10 outubro 2008

Comte e os romanos



Os romanos representam para Augusto Comte um caso exemplar de sociedade; em sua opinião, eles foram os que mais se aproximaram do tipo ideal de sociocracia, com a dedicação individual para o benefício coletivo ao longo de inúmeras gerações. Essa valorização não ocorreu desde o início da carreira do fundador da Sociologia: afinal, inicialmente ele tinha em melhor conta a modernidade científica, em seguida a Idade Média católica e, finalmente, a Antigüidade romana. Não se trata de um recuo cada vez maior no tempo nem um romantismo que idealiza o passado para planejar uma suposta reação contra o presente (no sentido de restabelecer atualmente períodos anteriores da história): trata-se de perceber as características públicas e privadas, coletivas e individuais, que os romanos tinham e que são dignas de emulação e imitação.

Não se trata de romantismo nem de reação (isto é, de idealização de um passado para retorno a ele): Augusto Comte estabeleceu, desde o início de sua carreira, uma diferenciação muito clara entre o que chama de “Antigüidade” e “Modernidade”, próxima, em alguns aspectos importantes, à que o suiço Benjamin Constant elaborou em 1819 a respeito das liberdades dos antigos e dos modernos. A bem da verdade, a classificação comtiana é bem mais elaborada que a constantiana: por um lado, ela desenvolveu-se em um primeiríssimo momento como oposição entre a Idade Média (guerreira, feudal e católica) e a modernidade, em particular posterior à Revolução Francesa, de caráter pacífica, industrial e científica. Mas para explicar a transição medievo-moderna, Comte recua no tempo para abarcar, pelo menos, a Antigüidade clássica, tanto por motivos teórico-metodológicos quanto por motivos históricos: historicamente a Idade Média surgiu a partir tanto da desagregação do Império Romano quanto das estruturas sociais criadas e consolidadas pelo Império; do ponto de vista teórico-metodológico, Comte afirmava a visão de conjunto histórico, o que deveria abarcar também a Antigüidade.

O que importa notar, de qualquer forma, é que a Antigüidade opõe-se à modernidade em termos espirituais e temporais da seguinte maneira:

Comparação entre a Antigüidade, a Idade Média e a Modernidade
Âmbito
Antigüidade
Idade Média
Modernidade
Temporal
Militar
Pacífico-industrial
Conquistador
Defensivo
Espiritual
Teológico
Positividade
Politeico
Monoteico

Essa é uma comparação, mas, no pensamento de Comte, é bem mais uma transição de sociedades guerreiras para pacíficas, com um estágio intermediário de guerreiros que, em vez de atacar, defendem-se de agressões externas e corresponde à lei dos três estados da atividade prática. O que importa notar, de qualquer forma, é que o retorno à Antigüidade não é possível porque as respectivas sociedades organizam-se de maneira diversa. Ora, dizer isso de maneira tão direta e simples é apenas afirmar uma platitude; importa insistir, assim, no que poderíamos chamar de “lógica social profunda”: enquanto a modernidade busca conhecer a realidade como ela é e o conforto material, a Antigüidade compreendia a realidade por meio de seres supra-humanos e buscava a glória e a honra nacionais. Não apenas as sociedades visam a objetivos bastante diversos como, de qualquer forma, um retorno à Antigüidade, na visão comtiana, teria como resultado apenas forçar a lei da história a repetir-se em sua marcha.

Uma outra indicação de que Comte não deseja um retorno ao passado[1] é a avaliação que fez de Maquiavel, no Sistema de filosofia positiva: “Maquiavel, antes deles [Hobbes e Bossuet], fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga” (Comte, 1895, p. 491). À parte a crítica ao imoralismo e ao amoralismo de Maquiavel, Comte critica aqui a emulação maquiavélica da antigüidade romana e sua incompreensão do caráter pacificante da modernidade.
Antes de tratarmos mais detidamente da avaliação comtiana dos romanos, convém notar que tal valorização contradiz a voz corrente segundo a qual a Religião da Humanidade seria uma imitação do catolicismo, um mero “catolicismo sem deus”, como disse Thomas Huxley. Se tal afirmação procedesse, a Idade Média católica seria idealizada não apenas como um período de prevalência dos valores morais sobre o conjunto da sociedade, com um clero independente – que é como Augusto Comte percebe esse período – mas também como exemplo de organização e ação política prática. Em termos especificamente sociais, ou seja, de incorporação de diferentes povos em uma cidadania que lhes concedia condições de vida, é Roma que é percebida, mutatis mutandis, como modelar.
Mais: Comte relevava as perseguições que Trajano fez aos cristãos: “[...] Desde Cipião e César até Trajano e Constantino, os pensadores e os homens de Estado sentiram de mais a mais que o conjunto do movimento romano permitia a prevalência das noções positivas sobre as crenças teológicas ou metafísicas e a atividade industrial sobre a vida guerreira. Falhos de um estudo assaz preciso sobre a marcha humana, eles desconheceram inteiramente a necessidade da transição monoteica e feudal. Os melhores dentre eles foram assim conduzidos bastante freqüentemente a sujar seus nomes com as atrozes perseguições conduzidas sobre os verdadeiros promotores espontâneos do nobre regime que não cessou de seguir à procura de um tipo abstrato” (Comte, 1851, p. 471-472). “Habituados, após a ditadura, a conceber sua própria evolução como uma preparação necessária ao estado final da humanidade, os romanos parecem poder facilmente compreender a nova transição, complemento natural da fase anterior.. Mas, falhos de uma teoria histórica, o advento de uma ordem normal pareceu-lhes tão imediato quanto aos cristãos, ainda que eles se formassem sob outras noções. Longe de reconhecerem a necessidade da transição monoteica, eles a julgaram diretamente hostil ao conjunto de nossos destinos. Por profunda e funesta que tenha sido esse erro, ele devia ser inevitável, considerando os vícios, intelectuais e morais, da nova doutrina, em uma época em que ninguém podia prever o quanto eles seriam neutralizados pela situação ocidental. Tácito e Trajano são plenamente excusáveis de terem considerado a fé nascente como inimiga do gênero humano, haja vista a impossibilidade de pressentir então uma reação social que não é hoje compreendida senão pelos verdadeiros filósofos” (Comte, 1853, p. 410-411).
Quais são os elementos romanos que Augusto Comte valorizava?
  1. A destinação da vida coletiva para fins coletivos, resguardando o âmbito privado e as individualidades mas orientando-as para um fim social;
  2. a realização da guerra para a criação dos hábitos da paz, ou seja, a cessação do padrão de comportamento da Antigüidade;
  3. o caráter bastante emancipado dos romanos;
  4. a subordinação da teoria à ação, após a absorção da filosofia grega;
  5. o respeito à cultura dos povos vencidos, que tinham como obrigação apenas seguir algumas leis gerais de Roma;
  6. a incorporação dos povos vencidos e sua posterior assimilação ao Império.
Pierre Laffitte (1876) comenta que o principal serviço que Roma prestou à Humanidade foi a assimilação dos povos vencidos, preparando socialmente o terreno para a constituição posterior do Ocidente. Dessa forma, as principais conquistas romanas foram as Gálias (por César), a Espanha (durante a II Guerra Púnica, cujo principal líder foi Cipião, o Africano) e a Grécia, além, sem dúvida, da própria península itálica. As províncias orientais (particularmente a Síria, atual Palestina) não foram assimiladas tão completamente ao Império Romano e mantiveram seus hábitos intelectuais e políticos, ou seja, eram mais teológicas e supersticiosas que propensas à emancipação que Roma indicava. Não por acaso, foram as províncias não-orientais que constituíram posteriormente o “Ocidente”.
A assimilação dos povos conquistados, muito mais que sua conquista, dominação ou incorporação, pode ser verificada por uma contraprova bastante interessante, a partir de Renan (s/d). Entre 65 e 69 a Judéia pegou em armas, no que se chamou “revolução judaica”, contra a dominação romana. Embora inicialmente os revoltosos judeus quisessem apenas sair do jugo romano, quando Nero morreu, eles passaram a propor o fim do Império, conclamando as demais províncias a sublevarem-se e a proclamarem autonomia: ora, nenhuma fez isso, exceto a própria Judéia; as outras províncias fizeram questão de permanecer pacíficas[2] e/ou de reafirmarem sua lealdade ao Império e seu desejo de continuarem integrando aquela organização sociopolítica. Não era para menos: o Império permitira que uma quantidade imensa de povos e nações convivessem em harmonia, além de terem acesso a direitos e privilégios que antes eram exclusivos dos dominadores (lembremo-nos, por exemplo, de que as democracias gregas eram radicalmente xenófobas, com preconceitos étnicos bastante marcados). Assim, qual o interesse que esses províncias teriam em sair do Império?
A política de assimilação ao Império Romano pode ser exemplificado por Trajano, que era espanhol: “Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é preciso notar sua origem espanhola, eminentemente própria para testemunhar quanto estava, então, já realizada uma incorporação que permitia ao chefe romano um tal imperador” (A. Comte apud Carneiro, 1942, p. 113).
A análise dos tipos romanos do Calendário positivista é bastante elucidativa.

Extrato do Calendário Positivista: 5o mês – CÉSAR – A civilização militar
Dia
Tipo principal
Tipo adjunto
Calendário católico
15.
Júnio Bruto
7 de maio
16.
Camilo
Cincinato
8
17.
Fabrício
Régulo
9
18.
Aníbal
10
19.
Paulo Emílio
11
20.
Mário
Os Gracos
12
21.
Cipião
13
22.
Augusto
Mecenas
14
23.
Vespasiano
Tito
15
24.
Adriano
Nerva
16
25.
Antonino
Marco Aurélio
17
26.
Papiniano
Ulpiano
18
27.
Alexandre Severo
Aécio
19
28.
Trajano
20

Estudar os tipos leva-nos imediatamente à filosofia da história do positivismo, que é a da historicidade e profunda continuidade humanas, particularmente no que se refere ao Ocidente. Algumas figuras apenas marginalmente nos levam à filosofia da história de A. Comte; outras, contudo, levam-nos mais diretamente a ela: São Paulo, Carlos Magno, Frederico, Descartes, Bichat – e César. O caso de César é interessante devido ao juízo que fazia Augusto Comte da civilização romana, por ele bastante admirada: para o fundador do Positivismo, os romanos estavam já bastante próximos do ideal de sociocracia, faltando-lhes principalmente apenas o desenvolvimento afetivo, reservado à Idade Média.
Augusto Comte considerava que as civilizações militares surgiram da decomposição dos regimes teocráticos, quando o governo dos sacerdotes – conservadores – foi substituído pelo dos guerreiros – progressistas –: desde seu início foi esse o caso romano. O espírito positivo era bastante desenvolvido no povo do Lácio, e a maior aproximação empírica da sociocracia dava-se com o desenvolvimento do altruísmo – da veneração em seu estágio pátrio –; com a subordinação da especulação à ação; com o desenvolvimento progressivo dos motivos humanos (iniciado mesmo pela substituição dos sacerdotes pelos guerreiros, na teocracia inicial); com a busca dos hábitos da paz após feitas as guerras, com a assimilação dos vencidos e com a meritocracia. Todas essas características encontramos por metonímia em César, ou seja, nos romanos.
A história romana divide-se em três momentos: a monarquia, a república e o império. O período republicano é o mais caracteristicamente sociocrático – o advento mesmo de César foi nesse período. Por outro lado, a hereditariedade sociocrática foi estabelecida no Império. Augusto Comte considerava que os três melhores tipos romanos foram César, Cipião (o Africano) e Trajano, citando-os nominalmente e reservando-lhes, no Calendário Positivista, o nome de um mês – portanto, de todo um aspecto da história humana – e a chefia de duas semanas, respectivamente. Cipião, César e Trajano representam o papel histórico desempenhado por Roma: assimilação, humanização, meritocracia, indústria. “[...] Os três tipos essenciais da sociabilidade militar, Cipião, César e Trajano, dignos precursores da sociocracia, após sua nobre apreciação da vida pacífica” (Comte, 1854, p. 144).
Posteriormente, o catolicismo veio completar a “transição ocidental”, com o desenvolvimento sistemático dos sentimentos – embora ainda parcialmente, por ter um fundo egoísta e sendo auxiliado pelo cavalheirismo empírico e altruísta devido ao feudalismo. É devido aos defeitos teóricos do catolicismo que Augusto Comte sempre elogiou a “sabedoria prática” do sacerdócio católico, que, baseado em um dogma vicioso, soube elaborar uma doutrina social altruísta, de que Santa Teresa – com sua lenda sobre andar nas ruas de Paris com o archote e o balde d’água na mão, para queimar o céu e apagar o inferno – e São Francisco de Assis são grandes exemplos.
Os problemas teóricos do catolicismo são também devidos ao seu caráter anti-histórico, ao negar, ao pretender ignorar e desprezar todo o passado que o precedeu. “Todavia, cumpre reconhecer aqui, como por toda parte alhures, que a eminente sabedoria do sacerdócio católico neutralizou, durante muito tempo, os principais vícios de sua deplorável doutrina. Apropriando-se da língua de Roma, quando ela cessou de prevalecer, ele conservou espontaneamente todos os tesouros intelectuais da Antigüidade, inclusive sua bela teologia. A comovente lenda, tão dignamente imortalizada por Dante, acerca da feliz intercessão de um santo papa em favor de Trajano[3], bastará para indicar quanto as nobres almas católicas lastimavam que sua cega doutrina as impedisse de honrar seus melhores antepassados. Mas o respeito geral dos antecedentes gregos foi desenvolvido sobretudo pelos chefes temporais, apesar de sua freqüente ignorância” (Comte, 1934, p. 425).
Voltando a Roma e ao Calendário Positivista: os quatro domingos do mês de César (Temístocles, Alexandre, Cipião, Trajano) indicam por um lado o esforço contínuo em constituir, no Mediterrâneo, uma civilização que unificasse o Ocidente, afastando-o das teocracias orientais (nomeadamente a Pérsia) e das incessantes lutas fratricidas, ao mesmo tempo que consolidando e mantendo seu legado: são esses os papéis de Temístocles e Alexandre. Em seguida, a constituição de uma civilização então universal, afastando seus inimigos e realizando a obra de guerra para a paz: esses foram Cipião e Trajano. Em outras palavras, a “civilização militar” na filosofia da história de Augusto Comte apenas faz sentido, de fato, como uma etapa provisória, cujo fim em si mesmo não era a contenda, porém sim 1) a organização de sociedades que de outro modo seriam dispersas e, 2) em seguida, predispô-las à vida pacífica e industrial, em comum.
É interessante notarmos que a afirmação do caráter de transitoriedade dessa época não levou Augusto Comte a desprezar os tipos característicos do período, ou seja, o caráter militar dos tipos; muito ao contrário. Sempre valorizando todas as etapas parciais da Humanidade, como momentos necessários de sua história, percebemos que o valor de César, Temístocles, Alexandre, Cipião e Trajano relaciona-se à hábil conjugação da visão de estadistas com o de militares.
Reafirmando: diziam os romanos – ou melhor, dizia César – que faziam a guerra para levar os hábitos da paz. De fato era assim: os romanos, ao invés de simplesmente manterem uma dominação política sobre seus dominados, explorando-os e exigindo tributos, eventualmente reprimindo rebeliões e sublevações, procuravam de fato romanizar suas províncias. Ora, esse “romanizar” não significava somente impor aos demais os seus próprios hábitos; significava realizar um amálgama das culturas, respeitando-as e difundindo-as – particularmente a grega. É o aforisma: a Grécia pensou e Roma executou. Todavia, essa “execução romana do pensamento grego” deu-se com a adaptação dos elementos gregos aos hábitos e particularidades do povo do Lácio. Essa relação exemplifica como o pensamento deve subordinar-se à ação, para Augusto Comte.
Isso nos leva a outros dois pontos. Em primeiro lugar, de fato realizou-se primeiramente a guerra para depois se manter a paz: a chamada pax romanna, inaugurada no período de Augusto, não era uma idéia justificativa para enganar os ingênuos, uma “ideologia”, mas uma realidade concreta. Todos sendo então mais ou menos militares, sua conquista uns pelos outros não oferecia novidade alguma – ao contrário da iniciativa romana. Assim, os povos submetidos ao jugo romano, em vez de guerrearem-se mutuamente, passaram a trabalhar em conjunto para o desenvolvimento da economia comum, nas margens do Mediterrâneo. Prova disso foi a cessação das conquistas. Otávio Augusto formulara o preceito segundo o qual o Império deveria ter como limites naturais os acidentes geográficos, isto é, o Atlântico, o Reno, o Danúbio, os rios mesopotâmicos, o Egito e os desertos africanos. Houve duas exceções a esse preceito. A primeira foi a Bretanha, até antes da atual Escócia, conquistada por Domiciano, com Agrícola no comando. A outra exceção foi a Dácia, atual Romênia, na região balcânica transdanubiana, conquistada por Trajano em duas expedições, ocorridas em 101-102 e 105, e depois devolvida por Adriano aos dácios.
Em segundo lugar, já comentamos que a incorporação dos povos a Roma foi suficientemente grande para permitir que um espanhol, isto é, alguém oriundo da periferia do Império, assumisse o manto púrpura: o próprio Trajano, depois seguido e continuado por Adriano. As opiniões de Augusto Comte a propósito cabem aqui: “[...] Em relação às artes especiais do som e da forma, os romanos essencialmente marcaram a apreciação, embora muito mais por meio de demonstração de seu testemunho passivo, de como a preponderância da vida cívica pode dispor todos a sentir que se pode aperfeiçoar a Humanidade.
Essa primeira fase da ditadura foi dignamente instalada por dois tipos eminentes, que merecem ser pessoalmente indicados. Sábio herdeiro do general César, Augusto soube nobremente ultrapassar os impulsos de suas longas lutas, e governou o Ocidente com uma solicitude sociocrática, na qual todas as classes deviam concorrer para o bem público de acordo com suas aptidões respectivas. Essa característica geral foi energicamente desenvolvida por Tibério, que, malgrado as torpezas privadas de seus últimos anos, suplantou, no conjunto de suas qualidades, intelectuais e morais, seus preconceitos de origem aristocrática.
Um nobre velho [Nerva] inaugurou sabiamente a segunda fase, introduzindo o sistema de sucessão adotiva que a caracterizará sempre. Sua honrosa iniciativa, depois muito imitada, conferiu à ditadura ocidental os melhores tipos de que ela pudesse honrar-se.
Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é necessário indicar sua origem espanhola, eminentemente própria a testemunhar como estava então realizada uma incorporação que permitisse ao chefe romano preferir um tal sucessor. Ainda que nada seja comparável à ditadura assim surgida durante a primeira meia geração do segundo século, ela foi seguida de uma digna série de eventos, sempre devidos à sua adoção” (COMTE, 1853, p. 394-395).
Gibbon indicou como os romanos souberam desprezar os preconceitos mantidos pelos gregos a respeito da “pureza da raça” e misturaram-se aos seus vencidos, procurando daí tirar os benefícios decorrentes, particularmente no que se referia à conservação e à expansão de seus domínios: “A política estreita de preservar sem qualquer mistura estrangeira o puro sangue dos antigos cidadãos forçou a sorte e acarretou a ruína de Atenas e Esparta. O gênio dominador de Roma sacrificou a vaidade à ambição, julgando mais prudente, assim como mais honroso, adotar a virtude e o mérito para si própria, onde quer que fossem encontrados, mesmo entre escravos ou estrangeiros, inimigos ou bárbaros” (GIBBON, 1998, p. 32).
Os tipos comemorados na semana de Cipião Africano referem-se aos republicanos, ou seja, àqueles que durante a fase da República romana realizaram ações positivas para a incorporação do proletariado e para a expansão da dominação romana no sentido indicado acima. Eles vão desde a própria fundação da república, com Júnio Bruto, até Mário e os irmãos Gracos, que eram representantes e defensores da plebe, passando pelos diversos tipos que revelaram virtudes cívicas e militares em prol da sociedade romana.
Duas observações importantes. Em primeiro lugar, à exceção do próprio Júlio César (que dá nome ao mês), de Otávio Augusto (que está na semana seguinte, relativa ao império) e de Mário e dos Gracos, não há nenhum tipo do fim da república nem nessa semana nem no mês de Júlio César. Isso significa muita coisa: podemos pensar, por exemplo, na ausência de Catão de Útica, que era defensor das antigas virtudes romanas e, a partir disso, porta-voz da oligarquia romana. Embora Augusto Comte relevasse a importância simbólica do eterno luto de Catão – que lamentava os mortos nas guerras travadas por Roma –, não deixou de reconhecer a hipocrisia da defesa das tradições que Catão realizava: era uma defesa unicamente com vistas à exploração do proletariado e à exclusão social dos vencidos; em outras palavras, completamente contrária ao sentido atribuído por Augusto Comte à dominação romana[4]. Pierre Laffitte (1876), sem dúvida repetindo um juízo de Augusto Comte, usa literalmente a palavra “hipocrisia” para referir-se às exortações morais de Catão.
A segunda observação é a presença de outros tipos da política romana em outros meses: desde logo indico Rômulo, Numa Pompílio e Caio Túlio Cícero. Rômulo, o lendário fundador de Roma, encontra-se no calendário positivista concreto, mas no mês de Moisés, dedicado às teocracias iniciais, na semana de Numa Pompílio. Numa Pompílio, por sua vez, foi o sucessor de Rômulo e “verdadeiro” legislador da cidade, comparável a Licurgo para Esparta; sua semana apresenta tipos envoltos em mito mas que foram beneméritos para o ser humano, como mártires (Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e foi sentenciado a um suplício eterno), heróis (Hércules), fundadores de cidades (Teseu (Atenas), Rômulo (Roma)) ou legisladores (Licurgo (Esparta), Numa (Roma)). Por sua vez, Caio Túlio Cícero aparece no mês de Aristóteles (a filosofia antiga), na semana de Sócrates (as filosofias morais): para Augusto Comte, se Cícero teve alguma importância efetiva para a Humanidade, não foi como político – além de covarde e hipócrita, apoiou os conspiradores contra César –, mas como moralista, com obras como Sobre os deveres, Sobre a república, Sobre a amizade.

Tipo principal
Tipo adjunto
Importância histórica
Júnio Bruto
Expulsão do rei Tarquínio Soberbo e fundação da República
Camilo
Cincinato
Defesa de Roma contra os gauleses; organização do exército. Cincinato atuou também como apaziguador e mediador nas disputas entre patrícios e plebeus no século V a. C.
Fabrício
Régulo
Honra pessoal, devotamento cívico e capacidade militar
Aníbal
Gênio militar que desafiou Roma
Paulo Emílio
General romano que concluiu as Guerras Púnicas; virtudes “telúricas”[5] e cívicas
Mário
Os Gracos
Reforma social; preocupação com o proletariado urbano
Cipião
General que venceu a II Guerra Púnica e demonstrou uma clemência inexistente até então

Convém aqui uma pequena digressão a respeito da palavra “império”, distinguindo a realidade social – e também política, mas política em um sentido “fraco” – da realidade institucional – política em um sentido “forte”.
Desde o início a república romana – como, aliás, todas as cidades e as sociedades da época – era imperialista, isto é, expansionista, procurando ampliar cada vez mais a abrangência da sua dominação. O aumento da área de dominação é que o constitui a criação de um “império”, especialmente se essa área for vasta e incluir uma variedade de povos e culturas submetidos. Dessa forma, podemos aplicar a Roma o sugestivo epíteto que Raymond Aron deu aos Estados Unidos: uma “república imperial”, que é apenas na aparência um oximoro. Institucionalmente, a república romana era uma república, mas, como sua dominação alcançava regiões vastíssimas e distantes, era também um império. Essa realidade, como dissemos, não é incoerente, embora a expressão “república imperial” possa sugerir, à primeira vista, um oximoro. Como a realidade política era de dominação pela república, usei a expressão “império em um sentido político fraco”: a política em sentido forte – ou seja, as regras do jogo, as práticas institucionalizadas, os valores e a cultura política –, nesse período, correspondia à república e às suas instituições.
Por outro lado, a solução das crises por que a república passou a partir de mais ou menos 150 a. c. foi a criação do império como realidade institucional. Na verdade, não foi tanto o império como o principado, em que o título honorífico concedido a alguns cidadãos tornou-se exclusividade do chefe supremo das formas armadas (imperator) e do primeiro cidadão da república (princeps). Assim, pode-se falar que, a partir de 14 a. c., o império passou a ser uma realidade política em sentido forte, pois as regras, os valores e a cultura políticos tornaram-se propriamente “imperiais”, isto é, monárquicos.
Curiosamente, houve uma inversão da força atribuída às palavras “império” e “república” na passagem da República para o Principado: antes a república era a política “forte” e depois se tornou a “fraca”, o inverso ocorrendo com o “império”. (Na verdade, pelo menos durante o longevo governo de Otávio Augusto, não se deixou de usar a palavra república nem de caracterizar o regime como sendo republicano, a despeito da realidade fática reconhecida e estimada por todos. Assim, embora tenha iniciado claramente o principado, Otávio Augusto rendia homenagem ao tradicionalismo dos senadores – aliás, o próprio Senado, instituição-símbolo da república, foi mantido, embora esvaziado de sua importância – ao nomear seu governo como sendo “republicano”.)
Passando para os tipos do império, no calendário positivista a seqüência de imperadores romanos é a seguinte:
· 1o – Augusto – 27aC-14dC (41 anos)
· 9o – Vespasiano – 69-79 (10 anos)
· 10o – Tito – 79-81(2 anos)
· 12o – Nerva – 96-98 (2 anos)
· 13o – Trajano – 98-117 (19 anos)
· 14o – Adriano – 117-138 (21 anos)
· 15o – Antonino – 138-161 (23 anos)
· 16o – Marco Aurélio – 161-180 (19 anos)
· 24o – Alexandre Severo – 222-235 (13 anos)
É interessante percebermos como há uma concentração de imperadores do período de meados do século I até mais ou menos cem anos depois; é o período que os historiadores indicam como sendo da dinastia Flávio-Antonina, após a Júlio-Cláudia; ou, de outra forma, é o período dos chamados “reis-filósofos”, tais as qualidades políticas e humanas desses governantes. Apenas para tomarmos o juízo de Gibbon: “Durante um feliz período de mais de 80 anos, a administração pública foi conduzida pela virtude e pelas habilidades de Nerva, Trajano, Adriano e dos dois Antônios” (Gibbon, 1998, p. 3).
Vimos como Augusto Comte admirava o Império Romano, ou melhor, o povo romano de um modo geral. Ora, o simples exame dos tipos que ele homenageou em seu Calendário, na parte dedicada ao Império, permite perceber com o que o filósofo preocupava-se e o que o admirava: não a decadência precoce representada por Nero, mas a sabedoria daqueles que vieram depois de Vespasiano, até Marco Aurélio, compreendendo aí quase um século de bom governo. Como diria Gibbon, “[...] O firme edifício do poder romano foi baseado na e preservado por meio da sabedoria dos tempos. As obedientes províncias de Trajano e dos Antônios foram unidas por leis e adornadas por atos. Eles podiam ocasionalmente sofrer um abuso parcial de alguma autoridade delegada; mas o princípio geral de governo era sábio, simples e benévolo” (Gibbon, 1998, p. 28).
A importância de Trajano, ademais, ressalta-se quando se se dá conta de que a hereditariedade sociocrática – categoria criada por Augusto Comte – iniciou-se exatamente quando Nerva escolheu Trajano seu sucessor, após o ter feito seu filho adotivo; da mesma forma, Trajano escolheu Adriano seu sucessor, pelo mesmo processo, e assim com alguns outros: todas essas escolhas baseadas na hereditariedade sociocrática foram exitosas.
Há algumas questões que devem ser pesquisadas em investigações subseqüentes, a primeira delas referindo-se à escolha de Augusto Comte em favor de Trajano ao invés de Adriano. Inicialmente, Trajano teve bastante justificada sua invasão à Dácia, haja vista as freqüentes e reiteradas provocações que os dácios lançavam aos romanos. Da mesma forma, os partas, no Oriente Médio, provocavam Roma. Contudo, enquanto na Europa do leste Trajano conquistou para cessar uma situação humilhante, no Oriente ele continuou, procurando chegar à Índia, tal qual Alexandre cinco séculos antes; ele não chegou a esse país, mas estendeu o Império até as margens do Oceano Índico. Em outras palavras, manteve ainda um espírito militar conquistador, quando não havia mais necessidade de expansão.
Por outro lado, Adriano executou uma política completamente pacífica, indo às armas apenas quando necessário, ao mesmo tempo que, no caso parta, devolveu a autonomia a esse povo, retirando-o de sua condição de província e mantendo-o como “Estado associado” (cuja soberania dependia francamente da autoridade romana). Da mesma forma, adotou uma extensa política de desenvolvimento do Império, visitando, ao longo de cinco anos, todas as províncias, procurando dotá-las de estruturas urbanas e sociais adequadas. Trajano, da mesma forma, desenvolveu o Império, mas beneficiou mais a Itália, e tinha bastante marcado um espírito mais militarista.
Ainda assim, de qualquer forma, Trajano tornou tradição a prática adotada por Nerva a seu próprio respeito, ou seja, adotou o critério de hereditariedade sociocrática para o Imperador seguinte, escolhendo, além disso, alguém de inegáveis méritos e qualidades.
De maneira mais rápida, podemos pensar também em questões mais contemporâneas, a partir do exemplo de Trajano e dos romanos de modo geral.
Insistindo sobre a hereditariedade sociocrática, devemos nos lembrar de que Augusto Comte caracterizava-a como o modo romano por excelência de transmissão do poder – ou melhor, de transmissão do comando. O titular do governo em vida indicava seu sucessor, não necessariamente seu filho ou algum seu parente, mas aquele que julgava o mais capacitado para a posição a assumir. Evidentemente diversas virtudes são necessárias, tanto políticas quanto cívicas, e mesmo, mais corriqueiramente, “morais”. A experiência de Roma, como se viu, foi completamente exitosa, e encerrou-se exatamente quando, ao invés de se indicar alguém através da hereditariedade sociocrática, indicou-se através da consangüínea (Cômodo, por seu pai Marco Aurélio). A instituição, de qualquer forma, era completada pela adoção civil do sucessor pelo antecessor (a ad-rogação).
Essa hereditariedade é o que está na base do tão mal-compreendido projeto de “ditadura republicana”, que de “ditadura” tem apenas o nome. A ditadura republicana é o governo republicano de liberdades civis, políticas e sociais, assim como o das responsabilidades civis, políticas e sociais, no qual o governante exerce seu poder executivo – que de maneira alguma é absoluto ou tirânico – segundo limites claros e dependendo sempre das sanções sociais, particularmente da opinião pública. Em outras palavras: Estado de Direito, liberdade civis, proteção ao cidadão com ampliação radical da cidadania – esse é em enorme proporção o projeto “democrático” de governo.
Mudando do âmbito, isto é, passando do setor público para a iniciativa privada, podemos mesmo pensar em se não existem teorias de administração que preconizam exatamente uma transmissão do comando em empresas através de um processo como a hereditariedade sociocrática.
Em seguida, pensamos no valor de um império universal nos dias atuais. Pensamos, claro, nos Estados Unidos, cuja influência é ampla e cada vez maior – apesar de diversos prognósticos em contrário, como o de Paul Kennedy, realizado no final dos anos 1980. O poder norte-americano baseia-se na economia, em sua capacidade de regular as relações econômicas no mundo, ou, ao menos, de influenciá-las poderosamente. Mas, como outros autores já indicaram, esse poder é “multidimensional”, ou seja, baseia-se também em outras fontes, entre as quais a cultural – qual o país que não se sente atraído por Hollywood, pelo American way of life ou pelo jazz e pelo blues? – e, infelizmente, também a militar. O atual líder norte-americano, como é amplamente reconhecido, não está à altura do país que comanda, não sendo efetivamente capacitado para conduzir a bom termo as inúmeras responsabilidades mundiais que essa potência tem, como o caso da não-assinatura do Protocolo de Kyoto, entre outras atitudes, bem ilustra.
Por outro lado, o poder americano baseia-se firmemente, especialmente durante o governo de George W. Bush, no que Kehoane e Nye chamaram de hard power (“poder duro”, isto é, o poderio bélico), mas que é, simplesmente, um militarismo grosseiro, ou seja, a insistência em manter um efetivo militar cada vez mais poderoso (embora não necessariamente mais numeroso), a despeito dos contingentes militares de outros países. A década de 1990 seria marcada pela prevalência dos temas econômicos sobre os militares, com o fim da Guerra Fria, e, portanto, com a passagem, há tanto esperada, das atividades militares para as pacíficas, baseadas exatamente na economia. Contudo, o que se vê atualmente é exatamente o contrário: um retorno extemporâneo às armas.
É nessa altura que percebemos como a comparação entre os Estados Unidos e Roma refere-se apenas à característica supostamente comum de serem ambos “impérios” “universais”. Roma de facto e de jure foi um império, cuja obra estende-se até atualmente; como diria César, a máxima que orientou os patriotas romanos foi o de fazerem a guerra para levarem os hábitos da paz – e de fato foi assim, como a instituição imperial realmente executou (com as exceções da Inglaterra, da Dácia e da Párcia). Foi uma anexação seguida da progressiva incorporação das populações locais, com a elevação cada vez mais ampla de seus súditos à categoria de “cidadãos romanos”. Em outras palavras, Roma imperou com vistas gerais, buscando manter o Império como um todo. Há já um certo tempo que os Estados Unidos estão distantes dessas perspectivas... Além disso, é importante notarmos como Augusto Comte era terminantemente contra a existência de países demasiadamente grandes nos tempos atuais, por serem contra a fraternidade humana, tanto interna quanto externamente aos países. Considerava A. Comte que deve, sim, haver um império atualmente: mas um império das opiniões e dos sentimentos, e não um império das armas.
Finalmente, pode-se ficar pensando no valor que a filosofia da história que Augusto Comte elaborou pode ter para os dias atuais. Um esquema tão ambicioso, tão complexo, que procura relacionar a Grécia, Roma, a Idade Média e a modernidade, atribuindo a cada um deles o desenvolvimento de determinadas características da natureza humana e a preponderância de certas formas de pensar – tudo isso pode ser exagerado, demais. Por que não algo mais simples? Por outro lado, porque essa insistência na continuidade humana? Por que não, simplesmente, rupturas e quebras?
Ora, sem dúvida alguma que A. Comte reconhecia a existência de mudanças e rupturas na história; quem não o reconhecer é incapaz das mais simples observações históricas. O espetáculo da Revolução Francesa apresentou esse caráter de radical ruptura, entre a Idade Média, católico-feudal, e a modernidade, cada vez mais positiva e pacífico-industrial. O que ocorre é que, por debaixo das mudanças e das transformações, o filósofo de Montpellier via apenas um único ser humano, que em diversos momentos assumia, e assume, certas características, de acordo com o momento histórico no qual vive.
Mas o principal está em que, se queremos ser de fato positivos em nossas concepções, temos que nos voltar ao ser humano, ao conjunto de sua história, de suas diversas fases, para termos um ideal a seguir. É exatamente nisso que consiste a filosofia da história do positivismo religioso: um ideal que nos orienta em direção ao futuro, através da observação e da interpretação do passado, de modo a dirigir o presente. Como diria Raymond Aron, se é para fazermos da humanidade, de sua história, uma religião, não há ideal mais elevado que o do positivismo, que a Religião da Humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARON, R. 1986. As etapas do pensamento sociológico. 2ª ed. Brasília : unb.
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_____. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil.
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Encyclopedia e diccionário internacional. 1935? V. XIX. Rio de Janeiro : W. M. Jackson.
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LAFFITTE, P. 1876. Les grands types de l’Humanité. Aprréciation systématique des principaux agents de l’évolution humaine. V. II. Paris : E. Leroux.
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RENAN, E. s/d. O anticristo. Lisboa: Lello.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)


[1] Referimo-nos aqui ao retorno ao passado da Antigüidade, mas, sem dúvida, poderíamos incluir também a rejeição ao retorno à Idade Média.
[2] Na verdade, as Gálias sublevaram-se nesse momento, mas não o objetivo de saírem do Império, mas para retornarem à ordem civil (a morte de Nero produzira convulsões sociais, políticas e militares) e, se possível, imporem um patrício seu como Imperador.
[3] Além de sua importância histórica, Trajano era dono de um caráter corretíssimo, humilde e despojado, preocupado com os destinos pátrios, de modo que todos o respeitavam. Sua vida, assim, era motivo de admiração, de tal sorte que, diz-se, no século V o papa Gregório Magno, após ler uma biografia do Imperador, entristecido pela exclusão de Trajano do paraíso (por ser pagão), orou tanto e tão fervorosamente que obteve a admissão do romano no recinto celeste. Esse episódio, narrado por Dante na Divina comédia, é comentada por Miguel Lemos na edição apostolar do Catecismo Positivista:
“[...] Contava-se que o papa Gregório Magno (599-604), lendo um dia a vida de Trajano e tomado de admiração por tão singulares virtudes, não pode conformar-se com que, por ser pagão, deixasse esse príncipe de salvar-se no outro mundo. Entrou, pois, numa igreja e orou tão fervorosamente a deus pela alma do grande Imperador que ali mesmo deus lhe revelou que sua súplica estava deferida e Trajano admitido no reino celestial.
O passo da Divina comédia em que Dante alude a esta lenda é o seguinte:
Quiv’era storïata l’alta gloria
Del roman principato, il cui valore
Mosse Gregorio a la sua gran vittoria;
I’ dico di Trajano imperadore.
(“Purgatório”, 10o Canto).
Aí se a história a altiva glória
Do príncipe romano que a Gregório
Deu, por alto valor, causa ao triunfo:
Relato aqui o Imperador Trajano.
(Tradução de Bonifácio de Abreu).
No Paraíso o poeta não esqueceu o grande Romano e lá o colocou entre os bem-aventurados (Canto 20o)” (LEMOS, 1934, p. 496). O episódio indicado no Paraíso refere-se ao de uma idosa que agradeceu a Trajano por este ter retardado a partida de uma expedição para atender a suas solicitações de justiça.
[4] Em outras palavras, caso prevalecesse o projeto de Catão, Roma não seria o grande elemento aglutinador do Mediterrâneo, mas apenas mais um império como houvera até então, talvez semelhante ao de Alexandre Magno, um caso intermediário entre o ateniense (pelo racionalismo) e o persa (pela extensão).
[5] Usei a expressão “virtudes ‘telúricas’” para indicar o apego à terra, isto é, ao campo e à agricultura.

20 setembro 2008

A “memética” transitando entre a metafísica e o pós-moderno



Há bastante tempo tenho uma certa impressão negativa dos militantes ateus, céticos ou dos agnósticos contrários à teologia. Formados de modo geral nas Ciências Naturais e influenciados pelos estadunidenses, suas referências teóricas giram em torno da Biologia e, em particular, do neodarwinismo. Até certo ponto isso faz sentido, pois os teológicos têm centrado seu ataque à racionalidade e à ciência no conceito de “projeto inteligente”, que é uma proposta de interpretação da Biologia. Ainda assim, o que causa estranheza é a total ausência de reflexões e referências filosóficas e históricas, ou seja, de elementos hauridos das Ciências Humanas.
É bem verdade que vieram das Ciências Humanas várias das maiores e mais importantes tolices contrárias à ciência das últimas décadas: compendiadas de modo geral no título abrangente de “pós-modernismo” e tratadas com rigor por Alan Sockal e Jean Bricmont, são perspectivas radicalmente relativistas que afirmam ser a ciência uma forma de conhecimento como outra qualquer, não passando de uma “narrativa” tão válida como qualquer outra produção cultural específica (isto é, mitos, literatura, RPGs, astrologia etc.). Além dessa postura, há as acusações usuais, mas nem por isso menos daninhas (e injustificadas), de que a ciência é “branca”, é “eurocêntrica”, é “burguesa”, é “masculina” – e por aí vai. Essas afirmações, muitas delas entronizadas como vanguardistas e apoiadas por governos e periódicos, cumpriram o importante desserviço de desacreditar perante os “cientistas naturais” os “cientistas humanos”. No caso dos pós-modernos, muitos dos seus problemas advêm do uso inadequado de conceitos das Ciências Naturais nas Ciências Humanas, ou seja, de um falso diálogo entre umas e outras.
De qualquer forma, essas aberrações teóricas das Ciências Humanas apenas afastam quem tem um interesse relativo nelas, mas não impede que os realmente interessados estudem-nas; em certos momentos, elas servem também para confirmar preconceitos anteriores (que, nesse caso, infelizmente serão justificados).
O fato, de qualquer maneira, é que desde pelo menos a década de 1970 há uma cisão, cada vez maior, entre as ciências humanas e as naturais, em que cada lado orgulha-se de sua ignorância relativamente ao outro. É claro que tal separação produz os piores resultados possíveis e serve apenas àqueles que têm interesse em combater a ciência e, de modo mais específico, têm interesse em combater uma visão positiva da realidade.
A idéia dos “memes” – nome que Richard Dawkins utilizou para renomear as idéias, dentro de seu jargão e fazendo uma pilhéria a partir da palavra “creme” – é exemplar nesse sentido. Ela foi proposta por Dawkins para comparar alguma coisa na realidade ao comportamento replicador dos genes e refere-se a uma suposta propriedade de inúmeras idéias de imitarem-se e serem imitadas – isto é, de consistirem em unidades que buscam sua reprodução.
Dessa forma, a “memética” explicaria como diversas idéias multiplicam-se em termos de aderentes; como elas vêm em conjuntos e por aí vai – chegando ao ponto de explicar até mesmo porque o ser humano pensa[1]!
O curioso – e mais assustador – é que seus proponentes são cientistas naturais que exigem rigor na elaboração de idéias em suas próprias áreas de estudos mas que não têm o menor cuidado ao tratarem da dinâmica das idéias. Mas o que é de fato muito mais assustador é que tais cientistas são alguns dos mais importantes divulgadores da ciência e combatentes da teologia e do modo teológico de pensar e perceber a realidade. Dessa forma, eles prestam dois desserviços à ciência: ao exporem-se ao ridículo, afirmando uma bobagem completa, e ao praticarem um extremamente grosseiro materialismo.
Comentei acima que os pós-modernos e outros teóricos oriundos das Ciências Humanas elaboraram e têm elaborado, desde os anos 1970, uma série de críticas à ciência; essas críticas teriam afastado vários interessados nelas e, em outros casos, teria confirmado preconceitos. No caso dos cultores da memética, trata-se exatamente da última situação: pesquisadores das Ciências Naturais que desprezam as Ciências Humanas e consideram que podem aplicar seus modelos, suas técnicas e seus raciocínios ao âmbito social e humano sem maiores preocupações teóricas ou metodológicas.
Por que afirmo que tais pesquisadores desprezam as Ciências Humanas? Devido aos seguintes motivos:
1. eles deixam de lado, sem mais, as especificidades dos fenômenos humanos e sociais, que – consideram eles – podem e deve ser estudados de acordo com os parâmetros das Ciências Naturais (no presente caso, da Biologia). Assim, para eles, o ser humano é apenas uma máquina portadora de genes – ou de memes – e a sociedade é apenas uma forma mais cômoda de essas máquinas funcionarem (quem sabe, é uma máquina de “nível dois”);
2. afirmar que há muita tolice produzida nas Ciências Humanas não é a mesma coisa que afirmar que a produção das Ciências Humanas tout court é tolice. Dessa forma, é evidente que há coisas boas, bem-feitas, sérias e consistentes que tratam em profundidade das questões que a “memética” pretende explicar: entretanto, os “memeticistas” olimpicamente as deixam de lado. É evidente que se tivessem um interesse genuíno por saberem o que se produz a respeito de determinados assuntos, saberiam e conseguiriam distinguir o que presta do que não presta; se não o fazem, não é porque não possam, mas porque não querem. No fundo, os adeptos da “memética” têm pouco ou nenhum conhecimento de filosofia das ciências – vejam o plural: das “ciências”, não da ciência específica em que cada um pesquisa. Por fim, eles têm um defeito moral bastante humano: são prepotentes, aplicando a outros âmbitos da realidade procedimentos que, caso fossem aplicados aos seus próprios, julgariam inaceitáveis, acientíficos ou pseudocientíficos.
A “memética” postula que as memes são unidades que buscam reproduzir-se e espalhar-se pelas sociedades. Assim, o automatismo perceptível em diversas formas de pensar e, a partir daí, de agir seria explicado pelo “memetismo” dessas formas de pensar. Em diversos momentos os “memeticistas”, fiéis à sua origem na Biologia, usam a metáfora das memes como vírus, que atacam organismos com o fim de reproduzirem-se: a diferença está em que as memes atacam inteligências, não organismos. (Claro: aplicar a metáfora do vírus às memes é aplicar uma metáfora a uma metáfora... isso é o que poderíamos convictamente chamar de “pós-moderno”.) Os melhores exemplos de memes são os fenômenos de massa: modas, ideologias políticas, religiões, mitos, tabus, boatos etc.
O que subjaz a isso? Que os seres humanos são meros portadores de conjuntos de idéias; que esses conjuntos de idéias têm autonomia volitiva e – curiosa exceção – que as memes só não atacam quem tem pensamento disciplinado. (Ora, o que garante que a “memética” não é, ela mesma, uma meme? Uma simples observação sociológica, ops!, uma simples “observação memética” revela claramente que os “memeticistas” procedem de acordo com os códigos e padrões de todas as outras memes – embora, naturalmente, isso seja rejeitado ou negado à partida pelos “memeticistas”.)
Embora qualquer observador razoável concorde com a afirmação de que as “idéias de massa” produzem um comportamento de massa, que mais se assemelha a um automatismo, isso está muito longe de afirmar que os seres humanos – mesmo que se adote a cláusula, ou hipótese, de “seres humanos ‘massa’” – são simples portadores de idéias, estas sim com capacidade volitiva. Bem ao contrário, o que se percebe é que os seres humanos têm capacidade volitiva autônoma e que são inúmeros os fatores intervenientes em cada decisão e em cada formulação intelectual.
Por outro lado, o impulso “memético” à reprodução não se sustenta como hipótese. Antes de prosseguir: a “memética” não se sustenta como hipótese científica, pois todas as características da meme fazem dela um exemplo acabado de conceito de metafísica no sentido comtiano, ou seja, uma abstração personificada. Em termos efetivamente científicos, o comportamento de massa não precisa de hipóteses extravagantes como a meme para ser explicado: basta o desejo, inicialmente individual, de ser aceito, de perceber-se como integrante de um grupo, de um grupo que confira sentido à existência; ou, então, ao sentido de pertencimento de um grupo que se contrapõe a outro grupo. Temos aí que aplicar um dos princípios científicos mais elementares, a navalha de Ockham (que, como já comentamos, é aceito pelos “memeticistas” em suas áreas específicas de pesquisa mas olimpicamente desprezado no que se refere à “meme”): temos que escolher a teoria mais simples que abarque o conjunto dos dados a considerar[2]. Pois bem: entre a busca de aceitação para constituição da personalidade e a existência abstrata de um vírus abstrato que ataca as cabeças, a escolha não é muito difícil...
Nas Ciências Humanas há várias abordagens mais ou menos complementares que explicam o surgimento e o desenvolvimento das idéias; sem esgotar o estoque teórico-metodológico, podemos citar as seguintes perspectivas. A partir de uma visão histórica e de longo prazo, a lei dos três estados, de Augusto Comte, estabelece que os seres humanos ativamente avaliam o mundo (incluídas aí, por óbvio, as realidades social e individual) e buscam formas de interpretar sua realidade, de acordo com as necessidades sociais, afetivas e práticas em que vivem. Uma abordagem que permite operacionalizar pesquisas sobre as formas de pensamento é a de Mark Bevir, que estipula que cada indivíduo forma uma concepção da realidade e do mundo a partir de várias influências e que, após constituída essa concepção, defronta-se com situações que ou confirmam-na ou desafiam-na. Além disso, há perspectivas que afirmam que o conhecimento ou as produções intelectuais reagem a estímulos ou a constrangimentos sociais, seja para existirem conforme as necessidades do poder (estatal e capitalista) (Foucault), seja para enquadrarem-se em áreas específicas de atuação (Bourdieu).
Essas são apenas algumas possibilidades que as Ciências Humanas oferecem há décadas ou séculos para explicar os mesmos fenômenos que a adventícia “memética” considera. A diferença entre aquelas e esta é que as Ciências Humanas, a despeito de inúmeras limitações, são científicas: explicam as realidades a que se referem usando categorias do mesmo âmbito a que se referem; não usam metáforas reducionistas para explicar seus fenômenos; adotam as hipóteses mais simples.
Para retomar o que comentei no início do texto: o diálogo entre Ciências Humanas e Naturais é – ou tem sido, nas últimas décadas – fraco, ruim ou inexistente. Enquanto, por um lado, os pós-modernos usam incorretamente conceitos das Ciências Naturais para explicar fenômenos das Ciências Humanas, há cientistas naturais que se arvoram em pesquisadores das questões humanas e sociais sem terem o menor conhecimento das Ciências Humanas. Enquanto o primeiro caso é fruto de inveja ou de emulação ingênua, o segundo resulta de arrogância.
O mais problemático nisso é que os propositores e defensores da pós-moderna e metafísica – portanto, acientífica ou pseudocientífica – “memética” são os mesmos que se batem contra a teologia e a irracionalidade dela decorrente. Muito mais que um simples mau exemplo de conduta prática, esses “memeticistas” são defensores de uma postura contraditória e irracional, que é qualquer coisa menos a modesta e simples forma científica de conhecer a realidade. Gol contra a ciência e a racionalidade, mas a favor da teologia, da mistificação e da irracionalidade.




[1] “Por que o ser humano pensa?” é caracteristicamente uma questão absoluta, metafísica – portanto, não-científica.
[2] Algumas perspectivas pós-modernas sobre a ciência afirmariam que a própria ciência apresenta características de movimento de massa: não é despropositado afirmar que a “ciência normal” de Thomas Kuhn pode ser percebida dessa forma. Assim, a ciência seria “memeticamente” explicável, com a tão propalada racionalidade da ciência sendo simplesmente uma meme. Aliás, como já sugerimos, a própria difusão da “memética” é um exemplo de “meme”: um bando de gente repetindo mecanicamente uma idéia que não faz o menor sentido.

09 agosto 2008

Sobre a corrupção


A corrupção não é um problema menor da prática política[1]. Embora ela atinja basicamente os meios e não os fins e, dessa forma, pareça que ela não trata de política substantiva, é importante notar que ela não é apenas uma questão de apropriação privada de recursos públicos, mas também – e talvez principalmente – ela consiste em um desvirtuamento do civismo, isto é, das preocupações com o bem público. Dessa forma, a corrupção abrange também os fins da política, na medida em que a atividade política deixa de visar à coletividade mas aos interesses particulares.
Dessa forma, há algumas considerações a fazer. A primeira é que, a partir da exposição acima, podemos dizer que (idealmente, ao menos) há graus de corrupção: o primeiro consiste nos desvios de verbas pelos agentes públicos[2], na exigência de comissões pelos agentes públicos para liberação de projetos e nos orçamentos superfaturados para enriquecimento ilícito tanto dos agentes públicos quanto dos agentes privados.
O segundo grau consiste na perda de referências para a formulação de políticas públicas. Não é fácil formular com clareza este nível, mas podemos sugerir os seus contornos: os responsáveis pela condução da política perdem a preocupação em elaborar projetos efetivos para o país, os “projetos de nação”. Nesse nível, há uma desmoralização generalizada da atividade política e falar em “civismo” ou em “patriotismo” é sinônimo de tolice ou ingenuidade. Apesar disso, não é exagerado afirmar que a falta de rumo ou os rumos desvirtuados podem resultar, entre outras coisas, no fim das liberdades públicas[3].
Isso nos leva, incidentalmente, a algumas áreas de pesquisa (e de “engenharia institucional e política”): cultura política, estudos das instituições, mecanismos internos e externos de controle do Estado; teoria política. É claro que o problema da corrupção é tanto societal quanto estatal: os agentes públicos podem corromper-se “endogenamente” (a partir da locupletação ilícita oriunda de instituições, práticas e valores próprios aos agentes públicos) ou “exogenamente” (isto é, pelas ofertas de corrupção vindas da sociedade); além disso, a corrupção ocorre porque é tolerada pelo Estado mas, principalmente, pela sociedade; por fim, a ocorrência ou a ausência de manifestações sociais de repúdio à corrupção e a existência ou inexistência de mecanismos institucionais de controle da corrupção. Há discussões específicas sobre cada um desses aspectos nas subdisciplinas específicas da Ciência Política e da Sociologia Política, mas é possível considerá-las como integrantes da teoria republicana, no âmbito da Teoria Política.
Embora, como sugerimos, a corrupção atinja a formulação das políticas públicas, ou seja, os fins, basicamente ela visa aos meios; por outro lado, ela consiste no desvio das funções públicas, que deixam de servir à coletividade e passam a servir a particulares. Ela pode institucionalizar-se em práticas correntes, mas é sempre fora ou contrária à lei (seja na forma, seja no espírito do ordenamento jurídico). Como os meios são, em certa medida, secundários em relação aos fins e como o desvio das funções públicas tem um elemento “valorativo”, isto é, envolve os valores dos agentes públicos corruptos (ou corruptores), é fácil afirmar que tratar da corrupção é discutir algo menor em termos políticos e que resvala no “moralismo” – ou seja: é fácil afirmar que o discurso anticorrupção é mero diversionismo ou hipocrisia.
Sem dúvida, é fácil usar o discurso da corrupção contra um governante ou contra um agente público a que se opõe: a posição de poder de quem ocupa cargos e funções permite, sempre, que ocorram desvios de recursos ou práticas de corrupção; dessa forma, nunca se pode afastar a possibilidade improbidade administrativa.
Também é certo que, na falta de propostas concretas, de capacidade de discussão ou de articulação política ou de alguma coisa como “credibilidade política”, afirmar que a corrupção grassa no governo ou no Estado é sempre uma estratégia possível, na medida em que ela apela para um senso de responsabilidade e de correção da “opinião pública”. Em última análise, é sempre mais fácil apelar para as emoções fáceis[4] que para o difícil exercício da racionalidade política e sociológica.
Finalmente, um político incompetente ou corrupto pode desviar a atenção pública de si mesmo para outros problemas arvorando-se em defensor da ética, da moral e dos bons costumes.
Tudo isso é verdade. Entrementes, não se pode nem minimizar a importância do problema da corrupção nem afirmar que toda denúncia contra ela ou que o tema da corrupção, por si só, é diversionismo, hipocrisia ou moralismo. Além do que vimos anteriormente – que a corrupção pode passar do nível um para o nível dois, ultrapassando os meios para afetar de maneira central os fins – , há casos em que a corrupção é utilizada como um recurso para obtenção do poder político, por meio da desestabilização de um regime político[5].
Comentamos anteriormente que, no âmbito da Teoria Política, é o republicanismo o que trata mais diretamente do tema da corrupção. A teoria republicana, contudo, não é unitária, ou seja, há diversas tradições republicanas, cada qual com suas particularidades, embora mantenham um certo parentesco entre si.
Conforme comentou Quentin Skinner (em A lberdade antes do liberalismo), podemos simplificadamente afirmar que há duas grandes tradições de teoria republicana, a neo-ateniense e a neo-romana. A primeira afirma a importância da participação popular no processo deliberativo e, de maneira mais específica, realça as virtudes cívicas dos cidadãos: interesse pelo bem comum, honestidade, abnegação, dedicação. Esse é o que alguns autores, como Hannah Arendt e o brasileiro Newton Bignotto, chamam de “republicanismo cívico”, que foi teorizado no Renascimento italiano por Maquiavel. De acordo com essa corrente, a fim de evitar a corrupção os cidadãos – aí incluídos, sem dúvida, os governantes – devem ser virtuosos.
Em sentido semelhante, Augusto Comte afirmava que o aspecto positivo da república é a subordinação da política à moral. Nos termos comtianos, a “moral” equivale a “bem público”, a “bem comum”, mas não há dúvida de que o combate à corrupção (nos dois níveis identificados) entra nesse conceito.
Na verdade, a proposta republicana comtiana permite transitarmos das idéias neo-atenienses para as neo-romanas. Assim, há uma outra vertente teórica que surge dos escritos maquiavelianos; embora não seja propriamente republicana, não é totalmente descabido incluí-la na família dos republicanismos: é a linha que surge (ou continua) com John McCormick. Inspirado nos livros históricos de Maquiavel, McCormick afirma que uma das melhores e mais eficazes – se não a melhor e mais eficaz – formas de controlar a corrupção é por meio do contínuo escrutínio público dos “grandes” (ou seja, dos governantes e dos ricos) pelos “pequenos” (os governados e as classes médias e baixas). Esse escrutínio não é apenas uma questão de fiscalização, mas um controle permanente das ações governamentais, para evitar tanto a corrupção quanto a tirania; o conflito político e social não está, de modo algum, ausente dessa perspectiva.
Esse é um exemplo bastante ilustrativo de um dos traços mais importantes do republicanismo neo-romano: o controle permanente dos governantes pelos governados é uma idéia compartilhada por Augusto Comte, por McCormick e pelo principal teórico atual do republicanismo, P. Pettit.
McCormick acentua mais o caráter de confronto do controle do governo pelos “de baixo”; Comte dá maior ênfase à fiscalização e à legitimidade do governo; Pettit poderia ser posto em uma posição intermediária, ao afirmar a fiscalização constante por meio dos mais variados institutos políticos e sociais (tribunais, Ministério Público (no caso brasileiro), ouvidorias, manifestações públicas etc.).
Não queremos com esses comentários sugerir que o republicanismo, em suas várias modalidades e vertentes, resume-se a uma teoria ou a uma engenharia anticorrupção, pois sua(s) proposta(s) é (são) maior(es), abrangendo configurações sociais, princípios de legitimação e arquiteturas institucionais específicas; além disso, como os republicanismos propõem definições do que seja o “bem comum”, há também neles propostas que visam aos fins, não se limitando aos meios. Entretanto, não deixa de ser verdade que, entre as teorias políticas normativas, é o republicanismo o que mais diretamente trata da corrupção.
Há ainda uma questão de fundo que exige análise e que permeia tudo o que se comentou até agora[6]. Poderíamos chamar essa questão de “problema da natureza humana” (embora a expressão “natureza humana” seja um tanto ambígua e esteja sujeita a várias contestações): afinal de contas, é possível eliminar a corrupção? De modo mais profundo, o ser humano é bom ou mal, é corrupto (ou corruptível) por natureza?
Entre as concepções que Hobbes, Locke e Rousseau tinham do ser humano, ficamos com a de Augusto Comte: em vez de um homem por natureza mal ou bom, o ser humano possui pendores, ou “instintos”, egoístas e altruístas, ou seja, voltados para o próprio indivíduo (ou grupo) ou para os demais; além disso, há a coragem, a firmeza e a prudência. Em cada meio social os indivíduos são educados e socializados de acordo com alguns princípios e em algumas práticas; alguns meios são mais propícios à corrupção e outros menos; alguns indivíduos têm maior firmeza para evitar ou resistir à corrupção e outros, menos. Dessa forma – reforçamos –, a corrupção é um problema tanto moral quanto institucional e societal. Ainda assim, é forçoso reconhecermos: sempre haverá quem deseje obter alguns resultados específicos por fora ou acima da lei. Uma sociedade completamente virtuosa não é possível, ainda que seja desejável: a corrupção é inextinguível. Ainda assim, isso não equivale a afirmar que ela é um mal necessário ou que devamos aceitá-la ou conviver com ela: ela deve ser combatida e evitada, mas sem a ilusão de que o ser humano deixará de ser, algum dia, humano[7].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁCICAS
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SKINNER, Q. 1997. A liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP.



[1] Embora este texto seja de minha inteira e exclusiva responsabilidade, ele não seria possível sem as discussões que o Núcleo de Estudos em Pensamento Político da Universidade Federal de Santa Catarina (NEPP-UFSC) realiza; também não seria possível sem a bolsa de estudos concedida pelo CNPq.
[2] Concentramo-nos aí na corrupção que atinge o Estado, mas é importante notar que ela não existe ou ocorre apenas no âmbito estatal. Não apenas a corrupção tem uma dimensão societal como também é possível determinarmos processos de corrupção estritamente societais. No que se refere ao Brasil, não é descabido perceber no “jeitinho” uma forma de corrupção.
[3] É claro que os dois níveis que sugerirmos e as várias práticas que identificamos (ainda que de modo sumário) permitem considerar a constituição de uma tipologia da corrupção.
[4] Entram nessa categoria não apenas o moralismo anticorrupção como também os discursos que apelam para políticas de tolerância zero em questões de segurança.
[5] Basta pensarmos nas propostas de Lênin para desestabilizar os “regimes burgueses” e cimentar o caminho para as revoluções bolcheviques – cujas influências chegaram ao Brasil (de que Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e vários esquerdistas, desde a década de 1930, são exemplos).
[6] Agradeço ao amigo Tiago Losso pela proposição desse tema, tão central aqui.
[7] Talvez a melhor forma de ilustrar o combate à corrupção seja por meio de uma curva assintótica: à medida que o combate à corrupção aumenta e avança, ela diminui; ainda assim, por mais que a curva (da corrupção) aproxime-se do zero, ela nunca alcança o valor nulo, sempre restando algum resíduo.

05 agosto 2008

Dois erros sobre a doutrina política comtiana: “autoritarismo” e “funcionalismo público”

Vejam o artigo de minha autoria, intitulado "Dois erros sobre a doutrina política comtiana:  'autoritarismo' e 'funcionalismo público'" e publicado na Revista Espaço Acadêmico (Maringá) de agosto de 2008, neste vínculo:

http://www.espacoacademico.com.br/087/87lacerda.htm.

15 junho 2008

Sobre a “crítica” de Mauro Santayana à razão positiva

SOBRE A “CRÍTICA” DE MAURO SANTAYANA À RAZÃO POSITIVA

Quais são os critérios que fazem de alguém um jornalista respeitável? Ou melhor, quais os critérios que adotamos para considerar que alguém é um “jornalista respeitável” e “digno de crédito”? Confesso que até hoje nunca li muita coisa de Mauro Santayana. Ele é mineiro e escreve para um jornal fluminense (Jornal do Brasil), ao passo que eu sou curitibano e leio um jornal paulista (Folha de S. Paulo); assim, para mim, o nome de Mauro Santayana correspondia apenas ao de um “ilustre desconhecido” – uma dessas pessoas de quem ouvimos falar, mas nunca sabemos direito quem são ou o que fazem.
Pois bem: por indicação de alguns amigos meus, li o artigo que Santayana publicou no Jornal do Brasil no dia 17 de fevereiro último, “A oposição e a razão positiva” (cf. aqui). Li o texto e fiquei espantado em como alguém consegue torcer idéias, conceitos e acontecimentos para provar o que quiser – independentemente de se sua argumentação faz algum sentido ou é correta.
No artigo em questão, Santayana pretende demonstrar que a origem dos males da oposição que sofre o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva radica no Positivismo de Augusto Comte. Para isso, consulta uma única e pequena obra de Comte (Discurso sobre o espírito positivo), dando preferência à interpretação que o prefaciador do livro (Julián Marías) faz dela. A partir disso, descamba para uma série de xingamentos e qualificações negativas – tiradas do fundo de sua cabeça – para afirmar que Comte “não escrevia bem” e que, tanto no que se refere à forma quanto no que diz respeito ao conteúdo, o hegeliano Marx era-lhe superior. Santayana vai além, ao afirmar que os militares que tomaram o poder em 1964 eram positivistas, seguidores da obra de Comte. É tanta bobagem e preconceito por centímetro quadrado que não consigo acreditar que alguém que escreva tudo isso seja considerado “respeitável”.
Em primeiro lugar, ninguém que pretenda fazer uma exegese mínima do pensamento de um autor pode basear-se na leitura de apenas uma única obra, pequena, por mais que o prefaciador dessa obra diga ser possível. Na verdade, Santayana adota a tradução espanhola do Discurso, deixando de lado a tradução brasileira. Pois bem: o prefaciador Julián Marías, que “autorizou” a olimpiana exegese de Santayana, é um conhecido liberal de origem católica, que, além de fazer renhida oposição ao Positivismo comtiano, foi professor e orientador de todos os intelectuais liberais de origem católica que deram seu apoio ao regime militar. Em outras palavras, Santayana – que foi exilado pelo regime de 1964 – consegue praticar a proeza de basear-se nos seus próprios inimigos para criticar seus desafetos do momento. Mais valeria Santayana ter lido a tradução brasileira, prefaciada pelo sociólogo francês Paulo Arbousse-Bastide, profundo conhecedor de Comte e autor de um prefácio efetivamente esclarecedor (cf. Augusto Comte, Discurso sobre o espírito positivo, Martins Fontes, 1990).
Na verdade, não apenas Santayana estabelece uma vergonhosa aliança com seus inimigos da véspera (amigos atuais, talvez?), como simplesmente ignora a formação ideológica dos militares que deram o golpe em 1964. Conviria Santayana ler um pouco mais de história do Brasil; sugiro-lhe o livro de José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar, 2005). Nessa obra, Carvalho reúne uma série de artigos acadêmicos e de polêmica que escreveu nos últimos vários anos; para o que nos interessa, no longo capítulo 1, o autor indica com clareza que a influência do Positivismo entre os militares da Proclamação da República foi na direção da “civilização” dos militares, isto é, de ao mesmo tempo afastar esses militares qua militares da vida política e de torná-los mais civis, mais paisanos, que guerreiros. Carvalho segue na análise e indica que foi a geração dos “jovens turcos”, educada no ambiente militar alemão nos anos 1920, que resultou nas diversas levas de militares golpistas das décadas seguintes.
Além disso, Santayana deveria ler outras duas obras. Uma, de seu colega jornalista Elio Gaspari, o volume 4 da sua coleção sobre a ditadura (A ditadura encurralada, Companhia das Letras, 2004); o outro livro foi organizado por Renato Lemos e chama-se Justiça fardada (Bom Texto, 2004). Ambos – mas principalmente o segundo – apresentam a atuação do General Peri Bevilácqua à frente do Superior Tribunal Militar, entre 1965 e 1969. O Gal. Peri era positivista e neto do igualmente positivista Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães – o mesmo que fundou a República no Brasil e que orientava a formação de seus alunos militares no sentido da já comentada “civilização”. Pois bem: o Gal. Peri bateu-se no STM contra os abusos civis e militares praticados pelo regime militar – e, note-se, durante alguns dos mais duros e violentos momentos do período.
Santayana afirma que o Positivismo não é “democrático”. À primeira vista, pensamos que isso equivale a dizer que o Positivismo é autoritário e que apoiou, ou teria apoiado, todos os regimes autoritários do Brasil. Ele também sugere que o Positivismo é “de direita” – afinal, as propostas sociais do Positivismo consistiriam em oferecer casa e esmolas ao proletariado, mandando-o, em troca, manter-se longe da política, calar a boca e submeter-se às explorações feitas pela burguesia. Mas será isso mesmo?
A “democracia” não é um conceito unívoco, ou seja, há inúmeras formas de interpretá-la. Podemos considerar a democracia como um regime político em que as pessoas tenham liberdades políticas, sociais, civis; ou um regime em que as pessoas possam participar do governo e intervir nas políticas públicas; ou participar dos debates públicos, para opinar sobre o governo e apoiá-lo e criticá-lo quando julgarem adequado; ou exigir que os governos sejam legítimos e que só existam na medida em que forem legítimos. Mas também é possível considerar como democracia aquela sociedade em que, baseada no individualismo, todos, o tempo inteiro, estão governando diretamente a sociedade, além de exigirem a igualdade de todos e rejeitando as diferenças e as dissensões. São várias formas de considerar a “democracia” e não se pode considerar nenhuma mais “correta” que as outras. Se alguém preferir a sua própria versão de democracia, de modo que exclua outras possibilidades, será necessariamente “antidemocrático”, pois opõe-se a traços das outras “democracias” – e foi esse salto que Santayana deu para “demonstrar” o caráter antidemocrático do Positivismo. Antes de prosseguirmos, é importante dizer com clareza e com todas as letras: esse procedimento adotado por Santayana, do ponto de vista lógico, é um sofisma, cujo objetivo é enganar as pessoas.
Ora, se entendermos que o Positivismo é radicalmente a favor da atuação política do proletariado no espaço público; é radicalmente a favor da melhoria das condições de vida do proletariado (isso é o “progresso”, que se baseia na “ordem”); é radicalmente a favor das liberdades civis, políticas e sociais; é radicalmente a favor da sociedade pacífica que distribui os frutos de sua produção econômica, moral, artística, cultural e intelectual a todos os membros da sociedade; é radicalmente a favor da estabilidade institucional e “republicana”; é radicalmente a favor dos regimes legítimos; é radicalmente a favor da separação entre a Igreja e o Estado; é radicalmente a favor do respeito às culturas tradicionais (indígenas, quilombolas etc.); é radicalmente a favor da autodeterminação nacional e contrário às formas de colonialismo e intervencionismo; se entendermos que o Positivismo, em termos políticos, é tudo isso, não será possível afirmar que ele é “antidemocrático”.
Por outro lado, o Positivismo é contrário às formas políticas que afirmar sem possível que o “povo” governe tudo o tempo todo ou que não haja elites políticas; também é contrário à afirmação de que o objetivo básico das sociedades é a igualdade; também é contrário à afirmação de que a sociedade baseia-se em indivíduos; também é contrário às fórmulas políticas que reduzem a sociedade a um único grupo social. Para o Positivismo, essas características da “democracia” conduzem diretamente a regimes tirânicos, autoritários, liberticidas, em um argumento que foi depois repetido por Alexis de Tocqueville: assim, Augusto Comte era contra Rousseau – cujas idéias foram aplicadas por Maximilien Robespierre, durante a Revolução Francesa – e seria contrário a inúmeros aspectos da obra de Marx – cujas idéias foram aplicadas na Rússia soviética e em todos os países comunistas ou socialistas. Ora, não se pode duvidar das credenciais democráticas de Rousseau e Marx, Robespierre e Lênin – mas eu não gostaria de viver em tais democracias. Em suma: Santayana lê livros pequenos para apenas repetir e assumir preconceitos. Brilhante!
Santayana afirma a superioridade de Marx em relação a Comte, em particular em termos estilísticos. Isso parece intriguinha, futilidade – e é isso mesmo. Comte escrevia “longos parágrafos”, era “confuso” e suas idéias “decaíram” no que se refere à sua influência política e social. E daí? Jamais consegui ler os livros de Marx, pois seus parágrafos eram “longos”, “tortuosos” e extremamente “confusos” – eram “dialéticos”! (Minto: as obras jornalísticas de Marx são mais legíveis – mas ele tinha que conseguir vender pelo menos alguns de seus escritos, afinal de contas.) Claro que a prática política de Marx nunca foi “democrática”, em qualquer sentido que se possa tomar essa palavra: Santayana deveria ler Escritos contra Marx, de Bakunin (Imaginário, São Paulo, 2001).
As idéias de Comte “decaíram”? Mas o que isso significa? Que elas não tiveram influência no mundo? Ora, somente um ignorante e/ou preconceituoso poderia dizer uma tolice dessas: Inglaterra, Estados Unidos, França, a América Latina inteira, Índia, China, Japão, Turquia... a amplitude geográfica e civilizacional com que as idéias comtianas (políticas, sociais, religiosas, científicas) espraiaram-se é qualquer coisa menos uma “decadência”.
Mas, afinal de contas, o fundador do Positivismo não viu a decadência de suas idéias – o que quer que isso signifique – e o mero fato de elas terem “decaído” não prova que elas “não prestam”. Isso faz sentido, de alguma forma? Faz, se quem afirma essa pérola adota algum tipo de “darwinismo intelectual”. Por outro lado, as idéias de Marx também decaíram (e – oh, vida! – Marx não viu sua decadência!). O que isso significa? Não sei, mas, a julgar pelos seus próprios critérios, suponho que o filomarxista Santayana esteja quase 20 anos atrasado. Para terminarmos essas picuinhas: Marx seria superior a Comte, além de tudo, por ser hegeliano. Pois bem: Hegel foi um dos mais obscuros autores que já escreveu no mundo; além disso, Hegel fez o elogio dos estados autoritários (de orientação napoleônica) ou absolutista (de orientação prussiana), considerando-os a forma mais evoluída de Estado, ao afirmar a identidade do “Espírito” (entidade metafísica, por certo) com a própria instituição estatal e a sociedade civil e subsumir a sociedade civil no Estado. Não é difícil de perceber que nessa mistificação estão algumas das origens do totalitarismo do século XX. Enfatizo: em Hegel, não em Comte.
Seria possível continuar muito mais, mas é necessário concluir. Assim, duas observações gerais.
Em primeiro lugar, de súbito um jornalista resolve comentar a política do momento e “descobre” na origem de suas mazelas o Positivismo. Isso parece coisa de quem não tem o que fazer, mais ou menos com a seguinte linha de raciocínios: “quero criticar meus adversários políticos; como posso fazê-lo? Já sei: atribuirei a origem última de meus inimigos a alguma corrente política ou filosófica que não tem muitos aderentes hoje (e, portanto, não podem responder) e que recebe críticas. Hum... o Positivismo enquadra-se nisso. Oba!”. Afinal, por que, de repente, falar em Positivismo? Apenas um raciocínio disparatado justificaria atribuir os erros da oposição política que sofre o Presidente Lula ao Positivismo. Afinal de contas, em seu texto, Santayna apenas falou mal de Augusto Comte e do Positivismo, para em seguida – sem nenhuma relação lógica – afirmar que o Positivismo é o ancestral intelectual da oposição a Lula. Dá para acreditar?!
(Cá entre nós: seria mais sensato e correto atribuir a origem intelectual da oposição a Lula a outras correntes políticas, algumas bem distantes do Positivismo: catolicismo, marxismo, liberalismo católico e por aí vai. Eu gostaria que Santayana indicasse um político ou teórico de partido – tanto faz se de situação ou de oposição – que tenha relevo nacional, que conheça Comte e que seja capaz de usá-lo em suas reflexões. Se houver, serei o primeiro a fazer seu escrutínio político e filosófico.)
Essa atitude de Santayana não é nova no jornalismo brasileiro; possivelmente, deve ser comum em todos os países do mundo. O curioso é que o esquerdista Santayana recupera os mesmíssimos argumentos que o direitista Diogo Mainardi usou anos atrás (cf. aqui), na famigerada revista Veja: a diferença entre ambos é que um atribuiu ao Positivismo a origem da esquerda (de Lula, no caso) e outro, da direita (quem, não se sabe).
A segunda observação geral retoma as perguntas iniciais deste artigo. Afinal de contas, o que faz de alguém um jornalista “respeitável” e “digno de crédito”? Eu suponho que seja a originalidade do pensamento, a coragem de dizer o que pensa, a moralidade (em sentido amplo) do que pensa, a coerência de suas idéias e, claro, a correção (fática e teórica) do que escreve. Esses cinco elementos, possivelmente não exaustivos, estipulei-os agora, mas parece que são adequados para definirmos a “respeitabilidade” de um jornalista. A questão é que, se cada um, isoladamente, é condição necessária, não é suficiente: há que se ter todos os cinco juntos. Como vimos, Mauro Santayana não corresponde a nenhum deles. É isso o “jornalismo respeitável” do Brasil?