19 setembro 2014

Artigo "Sobre as relações entre igreja e Estado: conceituando a laicidade"

O Conselho Nacional do Ministério Público lançou o livro "Ministério Público em defesa do Estado laico". No seu v. 1 ("Coletânea de artigos"), a partir da página 179 encontra-se o artigo de minha autoria "Sobre as relações entre igreja e Estado: conceituando a laicidade".

O artigo pode ser lido aqui

17 setembro 2014

Falecimento do dr. Paulo de Tarso Monte Serrat



O que é, o que é?

Paulo de Tarso Monte Serrat
Publicado em 16/09/2014 | ALINE PERES ALINEP@GAZETADOPOVO.COM.BR

A trajetória do médico psiquiatra Paulo de Tarso Monte Serrat pode ser traduzida em uma simples música, cantada pelo compositor Gonzaguinha, que mostra em prosa e verso a dinâmica da vida. “O que é, o que é?” reproduz tantas e tantas perguntas que o médico e professor usou para guiar suas relações ao longo de nove décadas. Era um filósofo. Quando lhe perguntavam como estava, afirmava categoricamente: “vivendo com alegria”.
Todas as experiências adquiridas desde o momento em que deixou a cidade de Sorocoba (SP), com pouco mais de 18 anos, para aventurar-se na capital paranaense em busca de estudo, estão de certa forma entremeadas em seu livro, ainda não editado, Psicanálise: o 14 Bis de Freud. A obra pretende discutir os conflitos humanos e a relação com o masculino e feminino. A filha Laura conta que o livro era um projeto incentivado pela esposa, Isis; Paulo começou a trabalhar nele depois que ficou viúvo, em março de 2010.
O primeiro emprego foi como fiscal de cinema, depois de passar em um concurso público. Paulo ficava à noite para fazer a contagem das entradas – além de ser uma espécie de “lanterninha”. Enquanto se preparava para o curso de Medicina, mantinha a atividade que o aproximava da Sétima Arte. Após a formação na UFPR, especializou-se em Psiquiatria no Rio de Janeiro, quando já tinha três das nove filhas. Como bom orador, fez palestras, apresentou-se em programas de televisão como Encontros e Desencontros, trazendo orientações para casais; e no programa Linda, de Linda Saparolli, da Rede CNT, com entrevistas semanais.
Com extenso currículo, trabalhou no atendimento de pronto-socorro e ambulatório do extinto Serviço de Assistência Médica Domiciliar Urgente (Samdu), médico dos hospitais Cajuru e Evangélico, diretor do Manicômio Judiciário, nas décadas de 60 e 70, e diretor do Instituto dos Cegos. Contribuiu consideravelmente como membro do distrito Curitiba Oeste do Rotary Club.
Dinâmico, Paulo mantinha ainda o atendimento em consultório. Até a quinta-feira passada, recebeu seus pacientes. Tinha o trabalho como missão. Como um bom conselheiro, estava sempre disposto a ouvir e falar. Não cansava de dizer que as pessoas viviam uma crise moral com tanta violência e descontrole. “Assim, ele trabalhava para tentar amenizar os conflitos humanos”, conta Laura, ao lembrar do que o pai repetia ao falar sobre o seu trabalho. Paulo baseou sua vida nas máximas da Igreja Positivista do Brasil e da Igreja de Curitiba, como a que lembrava que “a morte era uma passagem da vida objetiva para a vida subjetiva porque quem constrói durante a vida continua vivo na lembrança daqueles que o conheceram”. Deixa nove filhas, 23 netos – e seus pares, que considerava como tal – e 19 bisnetos.
Dia 16, aos 91 anos.

Evento: "Força, lei e dominação"

http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciapolitica/files/2014/09/2014_9_divulga_ExtensaoForcaLeiDominacao.png

08 setembro 2014

Conselho Nacional do Ministério Público e laicidade

Reproduzo abaixo notícia publicada na página do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); o original encontra-se disponível aqui.

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CNMP promove Encontro Nacional em Defesa do Estado Laico

 MG 4485
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio de suas comissões de Defesa dos Direitos Fundamentais e de Planejamento Estratégico, realiza, nos dias 18 e 19 de setembro, na sede, em Brasília, o Encontro Nacional: Em Defesa do Estado Laico. O evento tem como objetivo promover articulação entre os ramos do MP com órgãos ligados a defesa da laicidade, a fim de combater a violação de diversos direitos humanos fundamentais, como liberdade de expressão, liberdade de crença e de não-crença e direitos sexuais e reprodutivos.

O encontro é dirigido aos membros do Ministério Público com atuação e/ou distinto conhecimento pertinente aos direitos humanos, em especial no que se refere à liberdade religiosa e à defesa do Estado laico. As inscrições estão abertas à todos os membros do Ministério Público até o dia 12 de setembro, pelo e-mail: estadolaico@cnmp.mp.br. O custeio da participação será de responsabilidade do órgão de origem.

Durante o encontro será lançada a publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico”, com versão impressa e eletrônica em dois volumes, produzida pelo grupo de trabalho de combate à violência doméstica e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP.


Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais

A publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico” é produto do Projeto Nacional "Defesa do Estado Laico e dos Direitos do LGTB", que integra a Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais. Iniciativa do CNMP, por meio da CDDF, a ação tem como objetivos fortalecer a unidade nacional do MP na defesa dos direitos fundamentais, além de contribuir para a concretização dos resultados institucionais e o retorno para a sociedade afirmados pela Ação Nacional do Ministério Público – 2011/2015.

A programação será publicada em breve. Informações adicionais podem ser esclarecidas pelo telefone (61) 3366-9272 ou pelo e-mail direitosfundamentais@cnmp.mp.br

Foto: Sérgio Almeida (Ascom/CNMP)



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7 de setembro – Comemoração de José Bonifácio

7 de setembro – Comemoração de José Bonifácio

Gustavo Biscaia de Lacerda

(José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil, pintado por Benedito Calixto; fonte: Wikipédia.)


No dia 7 de setembro, como se sabe, comemoramos no Brasil a Independência nacional; assim, é uma data importante, na medida em que celebra a constituição do país como unidade política autônoma. Para os positivistas, essa data – como todas as demais que comemoramos – tem um duplo aspecto, abstrato e concreto: abstrato em relação ao aspecto histórico-sociológico em pauta, concreto a respeito dos tipos humanos envolvidos na questão. Os indivíduos que agiram concretamente em 1822, nos anteriores e nos subseqüentes, resumem em si as dificuldades, as possibilidades e as soluções para os problemas envolvidos; lembrando o método histórico de Augusto Comte, suas ações foram preparadas pelas conjunturas anteriores – ou seja, pelas ações daqueles que vieram antes – e, por sua vez, prepararam as conjunturas posteriores.
Assim, embora tenha sido d. Pedro de Alcântara – futuro d. Pedro I – quem proclamou a Independência nacional brasileira em 7 de setembro de 1822, a ação do descendente dos reis de Portugal só foi possível porque foi preparada por seu conselheiro, o cientista e estadista nascido na cidade paulista de Santos, José Bonifácio de Andrada e Silva: por esse motivo, os positivistas comemoramos em 7 de setembro a figura desse grande brasileiro.
Passemos, então, a apresentar alguns dos elementos da teoria positivista da independência nacional brasileira, conforme exposta por Raimundo Teixeira Mendes, exposta principalmente na biografia que ele escreveu de Benjamin Constant Botelho de Magalhães (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892])[1].
Seguindo a teoria comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média, seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações e da colonização das Américas.
Por outro lado, para Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2). Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político forte, que deve basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela atividade pacífica e por história e valores comuns; além disso, e de modo mais importante, a pequena extensão territorial permite um conhecimento mais direto dos cidadãos entre si, o que aumenta a confiança mútua e também a responsabilidade dos gestores públicos e privados dos diversos tipos de capital.
No que se refere ao continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse quadro, foram os Estados Unidos[2]; nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso, como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava, precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica, acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela antiga colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco, em 1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que “A separação política das duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela satisfação dada às aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente. Quebradas as opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o aspecto de uma livre federação sob a presidência de uma realeza tradicionalmente venerada” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto, de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a figura de José Bonifácio. “José Bonifácio, o tipo mais eminente da raça portuguesa naquele tempo, reconhecendo a gravidade da situação, pôs-se à testa dos patriotas. Um pensamento o domina. Frustrada a união política dos portugueses de ambos os hemisférios, o velho cidadão preocupa-se com salvar pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa unidade se lhe oferece no seu duplo aspecto: manutenção da integridade política das pátrias brasileiras e fusão completa das três raças que as constituem, de modo a formar com elas uma nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
No que se refere à unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles centralizava e coordenava, de fato, todos eles[3]; muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras, como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano de 1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem européia. O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil independente e ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos poucos e frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema: “Examinada na sua composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se em duas castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que, econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo, chegando a constituir duas diferentes castas sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes, a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro problema, qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações sobre José Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não concebia uma república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a emancipação gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele projetara a incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na catequese teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por pouco tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo menos imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia serviu para manter ambas as práticas[4].
Mesmo com essas importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –, em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos: “Foi assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no período da independência nacional.
De qualquer forma, cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”, conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções, pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica” e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de retalhos” política.
A segunda acepção é de caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e, portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo político, advoga o federalismo ou o confederalismo[5]. A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2) de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 12-13)).

Referências bibliográficas

COMTE, A. 1929. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 4ème ed. 4 v. Paris: Larousse.
LACERDA, G. B. 2010. O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte. Florianópolis. Tese (Doutorado em Sociologia Política). Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf. Acesso em: 24.jan.2012.
_____. 2014. Política e instituições na “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos brasileiros. Comunicação apresentada no IX Encontro Anual da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado entre 4 e 7 de agosto, em Brasília. Digit.
LEMOS, M. & TEIXEIRA MENDES, R. 1890. Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira. (2ª ed.: 1934.) Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 82. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15236/bazes_constituicao_politica.pdf?sequence=3. Acesso em: 25.jun.2014.
TEIXEIRA MENDES, R. 1880. Discurso comemorativo do tricentenário de morte de Luís de Camões. (2ª ed.: 1977). Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 1. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. 
_____. 1892. Benjamin Constant. Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do fundador da República Brasileira. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 120. 3ª ed.: 1936. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. 
_____. 1913. O império brasileiro e a república brasileira perante a regeneração social. A propósito do “Manifesto de S. A. I. o sr. d. Luiz de Bragança”, publicado no Diário do Congresso Nacional, de quarta-feira, 27 de agosto de 1913. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 350. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
_____. 1915. O Positivismo e a questão social. A propósito da questão anarquista. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 383. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

(Permitida a livre reprodução, desde que citada a fonte.)





[1] As anotações abaixo reproduzem em grandes traços a seção 3.2 de Lacerda (2014). Em todo caso, deve-se notar que os positivistas escreveram muitos discursos e artigos, tanto sobre a independência nacional quanto sobre José Bonifácio. Assim, a exposição que se seguirá é bastante tímida em relação à produção positivista a respeito.
[2] Augusto Comte considerava que, mesmo antes da independência dos EUA, o processo de fragmentação das grandes nações começou com a luta neerlandesa por sua independência em relação à Espanha, nos séculos XVI e XVII. De qualquer forma, o caso dos Estados Unidos é mais ilustrativo, pois tratou-se da separação entre dois povos de mesma língua, mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV, p. 460-467; LACERDA, 2010, p. 352).
[3] Essa falta de coordenação entre os núcleos de povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento em que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos 1891-1892: “[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje, uma verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[4] Mais adiante, Teixeira Mendes nota que os novos países americanos surgiam como repúblicas, embora fossem repúblicas muito imperfeitas: com escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado no caso dos países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais sem rei”); além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da América hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole e, depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 9-10).
[5] O federalismo seria claramente defendido no projeto de constituição federal apresentado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à Proclamação da República, no famoso documento intitulado “Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira”. Sendo mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem tanto o federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados ocidentais brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados americanos brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território brasileiro) e uma confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”. Cf. Lemos e Teixeira Mendes (1890). 

05 setembro 2014

5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte


Augusto Comte (19.1.1798-5.9.1857)


Augusto Comte refletindo sob a inspiração de seus três anjos (quadro a óleo de Ete
x)
5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte

Gustavo Biscaia de Lacerda

dia 5 de setembro marca o passamento de Augusto Comte (1798-1857), fundador do Positivismo, da Sociologia, da História da Ciência e da Religião da Humanidade.

Comte é popularmente conhecido por ter fundado a Sociologia e pelas suas reflexões histórico-filosóficas sobre as ciências em geral, mas sua obra consiste muito mais em compreender as condições da vida humana em uma sociedade imanente e relativista, ou seja, em como os seres humanos devem relacionar-se entre si em uma sociedade que reconheça o irrealismo das crenças sobrenaturais e absolutas.

Para isso, com base no estudo da história e da natureza humanas, ele propôs um sistema de valores e de organização social em que a vida é valorizada em seus mais diversos aspectos: individuais, familiares, nacionais e universais; passados, futuros e presentes; filosófico, artístico, científico, político, econômico – tudo isso baseado no estímulo do altruísmo.

O seu conjunto de idéias sobre o relacionamento humano imanente e relativista consubstanciou-se na “Religião da Humanidade”, cujas máximas mais importantes resumem o sistema:

O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim

Viver às claras

Viver para outrem

Ordem e Progresso

Agir por afeição e pensar para agir

“Cansamo-nos de agir / E até de pensar cansamos; / Só não cansamos de amar / E nem de dizer que amamos” (Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte)

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos

Entre suas várias lições, Augusto Comte mostrou como o culto aos mortos é uma das partes mais importantes das nossas vidas.

Pode parecer estranho comemorar o passamento – ou seja, a morte – de um ser humano; todavia, por paradoxal que possa parecer, isso é um dos atos mais humanos que há. Ao nascer, um indivíduo é apenas uma promessa, talvez uma esperança: é ao longo de sua vida, isto é, o conjunto de suas ações e decisões que indicará o valor de cada ser humano. Sendo a morte uma parte da vida, o conjunto da existência objetiva de cada um permite que se avalie de maneira global a sua vida: somente aí é possível determinar se o indivíduo foi bom ou mal, altruísta ou egoísta, e se merece de fato ser valorizado pelos seus contemporâneos e pelos pósteros.

Há outros dois aspectos importantes na comemoração dos mortos.

Por um lado, ao considerarmos a vida daqueles que já se foram, refletimos sobre suas condutas em determinadas situações; avaliamos suas dificuldades e suas possibilidades; lembramos os afetos que ofereceram: livres dos constrangimentos objetivos, a memória dos entes queridos dá-nos orientação, conforto, alegria; assim, embora objetivamente eles tenham passado, subjetivamente eles continuam entre nós.

Por outro lado, relembrar quem já passou lembra-nos também de que a sociedade humana é, acima de tudo, história, ou seja, é o conjunto sucessivo das várias gerações que nos permite sermos o que somos. Considerar os momentos específicos em que cada um viveu; as possibilidades e as dificuldades de cada situação; as soluções propostas: com uma correta perspectiva de longo prazo, tudo isso nos permite entender como é que chegamos a ser o que e quem somos e quais os rumos que segue a Humanidade. Dessa forma, o culto aos mortos é também, ao mesmo tempo, uma aula de História, de Sociologia e de Antropologia.

Fala-se com freqüência que a sociedade moderna não tem valores, que não tem "sentido" e assim por diante; também se fala que a responsabilidade dessa falta de sentido e de valores é da secularização, da ciência, da "técnica" etc.: a Religião da Humanidade é um poderoso antídoto, ou desmentido, contra o vazio moral e existencial. Augusto Comte mostrou como é possível ao mesmo tempo valorizar o próprio ser humano, não apelar aos deuses e ainda ter uma vida rica e plena.

Entre muitos outros, é por esses motivos que, no dia de hoje, 5 de setembro, cultuamos a memória de Augusto Comte.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

03 setembro 2014

L. A. Becker sobre o clericalismo na UFPR

Ainda a respeito da existência de (1) uma capela (2) explicitamente católica na UFPR, meu amigo L. A. Becker leu os argumentos apresentados pelos defensores do clericalismo. Ele notou alguns vários e sérios problemas na argumentação dos clericalistas; como Becker foi tão claro nos comentários, reproduzi-los-ei ipsis literis abaixo.

O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.

Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
  • o fato de clérigos participarem da fundação de uma universidade pública não cria o "direito" de nela instalar um espaço religioso; se assim fosse, o fato de flamenguistas participarem criaria o direito de nela instalar uma filial da torcida organizada do Flamengo;
  • laicidade não tem nada a ver com culto idólatra à razão - é questão conceitual;
  • também não se trata de atrapalhar o rendimento acadêmico; muito menos fechar a universidade porque tem origem na Igreja; o autor inventa acusações não feitas para atacá-las; é como seu eu dissesse: "é mentira que existe um cavalo de duas cabeças lá em casa!";
  • comparar a capela da UFPR com a Notre Dame é descabido; não só pela desproporção histórica e arquitetônica, mas porque a Notre Dame não está instalada dentro de uma universidade pública;
  • porque o Estado reconheceu o valor histórico da capela não significa que se está proibido de reconhecer que o lugar é inadequado; um erro não justifica o outro;
  • a proteção aos lugares de culto não significa a convalidação de sua instalação em lugares inadequados; caso contrário, instalemos o Templo de Salomão sobre as pistas do aeroporto Afonso Pena e, em seguida, proibamos que seja derrubado;
  • não se trata de apagar os rastros da religião, mas de retirá-la dos espaços laicos; igrejas fora deles, nada contra elas;
  • um espaço de laicidade não é o mais adequado a receber uma capela; assim como uma igreja não é o espaço mais adequado para instalar o gabinete de um prefeito: a Cesar o que é de Cesar.
Acrescento ainda quatro aspectos: 
  • os clericalistas, no artigo mencionado acima, reconhecem implicitamente que a capela universitária da UFPR seria da Igreja Católica, ao referirem-se à Concordata de 2010 para justificarem a obrigação do Estado brasileiro (e, por extensão, da UFPR) de defenderem templos católicos. Em outras palavras, eles levam tão pouco a sério a separação entre igreja e Estado; defendem com tanta naturalidade os privilégios da Igreja Católica, que não entendem (e nem querem entender) que o espaço da UFPR é um espaço do Estado brasileiro e não uma representação eclesiástica no ambiente universitário;
  • a capela foi criada em 1958; todavia, desde 1950 a antiga Universidade do Paraná é uma autarquia federal: em outras palavras, a capela foi, desde o início, construída irregularmente e ofendendo francamente a laicidade do Estado;
  • os clericalistas afirmam que, devido ao fato de a Capela Universitária ser tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico, não se pode mexer nela. Todavia, não é a capela, mas o complexo da Reitoria da UFPR que é tombado; além disso, o tombamento refere-se aos elementos arquitetônicos do prédio, não à decoração interna e ao uso que os prédios fazem de seus espaços internos. Nesse sentido, como argumentamos em nosso artigo inicial, não há absolutamente óbice algum à utilização do espaço para outros fins que não os cultuais, ou, por outro lado, para o uso de outros cultos e ritos;
  • devido ao uso ostentatório do espaço da Capela Universitária pela Igreja Católica, muitos indivíduos têm a impressão de que esse espaço pertence a essa igreja, isto é, de que se trataria de um enclave católico na UFPR. Não: a Capela Universitária é um espaço da Universidade (o que equivale a dizer que é um espaço do Estado brasileiro, ou seja, da República Federativa do Brasil) e sua decoração católica é devida à ação completamente ilegal dos administradores da UFPR, tanto os de 1958 quanto os de 2014.

(A primeira versão desta posta é de 3.9.2014; em 5.9.2014 fiz uma atualização.)

02 setembro 2014

Artigo na Gazeta do Povo: "Novamente: UFPR clerical?"

Artigo de minha autoria publicado na Gazeta do Povo de 2.9.2014. O original pode ser lido aqui.

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Novamente: UFPR clerical?

No dia 7 de agosto, ocorreu no câmpus da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR) uma cerimônia curiosa: a reinauguração da capela universitária, realizada pelo magnífico reitor em pessoa. Após um longo processo de reforma, o curioso em tal evento não foi a sua reabertura ao público, mas a reabertura com a sua “reconsagração”, por meio da realização de uma missa católica conduzida pelo bispo auxiliar dom Rafael Biernaski. Além disso, em todo esse espaço há, de modo ostensivo, imagens de santos católicos e símbolos cristãos. Talvez, à primeira vista, pareça não haver nada errado com isso; entretanto, como já indicamos em outros momentos neste espaço da Gazeta do Povo, é tudo altamente problemático.
A UFPR é uma autarquia federal e deve seguir as leis gerais da República e as específicas que regulam o Estado brasileiro. Dessa forma, a UFPR deve pautar-se pelo cuidadoso e rigoroso respeito à laicidade do Estado. A laicidade do Estado brasileiro foi definida pelo Decreto 119-A, de 1890, bem como afirmada e reafirmada por todas as Constituições republicanas, incluindo a de 1988 (em seus artigos 5.º e 19). De acordo com essas leis, não é facultado a nenhum órgão e/ou servidor público – presidente da República, reitor de universidade ou o mais humilde servidor do menor município do país – apoiar ou subvencionar qualquer religião.
Ora, a “reconsagração” especificamente católica, os símbolos presentes e, aliás, o próprio nome da capela, “Nossa Senhora do Carmo”, constituem apoios claros a uma religião por um órgão público. Como conciliar os preceitos legais com a existência da capela na UFPR?
Em primeiro lugar, em face da laicidade, a UFPR não deveria ter capela. Nesse sentido, deve-se notar que a universidade apresenta uma séria falta de espaço para alojar gabinetes de professores, grupos de pesquisa, grupos artísticos e de extensão, órgãos administrativos: o amplo espaço da capela poderia ser utilizado para qualquer uma dessas utilidades.
Mas, caso aceite-se a existência da capela como um fait accompli – o que não é nenhuma obrigação política ou jurídica –, para que ela respeite a laicidade são necessárias mudanças ao mesmo tempo radicais, mas simples: a retirada de todos os símbolos religiosos, guardados para uso quando da prática episódica dos cultos católicos e/ou cristãos; a mudança do nome, para simplesmente “Capela Universitária”; a definição urgente de critérios de utilização do espaço pelos diversos grupos religiosos e filosóficos (convém notar que, entre 2012 e 2014, solicitamos inúmeras vezes à administração da UFPR a apresentação dos critérios de utilização da capela; ou as respostas eram evasivas ou não havia resposta).
A religião é uma questão de foro íntimo e é ilegítimo ao Estado – e às suas autarquias – promover qualquer uma delas. Por outro lado, não se sabe a que ou a quem serve essa capela: se à comunidade universitária que deseja um espaço de reflexão íntima ou ao proselitismo paraoficial de determinados credos e igrejas. Se a UFPR deseja realmente ser um espaço da prática e da reflexão democráticas, cidadãs e republicanas; se deseja ser um símbolo do que o Paraná e o Brasil produzem de melhor, é imperativo que a capela seja efetivamente um espaço laico.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

Carlos Eduardo Oliva: "deve-se compreender melhor o Estado laico"

Reproduzo abaixo alguns comentários que meu amigo Carlos Eduardo Oliva fez em 1º.9.2014, a propósito da idéia de "laicidade" defendida por alguns grupos sociais e por alguns políticos. Essas observações foram feitas no facebook, mas seu valor transcende a imediatez dessa rede social.

O original pode ser lido aqui.

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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação

[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente. 

Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!

01 setembro 2014

Irracionalidade administrativa: Marina Silva decide com a "fé"

Embora eu tenha muitas restrições à pessoa da Marina Silva, até o momento estava mantendo uma postura reservada a seu respeito.

Mas com declarações como as reproduzidas na matéria indicada abaixo não dá para calar-se e fingir que "está tudo bem".

Deixemos de lado, por ora, o problema da laicidade do Estado.

A administração pública brasileira tem feito, nos últimos 25 anos (para não dizer desde 1930, ou até mesmo desde 1889), um esforço hercúleo em direção à racionalidade administrativa, à previsibilidade e ao controle da discricionariedade dos atos dos agentes públicos, bem como à adoção de critérios humanos e universalmente compartilháveis. Mesmo o boquirroto e demagógico Lula mais ou menos seguiu esse parâmetro, que se afasta da astrologia imperial de Jânio Quadros e da arbitrariedade também imperial de Fernando Collor de Mello.

Aí, de repente, uma pessoa que tem chances reais de vir a tornar-se Presidente da República afirma tomar decisões na base da loteria, isto é, com base nas mais absolutas e completas arbitrariedade e, portanto, irresponsabilidade: qualquer servidor público que declarasse agir com base em tal (falta de) parâmetro correria o seriíssimo risco de sofrer um processo administrativo disciplinar. Mas cargo eleito com base na Bíblia pode... como assim? Que baderna é essa?

Por acaso Marina Silva adotará em última análise a tal da "roleta bíblica" para decidir a política econômica do país? Para decidir nossos posicionamentos na Organização Mundial do Comércio? Nossas relações com os países árabes, ou com os Estados Unidos? Ou será que ela buscará diretamente no Levítico as orientações para nossas políticas de saúde? Nem há nem laicidade, nem "universalismo", nem racionalidade nessa forma de "decidir".

Conferir a matéria "Decidindo com a fé", publicada em 1.9.2014 na Folha de São Paulo (disponível aqui).  

26 agosto 2014

Formação étnica e independência nacional na "teoria do Brasil" dos positivistas

Entre 4 e 7 de agosto de 2014 tive a felicidade de participar do IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado em Brasília. Durante esse evento, apresentei o artigo anexo, que, após uma revisão geral, apresento ao grande público.

Deixando de lado algumas correções gramaticais menores, a única alteração maior refere-se ao título: ele passou de "Política e instituições na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (conforme a proposta original da comunicação) para "Formação étnica e independência nacional na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (que descreve mais corretamente a versão final do texto). 

De qualquer forma, convém notar que esse é apenas um resultado inicial de uma pesquisa que realizo sobre a "teoria do Brasil" dos positivistas ortodoxos brasileiros. Como havia limitação de espaço, o texto é relativamente curto.

O portal do Encontro está disponível aqui.

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Formação étnica e independência nacional na “teoria do Brasil” dos positivistas Ortodoxos brasileiros


Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

1. Introdução

É mais ou menos senso comum nos meios acadêmicos e eruditos o fato de que o Positivismo no Brasil exerceu grande influência nos meios intelectuais e políticos no período de cerca de meio século que vai de 1881 a 1930. Nesse sentido, a frase de Otto Maria Carpeux é famosa: “A significação do positivismo na história do Brasil ultrapassa os limites da história de um sistema filosófico” (Carpeaux apud BOSI, 2010, p. 273). Em virtude disso, vários estudos de diferentes perspectivas e qualidades foram dedicados a analisar essa influência, seja desde meados do século XIX, seja nas últimas décadas, abrangendo não apenas os positivistas ortodoxos (ligados à Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (IPB), em particular Miguel Lemos e Teixeira Mendes) como também os heterodoxos (a plêiade que atuou no jornalismo, na política, na vida acadêmica e que não se vinculava à IPB: Pereira Barreto, Júlio de Castilhos, V. Licínio Cardoso, Ivan Lins, Paulo Carneiro)[2].
Face à alegada importância dos positivistas, não deixa de causar certa estranheza a sua ausência em discussões sobre os chamados “pensamentos social e político brasileiros”. Um exemplo de ausências desse gênero está na coletânea organizada por Botelho e Schwarcz (2009), que aborda 29 autores dos séculos XIX e XX que se dedicaram a refletir a respeito do “enigma chamado Brasil”, nenhum dos quais é positivista (ortodoxo ou heterodoxo). É claro que os organizadores não tinham nenhuma obrigação de incluir positivistas e que, assim como os positivistas estão ausentes dessa coletânea, inúmeros outros pensadores nacionais também não se encontram relacionados nela: o que nos interessa aqui é destacar o aspecto exemplar dessa ausência.
Comparando as várias pesquisas havidas sobre o Positivismo no Brasil, em que se afirma a sua importância histórica, com a ausência em coletâneas e estudos sobre o pensamento social e político brasileiro, a impressão que se tem é que o Positivismo merece somente alguns comentários (“críticos”), mas não exposições mais ou menos sistemáticas de suas intervenções: é como se o grande conjunto de pensadores e ativistas que recebe a etiqueta geral de “positivistas brasileiros” não tivesse refletido sobre a história do país, sua sociedade, suas instituições, seus problemas e, claro, seus caminhos e soluções. Em outras palavras, os círculos intelectuais e acadêmicos, de direita ou de esquerda, realizam na prática e assim “confirmam” a agressiva opinião do marxista Paulo Arantes (1988, p. 185), para quem o Positivismo no Brasil foi como que um surto de sarampão – devendo-se lembrar-se dele, mas sem que isso conduza a maiores possibilidades de reflexão teórica e/ou aplicação prática positiva.
Pode-se dizer, portanto, que na literatura especializada ocorre uma importante lacuna; nesse sentido, o que propomos nesta pesquisa é investigar diretamente o conjunto de idéias e noções dos positivistas brasileiros que poderíamos enquadrar no “pensamento social e político brasileiro”. De maneira mais específica, propomo-nos a estudar aquilo que, dentro da vasta produção intelectual dos positivistas ortodoxos, denominamos anteriormente de “teoria do Brasil”.
Como etapa preliminar para as pesquisas desenvolvidas em Lacerda (2013a; 2013b), fizemos a classificação inédita de pouco mais de 350 das mais de 500 publicações da IPB[3], organizando-as em uma série de rubricas gerais, sugeridas pelos temas principais abordados em cada uma dessas publicações: em um total de 27 categorias, apresentavam-se temas tão variados quanto “separação entre Igreja e Estado”, “abolição da escravidão”, “militarismo”, “despotismo sanitário”, “relações internacionais” etc. Uma dessas categorias era “teoria do Brasil”, que apareceu em dois dos 355 opúsculos indexados como categoria principal e em outros sete como categoria secundária ou terciária.
Elaboramos a categoria “teoria do Brasil” adotando critérios ao mesmo tempo doutrinários e pragmáticos, ou seja, buscando tanto seguir e respeitar as idéias seguidas pelos dois principais autores dos opúsculos da IPB (Miguel Lemos e, principalmente, Raimundo Teixeira Mendes) quanto estabelecer termos-chave que pudessem com facilidade identificar temas gerais acessíveis aos leitores contemporâneos. No caso em questão, a “teoria do Brasil” refere-se à interpretação do desenvolvimento social e político do país, em que interagem dinamicamente as instituições, as elites, a massa da nação, a organização interna e a realidade internacional. De qualquer forma, convém notar que a maior parte dessas categorias (quando não sua totalidade), não são nem exaustivas nem mutuamente excludentes, ou seja, elas tanto sobrepõem-se umas às outras quanto com grande freqüência não esgotam os temas tratados em cada uma das publicações: assim, para o caso que nos interessa, embora “teoria do Brasil” esteja presente explicitamente em apenas nove casos, ela apresenta-se de maneira implícita em dezenas de outros, como nos textos dedicados à abolição da escravidão, à crítica à Guerra da Tríplice Aliança, à incorporação do proletariado à sociedade brasileira, à proclamação e à organização da República, à separação entre Igreja e Estado etc. Nesse sentido, é possível ampliar bastante a abrangência qualitativa e quantitativa da categoria “teoria do Brasil” no conjunto das publicações da IPB (embora tal não seja nosso objetivo aqui).
A presente comunicação pretende expor alguns dos argumentos e traços da “teoria do Brasil” defendida pelos positivistas ortodoxos, especialmente no que se refere a dois aspectos: (1) a composição étnica do país e algumas de suas conseqüências sociais e (2) a interpretação dos positivistas a respeito da independência do Brasil. Para isso, analisaremos algumas publicações da Igreja Positivista, nomeadamente a comemoração do tricentenário da morte de Luís de Camões (Teixeira Mendes, 1977 [1880]) e a biografia de Benjamin Constant (Teixeira Mendes, 1936 [1892])[4].

2. Preliminares teóricas: evolução ocidental e inserção dos povos ibero-americanos

Dois passos preliminares, que são necessários para a presente discussão e que também foram desenvolvidos por exemplo por Teixeira Mendes (1936 [1892]), são, de um lado, a exposição de alguns elementos da teoria da história de Augusto Comte (incluindo aí a sua utopia) e, por outro lado, explicar a inserção da evolução dos povos ibero-americanos – e, portanto, do Brasil – no conjunto da evolução ocidental, igualmente de acordo com o esquema proposto por Augusto Comte. Bem vistas as coisas, esses passos correspondem a duas necessidades lógicas e teóricas de qualquer exposição histórico-sociológica: de um lado, o enquadramento teórico da exposição e, de outro lado, a contextualização. Convém reforçar o fato de que esses passos correspondem a imperativos da filosofia positivista (cf. COMTE, 1929, v. II, cap. 1) e, nesse sentido, são integrantes da concepção defendida pelos positivistas ortodoxos, sem os quais não faz sentido a sua “teoria do Brasil”. Sendo mais específicos, e diferentemente de grande parte dos analistas e intérpretes de sua época, os positivistas não consideravam o desenvolvimento do Brasil apenas nos termos mais ou menos genéricos de “surgimento e consolidação da nação”, ou da criação de um “tipo humano brasileiro”, ou da “oposição entre Estado e nação”; também não consideravam, de maneira correlata, o tratamento dessas questões tendo como pano de fundo a referência também mais ou menos abstrata às “nações mais desenvolvidas”: suas elaborações percebiam o Brasil como vinculado intimamente ao desenvolvimento da humanidade e de modo mais específico do Ocidente, considerando também as contribuições do país para a humanidade.
De acordo com Augusto Comte (1929; 1972; cf. LACERDA, 2010), desde o século XIV a Europa atravessa uma grande crise, que consiste em um duplo movimento: por um lado, destrutivo; por outro lado, construtivo. A destruição consiste no fim da ordem católico-feudal, próprio à Idade Média, primeiramente em aspectos secundários e marginais do sistema, depois sendo atacada em seu conjunto. A construção consistiu no surgimento de elementos que, ao mesmo tempo em que destruíam a ordem católico-feudal, desenvolviam traços e características de uma nova sociedade: a ciência, a atividade pacífico-industrial, concepções universalistas. A crise deflagrada após o século XIV consistiu no fato de que, embora a antiga ordem social estivesse exausta e sendo desfeita em seus vários traços, a nova ordem social ainda não estava pronta para sucedê-la: desde os 1400 até pelo menos 1789 essas duas dinâmicas foram concomitantes, embora com suas intensidades e seus ritmos variando de acordo com o momento específico e com cada país[5]. A Revolução Francesa, na concepção comtiana, corresponde a uma grande explosão social, em que a antiga ordem é destruída violentamente, subjugada pelos novos elementos – sem que, todavia, a nova sociedade constitua-se de maneira orgânica.
Quais seriam os elementos da nova sociedade, de maneira mais específica? De modo mais imediato, a atividade pacífico-industrial. Essa expressão abrange vários aspectos: a exploração racional do mundo, baseada tanto na aplicação dos conhecimentos técnico-científicos quanto, portanto, no cuidado com a sociedade e os cidadãos e também com o meio ambiente. Essa atividade não se baseia na guerra, isto é, não consiste mais no uso coletivo e generalizado da violência de uma sociedade contra outra, para dominar, para escravizar, para aniquilar, seja quais forem os fins (riqueza, poder, glória): ela deve ser pacífica, baseada na colaboração o mais livre possível entre os seres humanos, buscando-se o bem comum. A ultrapassagem da guerra em direção à atividade pacífico-industrial requer não apenas o desenvolvimento de elementos técnicos e científicos, mas principalmente o espalhamento de uma concepção de ser humano e de sociedade que adote com clareza o conceito de “humanidade”, isto é, o conjunto de seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes: esse conceito subordinaria a si a idéia de “pátrias”, sem no entanto negá-las, de modo a regular o patriotismo e afirmar um conceito ao mesmo tempo intelectual e afetivo que possa de fato irmanar países e seres humanos.
O terceiro elemento é a concepção relativa e imanente da realidade, isto é, nem absolutista nem supraterrena. Grosso modo, essa concepção pode ser entendida como o empreendimento científico, que se opõe à teologia (e à versão corrompida da teologia, a metafísica), na medida em que a teologia é absolutista em termos filosóficos e supraterrena. Todavia, apesar de falar-se muitas vezes em “ciência” no singular, o fato é que há somente “ciências”, no plural: cada ciência corresponde tanto a um grau específico de abstração no estudo da realidade quanto ao estudo de um determinado tipo de objeto; em outras palavras, as ciências são fragmentárias e particulares. Em princípio não há problema em as ciências terem tais características: a dificuldade surge quando se considera que as ciências fragmentárias não propõem aos seres humanos concepções de conjunto sobre a realidade, sobre a sociedade e sobre os indivíduos, como a teologia faz; além disso, as ciências também se caracterizam pela especialização, acarretando não poucas vezes o seu isolamento progressivo ou, inversamente, o imperialismo intelectual de uma ciência sobre outras; tanto em um caso como em outro, Augusto Comte considera que as ciências com freqüência tendem, de maneira paradoxal, ao absolutismo filosófico.
Assim, cumpre o desenvolvimento de uma concepção geral da realidade que se baseie nas ciências mas que não se limite a elas, ou seja, que ao mesmo tempo seja sintética (em vez de analítica) e que, assim, seja capaz de contemplar os vários aspectos e as várias atividades humanas: a vida prática, os sentimentos, os pensamentos; a política, a economia, as artes, a ciência, a vida familiar. Mais particularmente, essa concepção deve abranger também os valores morais e, portanto, deve ter um caráter normativo, afirmando e valorizando o altruísmo, comprimindo (e, caso necessário, repreendendo) o egoísmo. Para Comte, essa concepção é de caráter filosófico e, ao estabelecer uma interpretação geral da realidade e parâmetros de relacionamento, consiste em uma religião: daí o grande sistema teórico que é o Positivismo e a proposta comtiana de Religião da Humanidade.
Para Comte, a perspectiva que afirma a humanidade e o altruísmo deve servir para regular também as diversas relações sociais. De modo mais específico, notamos que, aceitando tanto o governo quanto a propriedade privada, Comte afirmava a necessidade de orientá-los para a satisfação das necessidades sociais, o que resultava, no seu sistema filosófico, em um governo não autoritário, em cidadãos nem revoltosos nem servis, em patrões respeitadores dos padrões de vida de seus trabalhadores. Além disso, um Estado que não adote nenhuma crença em caráter oficial e que não a imponha aos cidadãos; inversamente, doutrinas, igrejas e associações que não usem o Estado para imporem-se nem para oprimirem outras doutrinas. Todas essas relações seriam afirmadas em um âmbito público não-estatal, ou seja, na sociedade civil; o órgão sistematizador e propagador dessas idéias religiosas seria a igreja positivista.
Embora relativamente longa, esta digressão foi necessária para que se compreenda tanto a interpretação que os positivistas ortodoxos faziam do Brasil quanto a sua própria atuação prática.
Enfim: para Comte, no duplo processo de decadência da ordem católico-feudal e de criação da sociedade pacífico-industrial, a península ibérica ocupava uma posição bastante específica. Desde o século XV o papado conferiu aos reis de Portugal e Espanha o regalismo, ou seja, o direito e o dever de protegerem a Igreja Católica em seus territórios, fossem os metropolitanos, fossem os coloniais. O regalismo por si só indica ao mesmo tempo a incapacidade do papado de manter e regular a igreja e a doutrina em determinados territórios e o poder material dos reis, isto é, sua capacidade de controlar seus territórios. De qualquer forma, pelo menos no caso português, ao regalismo associou-se o padroado, ou seja, a obrigação legal da igreja católica em um país de pedir autorização para o governo para os seus processos diversos, quer fossem doutrinários, quer fossem eclesiásticos.
Em linhas gerais, para Comte, a outorga feita pelo papado aos governos ibéricos do controle sobre a igreja resultou em que as populações portuguesa, espanhola e suas respectivas colônias (especialmente as americanas) estiveram muito mais sob a influência do poder Temporal que do poder Espiritual; além disso, o catolicismo praticado em tais países teria um caráter muito mais ritual, pro forma, que autêntico; a expulsão (e posterior fim) dos jesuítas em meados do século XVIII confirmaria essa tendência. Ainda assim, em virtude do peso histórico, o clero conservaria uma influência social considerável, especialmente na Europa: na América isso teria menor importância e, portanto, o surgimento de um novo poder Espiritual, positivo, em substituição ao católico, enfrentaria menores obstáculos. Não por acaso, a seguinte citação, que resume essas considerações, é usada por Teixeira Mendes (1936 [1892], p. 1) como epígrafe do cap. 1 da sua biografia de Benjamin Constant:
"Porém, por mais normais que sejam essas esperanças quanto ao clero na Península [Ibérica], elas parecem-me convir sobretudo à expansão americana do duplo elemento ibérico. O centro romano pode, na Espanha, obstar a regeneração do sacerdócio, se não em virtude de uma preponderância direta, há muito extinta aí mais do que alhures, pelo menos em virtude do ascendente indireto que lhe conservam as disposições populares. O mesmo não acontece na América, onde o papado jamais prevaleceu senão por meio da realeza, única fonte real da hierarquia eclesiástica. Depois que as colônias católicas obtiveram a independência política, a influência romana encontra-se aí naturalmente desenraizada. Ainda que os chefes temporais falhem aí em termos de consistência, eles devem espontaneamente suceder às atribuições eclesiásticas do governo real. Esses ditadores precários, ainda que empíricos, devem respeitar mais a independência de um único sacerdócio incorporado profundamente a tais populações" (COMTE, 1929, v. IV, p. 488-489).
Um outro aspecto importante das concepções especificamente de Comte é o caráter ao mesmo tempo social e afetivo das populações neolatinas, o que evidentemente inclui Portugal e a sua colônia americana, o Brasil. Para Comte, os países do Sul da Europa integraram diretamente o Império Romano e, assim, sofreram a sua influência, que consistiu em estimular a sociabilidade, ao criar uma grande associação humana surgida da guerra mas voltada para a paz, subordinando a política à moral e a inteligência à política. Assim, os países do Sul da Europa teriam unido os avanços intelectuais gregos à sociabilidade romana (algo que os países do Norte da Europa só obtiveram indiretamente, por meio da expansão posterior do catolicismo): no esquema comtiano, a civilização católico-feudal desenvolveu os atributos afetivos, com o culto cavalheiresco à mulher, com as preocupações diretamente morais (embora mais voltadas para um certo combate ao egoísmo que para o estímulo do altruísmo), mas também com a progressiva emancipação dos escravos (que passaram a homens livres via servidão nas glebas), com as guerras defensivas (em relação às sucessivas invasões bárbaras e, depois, com a reação à expansão do Islã) e com o ensaio da separação entre os dois poderes (com o poder Espiritual unificado em meio à dispersão feudal e com as disputas entre o papa e o imperador).
No caso específico de Portugal, as lutas contra os mouros e, depois, a afirmação da identidade política face aos reinos espanhóis conduziu à precoce unidade política ainda no fim da Idade Média. A monarquia lusa, depois do século XIV, dobrou perante si a igreja católica e a nobreza, promovendo, por um lado, a confusão entre os dois poderes e, por outro lado, afirmando-se como a fonte de poder. Após o ciclo da afirmação da nacionalidade, nos séculos XII e XIII, o país passou a dedicar-se à exploração marítima, contornando primeiramente a África e depois atravessando o Atlântico, rumo ao Brasil.

3. Alguns dos elementos da “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos

3.1. Composição étnica do Brasil

O primeiro elemento da teoria do Brasil dos positivistas ortodoxos que devemos considerar refere-se à composição étnica do país. Teixeira Mendes nota que a população brasileira é composta pelos tipos europeu, africano e autóctone, definidos em termos de seus respectivos desenvolvimentos: o português, como vimos, seria o grupo ao mesmo tempo intelectual e social, que, integrando o movimento geral da Europa, atravessaria a transição revolucionária em direção à plena positividade; além disso, como comprovariam os costumes gerais e a língua, foi o grupo dominante na constituição do Brasil. Os índios e os africanos eram povos feiticistas (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 47; 1936 [1892], p. 2-3), colaborando com a imaginação e, no caso específico dos escravos negros, desenvolveriam bastante os atributos afetivos do povo brasileiro.
Teixeira Mendes observa que o isolamento geográfico e político da nação brasileira manteve o país distante dos progressos intelectuais e industriais realizados na Europa, especialmente nos países protestantes. Sem dúvida, isso nos privou de avanços importantes; mas, por outro lado, também evitou que se difundisse no Brasil a “semiputrefação” a que uma “incompleta emancipação teológica” condenava esses países. Como o catolicismo nacional era pro forma e os colonos brasileiros de origem portuguesa buscavam aqui a melhora das condições materiais, o país manteve-se livre dos grupos sociais mais energicamente retrógrados. A conjugação desses fatores resultaria em que não seria difícil ao Brasil a assimilação posterior dos progressos intelectuais e materiais das nações mais desenvolvidas, ao mesmo tempo em que se garantiria a subordinação desses progressos à cultura afetiva – o que, no sistema comtiano, equivale ao estímulo do altruísmo, da sociabilidade e do caráter e do destino sociais da inteligência[6].
A mistura dos três grupos sociais e a prevalência do elemento português na exposição de Teixeira Mendes apresentam dois aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, Teixeira Mendes fala em “raça” ao longo dos textos, especialmente na comemoração de Camões: mas, entre os vários empregos dessa palavra, aqui e ali ele observa que a emprega em sentido sociológico e não biológico. A investigação de diferenças biológicas entre os seres humanos como fundamento para a afirmação das raças, de acordo com a narrativa de Teixeira Mendes, seria anticientífica (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 41), isto é, metafísica. Para Teixeira Mendes, seguindo A. Comte, em termos biológicos o que há é unidade do ser humano (no que se refere à natureza humana); as diferenças não são dadas a priori por variações genéticas, mas, bem ao contrário, o que ocorre são diferenças de adaptação dos vários grupos aos seus ambientes, que a pouco e pouco se fixam nos grupos sociais: quando se trata do ser humano, portanto, a discussão sobre as raças deve pautar-se pelas investigações históricas e sociológicas, em vez de pelas biológicas.
Em segundo lugar, há uma sensível diferença de ênfase entre a conferência de 1880 e o livro de 1892 a respeito da colaboração dos povos feiticistas na constituição do povo brasileiro. Na comemoração de Camões, Teixeira Mendes afirma a um tempo a afetividade dos negros africanos, bem como o caráter social e também afetivo dos portugueses; também lembra que o fetichismo estimula a imaginação e a afetividade[7]. Entretanto, ao avaliar a contribuição que os índios e os africanos teriam para a formação étnica brasileira, caso tivessem a proeminência, considera que seria pequena ou mesmo negativa, em virtude do estágio em que se encontravam em suas evoluções, especialmente se comparado com os portugueses (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 47). Essas considerações não deixam de parecer um pouco brutais para os leitores do início do século XXI; entretanto, relendo atentamente os trechos o que se evidencia é que a preocupação de Teixeira Mendes está na direção geral do processo e não propriamente nas colaborações parciais dos grupos: nesse sentido, o que aconteceria com o nível de abstração atingido pelos portugueses se os índios ou os africanos dirigissem a colonização? Ou, então, como ficaria a instituição da monogamia ou as vistas gerais de humanidade em situação similar? De qualquer forma, na biografia de Benjamin Constant, ainda que não interessasse a Teixeira Mendes estender-se a respeito da formação étnica do Brasil, ele comenta de maneira mais suave e positiva a contribuição dos dois grupos subalternos (especialmente dos africanos) para o Brasil, notando que eles influenciaram-nos em particular no sentido de aumentar e estimular a afetividade (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3). Além disso, em ambos os livros Teixeira Mendes não deixa de afirmar a responsabilidade dos europeus pelos seus crimes, a começar pelas escravidões dos índios e, depois, dos africanos na América (que, cada uma a seu tempo, contou com o apoio direto da igreja católica) e referindo-se também, entre outras coisas, ao “criminoso industrialismo” que prevalecia em sua época e que degradava os trabalhadores e desunia os seres humanos.
Pondo de lado as diferentes preocupações de cada um dos escritos – explicar a importância social e literária de Camões em um caso, explicar a importância social e política de Benjamin Constant no outro caso –, como poderíamos entender as ênfases nos dois escritos? Antes de mais nada, temos que observar que Teixeira Mendes era muito coerente consigo próprio, ou seja, a partir dos escritos de Augusto Comte, procurou manter ao longo de sua vida adulta concepções estáveis sobre o mundo e a sociedade; ainda assim, essa coerência ao longo do tempo não equivale a dureza ou alheamento à realidade; em vários momentos ele (bem como Miguel Lemos) mudou publicamente de opinião – como, por exemplo, nas recomendações a respeito dos destinos para os negros tornados livres, em que passaram de sugerir a transformação dos negros em servos da gleba (nas mesmas antigas fazendas em que antes eram escravos) para a sua incorporação direta nas cidades, como proletariado livre e respeitado (cf. LINS, 1973); em outro momento (TEIXEIRA MENDES, 1915) comentou que, ao longo do tempo, procurou ser sempre cada vez mais positivo, isto é, mais altruísta, mais sintético, mais cooperativo. Dito isso, parece-nos que há duas ou três razões para as diferentes ênfases, todas de caráter mais ou menos “contextual”. Em primeiro lugar, a comemoração de Camões foi um dos seus primeiros escritos públicos de grande alcance com base no Positivismo, quando contava com menos de 25 anos de idade: embora já conhecedor das idéias de Comte, percebe-se um tom enérgico, que poderíamos considerar como sendo um pouco próprio à idade; a energia dos seus textos manteve-se, mas sem dúvida ele adocicou-se com o passar do tempo. Em segundo lugar, entre os dois escritos a participação política de Teixeira Mendes aumentou bastante: por “participação política” não entendemos a vida partidária, mas, de acordo com o ideal dos positivistas ortodoxos de constituírem-se em um poder Espiritual, incluímos aí as intervenções cotidianas nos assuntos públicos, por meio de prédicas, palestras e escritos. Ao longo da década de 1880, como se sabe, entre as várias campanhas que agitaram a sociedade civil e os políticos brasileiros, uma destacou-se: a campanha pela abolição da escravatura. Assim, embora ainda tencionemos verificar seus posicionamentos diretamente nos textos publicados sobre esse tema, cremos que foi o decidido engajamento dos positivistas na campanha abolicionista que fez Teixeira Mendes mudar sua ênfase a respeito da colaboração das raças na constituição da nacionalidade brasileira[8].

3.2. A independência nacional

O segundo elemento que abordaremos da “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos é o da independência nacional, exposta principalmente na biografia de Benjamin Constant (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892]).
Seguindo a teoria comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média, seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações e da colonização das Américas.
Por outro lado, para Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2)[9]. Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político forte, que deve basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela atividade pacífica e por história e valores comuns; além disso, e de modo mais importante, a pequena extensão territorial permite um conhecimento mais direto dos cidadãos entre si, o que aumenta a confiança mútua e também a responsabilidade dos gestores públicos e privados dos diversos tipos de capital.
No que se refere ao continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse quadro, foram os Estados Unidos[10]; nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso, como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava, precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica, acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela antiga colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco, em 1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que
“A separação política das duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela satisfação dada às aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente. Quebradas as opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o aspecto de uma livre federação sob a presidência de uma realeza tradicionalmente venerada” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto, de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a figura de José Bonifácio.
“José Bonifácio, o tipo mais eminente da raça portuguesa naquele tempo, reconhecendo a gravidade da situação, pôs-se à testa dos patriotas. Um pensamento o domina. Frustrada a união política dos portugueses de ambos os hemisférios, o velho cidadão preocupa-se com salvar pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa unidade se lhe oferece no seu duplo aspecto: manutenção da integridade política das pátrias brasileiras e fusão completa das três raças que as constituem, de modo a formar com elas uma nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
No que se refere à unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles centralizava e coordenava, de fato, todos eles[11]; muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras, como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano de 1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem européia. O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil independente e ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos poucos e frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema:
“Examinada na sua composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se em duas castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que, econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo, chegando a constituir duas diferentes castas sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes, a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro problema, qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações sobre José Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não concebia uma república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a emancipação gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele projetara a incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na catequese teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por pouco tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo menos imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia serviu para manter ambas as práticas[12].
Mesmo com essas importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –, em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos:
“Foi assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no período da independência nacional.
De qualquer forma, cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”, conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções, pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica” e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de retalhos” política.
A segunda acepção é de caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e, portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo político, advoga o federalismo ou o confederalismo[13]. A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2) de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 12-13)).

4. Comentários finais

Em virtude do tamanho necessariamente reduzido deste artigo, a exposição das concepções sociais e políticas dos positivistas ortodoxos – que compendiamos na categoria “teoria do Brasil” – tiveram que se limitar a apenas dois elementos, ainda que amplos: a formação étnica e o processo de independência. Muitas outras questões ainda poderiam ser incluídas na rubrica da “teoria do Brasil”: a crítica à Guerra da Tríplice Aliança; a defesa do abolicionismo; a incorporação dos índios à sociedade brasileira; a incorporação do proletariado à sociedade; a defesa de uma política externa brasileira e de uma política internacional pacíficas; a separação entre igreja e Estado; a defesa de um imaginário especificamente republicano, humanista e fraterno para a República brasileira após 1889.
Seja com base nos elementos expostos neste artigo, seja com base em pesquisas prévias (LACERDA, 2013a; 2013b), parece-nos que é possível tirar algumas conclusões e (re)afirmar algumas considerações, incluindo uma clara defesa da produção intelectual e política dos positivistas ortodoxos brasileiros.
A primeira consideração diz respeito ao título “ortodoxo” e à conotação usual de que a ortodoxia corresponderia a um engessamento mental, ou mesmo a um reacionarismo intelectual e/ou político. Miguel Lemos e Teixeira Mendes, seguindo as orientações de Augusto Comte (cf., p. ex., COMTE, 1929, v. I-IV, prefácios), definiam-se como “ortodoxos” em virtude de aceitarem a integralidade da obra de Comte, ou seja, por incluírem em suas reflexões os livros políticos e religiosos do fundador do Positivismo, em vez de limitarem-se ao exame preliminar que Comte fez das ciências e das filosofias das ciências. Dessa forma, o serem “ortodoxos” não os impedia de interpretarem a realidade, em particular a realidade nacional. Aliás, bem vistas as coisas, nem haveria motivos epistemológicos para tal impossibilidade, na medida em que, como se sabe – e como o próprio Comte afirmava, em contraposição aos empiristas radicais –, qualquer exame da realidade requer um conjunto preliminar de idéias e hipóteses: o Positivismo, mais que um mero “conjunto preliminar de idéias e hipóteses”, apresenta uma visão geral da realidade, abrangendo valores morais, métodos de pesquisa e categorias analíticas, que permitem ter uma visão de conjunto da história e, com base nela, descer aos detalhes e às particularidades nacionais. Pode-se gostar ou não das análises dos positivistas ortodoxos, pode-se concordar ou não com elas: em todo caso, conforme já defendemos anteriormente (LACERDA, 2013a), parece difícil que uma leitura cuidadosa e honesta de seus escritos corrobore a famosa tese exposta por Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil, tantas vezes repetida de diferentes formas por muitos autores, segundo a qual os positivistas teriam um “secreto horror à realidade”.
As discussões dos positivistas ortodoxos conjugavam exposições da história nacional com interpretações originais, por meio da aplicação de perspectivas teórico-metodológicas delimitadas, começando por um conceito de historicidade que poderíamos denominar de “historicidade profunda”, ou, de acordo com a terminologia proposta por A. Comte, de “filiação histórica” (COMTE, 2012): cada época tem suas condições sociais preparadas e definidas pelas épocas prévias, ao mesmo tempo em que preparam e definem as condições para os períodos seguintes; da mesma forma, o “social” das “condições sociais” tem que ser entendido de maneira ampla, abrangendo a política e a economia, mas também a filosofia, a moral, as artes (que geralmente são compendiadas nos rótulos gerais de “ideologia” e/ou “cultura”), resultando em uma exposição que em suas linhas mais grosseiras é simples, mas que se complica e ramifica-se à medida que se realiza o ajuste fino da análise. A definição e a aplicação desses procedimentos teórico-metodológicos resultam em que a narrativa histórico-sociológica dos positivistas ortodoxos conjuga a todo instante as “estruturas” com a “agência”: em cada momento, em cada configuração social, os indivíduos agem de acordo com as possibilidades e os limites das configurações anteriores, conformando as configurações seguintes. As várias ações dos indivíduos são feitas ativamente e é função tanto de seus resultados coletivos e históricos quanto de suas intenções que esses indivíduos são avaliados.
Por fim, importa notar que os positivistas ortodoxos defendiam um modelo de organização social e política ideal, ou seja, uma utopia. Esse modelo, conforme a definição de Augusto Comte, em termos sociais era a “sociocracia” e, em termos políticos, era a república. Neste artigo apresentamos apenas alguns elementos tanto de uma quanto de outra, mas em outros artigos (cf. p. ex., LACERDA, 2010; 2013b) apresentamos de maneira mais completa, e complexa, tais concepções: o seu conjunto revela um modelo que poderíamos qualificar de “modelo denso de república”, bem como um “modelo denso de sociedade”. Embora seja hábito corrente nos meios acadêmicos o ridicularizar e o sugerir que tais propostas seriam liberticidas, em outra ocasião argumentamos (LACERDA, 2009) que tais observações costumam basear-se seja em um completo desconhecimento das idéias de Comte, seja em preconceitos intelectuais e políticos, seja na prática do double standart, isto é, nos “dois pesos e duas medidas”. Assim, o resultado é que as propostas de Comte, consubstanciadas em termos políticos na república sociocrática, são válidas e dignas de atenção, reflexão e, a partir daí, de aplicação prática: as amplas e longas aplicações que delas fizeram os positivistas ortodoxos brasileiros são um exemplo disso.

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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é Doutor em Sociologia Política e “pós-doutor” em Teoria Política, ambos pela UFSC, e sociólogo da UFPR.
[2] Entre esses vários estudos, podemos citar as recensões de Alonso (1996) e Trindade (2007); as exposições de João C. O. Torres (1943), Cruz Costa (1956), Soares (1998) e Lins (2009), além das pesquisas de Carvalho (1990), Graebin e Leal (1998), Maio (2004), Maestri (2010; 2011) e Ribeiro (2012).
[3] Entre outras características, os opúsculos da IPB eram numerados em ordem seqüencial desde que começaram a ser publicados, em 1881; além disso, seus títulos e subtítulos são bastante explicativos: dessa forma, com uma dessas publicações em mãos, é possível tanto saber quantos foram publicados até aquela data quanto saber com grande clareza o assunto de que trata. É em virtude da numeração contínua que sabemos que foram publicados mais de 500 textos desde 1881 até, pelo menos, 1930; por outro lado, como em meados de 2013 tínhamos acesso a apenas cerca de 350 dos títulos do acervo, limitamos então a classificação a esse conjunto.
[4] Na verdade, desejávamos também apresentar neste artigo algumas observações a respeito da implantação da república no Brasil; todavia, em virtude das limitações de espaço, tivemos que suprimir esse tópico.
[5] Essa observação parece evidente, mas na verdade não é. O esquema geral das idéias históricas de Augusto Comte é claro e pode ser exposto em relativamente poucas linhas; entretanto, à medida que se entra nos detalhes referentes tanto aos vários períodos do desenvolvimento histórico (particularmente ocidental) quanto aos vários lugares que passam por esse desenvolvimento, a exposição ganha detalhes e o esquema geral complica-se. Devido à obrigatória brevidade deste artigo, não é possível descer a muitos detalhes.
[6] Como se sabe, a contraposição entre os caracteres dos povos neolatinos aos anglossaxões (ou, de modo equivalente para vários autores, das tradições católicas às protestantes) teve, como ainda tem, uma grande carreira teórica. Teixeira Mendes, seguindo Comte, valoriza as características neolatinas, em oposição aos anglossaxões. Uma perspectiva bastante semelhante foi retomada nas últimas décadas por Richard Morse (1988) – embora ele não deixe de referir-se de maneira zombeteira e superficial aos positivistas –, em oposição a autores como Sérgio Buarque de Hollanda, que consideravam negativamente a origem lusitana do Brasil (cf. MONTEIRO, 2009).
[7] O caráter ritual do catolicismo praticado no Brasil reduzir-se-ia a mero fetichismo das celebrações: “Bem cedo ficou ele [o catolicismo no Brasil] reduzido, como hoje [1892], a presidir às cerimônias comoventes de um culto no qual o fetichismo medievo vinha misturar-se com o fetichismo índio e africano” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3)
[8] A partir do momento em que assumiram a defesa do fim da escravidão, os positivistas ortodoxos foram sempre bastante claros e sistemáticos a respeito. Alguns comentadores – como João Cruz Costa (1956) – ironizam as proscrições que Miguel Lemos realizou no movimento positivista logo que o assumiu, em 1880, mas deixam de notar, ou de enfatizar, que algumas de tais proscrições eram devidas à exigência de os positivistas não terem escravos, ou seja, era uma questão de coerência política.
De qualquer forma, Ribeiro (2012) recupera alguns dos argumentos dos positivistas ortodoxos a respeito do abolicionismo, ainda que sua pesquisa tente realizar um contraponto entre os positivistas (M. Lemos, Teixeira Mendes) e os liberais (J. Nabuco) e, ao tratar dos positivistas, sua narrativa seja monótona e sem vigor.
[9] Em termos dos estados brasileiros, a sugestão de Comte corresponderia à variação havida entre o Espírito Santo (46,1 mil km2) e Pernambuco (98,3 mil km2), passando pelo Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina (cf. LACERDA, 2010, p. 296-298).
[10] Augusto Comte considerava que, mesmo antes da independência dos EUA, o processo de fragmentação das grandes nações começou com a luta neerlandesa por sua independência em relação à Espanha, nos séculos XVI e XVII. De qualquer forma, o caso dos Estados Unidos é mais ilustrativo, pois tratou-se da separação entre dois povos de mesma língua, mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV, p. 460-467; LACERDA, 2010, p. 352).
[11] Essa falta de coordenação entre os núcleos de povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento em que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos 1891-1892: “[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje, uma verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[12] Mais adiante, Teixeira Mendes nota que os novos países americanos surgiam como repúblicas, embora fossem repúblicas muito imperfeitas: com escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado no caso dos países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais sem rei”); além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da América hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole e, depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 9-10).
[13] O federalismo seria claramente defendido no projeto de constituição federal apresentado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à Proclamação da República, no famoso documento intitulado “Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira”. Sendo mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem tanto o federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados ocidentais brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados americanos brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território brasileiro) e uma confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”. Cf. Lemos e Teixeira Mendes (1890).