08 fevereiro 2016

Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Vários anos atrás - em 2005, para ser mais preciso -, após ter estudado as relações ocorridas entre Brasil e Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX e, portanto, após ter estudado a atuação internacional dos EUA, decidi redigir um pequeno texto sobre as percepções havidas sobre esse país.

Minhas reflexões foram publicadas na extinta revista eletrônica Autor (São Paulo, v. 5, n. 50, 2005). Como foi escrito há mais de dez anos, é natural que uma coisa ou outra fosse alterada, caso escrito hoje (fevereiro de 2016), tanto em termos de estilo quanto de conteúdo. 

Ainda assim, ele mantém-se atual em sua maior parte, se não em sua totalidade; dessa forma, creio que vale a pena publicar novamente estes meus comentários, que trago a público neste blogue sem alterações (exceto no que se refere ao meu currículo acadêmico, presente na nota n. 1, abaixo).

*   *   *


Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

I. INTRODUÇÃO

Falar sobre os Estados Unidos atualmente é despertar paixões. Na verdade, desde há um bom tempo – talvez desde finais do século XIX, no caso do Brasil – esse tema é apaixonante e o debate, na medida em que há algum, é apaixonado. Há assuntos que provocam vivas reações de maneira “unívoca”: as pesquisas com células-tronco, nos dias atuais, seriam um exemplo disso, pois a clivagem entre favoráveis e contrários baseia-se em questões de pesquisa médica (favoráveis) ou em um certo respeito à vida (contrários); além disso, as discussões não são passíveis de outras posições que não as favoráveis e as contrárias.

Relativamente aos Estados Unidos, a situação é diversa, pois as clivagens são inúmeras, assim como as posições e mesmo os graus em que cada posição é possível. Alguém pode radicalmente ser favorável a eles porque os considera a terra da liberdade ou o bastião do anticomunismo ou a terra do individualismo ou mesmo porque o idealismo (e as versões religiosas originárias desse traço de comportamento, o moralismo[2] e o messianismo) sempre teve grande importância em sua vida, interna ou externa. Quem é contrário a esse país pode sê-lo pelos mesmos motivos porque alguém lhe é favorável, isto é, porque lá há a prevalência do material no lugar do espiritual, porque lá se é individualista em detrimento do coletivismo ou de um “socialismo” ou porque lá a religião assume importância exagerada na vida social e política. É claro que há quem os condene por serem a única superpotência mundial, adotando as condutas adequadas à manutenção de tal condição, ou por adotarem um comportamento mais prepotente, desconsiderando fóruns multilaterais em função da certeza própria aos iluminados. Por fim, há a possibilidade de fórmulas intermediárias, em termos substantivos (“isto é bom, aquilo é ruim”) e em termos metodológicos (“prefiro registrar os fatos”). Os métodos analíticos também variam: há quem prefira uma abordagem estruturalista, outros preferem o materialismo, outros são mais simpáticos a um certo “conjunturalismo” e assim por diante.

O que comentei é o óbvio, mais ou menos sabido por todos. Todavia, em diversas ocasiões é necessário dizer-se o óbvio para poder-se ir adiante – e o “ir adiante” no presente caso significa apresentar algumas questões relacionadas aos Estados Unidos com um mínimo de independência, sem constrangimentos político-“ideológicos”. Ou melhor: não tanto ao país em si como em relação à percepção que dele vários têm.

Os Estados Unidos despertam paixões. As paixões, em si, não nos interessam nem são propriamente problemáticas: todos sabemos como a política (e a própria vida) é feita de paixões, algumas maiores, outras menores. O que é problemático no presente caso é que as paixões relativas aos Estados Unidos, muitas justificadas, outras nem tanto, freqüentemente atrapalham análises minimamente cuidadosas de sua posição no mundo, seja a favor, seja contra. Na verdade, indo diretamente ao ponto, o fato é que a quantidade de bobagens que se repete a respeito dos Estados Unidos é enorme e, na maioria das vezes, ao invés de buscar-se um conhecimento positivo a respeito da realidade desse país, repete-se esse pseudoconhecimento, considerado correto porque legitimado pelos preconceitos políticos correntes, de direita ou, mais facilmente, de esquerda.

II. DOIS AUTORES FALAM DOS EUA: ARON E HOBSBAWM

Uma comparação entre abordagens pode ilustrar com clareza meu ponto. Por motivos específicos li recentemente dois livros de história do século XX, um escrito no já distante ano de 1973, de Raymond Aron (1975): A república imperial – os Estados Unidos no pós-guerra (1945-1970); o outro de Eric Hobsbawm (1999), escrito em 1993: A Era dos Extremos – o breve século XX (1914-1991). A posição de Aron a respeito era muito clara ao notar que a potência tem um projeto de poder e adota os meios considerados em cada momento adequados à consecução de seus objetivos – e também sem deixar de notar que, no contexto da Guerra Fria[3], tendo que escolher entre o comunismo e as democracias liberais, a opção era clara: a aceitação da liderança norte-americana era a única opção crível –, considerando, de qualquer forma, que a história humana, em que pesem as mudanças por que passa cada sociedade, é muito a disputa entre os homens por poder, honra e glória (como diriam Maquiavel e Hobbes). 

Aron era um francês que não escondia sua viva antipatia pelo comunismo e pelo perigo que a União Soviética representava para a Europa e que, ao mesmo tempo, percebia nos Estados Unidos inúmeros valores respeitáveis e outros tantos condenáveis ou desprezíveis; em outras palavras, reconhecendo a natureza humana e a natureza das relações internacionais, fazia sua escolha, sem deixar de indicar as condutas francamente condenáveis da parte dos Estados Unidos – mas também sem fazer a apologia desses mesmos comportamentos. 

A questão aqui, portanto, é notar que Aron apresentava a atuação norte-americana no mundo, tendo claro que vários de seus comportamentos eram – como são – condenáveis, ao mesmo tempo em que outros tantos não o eram (como não o são); além disso, entre duas potências que adota(va)m comportamentos semelhantes – devido ao simples fato de serem potências –, o autor preferia aquela que defendia valores mais próximos aos seus próprios, sem ingenuidades. A questão, assim, era: sem ingenuidades em relação aos norte-americanos nem em relação à (então existente) União Soviética, qual das duas potências é a preferível, qual é a que perfilha valores mais próximos aos nossos? A resposta a essa pergunta por certo que influenciou o livro, mas parece-me que o tipo de raciocínio dessa pergunta era o que constituía o fundamento metodológico do livro e, portanto, a postura intelectual do autor.

Hobsbawm, ao contrário, põe-se em uma posição claramente contrária aos Estados Unidos; lendo, por exemplo, o capítulo 8 de seu livro (“Guerra Fria”), claramente o autor considera os Estados Unidos os causadores da Guerra Fria e os beligerantes que insistiam em opor-se à União Soviética mesmo quando não eram provocados (e jamais teriam sido provocados!) por uma União Soviética que, acima de tudo, era pacífica e desejava a paz e a calma para construção de seu “socialismo em um só país”[4].

O contraste entre ambos os autores não poderia ser maior. Aceitando a sinceridade dos formuladores da política externa dos Estados Unidos, percebe em suas ações hesitações e dúvidas, contradições e tensões – e, também, hipocrisia – Aron reconhecia a diversidade de sistemas sociais e políticos, a diversidade de interesses e histórias mas afirmava, subjacente à exposição, a importância de um defensor da Europa e dos valores europeus (comungados, em maior ou menor proporção, pelos Estados Unidos). Poder-se-ia dizer que ele defendia os Estados Unidos porque era favorável ao capitalismo, mas tal afirmação não faria sentido para um intelectual do tipo de Aron, que não tinha uma posição simples (ou simplista) a respeito de tais temas. Hobsbawm, ao contrário, é muito claro em seus juízos sobre os Estados Unidos e a União Soviética mas não evidencia suas preferências filosóficas primeiras: rejeição do capitalismo (e do Estado que o representa, defende e fomenta), simpatia pela União Soviética (que o fez suavizar notável e espantosamente o autoritarismo soviético posterior a Stálin) e adesão ao marxismo, isto é, ao materialismo histórico, à luta de classes e aos interesses inconciliáveis que influenciam (quando não deformam) o conhecimento conforme a classe social de quem fala.

Nada disso é novidade para nenhum leitor mas, como diria Nelson Rodrigues, esse é o óbvio ululante: ninguém o vê – ou ninguém se “lembra” de vê-lo. À parte as condições do mercado editorial brasileiro, as referências editoriais de ambos os livros servem como um índice precioso desse “esquecimento ululante”: enquanto o livro de Aron – que é extremamente informativo, muito mais que opinativo – teve apenas uma edição em 1975, o livro de Hobsbawm já está pelo menos na décima edição, menos de dez anos após seus lançamento no Brasil. Não é à toa que o discurso sobre os Estados Unidos pode ser tão enviesado...

III. PROBLEMAS DE (MÁ) PERCEPÇÃO E DE VALORES

Abstraindo o debate, parece-me que as dificuldades para falar de (ou, antes, para pensar) os EUA residem em três ou quatro pontos principais. Em primeiro lugar, sua atuação não é unívoca. Eles têm um projeto nacional, que é mais ou menos seguido; após a II Guerra Mundial, podendo escolher entre manterem-se dominantes no mundo ou recolherem-se em seu isolacionismo prévio, preferiram a atuação global, em uma posição em que se mantêm até os dias atuais e cada vez mais, adotando as medidas que, certas ou erradas, são conforme o projeto que fazem para si e para o mundo. Em segundo lugar, sua atuação é diferente conforme a área geográfica a que se refere: por exemplo, o isolacionismo por eles praticado após a I Guerra Mundial referia-se à Europa, mas de maneira alguma à América Latina, onde, desde o início do século XX até princípios dos anos 1930, um grande ciclo de intervencionismo militar e econômico teve lugar.

Em terceiro lugar, o juízo que deles fazemos é marcado pela política atual, isto é, mesmo não sendo possível julgar a política desenvolvida por um país sem se recuar no tempo para considerar também os movimentos anteriores, julga-se o antes pelo atual – e como o atual nunca é bom, tudo sempre foi e é ruim. O erro de anacronismo fica patente aí, embora não se faça questão, de modo geral, de corrigi-lo. Last but not the least, as preferências políticas – ou, se se preferir, as preferências “ideológicas” – de quem fala têm que ser levadas em conta: notadamente a esquerda, embora também a direita em algumas situações[5], é contrária aos Estados Unidos pelo duplo motivo de ser um país capitalista – talvez o país capitalista por excelência, de onde Max Weber tirou elementos empíricos para sua famosa obra sobre o “espírito” do capitalismo – e de ter enfrentado (com sucesso) a União Soviética (o grande bastião do comunismo, afinal de contas) durante a Guerra Fria. Freqüentemente os juízos a respeito dos Estados Unidos misturam elementos desses quatro fatores, que separei por motivos de ordenamento lógico; se se prestar atenção, os quatro motivos foram agrupados em dois grupos de dois: o primeiro grupo refere-se a questões de fato, a problemas históricos e sociológicos; o segundo grupo vincula-se a questões intelectuais, no sentido de que se referem ao mundo das idéias, sejam elas metodológicas, sejam de preferências pessoais.

III.1. Potências boas?

Façamos uma revisão de cada um desses motivos. Em relação ao primeiro: uma grande potência pode não lançar mão dos instrumentos necessários para manter-se como uma grande potência? Aliás, existem “boas” grandes potências? Subjaz aqui a pretensão de que, fôra outro o país dominante, suas ações seriam diversas das adotadas pela potência atualmente dominante. Mas será isso fato ou será mero wishful thinking? À parte o problema metodológico de que não se pode pesquisar o que não aconteceu – embora seja um recurso comum ao tratar-se de problemas políticos que estão na ordem do dia –, o fato é que, historicamente, as grandes potências, se desejam manter-se como grandes ou, pelo menos, como potências, adotam os comportamentos que julgam necessários independentemente de considerações “éticas” ou morais. Em termos acadêmicos isso nos leva à discussão clássica de se é possível existir, de alguma forma, uma ordem internacional mais justa ou menos predatória, em que as dignidades nacionais não tenham que sucumbir aos desígnios de países mais fortes. Pode-se lamentar, sem dúvida alguma, esse estado de coisas, mas pelo menos desde a Guerra do Peloponeso até o momento, o discurso dos atenienses aos mélios, nesse sentido, permanece mais ou menos verdadeiro.

Essas observações levam-nos a algumas outras. A agenda internacional implementada pelos Estados Unidos desde o final da II Guerra Mundial – desejos de dominação à parte – é “boa” ou “ruim”? A contenção do comunismo e o combate à União Soviética; a instituição de uma ordem econômica tendencialmente liberal, em que é (ou será) possível uma integração das várias economias nacionais em um único sistema mundial; a criação de uma organização que congrega todos, ou quase todos, os países do mundo, capaz de coordenar ações globais de interesse da humanidade: isso não é pouco, não é desprezível e decididamente não é ruim. “Um outro mundo é possível”: pois bem, qual? O comunista (ou o socialista, tanto faz)? Projetos de ordenamento mundial têm que ser levados a cabo por grandes potências e, bem ou mal, creio que o atual projeto[6] é melhor que os seus pretensos rivais.

Ora, os Estados Unidos não são santos nem são ingênuos. Embora o idealismo, não raras vezes eivado de elementos teológicos, seja uma característica de sua política externa, a questão que se apresenta é a seguinte: qual outro país poderia sucedê-lo para o ordenamento mundial? Em minhas preferências pessoais por países, sou mais pela França que pelos Estados Unidos, mas a verdade é que, infelizmente, a corrida colonial que os europeus levaram a cabo no século XIX foi um projeto basicamente francês, secundado por ingleses, belgas, holandeses, alemães e italianos. Talvez a Rússia pudesse ser um bom país para conduzir o ordenamento mundial? Isso está extremamente longe de ser verdade, ao menos para as tradições de racionalismo e liberdade que o Ocidente constituiu ao longo dos séculos. O mesmo aplica-se à China.

Alternativamente, cabe com franqueza a pergunta: caso nós, brasileiros, estivéssemos no lugar dos estadunidenses, será que agiríamos de maneira diferente? Duvido muito, especialmente porque o Brasil gosta de pensar que é uma “grande potência” (“país do futuro”, “de dimensões continentais” etc.) e, é claro, o samba e o carnaval não são propriamente instrumentos de convencimento político. Em suma: ao acusarmos os Estados Unidos de perceberem o mundo de sua própria forma, de serem uma grande potência e de usarem os instrumentos necessários para tanto, somos indulgentes com nós mesmos, como se, caso estivéssemos no lugar deles, agíssemos de maneira diversa, com maior “generosidade”, “magnanimidade” ou qualidades semelhantes.

Se afirmarem, de qualquer forma, que se deseja uma ordem multipolar, em que não haja a tirania de um país sobre os demais, isso será bem mais aceitável; na verdade, isso me parece desejável. Por outro lado, que não se tenha ilusões: a política internacional é oligárquica – são poucos os que têm efetivamente poder – e, acima de tudo, a arquitetura mundial baseada no projeto e nas instituições que os Estados Unidos constituíram após a II Guerra Mundial ainda é a melhor solução.

III.2. Atuação diversa conforme a região

O segundo motivo de rejeição aos norte-americanos não é sofístico ou resultado de miopia política e sociológica, como o primeiro. Conforme a área geográfica do mundo, o comportamento norte-americano varia bastante, indo da preocupação generosa (interessada, se se desejar) à má vontade ou, simplesmente, à completa ignorância. Podemos facilmente pensar na África, tantas vezes deixada de lado nas questões mundiais, mas os exemplos da Europa e da América Latina podem ilustrar melhor o argumento. Enquanto norte-americanos e europeus mantiveram uma relação de grande proximidade após a II Guerra Mundial, com o guarda-chuva nuclear e econômico estadunidense protegendo a constituição da comunidade econômica européia, a América Latina ficou largada à própria sorte, sem estímulos econômicos para o crescimento, apesar da propalada “amizade” entre o subcontinente e seu vizinho ao Norte. Aliás, mesmo o isolacionismo norte-americano prévio à II Guerra Mundial era apenas em relação à Europa, tendo sofrido a América Latina cerca de 35 anos de intervencionismo e invasões militares, entre 1898 e 1934, com o objetivo de manter os “valores da civilização” e a segurança dos investimentos norte-americanos na região[7].

Como latino-americano não posso deixar de reconhecer: a ação dos Estados Unidos em inúmeros momentos foi extremamente predatória sobre nossa região, justificando uma reserva em relação ao país do Norte que já vem desde Bolívar. Creio que não há necessidade de estender-me sobre o assunto; os exemplos poderiam multiplicar-se enormemente, juntamente com a indignação; quando os nacionalistas latino-americanos denunciam esse comportamento norte-americano, estão corretíssimos[8]. Apenas é necessário perceber que, embora o nacionalismo freqüentemente possa vir acompanhado pelo marxismo, uma e outra coisa são diferentes e sua mistura (ou, mais adequadamente, confusão), embora possível no discurso político do dia-a-dia, não o é na prática científica.

De qualquer maneira, é importante notar que o padrão de intervencionismo não foi constante e que sofreu alterações importantes ao longo da história: ao longo do século XIX não houve intervenções (especialmente na América do Sul), a Política da Boa Vizinhança, de Franklin D. Roosevelt, foi uma reversão nas invasões e, por fim, a Aliança para o Progresso foi uma tentativa de conquistar a boa vontade latino-americana em um período em que o desenvolvimentismo era a ordem do dia aqui[9].

III.3. Anacronismo na análise

As duas objeções examinadas acima referem-se a questões de fato: como é que as grandes potências atuam no mundo? Mais particularmente, como é que os Estados Unidos comportaram-se em relação à América Latina? Sem dúvida que as interpretações possíveis variam muito, mas qualquer discussão sobre o assunto, nesses casos, tem que se referir a questões de fato e não a formulações teóricas mais ou menos gerais e mais ou menos separadas da realidade. Os outros dois motivos referem-se a questões ou de ordem metodológica (como encarar a realidade?) ou de ordem “ideológica” (qual o sistema social que se prefere?). Vejamos agora o problema metodológico.

É um erro comum de percepção, embora básico e até grosseiro, julgar o passado com os critérios de hoje. É claro que não me refiro a orientar a pesquisa histórica pelas preocupações atuais; penso, mais precisamente, no erro de desconsiderar os fatos anteriores e suas características pela aplicação mecânica dos nossos critérios ao passado; é estar imbuído de um espírito de absoluto e de negar a necessária relatividade para a compreensão do mundo (natural e humano).

Em relação às disputas políticas, passadas para a academia no assunto que nos interessa, esse erro consiste em atribuir ao passado as preocupações do presente, pura e simplesmente julgando o que se fez antes pelo que se faz atualmente (ou que se pensa fazer atualmente). É claro que, geralmente, o que acontece é que se põe na “lata do lixo da história” aquilo de que não se gosta. Assim, no caso que nos interessa, porque atualmente George W. Bush é o Presidente dos Estados Unidos e porque ele é reconhecidamente belicista e simpático a causas no mínimo “discutíveis”, então nada na política externa dos Estados Unidos presta ou prestou e eles sempre foram detestáveis e desprezíveis. Embora em termos metodológicos esse tipo de afirmação apresente problemas complicadíssimos, o fato é que, em termos políticos mais diretos, essa frase é simplesmente um casuísmo enorme.

III.4. Disputas político-ideológicas

A última fonte de percepções erradas sobre os Estados Unidos reside nas posições políticas de quem fala. Coloquei-a em último lugar não porque a julgo desimportante, mas porque, parece-me, ela é a principal, a fonte de todas as demais, na medida em que justifica ou acoberta todos os outros erros. Bem percebidas as coisas, ao longo de minha argumentação prévia apresentei vários elementos que sugeriam essas disputas; assim, aqui apenas explicitarei e consolidarei esses argumentos.

A posição dos Estados Unidos no mundo, desde o término da II Guerra Mundial e a partir da Guerra Fria, em 1947, foi de defensor do capitalismo. Pessoalmente não levo muito a sério o conceito de “capitalismo” – pois ele cumpre uma função teórica muito específica e muito clara no pensamento marxista, condenando por definição e à partida a sociedade contemporânea –, mas é assim que geralmente se percebe sua atuação no mundo e é por esse metro que se mede seu comportamento[10]. Ora, esse simples motivo condena-os inapelavelmente ao mais profundo abismo infernal, na medida em que, como o capitalismo é ruim, seus defensores devem ser ainda piores. Considerações a respeito das instituições multilaterais (políticas e econômicas), que os EUA criaram a partir de 1945; da ampla liberdade de pensamento e de expressão; da vitalidade de sua economia; de sua estabilidade política; da subordinação da política à moral – nada disso é percebido. Ao mesmo tempo, uma admiração velada pelo comunismo sempre está presente, embora não se escreva nem uma linha a respeito de como o socialismo dito “real” funcionou ou funciona (nos casos chinês, cubano e norte-coreano): nada da enorme literatura – filosófica, científica e jornalística – a respeito do que era (e é) o comunismo aparece nesses debates, apenas a mesma cantilena condenando o capitalismo... é claro que esses autores que condenam o capitalismo vivem em sociedades que se beneficiaram e beneficiam-se enormemente do fato de serem capitalistas.

Importa insistir: a partir da oposição entre o capitalismo (sempre claramente condenado) e o comunismo (ou socialismo ou “um outro mundo possível”, sempre admirado de maneira subjacente), tudo é possível, pois tudo é válido na luta do bem contra o mal, na luta pela redenção humana. Há claramente uma confusão entre os critérios políticos e os intelectuais, em que os últimos subordinam-se, de maneira vil, aos primeiros: a inteligência torna-se um simples instrumento da ação prática, não se concedendo papel algum à investigação concreta da realidade que possa, de alguma forma, fugir dos esquemas pré-determinados de pensamento. Em outras palavras, a razão é submetida pela fé: não é à toa que o marxismo e o comunismo são freqüentemente comparados a uma nova teologia[11].

Reforço aqui a observação apresentada na seção II: a literatura “crítica” aos Estados Unidos, procedente da esquerda (isto é, marxista), é muitíssimo maior que a “crítica” não-marxista. Tem-se a ilusão, dessa forma, que ser contrário aos Estados Unidos é ser de esquerda ou, inversamente, que reconhecer alguns méritos nos EUA é o mesmo que justificar suas atitudes e o capitalismo.

Na verdade, há apenas uma atualização de discursos longamente repetidos: assim como no século XIX e início do século XX dizia-se que era a Inglaterra que não prestava porque era o país bastião do capitalismo – independentemente dos méritos de sua sociedade –, agora o discurso refere-se aos EUA. Lembrar que, por exemplo, os Estados Unidos e a Inglaterra foram países “bons” entre 1942 e 1946 porque eram aliados da União Soviética na “luta antifascista” também não é permitido[12] – pois, afinal, “desde sempre” e por definição os países capitalistas não prestam.

Embora se possa afirmar que a Guerra Fria já acabou e que, portanto, não fazem mais sentido as referências à União Soviética, o fato é que o discurso anti-americano e a perspectiva adotada de modo geral pela esquerda são caracteristicamente da Guerra Fria, com todos os subterfúgios e técnicas adotados no período e, a bem da verdade, desde muito antes. Para comprovar-se essa afirmação, basta ler os textos de autores do século XIX, do início do século XX, da I Guerra Mundial, do período entre as guerras, da II Guerra Mundial, da Guerra Fria e os mais recentes: são todos variações sobre o mesmo tema; os mesmíssimos argumentos, com diferenças táticas de nomes e expressões. A unidade de pensamento e de discurso, aliás, no que se refere à condenação ao capitalismo e, por extensão, aos Estados Unidos, choca quem ouve falar do tal do tão decantado “discurso único” neoliberal, tão acremente condenado pela esquerda.

IV. FINAL DO TEXTO MAS NÃO DA DISCUSSÃO

Retomo no final do artigo a observação inicial: falar sobre os Estados Unidos é provocar paixões – paixões ainda maiores se for para “defender” esse país. Dessa forma, é um terreno espinhoso, que, apesar de sua importância, exige muito cuidado. A quantidade de notas de rodapé deste pequeno artigo – cuja extensão ultrapassou em muito o que planejara inicialmente – indicam os cuidados de que me cerquei ao escrevê-lo. Claro está de que não se trataram especialmente de cuidados metodológicos, mas de cuidados políticos: como argumentei ao longo do texto, falar dos Estados Unidos parece fácil, pois “todos” falam, sem maiores preocupações com o rigor da fala e permitindo-se os maiores erros do ponto de vista intelectual. O esporte nacional no Brasil é o futebol: a “argumentação” relativa aos EUA aproxima-se, talvez não por acaso, às brigas do torcida, tais as tolices que se repete.

É claro que o debate não acabou – mesmo porque, em se tratando de “debate”, isto é, de troca racional e pacífica de idéias, em que cada parte aceita, sem segundas intenções e sem hipocrisia, a real possibilidade de mudar de opinião no decorrer da argumentação; em se tratando de “debate”, parece que ele mal começou. Indiscutivelmente minha argumentação será mal compreendida ou simplesmente distorcida, aparecendo este texto como “pró-americano”: na verdade, se for para tachar-me de alguma coisa, prefiro pensar que sou “pró-pensamento correto” e “pró-sociedade aberta e democrática”[13]. Como comentei antes, tantas são as tolices que se fala a respeito dos Estados Unidos que é demasiado difícil argumentar racionalmente a respeito deles; ora, dada a influência que esse país exerce no mundo – não apenas em termos econômicos e militares, como também culturais –, não compreender os Estados Unidos é também não compreender a maneira como o mundo organiza-se – com todos os seus prós e contras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARON, R. 1974. The Imperial Republic. The United States and the World, 1945-1973. Cambridge (Mass.): Winthrop.

ARON, R. 1986a. Memórias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

ARON, R. 1986b. Paz e guerra entre as nações. 2ª ed. Brasília: UNB.

ARON, R. 1987. Os últimos anos do século. Rio de Janeiro: Guanabara.

ARON, R. 1991. Relato, análise, interpretação, explicação: crítica de alguns problemas do conhecimento histórico. In: _____. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

BRUNSCHWIG, H. 1974. A partilha da África negra. Col. “Khronos”, v. 6. São Paulo: Perspectiva.

BULL, H. 2002. A sociedade anárquica. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo.

CAMPOS, R. 1964. Relações Estados Unidos-América Latina. In: ADAMS, M. (org.). América Latina: evolução ou explosão? Rio de Janeiro: Zahar.

CERVO, A. L. 2001. Relações internacionais da América Latina. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais.

COMTE, A. 1890. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 3ème ed. Paris: Larousse.

COMTE, A. 1972. Opúsculos de filosofia social. São Paulo: USP.

CONNELL-SMITH, G. 1966. The Inter-American System. London: Oxford University.

DUARTE, C. S. S. 1986. A política externa brasileira de 1934 a 1942: diplomacia “pendular” ou hegemonia norte-americana? In: Ensaios de História Diplomática do Brasil (1930-1986). Cadernos do IPRI, n. 2. Brasília: Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais-Fundação Alexandre de Gusmão.

DUROSELLE, J.-B. 2000. Todo império perecerá. Brasília: UNB.

FURET, F. 1995. O passado de uma ilusão. Ensaios sobre a idéia comunista no século XX. São Paulo: Siciliano.

HOBBES, T. 1997. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural.

HOBSBAWM, E. 1999. A era dos extremos. O breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.

HOROWITZ, I. L. 1975. United States Policies and Latin American Realities: Neighborliness, Partnership and Paternalism. In: HELLMAN, R. G. & ROSENBAUM, H. J. (eds.). Latin America: The Search for a New International Role. New York: J. Wiley.

KEOHANE, R. 1993. Liderazgo hegemónico y política económica norteamericana en la “larga década” de 1950. In: _____. Instituciones internacionales y poder estatal. Ensayos sobre teoría de las relaciones internacionales. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano.

LACERDA, G. B. 2004. Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento: a Operação Panamericana e a Aliança para o Progresso. Curitiba. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política). Universidade Federal do Paraná.

LEBOW, R. N. & KELLY, R. 2001. Thucydides and Hegemony: Athens and the United States. Review of International Studies, London, n. 27, p. 593-609.

MILENKY, E. S. 1975. Problems, Perspectives, and Modes of Analysis: Understanding Latin American Approaches to World Affairs. In: HELLMAN, R. G. & ROSENBAUM, H. J. (eds.). Latin America: The Search for a New International Role. New York: J. Wiley.

MONIZ BANDEIRA, L. A. 1998. Relações Brasil-Estados Unidos no contexto da globalização. V. I: Presença dos Estados Unidos no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Senac.

MONIZ BANDEIRA, L. A. 2001. Relações Brasil-Estados Unidos no contexto da globalização. V. II: A rivalidade emergente. 2ª ed. São Paulo: Senac.

NYE JR., J. S. 2002. O paradoxo do poder americano. Porque a única superpotência do mundo não pode prosseguir isolada. São Paulo: UNESP.

PECEQUILO, C. S. 2003. A política externa dos Estados Unidos. Continuidade ou mudança? Porto Alegre: UFRGS.

REVEL, J.-F. 2003. A obsessão anti-americana. Causas e inconseqüências. Rio de Janeiro: Univercidade.

SCHEMAN, L. R. (ed.). 1988. The Alliance for Progress: A Retrospective. New York: Praeger.

TRISKA, J. F. (ed.). 1986. Dominant Powers and Subordinate States. The United States in Latin America and the Soviet Union in Eastern Europe. Durham: Duke University.

VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F. & MARIANO, M. P. 2003. Origens dos instrumentos de formulação da política comercial norte-americana. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 20, p. 43-54, jun.







[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (gustavobiscaia@yahoo.com.br) é "pós-doutor" e Doutor em Sociologia Política (UFSC), Mestre em Sociologia (UFPR) e sociólogo da UFPR. Sua dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2004, intitula-se Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento: a Operação Panamericana e a Aliança para o Progresso.

[2] O termo “moralismo” é um termo completamente ambíguo e notavelmente impreciso. No presente caso, adoto-o considerando de maneira proposital essa ambigüidade, dando a entender tanto a preocupação com a moralidade da existência humana quanto um comportamento mais hipócrita, em que os valores morais são instrumentalizados para algum fim, com ou sem adesão a esses valores.

[3] Como indicamos, o livro de Aron foi escrito em 1973, em plena Guerra Fria e, curiosamente, no mesmo ano em que os Estados Unidos abriram mão de sua liderança no sistema financeiro internacional estabelecida formalmente pelos acordos de Bretton Woods.

[4] Aliás, uma das mais importantes causas de os Estados Unidos terem iniciado a Guerra Fria teria sido, em parte considerável, o sistema político desse país, em que um político tem que fazer grandes e inflados discursos e promessas para convencer seus eleitores a votarem nele... procedimentos eleitorais à parte, a própria accountability teria sido a responsável pela Guerra Fria, em contraposição à União Soviética – país então destituído desse conceito, assim como a atual (e a antiga) Rússia.

[5] Dos dois lados do espectro ideológico, a esquerda é que de maneira mais marcada é anti-americana: prova disso é a existência do Fórum Social Mundial, que já passou por sua quinta versão, reúne dezenas de milhares de pessoas cada vez que ocorre, multiplica-se em inúmeros “fóruns” regionais e temáticos e tem como uma de suas “propostas” básicas o fim do poder (ou da hegemonia, ou do imperialismo, ou...) dos Estados Unidos.

Por outro lado, algumas acusações dos esquerdistas são extremamente procedentes, como a que se refere à pretensão dos estadunidenses a reduzirem a eles mesmos o título de “americanos”, como se o “resto” da América não fosse, também, americano. Alguns direitistas brasileiros, por exemplo, defendem o suposto direito dos estadunidenses em incorrerem nessa confusão, o que é completamente despropositado.

[6] Atenção para a expressão que utilizo: “projeto”. Não advogo, de maneira alguma, que o atual ordenamento do mundo seja “justo” ou que a conduta atual dos Estados Unidos, com George W. Bush à frente, seja a melhor possível. O que advogo, sim, é que o projeto implementado historicamente pelos Estados Unidos a partir da II Guerra Mundial em termos mundiais é bom e correto e é, em última análise, o caminho que se deve seguir, apenas se aperfeiçoando. Não confundir, portanto, o ideal com o real.

[7] Na verdade, a distinção entre as várias regiões manteve-se ainda nesse período. Embora considerando globalmente a América Latina uma região semibárbara ou bárbara, o comportamento efetivo dos Estados Unidos no período que citamos variou: enquanto a América Central padeceu com as freqüentes invasões pelos marines ou com a tirania do dólar, a América do Sul permaneceu mais ou menos incólume (à exceção da Colômbia, que sofreu com o separatismo panamenho insuflado pelos estadunidenses, no início do século XX) (CONNELL-SMITH, 1966; ARON, 1974; HOROWITZ, 1975).

[8] Nesse sentido, por exemplo, os livros de Luís Alberto Moniz Bandeira (1998; 2001) – que, de resto, como comunista, é anti-americano – são excelentes fontes de informação sobre a ação dos Estados Unidos no Brasil e não deixam dúvidas a respeito de seu sentido.

[9] Insisto em um ponto: geralmente os quatro tipos de objeção aos Estados Unidos vêm misturados e confundidos. Em que pesem os interesses econômicos estadunidenses, o fato é que as suas condutas em relação à América Latina dependem muito mais da vontade política do grupo no poder (particularmente do Presidente da República) que de questões econômicas estruturais. Enfatizo: a vontade política de um governante ou de outro, em cada conjuntura, é muito mais importante para o comportamento global dos Estados Unidos em relação à América Latina que as “determinações do capital” (por exemplo). Em política internacional as variáveis propriamente políticas são bastante arredias à redução às variáveis econômicas.

[10] Minha argumentação, como se percebe, refere-se à esquerda, pois no Brasil há apenas uma pequena direita intelectualmente ativa e que, de modo geral, é pró-norte-americana. Em outros países, como a França, existe uma direita, que tem uma atuação intelectual mais marcada e que, em seus setores mais radicais, também é anti-americana – em termos quase similares aos da esquerda (cf. REVEL, 2003).

[11] É claro que há intelectuais e intelectuais, há políticos e políticos. A questão é: quantos intelectuais de esquerda têm os cuidados metodológicos a que me refiro e a honestidade intelectual que estou cobrando? Até onde sei, se há alguns, são muito poucos. A mesma coisa em relação aos políticos práticos de esquerda – isto é, até que alcancem o poder, quando as posições tornam-se mais variadas e matizadas.

[12] Detalhes mais sórdidos da história política mundial no período anterior à II Guerra Mundial também não são normalmente mencionados, como o apoio decisivo que os comunistas alemães deram, no final da República de Weimar, a Hitler ou mesmo o acordo de não-agressão mútua entre Hitler e Stálin, de 1939.

[13] Novamente, uma digressão necessária: em que pese o fato de a soberania e a “autodeterminação dos povos” serem conceitos metafísicos, não é aceitável a intromissão de um país nos assuntos internos de outros, sem a permissão do país que sofreu a intromissão. A discussão não é simples ou fácil, mas nem o colonialismo, nem o intervencionismo, nem as “guerras preventivas” da doutrina Bush são aceitáveis.

"Cruzada" como encontro civilizacional

Vários anos atrás, por ocasião do lançamento do filme Cruzada (direção de Ridley Scott, 2005), publiquei na revista O Debatedouro um pequeno texto em que elogiava o filme e tecia algumas considerações sobre o "choque de civilizações". 

Desde então - e já se vão mais de dez anos - o problema das relações entre Ocidente e Islamismo continuou e, em alguns aspectos, até aumentou, embora em certo sentido a sua urgência tenha diminuído.

Por esses motivos, creio que pode ser útil reproduzir o meu texto. A versão impressa do artigo pode ser lida aqui.

*   *    *

“CRUZADA” COMO ENCONTRO CIVILIZACIONAL

Na noite do sábado, dia 7 de maio, assisti ao filme Cruzada e gostei muito dele. Fui vê-lo pelos motivos básicos e evidentes (filme épico e do bom circuito comercial), mas também por ser um filme histórico e ser a respeito de um período de que gosto bastante, a Idade Média das cruzadas.

Ora, tendo visto o filme no sábado dia 7, na quarta-feira anterior li um comentário de página inteira na Folha de S. Paulo, assinado por Sérgio Dávila, em que o autor afirma que o filme é um elogio velado à era George W. Bush[1]. Fiquei interessado no comentário, li-o inteiro e achei uma besteira: considerei que o articulista está tomado por uma obsessão anti-estadunidense, mas resolvi que o melhor, antes de dar um veredito sobre o artigo e, em última instância, sobre o filme, seria assistir à própria obra do diretor Ridley Scott.

Bem, visto o filme, eis minha opinião: ele é ótimo, vale a pena e Sérgio Dávila deveria ler o livro de Jean-François Revel, A obsessão anti-americana (Rio de Janeiro, Univercidade, 2004).

Muito ao contrário do que o articulista da Folha dá a entender, o filme é muito bom, não apresenta nenhum elogio à guerra ao terror (como, aliás, afirmou o próprio diretor[2]) e, se fosse para jogarmos com títulos de livros famosos, diríamos que trata muito mais da crítica ao “choque de fundamentalismos” (Tariq Ali) que da apologia ao “choque de civilizações” (Samuel Huntington).

De fato, o filme deixa muito claro quais são seus valores: a racionalidade, a cortesia, a tolerância religiosa e filosófica, a honradez, a responsabilidade pessoal pelas ações. Dirão alguns, talvez, que a honradez e a responsabilidade pessoal são características norte-americanas e que isso poderia ser uma pista para o “bushismo”; é claro que isso seria um completo disparate. Indo exatamente na contramão dos radicalismos atuais, que têm no obscurantismo religioso sua justificação e sua legitimação, o filme afirma a importância de considerar a racionalidade como guia das ações, medindo cada um de nossos atos ao mesmo tempo de acordo com suas conseqüências políticas e também morais (se se desejar: “éticas”). Parafraseando o grande José Bonifácio, o filme deixa claro que a “sã política é filha da moral e da razão”.

Há, sem dúvida, alguns estereótipos discutíveis, como o de os franceses como os malucos beligerantes do lado dos católicos (embora o mocinho do filme, Balian, interpretado por Orlando Bloom, também seja francês, como se vê logo na primeira cena), mas, mais do que isso, não se vê os muçulmanos como radicais desmiolados querendo dizimar tudo e todos. Certo: há um líder muçulmano com essa característica, mas claramente ele é subordinado; quem de fato manda no lado do islã é Saladino, cujos valores são, como já indiquei, os mesmos que os do mocinho: a honradez, a racionalidade, o respeito mútuo.

O que dissemos acima permite-nos comparar esse filme com dois outros: A paixão de Cristo e Herói. A paixão de Cristo, independentemente de seu conteúdo, veio em um momento em que os valores religiosos, a tão falada “fé”, tem ganho uma importância desmesurada no mundo inteiro. Ora, a fé, em Cruzada, freqüentemente é posta como secundária ou desimportante, ou mesmo como fator de imbecilização; as únicas manifestações aceitáveis de fé, como se percebe no filme, são aquelas mediadas pela razão e pelo senso de comedimento.

Já a comparação com o filme Herói é mais difícil – não porque não haja elementos mais ou menos evidentes para comparar-se ambos, mas porque o filme chinês é excelente e não é tão facilmente criticável quanto A paixão de Cristo. Herói é a lenda nacional da China, é a China afirmando-se como um país de longa tradição, que se define muito antes e muito além da longa decadência por que passou desde o século XVI até chegar ao comunismo. Ora, há um aspecto nesse filme que deve ser indicado: ele trata da tentativa que um espadachim faria para assassinar um rei, que tenta unificar os vários reinos em que se dividia a antiga China mas que, para tanto, adota, como seria difícil não fazer, métodos violentos e não raro tirânicos. O aspecto que quero realçar é o projeto de unificação da China e, ainda mais, os meios adotados: a violência (a conquista) e a tirania: esse rei seria a versão chinesa do “príncipe perfeito” que foi d. João II em Portugal, isto é, o príncipe perfeito a partir dos critérios maquiavelianos e hobbesianos, que define um grande fim – a unificação de vários reinos, isto é, a criação de uma nova pátria, com a conseqüente cessação das lutas e das mortes e o progresso material (e, quiçá, também moral) – e lança mão dos meios necessários para tanto. Em Cruzada vemos, sem dúvida, o tema da conquista, mas ele é muito mais uma desculpa para tratar do relacionamento entre dois povos – ou melhor, duas civilizações – e da “sã política” de José Bonifácio que qualquer outra coisa. Especificamente, a conquista, quem faz, são os muçulmanos, que procuram reconquistar a cidade de Jerusalém e obrigam os ocidentais a manterem uma posição defensiva[3]. Como se vê ao longo de toda a fita, a cordialidade mútua e o respeito ao próprio código cavalheiresco pautam a disputa, reconhecidas as legitimidades de ambos os pleitos (a pretensão de conquista dos muçulmanos – causada, aliás, por uma provocação ocidental – e a defesa da cidade). Assim, sem desmerecer o filme chinês, como ocidentais aprendemos muito assistindo ao Herói, mas, como ocidentais e como seres humanos que vivem em uma época estranha, aprendemos (ou reaprendemos) bem mais vendo Cruzada.

Cruzada indica com clareza que, se há “choque de civilizações” nos dias correntes, ele deve-se muito ao radicalismo de alguns, mas que os meios para evitar-se esse radicalismo e resolver os conflitos são algo presente na civilização ocidental e também na islâmica. Esse “algo” não é a crença religiosa (cristão ou islâmica, tanto faz), mas a percepção de que todos somos seres humanos, de que todos queremos viver e de que todos podemos viver em paz e harmonia se soubermos assim proceder – além, é claro, de manterem-se os radicais claramente subordinados na condução da política, tanto de um lado quanto de outro.

Assim, no final das contas, Cruzada não tem nada de “apologia velada à era Bush”, mas um elogio claro, às escâncaras, a um relacionamento pacífico e racional entre duas civilizações que compartilham muitos mais valores do que se poderia pensar à primeira vista.
Em outras palavras, é uma aula de civilidade: vale a pena.




[1] DÁVILA, S. 2005. “Cruzada” faz apologia velada da era Bush. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200506.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[2] SCOTT, R. 2005. “O filme não é sobre a guerra ao terror!”. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200507.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[3] Lembremos a filosofia da história do grande Augusto Comte: a Idade Média caracterizou-se, como a Antigüidade, pelas guerras, mas, ao contrário de gregos e romanos, foram, exatamente, guerras defensivas. Aliás, o mocinho Balian, enquanto não está preocupado com os conflitos militares, dedica-se seriamente a esforços industriais bem-sucedidos, em que o respeito aos pequenos e aos subordinados é um dos traços mais característicos. Em outras palavras, o filme é um exemplo de conduta: como seria um elogio, mesmo que velado, à doutrina Bush?

19 janeiro 2016

19 de janeiro, nascimento de Augusto Comte

19 de janeiro, nascimento de Augusto Comte, o fundador da Sociologia e da Religião da Humanidade





Primeiros anos

Em 19 de janeiro de 1798 nascia na cidade de Montpellier, no Sul da França, Isidore Auguste Marie François Xavier Comte – ou, como passou a chamar-se mais tarde, apenas Augusto Comte. Ainda adolescente, mudou-se para Paris, aonde foi estudar na Escola Politécnica; mas, devido ao clima político, que freqüentemente resultava em sérios problemas com a disciplina militar da Escola, foi obrigado a sair dela. Enquanto estudou lá, todavia, leu avidamente História, Filosofia, Moral e as várias ciências – interesse que manteve e desenvolveu ao longo da vida.

Fonte: https://www.wisepay.co.uk/store/generic/template.asp?ACT=nav&mID=147733.

Objetivo na vida: reformar a sociedade

Tornou-se professor de Matemática para ganhar a vida, mas sua preocupação fundamental era entender as profundas mudanças sociais, políticas e intelectuais por que passava a França e a Europa: Revolução Francesa, guerras napoleônicas, Revolução Industrial, miséria crescente, avanços científicos. Assim, elaborou e realizou o projeto de entender cientificamente a sociedade e o desenvolvimento histórico humano; para isso, após examinar historicamente as características de cada uma das ciências existentes até então – Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia –, criou a ciência da sociedade, a Sociologia.

Política positiva

Mas enquanto a Sociologia estuda a sociedade, esse estudo tem que ser aplicado na prática, para evitar, solucionar ou diminuir os problemas e conflitos que a sociedade enfrentava. Foi por esse motivo que Augusto Comte, com base nas pesquisas da Sociologia, passou a propor uma série de medidas e sugestões, no que chamava de "política positiva", entre as quais podemos citar as seguintes:
·         inclusão social dos trabalhadores
·         valorização das mulheres
·         responsabilidade social dos empresários
·         fim das guerras
·         instrução pública e popular
·         fortalecimento da sociedade civil
·         controle social do governo
·         afirmação dos deveres sociais mútuos

Uma nova ciência: a Moral Positiva

O conjunto dessas medidas resultava na valorização do altruísmo, isto é, nos esforços que cada indivíduo e cada grupo deve fazer em benefício dos outros indivíduos e grupos, no sentido de controlar e diminuir (mas não acabar com) o egoísmo. Isso implica esforços sociais e individuais, de modo que não apenas o conhecimento profundo e científico da sociedade é necessário, mas também o do ser humano individualmente tomado: assim, Comte criou também a ciência que estuda os indivíduos e os processos de educação, ou seja, a Moral Teórica (a "Psicologia") e a Moral Prática (a "Pedagogia").

A religião do altruísmo e da paz: a Religião da Humanidade


O conhecimento do ser humano é dado também pela ciência, mas o ser humano é uma totalidade, que engloba os sentimentos, a inteligência e as ações práticas, tanto individuais quanto coletivas, tanto hoje quanto ontem e amanhã. A ciência tem sempre perspectivas parciais e o ser humano precisa de perspectivas de conjunto: daí a necessidade da Filosofia e das Artes, que devem ser integradas e servir de base para Ciência e a Política. Esse conjunto, que valoriza o ser humano e o altruísmo, foi chamado por Augusto Comte de "religião" – e, portanto, daí surgiu a Religião da Humanidade, que é a grande síntese da obra de Comte e o maior ideal a que podemos aspirar.


13 janeiro 2016

Jean-Michel Muglioni: a França define-se por "uma" cultura?

Reproduzo abaixo uma interessante postagem do filósofo francês Jean-Michel Muglioni, que se questiona se a França republicana e laica define-se por uma "cultura francesa" ou se define-se pelas instituições universais próprias à República. 

A resposta, como é evidente, consiste em que a França é uma República universalista, não uma cultura particularista. Esse é um dos elementos subjacentes à laicidade e é um importante aspecto para considerar-se no combate aos integrismos teológicos, sejam cristãos, sejam muçulmanos, que têm agitado tão tristemente a França.

O original encontra-se disponível aqui.

*   *   *

La France se définit-elle par « une » culture ?

La République Française ne se définit pas par « une » culture, par opposition aux sociétés multiculturelles, mais par la citoyenneté, qui est la reconnaissance de principes. Une certaine droite refuse l’idée républicaine et réduit en fin de compte l’identité française au simple rang de folklore, oubliant l’exigence d’universalité qui caractérise nos institutions.
Bruno Lemaire a fait de brillantes études littéraires, sanctionnées par une réussite aux concours les plus difficiles. Il a écrit notamment Musique absolueune répétition avec Carlos Kleiber (Gallimard, 2012) – Carlos Kleiber chef d’orchestre européen et citoyen du monde. Bruno Lemaire est cultivé. Or dans un débat1 où Jean-Luc Mélenchon répondait à la représentante du Front National que la laïcité de l’État ne juge pas des cultures et que la France est multiculturelle, Bruno Lemaire l’a interrompu, pour opposer au « modèle multiculturel » la croyance en « une culture française », « culture nationale ». Bref, il opposait au multiculturalisme un monoculturalisme. Or Jean-Luc Mélenchon ne défendait pas un multiculturalisme contraire à l’idée républicaine : il disait que les Français n’ont pas en commun « une » culture, mais des lois et des principes – liberté, égalité, fraternité. Il eut donc beau jeu de dénoncer le « catéchisme d’extrême droite » de son interlocuteur et de provoquer sa colère.
Bruno Lemaire a caractérisé alors la culture française par des grands hommes, de Gaulle, Bonaparte, des écrivains, Montaigne, Hugo, Camus, ce qui n’est pas sans vérité, mais il a répondu à Jean-Luc Mélenchon qui lui demandait si Kant appartient à la culture française : « c’est une culture qui appartient à la culture européenne, ce n’est pas la culture nationale », ou encore : c’est la « culture allemande » et non la « culture française ».
Ce qui m’a remis en mémoire une vieille affaire. Dans un lycée international, les directeurs des sections nationales réunis pour organiser leurs bibliothèques respectives déterminaient quels ouvrages ranger dans la bibliothèque générale. Le directeur de la section allemande demanda Dürer pour la bibliothèque allemande. Le représentant de la section anglaise dit calmement qu’il lui laissait l’art nazi et gardait Dürer dans la bibliothèque générale.
Je ne nie pas l’équivoque du terme « multiculturel » qu’on peut confondre avec « multiculturaliste », d’autant qu’aucune desdites cultures n’est « pure » : toutes sont mélangées, elles sont toutes mêlées les unes aux autres. Je soutiens que toute soumission de la loi républicaine aux exigences d’une culture est inadmissible. En fin de compte, c’est la notion de culture qui est confuse : Bruno Lemaire parlait « d’une » culture et non plus de « la » culture, comme si Montaigne, Hugo ou Camus relevaient « d’une » culture au sens ethnologique du terme. Était-ce ignorance ou démagogie ? Finira-t-il par soutenir qu’Achille appartient à la culture grecque et non à la culture française, et Gavroche seulement au folklore parisien ?
Ainsi ce débat permet au moins de savoir qu’il y a deux camps : d’un côté l’oubli ou même le refus de 1789, de l’autre une certaine façon de lui demeurer fidèle. Au moment où la plupart des partis et des politiques dits de gauche ont renoncé, comme la droite, à la culture – je dis bien « la » et non « une » -, Bruno Lemaire nous force à avouer que la distinction de la gauche et de la droite, même si elle ne correspond pas souvent à la place des députés au parlement, a un sens et permet bien d’opposer deux types de politiques.
Mais il y a peut-être des raisons d’espérer : le refus de la culture n’est pas universel. Je lis ici que le premier ministre italien a annoncé que l’Italie va dépenser à part égale deux milliards d’euros pour sa sécurité et pour sa vie culturelle, jugeant que la réponse au terrorisme n’est pas seulement sécuritaire : « La pensée de l’Italie, qui résonne fortement à travers l’Europe et le monde, est la suivante, dit-il : pour chaque euro supplémentaire investi dans la sécurité, il faut un euro de plus investi dans la culture ».
Lors de l’hommage national du 27 novembre dans la cour des Invalides, on a pu entendre outre laMarseillaise et une chanson française de Barbara, une chanson de Jacques Brel, une suite de Bach et un chœur de Verdi. Faut-il dire qu’il s’agit de culture belge, allemande et italienne, mais non française ?
PS. –  J’ai attendu la fin du 1er tour des élections régionales pour publier ces réflexions afin d’éviter tout malentendu.
© Jean-Michel Muglioni et Mezetulle, 2015.
Notes
  1. Des paroles et des actes, France 2, le 17 novembre 2015. [↩]

01 janeiro 2016

1º de janeiro - Festa da Humanidade

No dia 1° de janeiro - ou dia 1° de Moisés, no calendário positivista - comemora-se a Festa da Humanidade, que é a festa maior do Positivismo. 

A Humanidade é o conjunto de seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes; ela é nossa verdadeira providência, pois todos os nossos recursos (morais, sociais, intelectuais) só são possíveis graças à ação da Humanidade, que evolui com o passar do tempo. 

Sermos dignos de integrarmos a Humanidade é o supremo ideal de todos os Positivistas; desenvolver o altruísmo, comprimir o egoísmo, promover as atividades pacíficas em prol do bem comum: eis o que a Festa da Humanidade resume.



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.