13 novembro 2017

Gazeta do Povo: "Pós-verdades liberais contra o Positivismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo de 11.11.2017. O original pode ser lido aqui.


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Pós-verdades liberais contra o Positivismo

Em tempos de “pós-verdade”, nada mais difícil de fazer que decidir o que é ou não verdade ou real. Isso se torna mais grave quando o autor de um texto afirma-se “historiador”, pois então a “pós-verdade” ganha ares de respeitabilidade, mesmo não tendo base factual. Nesse sentido, o artigo “Raízes autoritárias”, de Ney Carvalho, publicado na edição de 22 de outubro no jornal O Globo, é um monumento à pós-verdade.
A tradição liberal brasileira é extremamente particular. Ela abrange desde defensores do abolicionismo (Joaquim Nabuco) quanto de defensores da escravidão (José de Alencar, o romancista de O guarani), assim como figuras ambíguas como o legalista Rui Barbosa (que era e não era ateu, que queimou os registros da escravidão, que promoveu a primeira crise de hiperinflação do país e que assumia para si obras e ações de outros). O liberalismo brasileiro também abrange defensores do laissez-faire (Tavares Bastos, Eugênio Gudin), ex-comunistas (Carlos Lacerda) e ex-integralistas (Miguel Reale), passando por apoiadores do regime militar (Roberto Campos, Antônio Paim) e por intelectuais de qualidade como José Guilherme Merquior. Recentemente, entre as hostes liberais brasileiras podemos encontrar figuras tão – como dizer? – curiosas quanto Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre e o seu guru, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Assim, é como integrante dessa particularíssima tradição liberal brasileira que Ney Carvalho afirma em seu artigo que o autoritarismo nacional tem suas origens no Positivismo, isto é, na doutrina fundada por Augusto Comte e nas práticas dela oriundas. Para isso, o autor adota a conhecida prática de citar palavras e expressões sem os explicar adequadamente e de abusar de adjetivos e juízos de valor. Como o espaço aqui disponível é curto, vamos diretamente aos pontos.
Atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro
O autor afirma que o Positivismo por definição é autoritário, e que desde o início de sua difusão no Brasil, em meados do século 19, ele estimula o golpismo, especialmente militar. Exemplos disso seriam a ação do professor de Matemática, o coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, na Escola Militar; a Proclamação da República, em 1889; o projeto de constituição “ditatorial” da Igreja Positivista do Brasil e, por fim, a ação dos castilhistas no Rio Grande do Sul. Tudo isso o autor afirma, de maneira gratuita, tratar-se de antecedentes intelectuais e institucionais do golpismo sugerido recentemente pelo general Antônio Hamilton Mourão.
Por que essas afirmações são gratuitas? Porque são meras afirmações, sem quaisquer bases factuais. Aliás, pior que isso: são afirmações contrárias à verdade dos acontecimentos – de tal sorte que o conjunto dos comentários do “historiador” Ney Carvalho enquadra-se perfeitamente nas “desinformações” ou nas atuais “pós-verdades”. A isso se deve acrescentar o fato de que, embora tenha tido enorme importância social, política e intelectual entre o fim do Império e a Primeira República (ou seja, entre 1870 e 1930), atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro: nesses termos, basta assumir-se um ar doutoral e fazer afirmações bombásticas para que se crie a impressão de que é sabedor das coisas e possa-se dizer o que se quiser sobre temas menos conhecidos nos dias atuais, como é o caso do Positivismo.
Para perceber os erros e os problemas do que Ney Carvalho afirma, basta ler os artigos da Igreja Positivista do Brasil (situada no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória) ou, caso leia-se em francês, as obras de Augusto Comte. Como, de qualquer maneira, esses documentos são um pouco difíceis de achar atualmente, é possível procurar na internet em repositórios eletrônicos de textos, como o portal Archive.org ou a página do Senado Federal. Uma outra possibilidade é consultar o livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos, de minha autoria, em que apresento as características desses documentos e examino em profundidade diversos de seus argumentos.
De qualquer maneira, as publicações da Igreja Positivista e as obras de Augusto Comte são todas muito claras no sentido de que a ação política deve ser sempre pacífica, com amplas liberdades de pensamento e de expressão claramente garantidas e com as possibilidades permanentes de crítica pública ao governo e de sugestão às propostas governamentais, da parte de todos os cidadãos. Isso, aliás, é o que se chama atualmente de “república”, “democracia” e “Estado de Direito”. Os gaúchos seguidores de Júlio de Castilhos atuavam nesse mesmo sentido.
Embora afirme-se historiador, Ney Carvalho deixa de lado importantes pesquisas historiográficas que examinam precisamente as relações entre os positivistas e as escolas militares, em particular no caso de Benjamin Constant. O mineiro José Murilo de Carvalho há muito tempo indicou, no célebre artigo “O poder desestabilizador”, que os ensinamentos de Benjamin Constant para a juventude militar iam na direção da “civilização”, isto é, de tornar cada vez mais civil e menos militar o comportamento de seus alunos. Esse aspecto é central, pois foi justamente em reação explícita à orientação de Benjamin Constant que se constituíram os “jovens turcos” brasileiros. Esses militares, integrantes de uma geração posterior à formada por Benjamin Constant, a partir da década de 1910 procuraram adotar as doutrinas militares da França e da Alemanha e, com isso, mudaram os rumos do ensino militar, no sentido da “profissionalização” castrense. Essa “profissionalização” era politicamente ambígua: propunha que os militares deveriam ser apenas militares, mas ao mesmo tempo arrogava-se o papel institucional de fiscal do Estado, resultando em um ativismo político: o maior exemplo disso foi o general Góes Monteiro, inimigo declarado do Positivismo e da orientação de Benjamin Constant, além de justamente ter sido o articulador militar da Revolução de 1930. Aliás, Góes Monteiro também foi o inspirador de outro militar golpista, o general Olympio Mourão Filho, o realizador do golpe de 1964 – este, sim, o predecessor do atual general Antônio Hamilton Mourão.
A referência à proposta de constituição “ditatorial” exige comentários específicos. Como há muito tempo lembrava o social-liberal italiano Norberto Bobbio, ao contrário do que ocorre nos dias atuais, em que após a Revolução Russa e o nazismo a “ditadura” é sinônima de autoritarismo, no século 19 essa palavra era entendida com um sentido positivo, de modo geral como governo ativo. Dessa forma, seguindo em linhas gerais os hábitos linguísticos de sua época, Augusto Comte – o fundador do Positivismo, da sociologia e da história das ciências – adotava a palavra ditadura, com a particularidade de que a definia como sendo qualquer governo: nesses termos, Comte distingue ditaduras tirânicas, despóticas, retrógradas, conservadoras, assim como ditaduras liberais, progressistas, positivas. Uma longa comprovação disso está disponível na minha tese de doutorado, intitulada O momento comtiano, defendida em 2010.
A Igreja Positivista do Brasil e, de modo geral, os positivistas brasileiros, ao adotarem o linguajar proposto por Comte, adotavam também essas referências filosóficas; a constituição “ditatorial” por eles proposta consistia não em um regime autoritário, mas, bem ao contrário, em um regime de amplas liberdades, em que o governo limitar-se-ia a manter a ordem pública, consagrando a mais estrita separação entre igreja e Estado, sem se intrometer em questões morais, religiosas e “ideológicas”. Atribuir a esse projeto o caráter de autoritário com base em um problema semântico é, na melhor das hipóteses, desconhecer a história das ideias políticas; na pior das hipóteses, é profunda má-fé.
Mas, por outro lado, ao atribuir aos positivistas o autoritarismo nacional, Ney Carvalho obscurece o efetivo papel que outros grupos sociais, políticos e intelectuais desempenharam de fato para a constituição de uma tradição e de mentalidades liberticidas no país. Quais seriam esses grupos? Como é fácil de perceber a partir da década de 1930, os católicos, os marxistas e, também, os liberais. Durante toda a Primeira República, a Igreja Católica desejava retomar os privilégios de que gozava durante o Império; após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantiveram um regime de apoio mútuo que lembrava muito a estreita colaboração mantida, ao mesmo tempo, entre Mussolini e Pio XI: isso apenas se alterou (mas não muito) após 1966. Sobre o papel liberticida desempenhado pelos marxistas, não é preciso discorrer muito: basta pensar no golpismo estimulado por Luís Carlos Prestes, com o apoio de sua primeira esposa, a agente soviética de origem alemã Olga Benário Prestes. Por fim, embora tenha havido poucos liberais ao longo da Era Vargas, o fato é que houve muitos integralistas, muitos dos quais, após 1946, conveniente e rapidamente se transformaram em liberais.
Em suma, ao difundir “pós-verdades”, o liberal Ney Carvalho atribui ao Positivismo as origens e a estrutura da mentalidade autoritária brasileira; com isso, ele ao mesmo tempo contribui para manter em silêncio uma poderosa filosofia social de liberdade e para desviar a atenção das fontes reais do autoritarismo brasileiro. Talvez ele faça isso para tentar justificar a existência de alguns integrantes recentes, mas estranhos, do liberalismo nacional, como é Jair Bolsonaro: entretanto, como observamos, nesse caso, sua origem liga-se aos generais Mourão (Filho) e Góes Monteiro, não ao Positivismo e a Benjamin Constant.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

07 novembro 2017

Casa de Benjamin Constant: resenha do livro "Laicidade na I República"

Há cerca de um ano, o Museu Casa de Benjamin Constant publicou uma pequena resenha do meu livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos (Curitiba: Appris, 2016), da autoria de Murilo Haither, aproveitando a efemérida da Proclamação da República.

Aproveito que estamos prestes a comemorar novamente essa importante data e reproduzo abaixo a resenha. O original pode ser lido aqui.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Semana da República 2016: 15 a 19 de novembro

Estado e Igreja: um divórcio republicano 
Por Murilo Haither

Mais uma vez, como acontece anualmente, inicia-se mais uma Semana da República. Já vivemos, por 126 vezes, estes dias de efemérides. Não é só o 15 de novembro, dia da Proclamação da República que, em 1889, já era pensada e esperada por alguns. Foram criados também símbolos, como a Bandeira Nacional, celebrada no dia 19, as Armas Nacionais, o Hino Nacional e o Selo Nacional.

A Bandeira Nacional, um dos símbolos da República - versão em arte contemporânea.
Os Positivistas talvez tenham sido o grupo que mais prezou pelos cultos cívicos da República. Os arquivos de Benjamin Constant e de sua família estão recheados de cartas, telegramas e bilhetes que, a cada 15 de novembro, eram enviados parabenizando Benjamin por sua atuação em 1889. Entretanto, para que esses símbolos fossem incorporados à vida dos novos cidadãos, não bastava serem celebrados no círculo fechado dos positivistas ou republicanos declarados. Fez-se necessário criar verdadeiros movimentos cívicos e populares e símbolo algum parece ter recebido maior ênfase que a Bandeira Nacional. Entretanto, a República abriu as portas para algumas discussões que, nas tradições e celebrações, foram deixadas em segundo plano, mas que hoje se mostram centrais e mesmo urgentes. Na 127ª Semana da República, daremos destaque à separação entre a Igreja e o Estado, conhecida também como a laicidade da República. O tema foi tratado pelo sociólogo Gustavo Biscaia de Lacerda, professor da Universidade Federal do Paraná, da perspectiva da ortodoxia positivista, e aproveitamos a semana da República e o recente lançamento de seu livro, Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos, para oferecer uma resenha aos nossos leitores.

O autor analisa parte da teoria política do filósofo francês, Augusto Comte, desenvolvida na obra Sistema de política positivista (1851 – 1854). Neste conjunto de livros, o elaborador do Positivismo analisa os cinco aspectos característicos, em sua concepção, de todas as sociedades: família, propriedade, linguagem, governo e religião. Para sua pesquisa, Gustavo Lacerda se detém apenas nos dois últimos termos, governo e religião – essenciais para o que Comte identifica como o processo necessário para o desenvolvimento civilizatório: a separação entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal. O autor francês, segundo Lacerda, identifica o Poder Espiritual como permanente, teórico, geral, subjetivo e atemporal. Por outro lado, o Poder Temporal seria constituído por uma transitoriedade, praticidade, localidade e especialidade. Nesse sentido, podemos correlacionar o último Poder com as instituições que regulamentam e dão alicerce para a sociedade – como o Congresso ou Tribunais, por exemplo -, e o primeiro com a mentalidade – cabe notar que o Poder Espiritual não é limitado apenas ao Catolicismo, Protestantismo ou demais religiões, mas também à Metafísica, abrangendo, portanto, outras ideologias políticas. Ainda aqui, Lacerda reconhece que ambos os poderes sempre foram distintos – lembra-se das divisões na sociedade feudal entre os guerreiros e sacerdotes – e que, portanto, quando concentrados compõem um “corpo doutrinário que faz valer-se pela violência física” (p. 42). Deste modo, a separação do Poder Espiritual e do Poder Temporal constitui um processo de transição para a sociocracia de Augusto Comte, ou seja, transição para o Estado de tipo ideal, passando, portanto, de um absolutismo ideológico para um relativismo ideológico, como coloca Lacerda. Ainda em Comte, Lacerda observa a necessidade de não se ocorrer, na sociedade, um sistema hipócrita, onde uma religião oficial do Estado obriga os políticos e demais cidadãos a professarem uma determinada fé, sendo que “(...) o Positivismo não deve constituir um monopólio espiritual opressivo” e, portanto, “... não busca extinguir as crenças teológicas” (p. 57).

A capa do recém lançado livro de Gustavo Biscaia de Lacerda:
"Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos"

Dois pontos abordados pelo autor, que nos ajudam a compreender a atuação dos positivistas na transição do Império para a Primeira República, bem como a complexidade dos conflitos ligados à questão da laicidade no Brasil, são o processo de secularização dos cemitérios e a questão dos símbolos religiosos nos estabelecimentos do Estado.

Até então tomado como espaços de domínio da Igreja Católica, os cemitérios foram tema de debate entre os republicanos e positivistas já na década de 1870. Os pontos levantados questionavam o privilégio dado aos católicos em detrimento de adeptos de outras religiões. Também questionava o privilégio dado pela Igreja Católica – única administradora oficial de cemitérios públicos na época - tornando os cemitérios civis como uma solução que pudesse dar respeito à pluralidade religiosa do país, ainda que os católicos fossem a maioria da população.

O filósofo francês, Augusto Comte.

O segundo aspecto tomado por Lacerda – sobre os símbolos religiosos em estabelecimentos do Estado - nos coloca ante situações apontadas por Teixeira Mendes, então vice-diretor da Igreja Positivista do Brasil, relacionadas ao uso de símbolos religiosos em instituições do Estado republicano. Um dos casos abordados por Teixeira Mendes e que, aos nossos olhos, talvez possa nos dar um panorama da disputa pela laicidade do espaço público, é o caso de Domingos Eleodoro Pereira que, em 25 de março de 1892, arrancou um crucifixo que estava pendurado em um Tribunal de Júri na cidade do Rio de Janeiro.

Estes dois aspectos trabalhados nos folhetos da Igreja Positivista e analisados na obra de Lacerda nos mostram que a laicidade fazia parte de um projeto positivista que, ao garantir a liberdade religiosa somada a outros fatores, pudesse criar alicerces para o Estado ideal, ou sociocracia, na concepção comtiana, que garantiria a pluralidade religiosa e ideológica, alimentada pela fraternidade e altruísmo entre os homens. Tal Estado impediria abusos que resultariam da combinação entre o Poder Espiritual e Poder Temporal

O diretor da Igreja Positivista, Raimundo Teixeira Mendes.
Nota-se, ainda aqui, a importância dada pelos positivistas à memória dos mortos, pela valorização dos cemitérios como espaços de culto cívico, onde as pessoas pudessem lembrar-se dos feitos de outros cidadãos e relembrar os ideais defendidos pelos mesmos, sejam católicos, protestantes, judeus, ou de outras religiões. Mostram-nos também que o processo de laicização da República, mesmo com a Constituição de 1891 garantindo a separação entre Igreja e Estado, não foi realizado por completo e de imediato, sofrendo conflitos entre diversos setores da sociedade. Lacerda ressalta esse último ponto como um processo que, desde a Proclamação da República, sofreu avanços e retrocessos, encontrando-se ainda incompleto: observa que, por exemplo, a primeira Constituição republicana retirou o Ensino Religioso do currículo escolar público, sendo retomado na Constituição de 1934. Isso nos mostra que o Estado é um espaço de disputa entre os agentes da sociedade, onde, se em dado momento, algumas pautas avançam em detrimento das demais, em outro momento podemos observar a aspiração de outras demandas e o esforço para a retomada de velhas formas de organização social.

Gustavo Lacerda, em seu livro, permite-nos refletir sobre os problemas que enfrentamos na Primeira República referentes à Laicidade. Mas, em tempos em que vemos o avanço religioso sobre as instituições do Estado Republicano, também nos dá ferramentas para podermos pensar as fronteiras dessa questão tão cara para a sociedade ocidental em nossa contemporaneidade.

20 outubro 2017

Livro à venda: "Pensamento social e político brasileiro"



Finalmente está disponível para venda o livro Pensamento social e político brasileiro

Publicado pela Editora Intersaberes, ele pode ser comprado aqui.


Essa obra destina-se ao público em geral, a estudantes de graduação, de especialização, de mestrado e de doutorado das mais variadas áreas do conhecimento!
É uma obra que apresenta os conceitos básicos, as classificações mais usuais e, acima de tudo, alguns dos principais autores que refletiram sobre a realidade sócio-política do Brasil. Em um total de 17 autores resenhados, eles estão organizados em três grandes categorias: "Estado demiurgo", "Sociedade estruturada" e "Modelos intermediários".
Além das discussões históricas e teóricas, cada capítulo tem uma sessão didático-pedagógica e extensas indicações de leitura adicional.
Para ter-se uma idéia do conteúdo - e da qualidade! - do livro, o seu sumário é este:

Apresentação

Como aproveitar ao máximo este livro

Introdução

1 Problemas de objeto e método

            1.1 Delimitando o pensamento político brasileiro

                        1.1.1 Pensamento político versus pensamento social

                        1.1.2 Ciência política versus teoria política

                        1.1.3 Universalismo versus nacionalismo teórico-metodológico

                        1.1.4 Autores-atores e atuação acadêmica

                        1.1.5 Em suma: por que pensamento político brasileiro e não teoria política?

            1.2 Possibilidades metodológicas

            1.3 Algumas oposições sociopolíticas: famílias teóricas

                        1.3.1 Luiz Werneck Vianna: americanismo-iberismo

                        1.3.2 Christian Lynch: saquaremas-luzias

                        1.3.3 Oliveira Vianna: idealismo utópico/idealismo orgânico

                        1.3.4 Gildo Marçal Brandão: linhagens do pensamento político brasileiro

                        1.3.5 Quadro-síntese: comparação entre as propostas de famílias teóricas

            1.4 Por que estudar o pensamento político brasileiro?

2 O Estado demiurgo versus a sociedade desarticulada ou sequestrada

            2.1 Estado demiurgo

            2.2 Possibilidade de autoritarismo instrumental

            2.3 Aplicando as categorias prévias ao Estado demiurgo

            2.4 Visconde de Uruguai

            2.5 José de Alencar

            2.6 Alberto Torres

            2.7 Oliveira Vianna

            2.8 Francisco Campos

            2.9 Jessé de Souza

            2.10 Quadro-síntese: ideias de autores do modelo de Estado demiurgo

3 O Estado sufocando uma sociedade articulada

            3.1 Sociedade estruturada e Estado sufocante

            3.2 Aplicando as categorias prévias à sociedade estruturada

            3.3 Tavares Bastos

            3.4 Joaquim Nabuco

            3.5 Rui Barbosa

            3.6 Raimundo Faoro

            3.7 Florestan Fernandes

            3.8 Simon Schwartzman

            3.9 Quadro-síntese: ideias de autores do modelo de sociedade estruturada

4 Abordagens intermediárias ou diversas: Estado e sociedade como polos ativos

            4.1 Estado e sociedade como polos ativos

            4.2 Aplicando as categorias prévias ao modelo da complementaridade

            4.3 José Bonifácio

            4.4 Teixeira Mendes

            4.5 Caio Prado Júnior

            4.6 Sérgio Buarque de Holanda

            4.7 Bresser Pereira

            4.8 Quadro-síntese: ideias de autores do modelo de complementaridade

Para concluir...

Referências

Bibliografia comentada

Lista de abreviaturas

Respostas

Sobre o autor

09 outubro 2017

Gazeta do Povo: "Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada"

A Gazeta do Povo publicou no dia 8 de outubro um artigo de minha autoria sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Em minha opinião, essa decisão é catastrófica - aliás, daí a clareza com que exponho idéias que, geralmente e de outra maneira, apresentaria de maneira mais branda.

Felizmente, como a Gazeta do Povo tornou-se um jornal principalmente eletrônico, agora é possível escrever textos um pouco mais longos, em que se pode expor com um pouco mais de calma os argumentos e as questões de interesse.

O original encontra-se disponível aqui.

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Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada

O ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas

Gustavo Biscaia de Lacerda  
[08/10/2017]  [10h00]

A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).

Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional: no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010, essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.

Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?

A base para essa polêmica está na Constituição Federal de 1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de “Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da República (artigo 13).

E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.

Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas, como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.

Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião) serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas, organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos, como ocorre no Rio de Janeiro.

Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola, pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é (nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos os dias nos meios de comunicação.

Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião. Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.

Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial, de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado” de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento, casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar; mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.

O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país

 Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”. Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual intervenção militar na República.

Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública” consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais, universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o “governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”, na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder, para imporem seus valores.

Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do “governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de 1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.

Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores possíveis: é um completo desastre que se anuncia.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

07 outubro 2017

Foto de Miguel Lemos

Reproduzimos abaixo uma foto de Miguel Lemos (1854-1917), fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil e seu primeiro Diretor.

Infelizmente, não temos informação de quando é essa foto, nem por quem ela foi tirada. O original foi-me gentilmente cedido pelo meu amigo Hernani Gomes da Costa.



29 setembro 2017

Feriados nacionais na I República - inspiração positivista

A laicidade do Estado, a valorização dos seres humanos, a inclusão social, as concepções universalistas de sociedade são princípios importantes para que se realize no Brasil (como, aliás, em todos os países) os ideais de liberdade, fraternidade e eqüidade. 

Entretanto, a despeito disso, nos últimos vários anos esses princípios têm sofrido ataques reiterados dos mais diversos lados, a partir de intelectuais e grupos sociais que, embora digam-se "progressistas", são na verdade retrógrados, particularistas, autoritários e/ou excludentes.

Face a isso, vale a pena reproduzir abaixo o texto do Decreto n. 155-B, de 14 de janeiro de 1890, que instituiu os feriados nacionais. Como é possível perceber, são todos feriados de caráter cívico e humanista, festejando seja a união dos povos, seja a vida coletiva brasileira.

Convém notar que esse calendário de comemorações foi sugerido pelo vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes, e levado à consideração do governo provisório da República pelo Ministro da Agricultura, Demétrio Ribeiro. Aliás, o mesmo procedimento foi adotado a respeito da lei de separação entre igreja e Estado, que se converteu no Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890.

Desde pelo menos 1930, entretanto, esse calendário de festividades vem sendo atacado, modificado - e pervertido e mutilado. Não por acaso, em 1930 assumiu o poder Getúlio Vargas, que tinha como um de seus apoios a Igreja Católica e diversos grupos que, depois, aproximar-se-iam do integralismo. Da mesma forma, há cerca de duas décadas o racismo oficial tem-se afirmado de diversas maneiras, também ganhando espaço na forma de feriados (ainda que, felizmente, sem haver - ainda - uma comemoração nacional do racismo).

Mantenho a grafia da época. Obtive o texto da coleção de leis mantida na internet pela Casa Civil da Presidência da República, mais precisamente aqui.

*   *   *


O GOVERNO PROVISORIO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL, considerando:

que o regimen republicano basêa-se no profundo sentimento da fraternidade universal;

que esse sentimento não se póde desenvolver convenientemente sem um systema de festas publicas destinadas a commemorar a continuidade e a solidariedade de todas as gerações humanas;

que cada patria deve instituir taes festas, segundo os laços especiaes que prendem os seus destinos aos destinos de todos os povos;

DECRETA:

São considerados dias de festa nacional:

1 de janeiro, consagrado á commemoração da fraternidade universal;

21 de abril, consagrada á commemoração dos precursores da Independencia Brazileira, resumidos em Tiradentes;

3 de maio, consagrado á commemoração da descoberta do Brazil;

13 de maio, consagrado á commemoração da fraternidade dos Brazileiros;

14 de julho, consagrado á commemoração da Republica, da Liberdade e da Independencia dos povos americanos;

7 de setembro, consagrado á commemoração da Independencia do Brazil;

12 de outubro, consagrado á commemoração da descoberta da America;

2 de novembro, consagrado á commemoração geral dos mortos;

15 de novembro, consagrado á commemoração da Patria Brasileira.

Sala das sessões do Governo Provisorio, 14 de janeiro de 1890, 2º da Republica.

- Manoel Deodoro da Fonseca.
- Ruy Barbosa.
- Q. Bocayuva.
- Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
- Eduardo Wanderkolk.
- Aristides da Silveira Lobo.
- M. Ferraz de Campos Salles.
- Demetrio Nunes Ribeiro.

04 setembro 2017

O Positivismo não é um otimismo providencialista

Na longa passagem abaixo Augusto Comte afirma com todas as letras que o Positivismo não é um otimismo providencialista; dito de outra maneira, o Positivismo considera que postular a naturalidade da ordem não é o mesmo que dizer que essa ordem é perfeita e impassível de alterações (em termos técnicos e morais). Isso se aplica à ordem natural e - Comte di-lo explicitamente - aplica-se ainda mais à ordem social: as sociedades, por serem extremamente complexas, são também mais imperfeitas. A maior complexidade aumenta também a possibilidade de modificação - o que, para Comte, está longe de ser uma compensação por suas imperfeições.

Logo após a citação textual há a tradução, de minha autoria.

*   *   *

« Une semblable philosophie pourrait, sans doute, quelquefois conduire momentanément à un dangereux optimisme, comme j’en ai déjà franchement averti; mais cette aberration passagère ne pourrait avoir lieu que chez des esprits peu scientifiques, qu’un défaut naturel de précision, aggravé par une vicieuse éducation intellectuelle, doit rendre radicalement impropres à cultiver, avec aucun succès réel, une science aussi profondément difficile [la Sociologie]. Toute intelligence convenablement organisée et rationnellement préparée, digne, en un mot, d’une telle destination, saura bien éviter scrupuleusement de jamais confondre, en ce genre de phénomènes, pas plus qu’en aucun autre, cette notion scientifique d’un ordre spontané avec l’apologie systématique de tout ordre existant. Envers des phénomènes quelconques, la philosophie positive, d’après son principe fondamental des conditions d’existence, enseigne toujours, comme je l’ai souvent expliqué dans les volumes précédents [du Système de philosophie positive, t. I-III], que, dans leurs relations à l’homme, il s’établit spontanément, d’après leurs lois naturelles, un certain ordre nécessaire; mais sans jamais prétendre que cet ordre ne présente point, sous cet aspect, de graves et nombreux inconvénients, modifiables, à un certain degré, par une sage intervention humaine. Plus les phénomènes se compliquent en se spécialisant davantage, plus ces imperfections s’aggravent et se multiplient inévitablement; en sorte que les phénomènes biologiques sont surtout inférieurs, à cet égard, aux phénomènes de la nature inorganique. En vertu de leur complication supérieure, les phénomènes sociaux doivent donc être nécessairement les plus subordonnés de tous, en même temps qu’ils en sont aussi les plus modifiables, ce qui est loin de faire compensation. Si donc on considère, en général, la notion des lois naturelles, elle entraîne aussitôt l’idée correspondante d’un certain ordre spontané, toujours liée à toute conception d’harmonie quelconque. Mais cette conséquence n’est pas plus absolue que le principe d’où elle dérive. En le complétant par l’indispensable considération de la complication croissante des phénomènes, suivant la hiérarchie scientifique fondamentale établie au début de ce Traité, on complète aussi la conception de cet ordre, d’après l’accroissement simultané de son inévitable imperfection. Tel est, à cet égard, le véritable esprit caractéristique de la philosophie positive, sommairement rappelé ici dans son ensemble. On voit aisément combien il diffère profondément de cette tendance systématique à l’optimisme, dont l’origine est évidemment théologique, puisque l’hypothèse d’une direction providentielle, continuellement active dans la marche générale des événements, peut seule naturellement conduire à l’idée de la perfection nécessaire de leur accomplissement graduel. Il faut cependant reconnaître que, dans le développement fondamental de la raison humaine, la conception positive est primitivement dérivée du dogme théologique lui-même, dont elle constitue la régénération finale, comme pourrait le confirmer une exacte analyse historique: mais c’est essentiellement de la même manière que le principe des conditions d’existence découle originairement de l’hypothèse des causes finales, et que la notion philosophique des lois mathématiques était antérieurement issue du mysticisme métaphysique sur la puissance des nombres; l’analogie est pleinement identique en tous ces cas divers. Elle tient toujours à cette tendance nécessaire de notre intelligence à conserver indéfiniment ses moyens généraux de raisonnement, à quelque âge qu’ils aient été découverts, en les appropriant ensuite graduellement à ses nouveaux modes d’activité, d’après certaines transformations convenables, qui conservent à ces précieuses inspirations primitives du génie humain toute leur valeur essentielle, en l’augmentant même radicalement par une indispensable épuration, comme je l’ai indiqué, il y a longtemps, dans l’écrit [Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société, de 1822] auquel j’ai déjà fait plusieurs allusions depuis le commencement de ce volume. Mais, en un cas quelconque, la moindre sagacité philosophique suffira pour faire aussitôt sentir les différences caractéristiques qui désormais séparent profondément le principe nouveau [i. e., l’esprit positive et relative] du dogme ancien [i. e., l’esprit téologique-métaphysique et absolut]. Au cas spécial que nous considérons ici, il est très clair que la philosophie positive, en indiquant la conformité spontanée de chaque régime politique effectif à la civilisation correspondante, afin que ce régime ait pu s’établir et surtout durer, enseigne aussi, d’une manière non moins nécessaire, que cet ordre naturel doit être le plus souvent fort imparfait, par suite de l’extrême complication des phénomènes. Bien loin donc de repousser, en ce genre, l’intervention humaine, une telle philosophie en provoque, au contraire, éminemment la sage et active application, à un plus haut degré que pour tous les autres phénomènes possibles, en représentant directement les phénomènes sociaux comme étant, par leur nature, à la fois les plus modifiables de tous, et ceux qui ont le plus besoin d’être utilement modifiés d’après les rationnelles indications de la science. Elle se réserve seulement la direction intellectuelle de cette indispensable intervention, dont elle circonscrit d’abord les limites nécessaires, soit générales, soit spéciales: sans en exagérer l’efficacité réelle, elle n’en interdit jamais l’usage que dans les seuls cas où il ne pourrait certainement constituer qu’une inutile consommation de forces suivant la même économie fondamentale qu’envers tous les autres phénomènes naturels, et surtout indépendamment de tout vain prestige quelconque, soit divin, soit humain. » 

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)


“Uma semelhante filosofia poderia, sem dúvida, algumas vezes conduzir momentaneamente a um perigoso otimismo, como já francamente adverti; mas essa aberração passageira não poderia ter lugar senão entre espíritos pouco científicos, que uma falha natural de precisão, agravada por uma viciosa educação intelectual, deve tornar radicalmente impróprios para cultivar, com qualquer sucesso real, uma ciência tão profundamente difícil [a Sociologia]. Toda inteligência convenientemente organizada e racionalmente preparada, digna, em uma palavra, de uma tal destinação, saberá bem evitar escrupulosamente não confundir nunca, nesse gênero de fenômenos, não menos que em qualquer outro, essa noção científica de uma ordem espontânea com a apologia sistemática de toda ordem existente. A respeito de fenômenos quaisquer, a filosofia positiva, de acordo com seu princípio fundamental das condições de existência, ensina sempre, como com freqüência expliquei nos volumes precedentes [do Sistema de filosofia positiva, tomos I-III], que, em suas relações com o homem, estabelece-se espontaneamente, de acordo com suas próprias leis naturais, uma certa ordem necessária; mas sem nunca pretender que essa ordem não apresente, sob esse aspecto, graves e numerosos inconvenientes, modificáveis, em um certo grau, por uma sábia intervenção humana. Quanto mais os fenômenos complicam-se ao especializarem mais, mais essas imperfeições agravam-se e multiplicam-se inevitavelmente; de tal sorte que os fenômenos biológicos são sobretudo inferiores, a esse respeito, aos fenômenos da natureza inorgânica[1]. Em virtude de sua complicação superior, os fenômenos sociais devem então ser necessariamente os mais subordinados de todos, ao mesmo tempo que eles são também os mais modificáveis, o que está longe de ser uma compensação. Se, então, considera-se em geral a noção das leis naturais, ela implica também a idéia correspondente de uma certa ordem espontânea, sempre ligada a toda concepção de harmonia qualquer. Mas essa conseqüência não é mais absoluta que o princípio de que ela deriva. Ao completá-la pela indispensável consideração da complicação crescente dos fenômenos, seguindo a hierarquia científica fundamental estabelecida no início deste Tratado, completa-se também a concepção dessa ordem, de acordo com o crescimento simultâneo de sua inevitável imperfeição. Tal é, a esse respeito, o verdadeiro espírito característico da filosofia positiva, sumariamente evocado aqui em seu conjunto. Vê-se facilmente quanto ele difere profundamente dessa tendência sistemática ao otimismo, cuja origem é evidentemente teológica, pois somente a hipótese de uma direção providencial, continuamente ativa na marcha geral dos eventos, pode naturalmente conduzir à idéia da perfeição necessária de sua realização gradual. É necessário, todavia, reconhecer que, no desenvolvimento fundamental da razão humana, a concepção positiva é primitivamente derivada do próprio dogma teológico, de que ele constitui a regeneração final, como poderia confirmar uma exata análise histórica: mas é essencialmente da mesma forma que o princípio das condições de existência resulta originariamente da hipótese das causas finais e que a noção filosófica das leis matemáticas era anteriormente oriunda do misticismo metafísico sobre o poder dos números; a analogia é plenamente idêntica em todos esses casos diversos. Ela tem sempre essa tendência necessária de nossa inteligência a conservar indefinidamente seus meios gerais de raciocínio, em qualquer idade que eles tenham sido descobertos, ao apropriá-los em seguida gradualmente de seus novos modos de atividade, seguindo certas transformações convenientes, que conservam dessas preciosas inspirações primitivas do gênio humano todo o seu valor essencial, ao aumentá-lo mesmo radicalmente por uma indispensável depuração, como já indiquei, faz tempo, no escrito [Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822] ao qual já fiz diversas alusões desde o começo deste volume. Mas, em um caso qualquer, a menor sagacidade filosófica bastará para fazer logo sentir as diferenças características que doravante separam profundamente o princípio novo [o espírito positivo, relativo e histórico] do dogma antigo [o espírito teológico-metafísico e absoluto]. No caso especial que consideramos aqui, é bastante claro que a filosofia positiva, ao indicar a conformidade espontânea de cada regime político efetivo com a civilização correspondente, a fim de que esse regime possa ter-se estabelecido e sobretudo durado, ensina também de uma forma não menos necessária, que essa ordem natural deve ser o mais freqüentemente muito imperfeita, em decorrência da extrema complicação dos fenômenos. Bem longe, então, de repelir, nesse gênero, a intervenção humana, uma tal filosofia provoca, ao contrário, eminentemente a sábia e ativa aplicação, em um mais alto grau que para todos os outros fenômenos possíveis, ao representar diretamente os fenômenos sociais como estando, por sua natureza, ao mesmo tempo como os mais modificáveis de todos e aqueles que têm mais necessidade de serem utilmente modificados de acordo com as racionais indicações da ciência. Ela reserva-se unicamente a direção intelectual dessa indispensável intervenção, de que ela circunscreve inicialmente os limites necessários, seja gerais, seja especiais: sem exagerar a sua eficácia real, ela não interdita nunca o uso senão nos únicos casos em que não poderia certamente constituir senão um inútil consumo de forças de acordo com a mesma economia fundamental que a respeito de todos os outros fenômenos, sobretudo independentemente de todo vão prestígio qualquer, seja divino, seja humano”.

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)



[1] A “complicação superior” e as idéias próximas a ela referem-se à escala das ciências abstratas estabelecidas por Augusto Comte desde o início de sua carreira. Essa escala é a seguinte: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Da Matemática à Moral há um aumento progressivo de complexidade, uma diminuição progressiva de generalidade objetiva e um aumento progressivo de generalidade subjetiva. Entre 1822 e 1851 Augusto Comte parava a escala na Sociologia, que tinha, portanto, apenas seis degraus; a partir de 1852, no v. II do Sistema de política positiva, Comte acrescentou a Moral (que, por sua vez, dividia-se em duas ciências, a Moral Teórica e a Moral Prática), de tal sorte que a escala enciclopédica passou a ter sete degraus.