemoração de Augusto Comte, e como retomada da comemoração pública no próprio dia de nascimento do filósofo

2.      A data de 19 de janeiro marca o glorioso nascimento de Augusto Comte

a.       A importância de Comte vincula-se à fundação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade, em 1854, mas desde 1848 anunciada

3.      O nome completo do filósofo era Isidore Auguste François Xavier Comte, filho de Louis Comte e Rosalie Boyer

a.       Comte nasceu em Montpellier, no Sul da França, mas viveu toda a sua vida adulta em Paris

b.      A grande parte de sua vida foi marcada por dificuldades de toda ordem: problemas financeiros, empregos ruins, dificuldades conjugais; além disso, entre 1826 e 1828 ele atravessou uma longa e dolorosa crise nervosa, marcada mesmo por uma tentativa de suicídio no rio Sena

4.      A carreira de Comte costuma ser dividida em duas partes, uma científica e outra religiosa, cada uma delas marcada pela redação de uma obra ou de um conjunto de obras: a fase científica é a do Sistema de filosofia positiva (1830-1842) e a religiosa, do Sistema de política positiva (1851-1854), mas também do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), do Catecismo positivista (1853), do Apelo aos conservadores (1855) e da Síntese subjetiva (1856)

a.       Na verdade, o próprio Comte afirmava essas duas fases de sua carreira; as divergências ocorrem em função do valor que se dá a cada uma delas e, em particular, à fase religiosa:

                                                                          i.      os adeptos heterodoxos, marcadamente cientificistas, rejeitam a fase religiosa

                                                                        ii.      já os ortodoxos reconhecem a unidade da carreira comtiana e, seguindo a orientação do mestre, entendem que a fase religiosa é a mais importante

b.      Embora pareça meramente acadêmica, essa distinção resulta em importantes conseqüências morais, políticas, sociais, intelectuais e até afetivas

5.      A presente comemoração é religiosa e, portanto, pressupõe a unidade da carreira comtiana e a afirmação da Religião da Humanidade

a.       Vale notar que, nas palavras de nosso mestre, a Religião da Humanidade foi criada tanto por ele quanto por Clotilde de Vaux, a inteligente jovem de vida sofrida por quem ele apaixonou-se e que, apesar dos seus sofrimentos, deu-lhe forças para empreender uma série assombrosa de elaborações intelectuais e afetivas

6.      À  primeira vista, a idéia da Religião da Humanidade pode parecer estranha para muitos, seja no que se refere à “religião”, seja no que se refere à “Humanidade”

a.       Esse estranhamento também ocorre porque nossos hábitos mentais vinculam a “religião” à teologia, assim como a “humanidade” ao secularismo; além disso, o papel desempenhado pela ciência no Positivismo é visto como incompatível com a “religião”, ou então como uma forma de cientificismo, ou então como uma aberração total (considerando a confusão moral generalizada entre os cientistas)

7.      Mas não há motivo nenhum para o estranhamento com a Religião da Humanidade; quando entendidas suas concepções, o que se evidencia é a sua razoabilidade e a sua necessidade

8.      A “religião” não é igual a “teologia”: é um sistema geral que coordena, isto é, que junta, estrutura, relaciona e regula as várias partes da existência humana: nossos sentimentos, nossas idéias e nossas condutas práticas

a.       A religião, para Comte, é a instituição que estabelece a operação mental da “síntese”; além disso, ela tem um evidente componente educativo, pedagógico, no sentido de ensinar e aprimorar continuamente o ser humano

b.      Nesse esforço, Comte considera que a natureza humana apresenta três partes principais – os sentimentos, a inteligência e a ação prática. O início e o objetivo de todas as nossas condutas é a satisfação dos sentimentos; a inteligência esclarece e orienta nosso comportamento; as ações práticas são os comportamentos efetivos realizados em tal satisfação.

c.       Nesse conjunto, os sentimentos altruístas – o amor – é que permitem a coordenação de tudo, incluindo a do egoísmo

9.      A humanidade, por outro lado, é uma concepção altamente idealizada; sem dúvida que ela refere-se ao conjunto dos seres humanos, mas há vários graus nisso:

a.       Antes de mais nada, a Humanidade são os seres humanos que vivem em nossos corações, em nossas memórias e em tudo aquilo de que desfrutamos atualmente; por outro lado, a Humanidade também são os seres humanos futuros, que ainda não nasceram mas que são objeto constante de nossas preocupações: nesses termos, a Humanidade é a subjetividade dada pelo passado e pelo futuro

b.      Nós, os seres humanos vivos, somos portanto apenas uma pequena fração da longa cadeia histórica; é claro que sem os seres vivos o passado e o futuro não existem e que somente por meio dos vivos é que os sentimentos, as idéias e as ações próprias à Humanidade podem ter lugar; mas o fato é que somente podemos aspirar à honra futura se formos dignos hoje; em outras palavras, a incorporação subjetiva à Humanidade nunca está garantida enquanto estamos vivos

c.       Os animais domésticos também integram a Humanidade, desde os cachorros e os gatos até os bois, os cavalos, os porcos e tantos outros

10.  A Religião da Humanidade oferece um quadro geral que nos orienta em nossas vidas, tanto individuais quanto coletivas: ela oferece valores, dizendo o que é certo e o que é errado; ela oferece idéias, explicando o mundo e o ser humano; ela oferece objetivos, ao indicar o que deve ser feito (e porque isso deve ser feito)

a.       Em virtude dessas características todas – mas de muitas outras mais, que não é possível indicar nesta breve celebração –, Augusto Comte afirmava que a Humanidade é a verdadeira providência, aquela que provê os recursos para sermos quem somos e fazermos o que fazemos

11.  A Humanidade é objeto de celebração e veneração: reconhecendo seus limites, reconhecemos os nossos próprios limites; mas, inversamente, reconhecendo suas possibilidades, reconhecemos as nossas próprias possibilidades

a.       O serviço à Humanidade combinado com a incerteza que todos temos a respeito de sermos ou não incorporados subjetivamente a ela após nossa morte oferece ao mesmo tempo a doçura e a alegria próprias à vida e também a necessária humildade que todos temos que ter

b.      Com isso, o culto à Humanidade oferece-nos um objetivo na vida, o pertencimento a uma comunidade (que é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva) e a submissão a um ser superior (que pode muito, mas não é onipotente; que sabe muito, mas não é onisciente; que tem uma unidade, mas é composto por inúmeros agentes e membros; que é amoroso, fraterno e pacifista)

12.  A esmagadora maioria, quando não a totalidade, das instituições e das sugestões de Augusto Comte no âmbito da Religião da Humanidade têm sido afirmadas ou retomadas, de maneira dispersa e espontânea, nas mais variadas partes do mundo

a.       Assim, se invertermos a ordem das idéias e juntarmos essas várias experiências dispersas, dando-lhe uma coerência dada pelo altruísmo, pelo pacifismo e pelo relativismo, teremos um conjunto que só não será “Positivismo” ou “Religião da Humanidade” pelo eventual nome que assumir

13.  É em virtude dessas tão belas idéias, que afirmam a fraternidade universal, a atividade convergente e pacífica, o respeito ao meio ambiente, aos povos e grupos fracos, o conhecimento útil da realidade, o respeito à história e a busca do aperfeiçoamento humano (moral, intelectual e físico), que praticamos a Religião da Humanidade e na data de hoje celebramos, emocionados, a vida e a obra de seu cofundador, Augusto Comte

21 dezembro 2021

Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"

(ATENÇÃO: FAÇO REFERÊNCIAS À TRAMA. OU SEJA: DIVULGO SPOILERS.)

Assisti ao filme Homem-Aranha: sem volta para casa. Estava ansioso por isso - tanto pelo filme em si, que prometia por exemplo um retorno parcial do Tobey Maguire (o primeiro Homem-Aranha no cinema), quanto porque não ia ao cinema desde o início da pandemia.

Enfim, o filme é tudo o que prometeram e muito mais, tendo encontros inesperados, muitos momentos divertidos e também muito drama e choro. (E muitas cenas extremamente violentas.)

Mas já na metade do filme fiquei muito irritado. A moralidade apresentada é a típica moral de super-heróis: destroem tudo o que há pela frente e as únicas considerações pelos demais referem-se às pessoas ao redor (amigos e família); além disso, todas as decisões de âmbito público são tomadas na mais estrita esfera privada (ou melhor, no mais completo segredo). Se morre alguém próximo aos "heróis", a reação é imediata e violenta; se qualquer outra pessoa morre, ninguém dá a menor atenção. E, claro, quem exige que os "super-heróis" sejam responsabilizados por suas condutas é tratado como adversário, ou melhor, como inimigo ou até "vilão".

Mas o filme Homem-Aranha: sem volta para casa dá um passo além mesmo nessa odiosa moralidade de "super-heróis": enquanto nos filmes anteriores havia "vilões" que realmente agiam de maneira negativa e os super-heróis limitavam-se a reagir, neste filme todas as ações negativas decorrem das decisões conscientes do próprio Homem-Aranha, "aconselhado" ou não por sua tia e/ou por seus amigos. Essas decisões incluem (1) duas tentativas de lavagem cerebral em todo o planeta; (2) a libertação de cinco perigosíssimos criminosos; (3) a destruição de monumentos públicos, prédios residenciais, pontes e estradas e muitos e muitos carros; (4) o combate a quem deseja evitar todos esses problemas.

Para não ser injusto, há dois momentos em que o filme muda um pouco essa moralidade de super-herói. O primeiro momento é quando Peter Parker decide tentar mudar os vilões, revertendo os acidentes que os transformaram em vilões: essa decisão em si é bastante generosa, mas, ainda assim, no contexto do filme, ela é irrefletida e inconseqüente; em outras palavras, ela é absoluta e infantil. O segundo momento é quando a tia May repete para Peter Parker a bela fórmula "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". No conjunto do filme essa fórmula não tem nenhuma conseqüência, mas a fórmula em si é correta e relativa - e, aliás, é de origem positivista (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/.../gran...). No fim das contas, esses dois momentos acabam reafirmando os problemas da moralidade de super-heróis, seja porque (no primeiro momento) essa moralidade é reafirmada, seja porque (no segundo momento) de fato a moralidade verdadeira, que não é a dos super-heróis, não é aplicada.

Em suma, a moralidade apresentada e desenvolvida no filme é absoluta, infantil - e não consigo pensar em outra palavra que não seja "podre". Não dá para gostar de um filme assim.

(A qualidade técnica do filme - realmente excepcional - não muda nem evita os graves problemas acima. Na verdade, essa qualidade técnica apenas realça os problemas, na medida em que está a serviço dessa moralidade podre.)

15 dezembro 2021

Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República. 

Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.

Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.

O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).


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Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.

Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.

O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.

Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.

Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.

Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).

Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.

A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.

Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.

Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.

Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.

A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.

Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.

Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.

  

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

03 dezembro 2021

Estado laico acima de tudo, Humanidade acima de todos

Após a aprovação (em 1.12.2021, na sabatina no Senado Federal) como novo ministro do Supremo Tribunal Federal de André Mendonça, cujo critério de seleção pelo Presidente da República consistiu em ser "terrivelmente evangélico", é necessário reafirmarmos o princípio abaixo.


Fonte e autoria: desconhecidas.

02 dezembro 2021

Comemorações de 168-234 (2022)


Centenários

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

1.           

Anacreonte

563 aec-478 aec

2.500 anos de morte

3.Homero

31.jan.

2.           

Berthollet

1748-1822

200 anos de morte

19.Bichat

21.dez.

3.           

Cujácio

1522-1590

500 anos de nasc.

15.Descartes

22.out.

4.           

Delambre

1749-1822

200 anos de morte

5.Gutenberg

17.ago.

5.           

Shelley

1792-1822

200 anos de morte

27.Dante

11.ago.

6.           

MOLIÈRE

1622-1673

400 anos de nasc.

21.Shakespeare

30.set.

7.           

S. Francisco de Sales

1567-1622

400 anos de morte

25.Dante

9.ago.

8.           

Varignon

1654-1722

300 anos de morte

3.Bichat

5.dez.

 

“Cinqüentenários”

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

9.           

Anaxágoras

500 aec-428 aec

2.450 anos de morte

4.Aristóteles

1.mar.

10.         

Arquitas

428 aec-347 aec

2.450 anos de nasc.

12.Aristóteles

9.mar.

11.         

Broussais

1772-1838

250 anos de nasc.

27.Bichat

29.dez.

12.         

Coligny

1519-1572

550 anos de morte

8.Frederico

12.nov.

13.         

Constantino

272-337

1750 anos de nasc.

8.São Paulo

28.maio

14.         

Duclos

1704-1772

250 anos de morte

12.Descartes

19.out.

15.         

Fourier

1772-1837

250 anos de nasc.

13.Bichat

15.dez.

16.         

Geoffroy

1672-1731

350 anos de nasc.

18.Bichat

20.dez.

17.         

Johan de Witt

1625-1672

350 anos de morte

11.Frederico

15.nov.

18.         

Pedro Damião

1007-1072

950 anos de morte

16.Carlos Magno

3.jul.

19.         

PLATÃO

428 aec-348 aec

2.450 anos de nasc.

28.Aristóteles

25.mar.

20.         

Ramus

1515-1572

450 anos de morte

4.Descartes

11.out.

21.         

S. Bonifácio

672-754

1.350 anos de nasc.

16.São Paulo

5.jun.

22.         

Tancredo

1072-1112

950 anos de nasc.

9.Carlos Magno

26.jun.

 

N

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

1.             

Arsène Kin

11.10.1822-4.1.1890

200 anos nasc.

4.Descartes

FONTES: Wikipédia; “Apêndice” de Apelo aos conservadores (autoria de Augusto Comte; Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899), organizado por Miguel Lemos; Comité des travaux historiques et scientifiques (http://cths.fr/)

NOTAS:

1.     As datas de vida foram pesquisadas na internet (basicamente na wikipédia), considerando que esse procedimento permitiria obter o que há de mais atualizado a respeito das diversas biografias; além disso, cotejaram-se essas datas com as disponíveis no “Apêndice” do Apelo aos conservadores.

2.     Letras maiúsculas em negrito: nomes de meses.

3.     Letras maiúsculas simples: chefes de semanas.

4.     Letras em itálico: tipos adjuntos, considerados titulares nos anos bissextos.

5.     Os artigos da Wikipédia foram selecionados basicamente em português, mas em diversos casos ou só havia em outra(s) língua(s) ou eram melhores em outra(s) língua(s) (espanhol, francês, inglês).