14 julho 2020

Insight Inteligência: "Brasil vive crise moral"

A revista Insight Inteligência - que se dedica a (in)formar a opinião pública por meio de artigos com debates políticos mais profundos que o habitual dos jornais diários, mas sem os formalismos acadêmicos - publicou em seu número 89 um artigo de nossa autoria sobre a crise política e moral que vive o nosso país há alguns anos.

O texto pode ser lido aqui. Já a versão completa da revista, com o nosso texto diagramado em formato PDF, pode ser lido aqui.

A versão original do texto, com algumas pequenas diferenças de estilo em relação ao publicado na revista, está reproduzida abaixo. 


*   *   *


Mais que crise política, o Brasil vive uma crise moral[i]

 

A sã política é filha da moral e da razão
(José Bonifácio)

Agir por afeição e pensar para agir
O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim
(Augusto Comte)


Fonte: https://insightinteligencia.com.br/mais-que-crise-politica-o-brasil-vive-uma-crise-moral/

O Brasil atravessa uma crise político-moral

 

Já virou um triste mas correto senso comum dizer que o Brasil atravessa desde há vários anos uma crise política; essa crise, como facilmente se percebe, é também moral, no sentido de que a própria atividade política encontra-se profundamente desmoralizada. Essa desmoralização, por sua vez, também se deve a motivos de caráter moral, em particular a percepção, certa ou errada mas com certeza generalizada, de que os políticos profissionais costumeiramente não falam a verdade; de que eles não buscam o bem comum em suas atividades cotidianas; de que são corruptos e corruptores: assim, a percepção é que os políticos são mentirosos, mesquinhos e corruptos. Por extensão, os partidos políticos e as instituições republicanas (aí incluídos os membros do poder Judiciário) são vistas não como a serviço dos cidadãos e do país, mas dos próprios políticos. Tudo isso conduz a uma forte crise de legitimidade, ou seja, da adesão subjetiva dos cidadãos à ordem política vigente[ii].

Realismo ou moralismo?

 

Muitas das críticas político-morais feitas contra o nosso sistema político são mais ou menos ingênuas e por vezes equivocadas, ao passo que outras são bastante densas e certeiras. Muitos analistas políticos costumam chamar pejorativamente as críticas morais de “moralistas”, com isso querendo reduzi-las todas a concepções ingênuas, altamente abstratas e desvinculadas da realidade; o moralismo, nesse sentido, seria uma visão “idealista”, que despreza as negociações e as disputas de interesses e que pretende que todos os políticos sejam como que vestais[iii]. Os analistas que denunciam o moralismo adotariam, por sua vez, uma concepção “realista”, que aceita que a política é uma constante disputa entre grupos de interesses e indivíduos que desejam repartir entre si o mando, as riquezas e o status resultante do poder político.

Deveria ser claro que não se pode nem desprezar as críticas de caráter moral como sendo simples moralismo, nem querer que a prática política seja a atividade de indivíduos sempre modelares. Os autoproclamados “realistas” não raro são cínicos que reduzem a política ao enfrentamento de grupos opostos; no limite, para eles a política é uma forma disfarçada de guerra[iv]. Já os apodados de “idealistas” muitas vezes rejeitam de maneira efetivamente ingênua e tola as necessárias negociações e transações (inclusive os processos de convencimento) que devem sempre ocorrer para que os assuntos públicos sejam levados a cabo.

Para o ser humano agir, a realidade sempre tem que ser idealizada: isso quer dizer que temos que ter noções gerais mais ou menos ideais guiando-nos em nossas condutas, indicando o que é certo e o que é errado, da mesma forma que o que pode e o que não pode ser feito, assim como quais os principais grupos sociais que atuam e porquê. Nesses termos, idealidade e realidade andam de mãos dadas, em que por um lado reconhece-se a legitimidade das negociações e da atividade própria aos políticos e, por outro lado, proclamam-se com clareza os princípios e os valores que estruturam, limitam e norteiam a ordem política. Como dizia o grande fundador da pátria brasileira, José Bonifácio: “a sã política é filha da moral e da razão”.

Aprofundando o entendimento da “moral”

 

As observações acima são apenas uma introdução para discutirmos a profundidade da crise moral que atravessamos. Na verdade, após superarmos a tola dicotomia entre realismo e moralismo, temos que aprofundar o entendimento do que seria a “moral”. O melhor caminho para isso – e não por acaso, diga-se de passagem – é o indicado pelo Positivismo, ou seja, pelas longas elaborações de Augusto Comte.

Para Comte, a Moral é a ciência suprema, aquela que resume todas as ciências abstratas anteriores[v], que se caracteriza pela identidade entre sujeito e objeto e pelo menor grau de abstração em seus estudos, que realiza naturalmente a transição entre o conhecimento abstrato (científico) e a atividade prática (das artes práticas) e que, assim, que estabelece os parâmetros de conduta coletiva e individual. Todos esses atributos da Moral – que de maneira muito, muito imperfeita poderíamos chamar de “Psicologia” e de “Pedagogia” – baseiam-se na própria natureza humana, isto é, na constituição cerebral do ser humano. O homem é um ser que age buscando a satisfação de seus instintos, sendo que a inteligência atua aí para esclarecer o mundo, o próprio homem e os meios possíveis para tal satisfação. Ocorre que a respeito dos “instintos” não se deve ter uma concepção rasa, como as que identificam os instintos com a fome e os impulsos sexuais; isto é, sem dúvida que a fome e o impulso sexual integram o quadro de instintos, mas não são os únicos nem os principais. O que importa notar é que, além do egoísmo – que Augusto Comte identificou como composto pelos instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade –, o ser humano possui o altruísmo – composto pelo apego, pela veneração e pela bondade. Não há dúvida de que o egoísmo é mais forte que o altruísmo; entretanto, essa maior força não equivale à inexistência do altruísmo – como, aliás, os “realistas” e os cínicos costumam afirmar – nem equivale a que o egoísmo seja sempre dominante com a mesma intensidade.

O que importa notar é que o ser humano – da mesma forma que os animais superiores, como o cachorro, o cavalo, a vaca e até o gato – é naturalmente altruísta e que desde sempre esse altruísmo atua. Mais do que isso: à medida que o ser humano desenvolveu-se historicamente, o altruísmo tornou-se mais ativo e, portanto, mais forte. Se nos proverbiais tempos pré-históricos o ser humano mantinha-se em pequenos grupos familiares para comer, reproduzir-se e proteger-se, à medida que as associações sociais aumentaram os traços de nossa natureza que submetem e disciplinam o egoísmo tornaram-se cada vez mais intensos: a própria noção de “disciplina” exige a subordinação do indivíduo a uma ordem externa (objetiva e subjetiva), da mesma forma que todo aperfeiçoamento requer que um indivíduo ou um grupo reconheça suas próprias limitações e suas próprias imperfeições e, assim, submeta-se a outrem. A noção de “Humanidade” desenvolveu-se gradativamente, superando as limitações familiares e pátrias; com isso, a veneração cedeu lugar primeiro para o apego e estes dois, por sua vez, abriram espaço para a bondade universal.

A ciência da Moral de Augusto Comte apresenta inúmeras outras características; mas, além do caráter inato do altruísmo e do seu desenvolvimento histórico, uma das mais importantes descobertas do fundador da Religião da Humanidade foi que é apenas o altruísmo que é capaz de disciplinar moralmente um indivíduo, ao oferecer um princípio interno capaz de orientar os vários instintos. O egoísmo, em contraposição, caso deseje tornar-se o guia geral, fica sempre em uma constante disputa entre os seus vários instintos, sem que nenhum consiga obter a ascendência sobre os demais: em outras palavras, a harmonia mental e a conduta regrada surgem apenas quando o altruísmo disciplina e orienta o egoísmo.

Considerando essa relação entre egoísmo e altruísmo, Augusto Comte definiu-a como sendo própria aos sentimentos (evidenciando, assim, as maiores importância e dignidade do altruísmo em relação ao egoísmo). Os sentimentos são a base, são a origem das ações humanas; ao mesmo tempo, os sentimentos são os objetivos de nossas ações; em outras palavras, agimos movidos pelos sentimentos com vistas à satisfação dos sentimentos. A inteligência, como indicamos antes, ocupa um papel secundário, ainda que da maior importância, nessa economia moral: é a inteligência que explica o mundo e o homem e, portanto, permite que a realidade faça sentido; além disso, a inteligência esclarece quais são os meios possíveis (eventualmente os mais adequados) à consecução dos nossos objetivos[vi]. Essa dinâmica foi sintetizada por Augusto Comte da seguinte maneira: “agir por afeição e pensar para agir”.

É claro que, embora a inteligência tenha um papel instrumental na economia humana, ela não é inerte, ou seja, ela é ativa e funciona com relativa autonomia. Isso resulta em dois problemas sucessivos para a inteligência: por um lado, ela pode buscar soluções para problemas propostos pelo altruísmo ou pelo egoísmo; como vimos, é necessário que ela sirva o altruísmo; por outro lado, a inteligência atua e obtém resultados, que podem ser utilizados pelo altruísmo ou pelo egoísmo[vii]. Dito de outra maneira: não apenas os fins que buscamos têm sempre que ser altruístas, como as possíveis soluções para esses objetivos têm sempre que ser altruístas[viii]. Com isso fica evidente que o altruísmo tem que ser continuamente afirmado e estimulado, a fim de poder sempre orientar e disciplinar a inteligência; os meios para esse estímulo do altruísmo Augusto Comte compendiou na parte do culto da Religião da Humanidade (mas de que não trataremos aqui)[ix].

Política brasileira: falta de altruísmo nos objetivos e nas soluções

 

As considerações que fizemos até agora serviram para evidenciar que qualquer descrição realista da política tem que incorporar, necessariamente, os aspectos morais dessa atividade, seja porque a legitimação do sistema político envolve aspectos morais, seja porque qualquer ação humana é moralmente orientada e justificada. Assim, por um lado abandonamos as críticas que afirmam que as considerações morais são mero “moralismo” e, por outro lado, evidenciamos que a análise científica da política exige uma extensa análise científica da própria moral (que, por sua vez, tem que ser moralmente orientada). Tudo isso se fundamenta no Positivismo, ou melhor, na Religião da Humanidade.

Podemos abordar o tema que nos interessa, que é o fato de que a presente crise política brasileira é também, ou melhor, é antes de mais nada uma crise moral.

No cotidiano da política as concepções normativas dos vários grupos sociais entram em choque entre si, da mesma forma que seus interesses econômicos, políticos, culturais etc.; com freqüência valores e interesses sobrepõem-se, resultando daí muito da riqueza da atividade política. Vale também notar que a política envolve disputas e negociações para que políticas públicas sejam implementadas e a tomada de decisões e a implementação das políticas públicas envolvem beneficiar alguns grupos e algumas práticas em detrimento de outros, escolhendo-se alguns caminhos de preferência a outros; assim, embora as negociações ocorram o tempo todo, elas visam a converter-se, em algum momento, em decisões concretas.

Os grupos que se confrontam nas arenas políticas têm que concordar com alguns princípios elementares – pelo menos têm que aceitar que as instituições existentes são minimamente aceitáveis e capazes de processar as demandas sociopolíticas. Por certo que em alguns momentos as instituições são vistas como incapazes de processarem as demandas sociais ou, além disso, são de fato incapazes de tal processamento; nesses momentos, por diversos meios – alguns pacíficos, outros nem tanto – as instituições mudam, regimes políticos alteram-se e assim por diante. Em todo caso, o que queremos indicar é que no dia-a-dia da política mesmo grupos que se opõem de maneira frontal têm que concordar com as regras do jogo; além disso, é sabido que discordâncias morais e intelectuais profundas não são nem nunca foram impeditivas de acordos práticos a respeito de determinadas questões – o que é uma outra forma de dizer que as conversas e as negociações ocorrem continuamente e que, se não o respeito mútuo, pelo menos a tolerância e o convívio civilizado são bases da atividade política.

No Brasil deixaram de existir esses diversos acordos tácitos e explícitos que permitem a convivência de grupos opostos. A crítica moral ao sistema político brasileiro sempre houve, tanto da parte da “direita” – como na famosa União Democrática Nacional (UDN, 1946-1967), cuja reiterada crítica moral tornou o “udenismo” sinônimo de “moralismo” – quanto da parte da “esquerda” – fosse durante o regime militar (1964-1985), realizado pelas oposições, fosse da parte do Partido dos Trabalhadores, que sistematicamente rejeitou em nome de princípios morais todas as grandes mudanças políticas brasileiras entre 1982 (quando foi fundado o partido) e 2002 (quando afinal foi eleito para a Presidência da República). Ocorre que, devido a fatores sociais profundos, na década de 2010 o descontentamento social com a política no Brasil tornou-se mais profundo e mais radical e ultrapassando em muito a mera perda de legitimidade do sistema político (como se tal perda fosse pouca coisa!). Não faz sentido historiar os acontecimentos que resultaram em tal quadro; o ano de 2013 geralmente é indicado como deflagrador de amplas insatisfações populares, mas é claro que as “jornadas de junho” tiveram causas que as antecederam e acontecimentos posteriores e concomitantes aumentaram ainda mais a radicalização.

A perda da legitimidade do sistema político é um problema de perda de confiança; é uma questão moral, mas bem vistas as coisas a “moral” implicada nele é bastante rasteira, na medida em que os sentimentos e as ideias não estão em jogo: os sentimentos e as idéias de fundo permanecem, o que se perde é a crença de que o sistema pode, de alguma forma, corresponder aos sentimentos e às idéias, bem como os satisfazer.

O problema vivido atualmente no Brasil consiste no aprofundamento radical dessa crise de legitimidade; os sentimentos e as idéias de fundo anteriores perderam-se ou corromperam-se, sendo cada vez mais substituídas por outras coisas muito ruins e muito piores: em vez de termos amor, temos ódio; em vez de termos altruísmo, temos egoísmo; em vez de termos bondade, temos mesquinhez. As interpretações racionais e racionalizadoras seguem de maneira quase automática tais sentimentos duros, agressivos e destrutivos.

Essa alteração profunda não ocorreu no vazio; ela foi realizada de maneira intencional por vários grupos e indivíduos que a desejam conscientemente. Na verdade, ela corresponde à infeliz reunião de políticos anti-intelectualistas mas extremamente violentos e promotores da violência como política de Estado com intelectuais que, em nome de interpretações bastante específicas do catolicismo, promovem o culto ao ódio, à intolerância e ao desrespeito. Injunções político-partidárias muito específicas criaram o ambiente específico para que frutificasse politicamente a união de violentos políticos anti-intelectuais com intelectuais imorais. Como se sabe, apoiam essa coligação empresários e capitalistas que buscam meios de sistematicamente se furtarem às suas responsabilidades sociais, da mesma forma que líderes religiosos que buscam apenas explorar a pobreza, a ignorância e a boa-fé popular.

Em tal quadro os sentimentos estão profundamente alterados e, como dissemos, chegam a estar pervertidos: por um lado há o culto à mesquinhez individual e coletiva, disfarçado sob um manto que conspurca a idéia de “bem comum”; mas, por outro lado, o que permite essa conspurcação é que o altruísmo, a bondade, a generosidade – em uma palavra, o amor – foram substituídos não pela mesquinhez e pelo egoísmo, mas pelo ódio. De fato, o intelectual imoral que exerce a tarefa de legitimar a aberração política que atualmente ocorre no Brasil já disse diversas vezes que o ódio é um sentimento tanto quanto o amor e que, portanto, ele é tão legítimo quanto o amor para motivar as ações humanas. Daí se segue naturalmente o culto à morte, a dicotomização da política, o desrespeito e a intolerância a todos aqueles de quem discordam. A paranóia é mais um traço dessa política degenerada; não há dúvida de que ela é um traço específico de vários importantes líderes dessa onda política, mas é bastante claro que ela também se constitui em uma característica própria ao movimento como um todo: afinal, a política, ou melhor, a República e a cidadania pressupõem uma confiança generalizada, mesmo que abstrata, e essa mesma confiança generalizada é negada sistematicamente pelos cultores do ódio e da violência.

Se o ódio é o sentimento de base e a violência a prática política justificada, do ponto de vista intelectual essa política nutre-se das teorias da conspiração. É fácil ver como as teorias da conspiração vinculam-se ao ódio e à violência: elas também se baseiam na desconfiança sistemática, na falta de respeito pelos outros, na exclusão dos “inimigos” e na autoexclusão dos “eleitos”. A inteligência, aí, não cumpre o papel de esclarecer, mas apenas o de justificar – sempre a posteriori – as idéias derivadas do sentimento de ódio e da prática da violência sistemática.

Em termos coletivos, esses vários traços convergem para uma postura destrutiva e destruidora, que abomina o diálogo e a tolerância; também constitui um grupo que se torna cada vez mais coeso, ao isolar-se progressivamente do resto da sociedade – a quem, aliás, trata na base da pancada (ou do tiro) – e ao realizar um culto à personalidade. A paranóia, as teorias da conspiração e o autoisolamento produzem outro resultado mental: a lavagem cerebral.

O conjunto disso tudo traduz-se na constituição de grupos fanáticos, autoritários, violentos, agressivos, intolerantes – e lamentavelmente extremamente ativos. A experiência histórica já deu nome para esse tipo de movimento: fascismo. O repertório das atividades práticas fascistas também já é conhecido e é constituído não apenas pelo que vimos indicando até o momento, mas também de outras táticas reiteradas, como o emprego sistemático da desinformação, o uso proposital e perversamente ambígüo das palavras e a atribuição aos seus adversários (sempre entendidos como “inimigos” a serem abatidos) de práticas e maus sentimentos que, todavia, correspondem às práticas e sentimentos dos próprios fascistas. Esse conjunto evidencia, afetivamente, que subjazem a ele não apenas os sentimentos egoísticos, mas principalmente o desejo de destruir tudo aquilo de que os fascistas discordam ou que lhes desagradam: é a consagração do ódio e do medo. Do ponto de vista intelectual, as táticas adotadas pelo fascismo visam a causar confusão sistemática entre a população e, mais do que isso, a corromper a confiança básica para qualquer sociedade, seja entre cidadãos e governo, seja dos cidadãos entre si: é a consagração da desconfiança. A noção de uma realidade objetiva, externa às vontades individuais e coletivas, é combatida de maneira direta e indireta, seja por meio da sua negação clara, seja por meio da confusão e da desconfiança. Assim, o Estado torna-se uma instituição basicamente repressiva e as únicas coisas de que se pode ter certeza (além do medo e do ódio) são as decisões tomadas em cada momento pelo líder.

O Brasil vive esse triste quadro há cerca de dois anos; os grupos sociais que se baseiam e que apóiam tais concepções organizam-se há muito tempo – começaram justamente nos meios de comunicação, empregando a violência retórica a título de    “verdade” – e obtiveram um inaudito sucesso político nas eleições presidenciais de 2018, em parte devido ao fracasso retumbante da esquerda, em parte devido à inépcia política e moral da centro-direita, em parte devido à exitosa manipulação das idéias e dos valores da população brasileira. Em meados de 2020, quando escrevo estas páginas, o estado de coisas descrito acima aprofunda-se mais e mais, com grupos de fanáticos manifestando-se cada vez mais, manipulando as instituições públicas, realizando lavagem cerebral em seus membros e seus simpatizantes – e, talvez o mais importante, ocupando espaços públicos (como na constituição de “acampamentos de resistência” na Esplanada dos Ministérios em Brasília)[x].

Pode-se com legitimidade obtemperar que grupos fascistas constituem a exceção e não a regra do ambiente sociopolítico brasileiro e que, assim, não faria muito sentido afirmar a sua importância política. De fato, esses grupos são realmente minoritários; entretanto, há pelo menos dois fortes motivos para que não se os considere desimportantes. Em primeiro lugar, indicamos antes que esses grupos são extremamente ativos e mobilizados; em vez de diminuírem em tamanho e em quantidade, o movimento que se vê é o de eles aumentarem em quantidade de membros, em quantidade de grupos e em organização interna (sem contar a lavagem cerebral, que ocorre continuamente). Associado a isso está o fato de que, embora tenham um violento discurso antissistêmico, tais grupos obtiveram o poder em 2018 e o atual Presidente da República não disfarça sua vivíssima simpatia para com eles. À medida que o tempo passa, a instabilidade do atual governo federal aumenta, o que aos olhos dos ativistas parece justificar suas atividades e, portanto, torna-os mais aguerridos: não se pode desprezar, nunca, a importância política que grupos minoritários e marginais, mas extremamente aguerridos, podem ter.

Em segundo lugar, embora os grupos paramilitares sejam minoritários em relação à totalidade da população brasileira e sejam evidentemente radicais, ou ultrarradicais, em seus posicionamentos sociopolíticos, o fato é que eles legitimam a sensibilidade, o discurso e a prática da violência, do ódio e da intolerância, abrindo espaço para que grupos menos extremos que eles, mas defensores de comportamentos assemelhados, organizem-se, manifestem-se e obtenham poder. Na verdade, o caráter exemplar dos extremistas para os não-extremistas não é uma simples possibilidade, mas uma realidade efetiva, como se pode constatar no comportamento reacionário de inúmeros grandes empresários brasileiros que apóiam tais grupos e combatem com palavras, dinheiro e humilhações de seus empregados a dignidade indígena, a qualidade de vida dos trabalhadores, a proteção ao meio ambiente, as liberdades de consciência, expressão e organização (com a evidente exceção das suas próprias “consciências”, expressão e organizações) – e, durante a presente pandemia de covid-19, o trabalho quase compulsório de todos os que não são doentes e/ou idosos, em franca oposição às recomendações de todas as organizações médicas do mundo inteiro[xi]. Em outras palavras, a mera existência de tais grupos extremistas abre espaço para que seus valores e suas idéias ganhem espaço na sociedade, passando a estar disponíveis no repertório sociopolítico nacional; nesse sentido, mesmo pessoas que poderíamos em outros contextos julgar sensatas, razoáveis, dotadas de boa vontade, podem deixar-se seduzir pelo fascismo, mesmo e principalmente quando suas idéias e valores não são apresentadas com clareza como sendo fascistas.

A necessidade de ligas religiosas e políticas

 

Como dizia Augusto Comte, a natureza do problema indica a natureza da sua solução. O problema vivido atualmente no Brasil é político e moral; assim, são necessárias medidas políticas e morais. Essas medidas devem ser tanto diretivas (educativas) quanto repressivas (jurídico-policiais) e devem ser aplicadas com urgência cada vez maior.

As medidas políticas são as mais diretas e as mais fáceis de serem implementadas; o ordenamento político brasileiro orienta-se claramente em prol das liberdades, do respeito à vida, da tolerância etc.: as autoridades, portanto, devem fazer cumprir as leis e coibir o máximo possível, mas sempre dentro dos limites da lei, todos os comportamentos violentos e de ódio.

Todavia, a repressão é o ambiente em que os fascistas sentem-se mais à vontade; a planta do fascismo só é exterminada quando o conjunto da população afirma com todas as letras, de maneira clara, que o fascismo é inaceitável; aliás, quando o conjunto da população recusa a árvore e também impede que as sementes do fascismo surjam e brotem. Esse trabalho, não há dúvida, é muito mais difícil e de longo prazo – o que não quer dizer, todavia, que ele não possa render frutos de imediato.

A ação pedagógica depende de ligas religiosas e políticas. Os conservadores, que tradicionalmente afirmam a importância dos valores morais, devem reafirmar essa importância, mas ao mesmo tempo devem deixar de lado suas repugnâncias pelo que consideram os exageros do progresso e devem assumir que no Brasil as liberdades, o respeito mútuo, a tolerância são efetivamente tradicionais e, portanto, devem ser valorizadas e respeitadas. As diversas religiões existentes no Brasil – fetíchicas, politeístas, monoteístas, metafísicas e positiva – devem igualmente afirmar, isoladas ou em grupos, que só o amor constrói, que o altruísmo deve prevalecer sobre o egoísmo, que o ódio não pode nunca ser considerado o pilar de nenhuma política nem de nenhuma organização social. Em várias ocasiões as religiões teológicas defenderam valores contrários a esses, em particular algumas religiões monoteístas; entretanto, ao menos nominalmente todas – fetichistas, teológicas, metafísicas, positiva – defendem atualmente o amor, o altruísmo, a tolerância: que o afirmem mais e mais vezes, que repudiem o ódio, o egoísmo, a intolerância[xii].

Em termos políticos, é necessário que os vários partidos e grupos sociais unam-se em favor das liberdades e contra o fascismo. Essa união não precisa ser explícita: basta que tacitamente os grupos deixem de ferir-se uns aos outros e passem a envidar esforços sinérgicos, ou seja, na mesma direção, com o mesmo objetivo. Da mesma forma, os líderes políticos devem agir no sentido de preservar e fortalecer as instituições republicanas, além de adotarem os remédios republicanos para nossos correntes males políticos. Isso equivale em particular a duas séries de medidas: por um lado, os líderes políticos devem deixar de fazer mesquinhos cálculos político-eleitorais e devem passar a mirar no afastamento constitucional do atual Presidente da República, cujo comportamento já se revelou mais do que pródigo em crimes comuns, crimes de responsabilidade, quebras do decoro etc. Por outro lado, os líderes devem abandonar qualquer esperança de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo: tal substituição não resolveria nenhum problema, geraria um desgaste sociopolítico inaceitável para o país atualmente, oneraria o país com uma estrutura inútil (a Presidência de enfeite) e substituiria o governo do fascista pelo governo dos mancomunados.

A chamada sociedade civil pode e deve apoiar os esforços tanto da liga religiosa quanto da liga política. Os chamados “intelectuais”, por fim, têm que se pôr ao lado da sociedade civil e da liga religiosa, de modo a atuar como formadores de opinião; assim, devem abandonar os sempre existentes desejos de assumirem o poder (no lugar dos grupos políticos que a cada momento governam, geralmente na forma de oportunistas propostas parlamentaristas). No quadro atual, os intelectuais não podem furtar-se à obrigação de manifestarem-se publicamente ; atuando como formadores de opinião, os intelectuais devem indicar as possibilidades de ação para os políticos e os efeitos sociais e políticos do fascismo; mas, como formadores de opinião, devem apenas secundar os esforços da liga religiosa, cujo papel é o de reverter a putrefação moral que se estende pelo país.

A substituição do atual governo, fascista, por um outro que não o seja não encerra nossos problemas; ela é uma etapa necessária mas insuficiente. O trabalho pedagógico, da cultura do amor e do respeito, deve ser mais uma vez retomada no país; em particular, ela deve refletir-se politicamente no abandono radical de qualquer discurso e de qualquer prática que oponha brasileiros contra brasileiros, ou “nós” contra “eles”: essa é a verdadeira e profunda origem dos males que nos afligem.






[i] Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo.

[ii] Este documento deveria ser um pequeno artigo episódico para eventual publicação em jornal diário; entretanto, a natureza do problema e a necessidade de explicar com um mínimo de detalhe a interpretação positiva de nossas dificuldades levou-me a ampliar cada vez mais a redação. Como ficará claro ao longo das páginas seguintes, esta é uma contribuição positivista para os profundos problemas que afligem atualmente o Brasil; embora sejamos suspeitos para falar, até o momento é a única interpretação que considera com a profundidade necessária os vários aspectos essenciais desses problemas.

[iii] Os romanos, que como a respeito de tantos outros aspectos são um dos nossos melhores antepassados políticos, designavam os postulantes aos cargos eletivos como “candidatos”, ou seja, como indivíduos “cândidos”, que trajavam togas talares da cor branca exatamente para indicarem sua pureza moral.

[iv] Vale notar que muitos dos “realistas” com frequência são acadêmicos que – o mais das vezes de maneira secreta – gostariam eles m esmos de exercer o poder.

[v] A Moral foi justamente denominada de “ciência sagrada” por Augusto Comte; ela está no ápice da série enciclopédica, que organiza por generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente as ciências abstratas mais gerais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. A Moral é a ciência mais complexa e a mais nobre; por isso mesmo foi a última a constituir-se, pois exigia que o entendimento do mundo e do ser humano ocorresse antes. O conhecimento teórico, abstrato, da Moral conduz imediatamente à atividade prática, concreta, que lhe é própria e que consiste na orientação de cada indivíduo em sua vida, considerando o caráter social do ser humano.

[vi] A partir disso se evidencia que a descrição da realidade do mundo não se opõe, nem pode opor-se, à idealização desse mesmo mundo. Da mesma forma, isso também evidencia que a busca do conhecimento real tem que se aliar, ou melhor, tem que se submeter à busca do conhecimento útil.

[vii] Augusto Comte considerava pelo menos mais um problema relativo à inteligência, que é a sua busca incessante de ela mesma querer ser o princípio regulador e coordenador da economia moral em vez de submeter-se aos sentimentos (altruístas). Essa questão, importante por si só, refere-se mais à autonomia da inteligência e tem uma aplicação mais direta entre os “intelectuais”; como a presente reflexão tem um caráter político, esse problema não nos interessa tanto agora.

[viii] O conjunto das observações precedentes também esclarece porque os analistas políticos “realistas” estão errados ao considerarem que a política é apenas a disputa de poder e ao desprezarem o papel da idealização e dos valores morais na vida política. Além de fazerem uma descrição extremamente pobre da atividade política (apesar de dizerem-se “realistas”), eles ou deixam de lado ou ignoram aspectos centrais da natureza humana que têm impacto direto na realidade política, como a busca do bem comum, a própria necessidade de idealizar a realidade para desenvolver atividades, o devotamento pessoal a causas que ultrapassam as motivações egoísticas.

[ix] Vale notar, de qualquer maneira, que a Religião da Humanidade sistematiza as concepções acima e, mais do que tudo, sistematiza o culto, de maneira a estimular cotidianamente o altruísmo, com vistas à regulação da inteligência e da atividade prática.

[x] Em maio de 2020, por exemplo, um grupo denominado de “300 de Brasília” fez um acampamento na Esplanada. Esse grupo – que, apesar do nome, não se constitui por 300 mas por cerca de 50 pessoas – é ao mesmo tempo militantemente “cristão”, agressivo em seu linguajar, defensor da extinção de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, defensor do fim da “imprensa tradicional”, defensor de intervenção militar na política e do Ato Institucional n. 5 (de 13.12.1968, o mais violento de todos os AIs), defensor do uso de armas para “proteção”, defensor de uma “ucrainização do Brasil” (ou seja, da ocorrência de uma guerra civil no país, de maneira semelhante ao que ocorre na Ucrânia, após a invasão russa e a tomada violenta da Criméia em 2015). E tudo isso ao mesmo tempo em que dizem que são “não-violentos” e “a favor da vida”. O grau de confusão moral, intelectual e política é evidenciado pelo uso simultâneo de camisetas e de bandeiras enaltecendo a monarquia brasileira e a bandeira nacional republicana!

Aliás, no que se refere à bandeira nacional, esses grupos repetem sem cessar o “Ordem e Progresso”, entendendo por “ordem” um autoritarismo militar, ao mesmo tempo em que desprezam o “Positivismo” e ignoram profundamente que, para Comte e o Positivismo, a “ordem” inclui as liberdades civis e o repúdio à violência.

Por fim, a referência à Ucrânia é reveladora: se há lá uma guerra civil, isso se deve a que grupos pró-russos defendem ou a anexação total do país à Rússia ou a independência de partes do território ucraniano (seguidas, evidentemente, pela anexação “voluntária” à Rússia). A Rússia, nesse caso, não é uma expectadora inocente: baseada em um fascismo místico, pelo menos desde o início do século XXI ela defende a anexação da Ucrânia ao seu território e o combate sistemático ao Ocidente (daí, aliás, o apoio russo à eleição de Donald Trump nos EUA e à saída da Inglaterra da União Européia).

[xi] Reveladora da intensidade da degradação moral desses empresários é a afirmação de que na pandemia não haveria problemas em que morressem umas cinco ou sete mil pessoas, de modo geral idosas; o importante seria que a economia continuasse a funcionar (e, portanto, que todos infectassem-se com o coronavírus-2, até o momento sem vacina disponível contra ele). Em meados de maio, enquanto escrevemos, a taxa de mortes já ultrapassou a marca dos 14 mil mortos – mas é claro que tais empresários não mudaram de opinião: desde que a economia continue funcionando, as mortes podem continuar ocorrendo.

[xii] Como estamos indicando, o Positivismo prega exatamente o contrário do que tais grupos ultraconservadores atribuem-lhe; mas, ainda assim, pessoas de boa vontade, movidas por boas intenções, repetem erros sistemáticos na ânsia de serem “críticos” e de evidenciarem alguma cultura histórica – exemplo disso foi a desastrada e profundamente injusta observação feita pelo rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo de 9 de maio de 2020, em que atribui ao “Positivismo científico” a motivação e a justificativa para atrocidades sociais variadas (aliás, note-se: atrocidades apenas sugeridas, mas não nomeadas). Logo um rabino, sacerdote de uma religião que tanto preza o conhecimento e que, como poucos povos e culturas, sofreu os efeitos da perseguição e da desinformação!

12 julho 2020

MORENA: desagravo contra ataque aos positivistas

Após a vil e odiosa postagem da Deputada Carla Zambelli agredindo os "positivistas", um grupo nacionalista de esquerda, de inspiração brizolista e trabalhista - chamado "Morena" ("Movimento de Resgate Nacional") fez, em sua conta no Facebook, uma postagem de desagravo ao Positivismo - aliás, uma belíssima postagem de desagravo.

Vale notar que, à parte as manifestações dos próprios positivistas, essa foi a única manifestação ocorrida no Brasil contra o ataque da deputada, evidenciando o quanto direita e esquerda aliam-se em podres hábitos políticos e intelectuais para negar as ações do Positivismo.

Não conseguimos identificar os membros do grupo Morena. Entretanto, suas referências a Leonel Brizola e a Getúlio Vargas, a valorização do caráter miscigenado do país, a concepção do Brasil como "Nova Roma" e como sendo o germe de uma nova civilização (próprios a Darcy Ribeiro), sua valorização da educação e mesmo o nacionalismo - tudo isso nos levou a concluir que esse grupo é trabalhista e brizolista.

O desagravo publicado em 7.7.2020 foi excelente, apresentando alguns dos mais importantes aspectos da atuação positivista no Brasil - diga-se de passagem, aspectos em favor da ordem e do progresso nacionais. (O original publicado no Facebook encontra-se disponível aqui.) 

Discordamos do extremo nacionalismo da postagem e da referência ao "globalismo": enquanto o "globalismo" é um conceito elaborado pelos conspiracionistas da extrema direita para combater a regulação internacional, o próprio nacionalismo com freqüência incorre em desvios de variadas ordens, sendo que sua solução é a submissão estática e dinâmica do conceito de "pátria" ao de "Humanidade". No mais, esse desagravo é exemplar; por isso, reproduzimo-lo abaixo.


*   *   *


NÃO HÁ POSITIVISTAS NO GOVERNO FEDERAL

Ao contrário do que afirma a deputada Carla Zambelli, não há!

O General Benjamin Constant, ministro da Instrução Pública durante o governo republicano provisório do Marechal Deodoro, nasceu em Niterói em 18 de outubro de 1836. Sua contribuição aos generais brasileiros formados após a Guerra do Paraguai (na qual teve destacada participação como engenheiro militar) na Escola Militar da Praia Vermelha e na Escola Superior de Guerra, foi inestimável.

Pela eloquência de Constant nas salas de aula floresceram no Brasil as primeiras manifestações da apropriação nacional do ideário positivista de Augusto Comte, que aqui tomou (como bem lembra o acadêmico José Murilo de Carvalho) cores próprias, antropofagizando-se à realidade brasileira e contribuindo para a construção de iniciativas pioneiras e generosas de progresso social e inclusão social pela educação, especialmente no Rio Grande do Sul de Júlio de Castilhos e no Pará de Lauro Sodré.

Decisivo para a queda da monarquia, o positivismo de Benjamin Constant, calcado no aperfeiçoamento do Estado, na profissionalização dos militares (dentro do princípio do soldado-cidadão, semeador da Razão, da Ciência e da Soberania), na inclusão pela instrução pública, na matriz industrial com divisão do trabalho social, na crítica ao individualismo e às práticas ocultas, com o princípio do "viver às claras", tornou-se contra-hegemônico durante a República Velha, uma democracia de fachada marcadamente liberal.

Muito embora recebido post mortem o epíteto de "Fundador da República Brasileira", por intermédio da Constituição Federal de 1891, e oferecendo seu nome ao Instituto Benjamin Constant (antigo Imperial Instituto dos Meninos Cegos, por ele dirigido), Constant em particular e os positivistas em geral permanecem esquecidos, escamoteados que foram em vida pelos liberais e, perante a História, diminuídos pela historiografia de esquerda, que os reputa "autoritários" e "conservadores".

Foram, pelo contrário, os maiores promotores da inclusão em seu tempo: com Nísia Floresta, da participação política da mulher. Com Benjamin Constant, do ensino aos excluídos. Com Júlio de Castilhos, da proteção ao trabalho. Com Rondon, da cidadania do indígena.

Quando lemos uma personagem como a deputada Carla Zambelli, de rasas convicções e nenhum conhecimento de causa sobre os problemas do Brasil, afirmar que "os positivistas são o pior câncer do Brasil", como hoje fez, lembramos que não há um único general como Constant em um governo permeado, do presidente da República ao mais modesto comissionado, por liberais globalistas, antinacionais e de costumes fúteis e mercadológicos.

Não há, lamentavelmente, positivistas no governo, deputada.

A Benjamin Constant, por sua contribuição à Educação pública com a inclusão dos cegos e a formatação das primeiras escolas de professores (especialmente da Escola Normal da Corte, atual ISERJ), as nossas homenagens. Às contribuições dos positivistas, heróis nacionalistas, os nossos respeitos.



Fonte: https://www.facebook.com/movimentoderesgatenacional/photos/a.633397013801477/900404603767382/?type=3&theater

Carla Zambelli usa o Positivismo para tentar cinco segundos de fama


No dia 5.7.2020 a Deputada Federal bolsonarista, de extrema direita, Carla Zambelli realizou um ataque vil e desprezível, completamente despropositado, contra o Positivismo, ou melhor, contra “os positivistas” (o original encontrando-se disponível aqui).

Este ataque é mais um que a extrema direita faz atualmente contra o Positivismo. Ele é mais uma peça de desinformação de um grupo que se fez e mantém-se graças ao uso sistemático da desinformação, da busca sistemática de inimigos e do uso sistemático de teorias da conspiração.

Essa postagem enseja pelo menos duas ordens de reflexões.

Por um lado, a sua falta de propósito específico salta aos olhos. Carla Zambelli é uma pessoa cuja carreira política desde o início está vinculada ao extremismo político, cuja marca mais evidente – além do extremismo, claro está – é a mais intensa ambição... mas é pura ambição, desejo pessoal de fama e poder, completamente destituída de objetivos sociais, de destinação coletiva. Ela - como muitas outras pessoas de seu círculo - personifica a noção de que o "poder corrompe", embora, bem vistas as coisas, talvez o problema não esteja propriamente no poder.

Assim, a postagem sobre os positivistas busca apenas pôr em evidência a deputada, de alguma forma e durante alguns instantes, em meio ao seu público cativo (a extrema direita, conspiratória, agressiva) e no ambiente que lhe é próprio (as redes sociais). Além disso, essa postagem, além disso, é fácil e simples, pois no fundo não se refere a nada (quem seriam esses tais “positivistas”? Qual sua atuação no governo?) e já foi objeto de referências de outros membros do atual governo (em particular de um dos filhos do Presidente da República); mas, com sua generalidade e vagueza, essa postagem consegue satisfazer os adeptos das teorias conspiratórias. Em suma, a deputada tenta empregar o Positivismo para obter cinco segundos de fama.

Por outro lado, essa postagem de Carla Zambelli, feita para pôr-se em evidência em meio à extrema direita, somente repete o que a esquerda (aí incluída a esquerda nas universidades) sempre fez e faz, também de maneira sistemática, contra o Positivismo.

No Brasil, o comportamento em face do Positivismo evidencia o quanto direita e esquerda com frequência são desprezíveis. Mais uma vez: direita e esquerda partidárias, mas também direita e esquerda acadêmicas. E, aliás, o Positivismo é o alvo preferencial não somente no Brasil, como também nos EUA e na Europa.

Deseja-se ver putrefação moral e intelectual? Basta ver-se o comportamento a respeito do Positivismo. Falta de generosidade, falta de respeito, falta de relativismo, falta de conhecimento histórico... esses e inúmeros outros defeitos morais e intelectuais abundam nos comentários da direita e da esquerda sobre o Positivismo. É tanta coisa que chega a ultrapassar o cansaço, alcançando o nojo e até a ânsia de vômito. (O único desagravo não-positivista contra a postagem antipositivista foi uma belíssima nota do Movimento de Resgate Nacional, Morena, que é um grupo de esquerda de inspiração trabalhista e disponível aqui.)

É desesperador. A postagem da deputada dá a exata medida da podridão moral de diversos ambientes políticos e intelectuais nosso país.


Fonte: https://mobile.twitter.com/CarlaZambelli38/status/1279832474432962560

03 julho 2020

Positivismo, teorias da conspiração e covid-19



No Brasil, a despeito das crescentes taxas de infecção e de morte pela covid-19, ainda há gente que nega a realidade do problema e, ao mesmo tempo, atribui as medidas de isolamento social e uso de máscara facial a mitos como os “comunistas” e o “globalismo”, estejam eles dispersos no Brasil por meio do “marxismo cultural”, estejam eles concentrados em malvadas instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essa insistência é a face afirmativa de uma evidente teoria da conspiração: os problemas sociais e políticos ocorrem não devido à dinâmica da realidade, que em grandes linhas é rebelde ao controle humano, mas, justamente ao contrário, eles devem-se à ação intencional e coordenada de alguns poucos indivíduos, localizados em agências-chave e que, por isso, conseguem controlar a sociedade (e até o meio ambiente) como se possuíssem barbantes que controlam títeres. Aliás, nem é necessário que o grupo dos “poderosos” e “dominadores” ocupe de fato postos-chave em órgãos-chave; é até melhor que esses “poderosos” fiquem ocultos e que atuem nas sombras, às escondidas, de tal sorte que os ocupantes de cargos importantes seriam, eles mesmos, meros joguetes nas mãos desses poderosos. Os meios utilizados pelos “poderosos” para controlar seus títeres seriam igualmente secretos e ignorados pelo grande público; podemos apenas supor que devem incluir a subordinação servil, canina, dos dignitários aos “poderosos”; a constituição de redes secretas de amizades e compadrio, que atuariam como canais insuspeitos da transmissão de ordens; a chantagem; a corrupção.

Além disso, as teorias da conspiração levam até as últimas consequências a suspeita sistemática e total contra todos os aspectos públicos e visíveis da sociedade e da política, considerando que os argumentos expressos em discursos e documentos públicos são falsos ou, pelo menos, que eles simplesmente correspondem a idéias gerais utilizadas para o controle e a manipulação do que ingenuamente se chamaria de “grande público”. As “verdadeiras” idéias não seriam públicas e, por isso mesmo, sendo reservadas ao pequeno e secreto grupo dos “verdadeiros” “poderosos”, seriam egoístas, dissimuladoras, maléficas – em uma palavra, seriam “malvadas”.

Os adeptos das teorias da conspiração caracterizam-se, portanto, por uma dúvida não “sistemática” (como a preconizada pelo grande René Descartes), mas por uma dúvida patológica: nada é o que se diz, tudo é falso e manipulado. O curioso é que as únicas pessoas que “sabem” que tudo é assim são alguns indivíduos que, heroicamente, por acaso têm esse conhecimento todo. Não sou psicólogo, mas com certeza os adeptos das teorias da conspiração devem caracterizar-se por algum desvio de caráter, além de, evidentemente, desvios cognitivos.

O problema é que os adeptos das teorias da conspiração de verdade não “sabem” de nada; no máximo eles têm apenas um violento e invencível ceticismo generalizado. Por que eles não “sabem” de nada? Porque, além das suspeitas sistemáticas e das acusações de manipulação e conspiração, eles não são capazes de afirmar nada sobre nada. Seja devido à sua estrutura moral-intelectual (que rejeita a concepção e a prática da confiança generalizada, própria aos indivíduos sãos), seja devido à constituição específica de suas crenças, os adeptos das teorias da conspiração são incapazes de apresentar provas e fatos de suas afirmações. Em outras palavras, eles são sempre e necessariamente incapazes de ter, ou de produzir, conhecimentos científicos; eles têm apenas puras crenças.

Como há mais de 200 anos dizia Augusto Comte – o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e da Religião da Humanidade –, a política moderna tem que ser uma política “positiva”, ou uma política “científica”. Com isso ele não queria dizer que a política deve ser feita, por exemplo, a partir de programas de computador, ou que os indivíduos devem agir como autômatos; bem ao contrário, a concepção positivista de política científica consiste em a política basear-se nos conhecimentos positivos (científicos), mas não se reduzir a eles; em outras palavras, realizando com clareza meridiana a separação entre a teoria (científica) e a prática (político-social). Nesses termos, as investigações sociais são distintas da ação política e cada uma dessas atividades tem suas próprias particularidades, que devem ser respeitadas mutuamente.

O objetivo da política positiva é abandonar a situação prévia à fundação da Sociologia, em que se desenvolvia o que Augusto Comte chamava de “política empírica”. “Empírico”, nessa expressão particular, não significa o conhecimento factual e teórico da realidade, mas a ação que se realiza às cegas, sem parâmetros sociais, políticos, técnicos e morais para guiá-la, mas apenas o entrechoque das paixões e dos interesses dos vários grupos sociais. A roupagem contemporânea da necessária política científica afirmada por Augusto Comte consiste largamente no que se chama de “políticas públicas”, que são ações realizadas e/ou coordenadas pelo Estado, com ou sem apoio ou auxílio da sociedade civil, com vistas a orientar o desenvolvimento social em direções julgadas necessárias e corretas. Essas políticas públicas, além disso, caracterizam-se por outro aspecto estabelecido pelo fundador do Positivismo: a publicidade de todas as decisões, a que se associa a moralidade delas.

A proposta de política científica do Positivismo, portanto, rejeita liminarmente as teorias conspiratórias – seja porque exige o conhecimento da realidade cósmica, social e humana, seja porque ela deve ser feitas às claras (com a indicação expressa de quem são os seus responsáveis, quais as metas, quais os procedimentos adotados etc.), seja porque ela baseia-se sempre no assentimento e na confiança públicos.

Feitas essas considerações todas, podemos voltar às fatigantes suspeitas sistemáticas das teorias conspiratórias contra os procedimentos de isolamento social recomendadas para o combate à covid-19. Os adeptos das teorias da conspiração afirmam que a covid-19 não é tão perigosa quanto parece; que há um falseamento nos dados de infecção e de morte; que as medidas de isolamento social, de restrição de movimentação nos espaços públicos e de uso das máscaras faciais são no mínimo exageradas (quando não “totalitárias”); que todos esses erros e exageros são propositalmente difundidos pelos “comunistas”; que essas medidas estão a serviço do “globalismo”; que esse “globalismo” seria a versão para consumo internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão para consumo interno; que instituições como a OMS são agentes do “comunismo globalista”.

Como observamos acima, todas essas suspeitas baseiam-se na rejeição sistemática da confiança pública. Entretanto, deixando de lado o aspecto moral, ou melhor, o aspecto psicopatológico dessa disposição, cabe avaliar se elas correspondem à realidade; em outras palavras, é necessário transformar as suspeitas (ou melhor, as certezas) acima em hipóteses de pesquisa. Os instrumentos intelectuais e físicos para realizar tais investigações existem há muito, muito tempo e a cada dia que passa são mais desenvolvidos e refinados; eles envolvem investigações biológicas, clínicas e epidemiológicas, por um lado, e históricas, antropológicas, políticas e sociológicas, por outro lado.

Vejamos:

-        quais as taxas “reais” de infecção do coronavírus-2 e de letalidade da covid-19?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quem realiza tal falseamento e com quais objetivos?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quais são os dados “reais” e como os obter?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são inadequados, quais seriam as alternativas? Adicionalmente: com base em quais estudos essas alternativas foram propostas e testadas?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são “totalitários”, quais seriam os procedimentos de combate que respeitariam as liberdades? Adicionalmente: como é que os países efetivamente totalitários estão lidando com a covid-19? Como é que os países não-totalitários estão lidando com a covid-19?

-        Se os problemas anteriores são difundidos pelos “comunistas”, quem seriam esses “comunistas”? Por quais meios? Com quais objetivos? Quais os seus valores? Onde eles reúnem-se? Desde quando o “comunismo” está em operação?

-        Se os problemas anteriores estão a serviço do “globalismo”: qual a relação do “globalismo” com o “comunismo”? Quem seriam os defensores e os promotores do “globalismo”? Desde quando o “globalismo” está em operação? Por que o “globalismo” seria a versão internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão nacional? Como o “globalismo” é capaz de ser “comunista” mas enganar todos, urbi et orbi, travestindo-se de “capitalista”? Como e por que os “verdadeiros” “capitalistas” deixam-se enganar pelo “globalismo”?

-        Se as instituições internacionais estão a serviço do “globalismo”: por que somente a OMS aparece como “globalista”? Quem são, efetivamente, os aderentes e os promotores do globalismo nas instituições internacionais, começando pela OMS mas incluindo necessariamente aí a ONU, a OEA, o FMI, o BIRD, o BID, a OTAN, a OPEP etc.?

-        Por fim, mas de maneira central: se tudo isso é apenas fachada para os “verdadeiros” poderosos: nominalmente, quem são esses “verdadeiros” poderosos? Por quais meios eles agem? Quais os seus interesses? Como se dá a relação entre os “verdadeiros” poderosos e os títeres que aparecem em público?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público, como é que os adeptos das teorias conspiracionistas chegaram a conhecê-los e a seus projetos?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público e controlam os agentes públicos como títeres, qual a efetiva relevância desses agentes públicos? Não seriam tais agentes públicos, mesmo os adeptos das teorias conspiratórias, simples títeres dos “verdadeiros” poderosos?

A investigação das hipóteses acima não é algo simples nem fácil; por isso, muitas respostas podem ser obtidas por meios indiretos (por meio de variáveis proxy), o que torna as respostas menos satisfatórias e, portanto, deveria tornar as próprias assunções conspiracionistas mais suaves. Mas o que importa notar, de qualquer maneira, é que ao transformar as assunções conspiracionistas em hipóteses a serem testadas, a completa vagueza das conspirações tem que, necessariamente, ceder lugar para descrições concretas e feitas com objetividade, em todo o universo sob análise (isto é, todos os países do mundo), a partir da aplicação coerente e sistemática de procedimentos que sejam sujeitos à avaliação pública.

Por outro lado, embora não seja tão evidente à primeira vista, o fato é que a investigação das hipóteses acima constitui apenas o passo inicial da pesquisa; o passo seguinte consiste em que se deve avaliar se a realidade criticada pelos conspiracionistas seria de fato inferior ao que eles subrepticiamente defendem em seu lugar; em outras palavras, trata-se de uma avaliação moral das críticas dos conspiracionistas. Para ficarmos em um exemplo simples, fácil e fundamental: se o “globalismo” é prejudicial, por acaso a revalorização do nacionalismo unilateralista seria benéfica? A chamada globalização, em curso acelerado desde os anos 1990, aumentou a interdependência de todos os países uns com os outros: mesmo que fosse possível reverter esse processo (o que dificilmente seria factível), será que ele beneficiaria as pessoas? Problemas transnacionais como as mudanças climáticas, as migrações internacionais, os fluxos financeiros especulativos e – é impossível não nos referirmos a isto – a pandemia podem efetivamente ser tratados isoladamente pelas centenas de países do mundo, cada qual com seus recursos limitados, com a sobreposição brutal de atividades e a total falta de coordenação? Além disso, é claro que também fica em aberto a questão sobre quem seria beneficiado pela reversão do mundo integrado à colcha de retalhos nacionalista: por certo que em um primeiro momento alguns países seriam bastante beneficiados (em particular os grandes países, isto é, as nações mais ricas), mas esse benefício com certeza declinaria com o passar do tempo e, no final das contas, o conjunto da Humanidade sairia perdendo, devido à difusão da miséria e do sofrimento. Questões e raciocínios semelhantes podem e devem ser aplicados a todas as suspeições conspiracionistas indicadas acima; os seus resultados morais devem ser igualmente desastrosos.

Estas longas reflexões servem apenas para evidenciar o quanto as teorias da conspiração são intelectual e moralmente defeituosas; na verdade, elas são verdadeiras patologias morais. Enquanto escrevemos, o mundo está literalmente em meio à pandemia de covid-19; as teorias conspiratórias não somente não fazem nada para ajudar a combater essa pandemia, como pioram ativamente o ambiente social e moral e minam, também ativamente, os esforços envidados mundo afora para resolver essa gravíssima crise.

Augusto Comte definia a palavra “positivo” como tendo sete sentidos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático; o conjunto desses atributos constitui o verdadeiro espírito positivo. Tanto as teorias da conspiração como as crises vinculadas à covid-19 (moral, sanitária, política e econômica) somente podem ser solucionadas com espírito positivo.

02 julho 2020

Réplica a S. Schwartzmann: Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

O texto abaixo é uma réplica a um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12.6.2020, de autoria do sociólogo Simon Schwartzmann. Embora, como observo abaixo, o artigo original tenha feito inúmeras sugestões extremamente maliciosas contra o Positivismo e os positivistas e, portanto, uma réplica tenha-se mostrado necessária, o jornal paulistano recusou-se a publicar essa minha réplica. Assim, publico-a no espaço que me é permitido, a despeito do inflamado discurso do conservador jornal paulistano a respeito do "pluralismo", da "democracia" e do "debate de idéias".

Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.

*   *   *


Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores – basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora – quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima (na Gazeta do Povo e no Monitor Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.

No artigo “A revolta da vacina”, publicado em O Estado de S. Paulo de 12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador da extrema direita. Vamos aos fatos, então.

Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador (com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas, escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal, racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os “progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que, todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.

Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas descartáveis.

Nada disso estava presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível). Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás, justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia” e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu artigo.

O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2) políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico, favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”, havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas; todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.

Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em 1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica, mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios. É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.