04 janeiro 2007

Sobre a separação entre a Igreja e o Estado

Sobre a separação entre a Igreja e o Estado

A separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro instante pareça que ele refere-se apenas à impossibilidade de o Estado professar qualquer fé, ele tem outras aplicações.

A separação entre Igreja e Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões coletivas. Se uma pessoa acredita no deus católico, outra em Alá, outra não acredita em nenhum e outra prefere Lênin, essas questões são de ordem pessoal e privada; embora em suas casas e em suas relações pessoais possam fazer proselitismo, ao tratarem dos assuntos coletivos apenas uma realidade é aceitável: a sociedade como um todo, em diferentes níveis (governos municipais, estaduais, nacionais ou a própria Humanidade).

Isso tem uma conseqüência clara: o Estado não pode beneficiar as diversas fés, sejam elas do caráter que forem. Não importa se os governantes são católicos, protestantes, budistas, ateus, agnósticos, comunistas, livre-pensadores; também não importa se os governantes querem satisfazer uma demanda de um grupo específico (por mais numeroso que ele possa ser). Assim, por exemplo, o apoio do Estado a festivais religiosos é errado e, na verdade, é ilegal, na medida em que, no Brasil, é inconstitucional. No Paraná, por exemplo, o governo do estado apoiou um festival de música cristã – o que é uma aberração do ponto de vista de um Estado efetivamente republicano –, mas, agora que estamos no final do ano, os apoios oficiais às comemorações cristãs do natal multiplicar-se-ão. Onde fica o princípio republicano, conquistado há 116 anos no Brasil, da separação entre a Igreja e o Estado?

É necessário notar que a laicidade pública é a base da liberdade de pensamento e de expressão e do pluralismo social e político nas sociedades ocidentais. Assim, ao contrário de parecer que o afastamento das crenças da esfera pública diminui a importância da religião na sociedade, na verdade ela é a própria garantia de que as religiões continuarão existindo.

Como? Ora, um governo que professa uma fé, se for um governo “esclarecido”, poderá, talvez, permitir a expressão das outras crenças; todavia, governos esclarecidos são mais raros do que gostaríamos e a opressão humilhante é a regra. Exemplos recentes disso não faltam: o comunismo na antiga União Soviética, o nazismo, os regimes baathista de Saddam Hussein, dos aiatolás no Irã e o talibã no Afeganistão. Além de ser opressivo (o que, por si só, é pernicioso), um governo que professa uma fé impede que a sociedade organize-se e que viva autonomamente; para usar uma terminologia que se tem consagrado, um Estado que professa uma fé impede a manifestação da sociedade civil.

Um pouco de história nunca faz mal. A separação entre Igreja e Estado surgiu ao longo da Idade Média como uma forma de ambos os poderes (Igreja e Estado) policiarem-se mutuamente (tendo um resultado de fiscalização muito mais eficaz que a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), mas a retração da religião à esfera privada surgiu a partir do século XVII, quando as violentas guerras de religião na Europa transformaram-se em guerras civis, que não raras vezes separavam até mesmo famílias.

No Brasil a separação entre a Igreja e o Estado, apesar de ter-se realizado logo no início da república, em 1890, nunca se completou e, na verdade, ela tem passado por uma regressão “lenta, gradual e segura”, de modo geral misturando hipocrisia, demagogia e (má-)fé. Senão, vejamos: Getúlio Vargas instituiu os feriados públicos religiosos; o Marechal Castello Branco proclamou N. Sra. Aparecida “padroeira” e “generalíssima do Brasil”; José Sarney incluiu o “deus seja louvado” em todas as cédulas (mantido e negritado pelo “ateu” Fernando Henrique Cardoso); o “Preâmbulo” da Constituição de 1988 fala em deus (apesar da proibição indicada no Art. 19 do mesmo documento) e quase todos os tribunais e órgãos públicos brasileiros ostentam crucifixos (que aumentam de tamanho à medida que aumenta a importância da corte ou do órgão).

Além dos fatos esparsos indicados anteriormente, no Brasil recente – digamos, nos últimos 15 anos –, as manifestações de caráter religioso têm aumentado. Se elas fossem exclusivamente da sociedade civil e no âmbito religioso, não haveria nada a obstar; entretanto, o que se nota é que, cada vez mais, a fé é um valor público. Por exemplo: no interior do Paraná, há alguns anos, um Prefeito tomou por mote de sua gestão o dístico “Fé e trabalho”! Todavia, não nos esqueçamos de grupos religiosos ligados a canais de televisão e a partidos políticos, no Brasil de um modo geral e no Rio de Janeiro em particular[1].

Um outro exemplo, a partir de uma experiência pessoal: na semana passada recebi um documento de uma comissão interna da Universidade Federal do Paraná, onde trabalho; esse documento consistia em uma rápida prestação de contas da comissão, que está prestes a ser substituída por outra. Eis o que, a certa altura, escreveu-se no documento: “Os membros da atual e última gestão agradecem em primeiro lugar a Deus que nos orientou no caminho certo”. À parte o fato de que não se sabe o que significa precisamente esse “caminho certo”, essa declaração ilustra bem o grau de decomposição do espírito republicano no Brasil. Uma comissão interna de um órgão público pura e simplesmente não pode fazer uma declaração desse tipo; se se aceita algo assim, é porque se julga legítimo que a fé seja um valor cívico – o que não é.

Fala-se muito em cidadania e direitos em nosso país e, recentemente, a palavra “republicano” voltou ao vocabulário político corrente. Pelo que vimos, essas palavras não significam muito, face aos acontecimentos cotidianos. Se queremos que este país (e a Humanidade como um todo) melhorem, é bom começarmos a levar a sério o que essas palavras querem dizer – e completemos, respeitemos e aprendamos o que significa um princípio democrático consagrado faz mais de um século.



[1] Nas últimas semanas a imprensa tem divulgado a constituição de um novo Partido Republicano, que, apesar do nome, será constituído em sua maior parte por grupos religiosos que tornam ou querem tornam a religião um tema e um valor político.

Sobre feriados, república e republicanismo

Sobre feriados, república e republicanismo

À memória de Benjamin Constant e Teixeira Mendes

No dia 15 de novembro o Brasil comemora a Proclamação da República, isto é, da instauração, em 1889, do nosso regime político. Juntamente com a Proclamação da Independência, comemorada no dia 7 de setembro, a Proclamação da República é nossa data maior – ou, pelo menos, deveria ser.

Há muito é senso comum sociológico que no Brasil há uma separação secular entre o “povo” e as “elites”; o relacionamento entre ambos dá-se pela exploração que as últimas impõem sobre o primeiro. Essa idéia, instrumentalizada pelo atual Presidente da República para manter-se no poder (e a despeito de ser ele mesmo integrante da “elite”), é uma das explicações para o fracasso dos feriados “oficiais” (Tiradentes, Independência, República) e para o sucesso dos feriados “populares” (páscoa, natal, finados, N. Sra. Aparecida, corpus christi e, claro, o carnaval).

Por que tratar dos feriados? Porque os feriados, mais – ou melhor: antes – que dias de ócio remunerado, são momentos em que coletivamente se celebram alguns valores considerados coletivamente importantes. Assim, é de fato profundamente revelador que os feriados “populares” sejam todos de caráter religioso (exceção feita ao 13 de maio, dedicado à integração das raças, cuja popularidade, na medida em que existe, deve-se aos esforços aos movimentos negros), em que se inclui mesmo o carnaval, cuja datação é decidida em função de critérios religiosos e que é percebido como um extravasamento profano prévio à purificação religiosa. Em outras palavras, o brasileiro reconhece-se como participante de uma coletividade de fé, mas não de uma coletividade política; ele reconhece-se como crente, como fiel, mas não como cidadão. (A passagem de uma identidade religiosa para uma política consiste na modernização política: assim, o brasileiro, nesse sentido, é pré-moderno em termos políticos.)

Tal situação é conhecida e reconhecida desde há muito tempo; por exemplo, nos primórdios da República, na década de 1890, alguns dos mais ardorosos defensores de uma república de caráter social (isto é, inclusiva e justa) bateram-se pela criação de um imaginário efetivamente republicano no Brasil; de modo semelhante à França, esses propagandistas – Miguel Lemos, Teixeira Mendes (autor, aliás, da bandeira nacional), Benjamin Constant, Demétrio Ribeiro – procuraram substituir tanto os símbolos teológicos quanto os oficiais (em particular as paradas militares) na constituição do imaginário cívico popular do país.

O sucesso desses esforços, como se sabe, foi infelizmente limitado: após algumas vitórias iniciais (a proclamação da República em si, a instituição da bandeira republicana, a separação entre a Igreja e o Estado, a instituição de um calendário cívico abrangendo comemorações nacionais e universais), o ideal republicano de 1889 passou a sofrer diversos reveses. Por um lado, a chamada “questão social” não foi resolvida: a inclusão social dos ex-escravos foi tratada como “não-problema”, preteridos que foram pelos imigrantes europeus (italianos, espanhóis e alemães, basicamente) e chineses; por outro lado, o princípio da separação entre Igreja e Estado passou a ser criticado e, embora juridicamente respeitado, passou a ser ignorado na prática, em nome de o “Brasil ser um país cristão”.

O que importa notar aqui é que o fracasso da institucionalização do republicanismo no Brasil não se deveu apenas à separação entre o “povo” e as “elites” nacionais, pois, como vimos, setores dessas mesmas elites tinham projetos de inclusão social e de criação de imaginário e de instituições especificamente republicanas. Não foi apenas a “ganância” das elites oligárquicas dos diversos estados, que a partir de 1895, ou melhor, de 1898 organizaram-se na “política dos governadores”: papel fundamental nesse nosso parco republicanismo tiveram as elites religiosas, leigas ou clericais, que, ao mesmo tempo em que sabotaram o republicanismo, incentivaram a “religiosidade popular” (tão celebrada atualmente).

Essas questões podem parecer meramente históricas, mas não são. Como dissemos no início deste artigo, o sucesso dos feriados religiosos e sua maior importância popular em comparação com os feriados propriamente cívicos assinalam a atualidade desses problemas – mas ainda se pode afirmar que essas são questões “meramente culturais”. Em termos propriamente políticos, há indicadores mais claros: a constituição de bancadas parlamentares especificamente religiosas é fato de conhecimento público, assim como a criação de um partido político de base também especificamente religiosa (ironia das ironias: tendo em seu nome a palavra “republicano”!). Além disso, ocorre a exigência demagógica de qualquer candidato demonstrar-se “temente a deus” para ser eleito – como se a fé fosse um valor político, isto é, próprio à cidadania! Por fim, os constantes apoios oficiais a comemorações religiosas – como se coubesse ao Estado subvencionar as diversas igrejas, por mais expressivos demograficamente que sejam seus “rebanhos”.

A data de 15 de Novembro lembra-nos: urge celebrarmos a República; urge sermos republicanos!

As sete máximas de Clotilde de Vaux

As sete máximas de Clotilde

  1. É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem.
  2. Que prazeres podem exceder aos da dedicação?
  3. Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza de nossa natureza quando não é dirigida para um alvo elevado que seja inacessível às paixões.
  4. A nossa espécie, mais do que as outras, carece de deveres para fazer sentimentos.
  5. Não há nada irrevogável na vida senão a morte.
  6. Todos temos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade.
  7. Os maus têm, amiúde, mais precisão de piedade do que os bons.

Sobre a responsabilidade social

Sobre a responsabilidade social

“Os deveres sociais do capital podem reduzir-se a dois: produzir riqueza e sustentar os seres humanos”.
Luís Lagarrigue 

A vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República pôs na ordem do dia uma tendência que lentamente se formou no Brasil ao longo dos anos 1990: o valor da “responsabilidade social”.

Esse conceito tem sido aplicado por diversas empresas que – preocupadas com as condições de vida, não apenas de seus funcionários, mas de todos os cidadãos – desenvolvem programas de auxílio a necessitados, com a “adoção” de alunos carentes, doação de alimentos, reciclagem de lixo reutilizável, campanhas de “conscientização social” e assim por diante.

Ora, esses atos, por si sós, não constituem novidade alguma; com maior ou menor ênfase, há vários anos, talvez décadas, diferentes grupos têm-nos defendido. O mais notável nesse movimento são seus defensores: empresários, capitalistas, donos de empresa – justamente aqueles que, pela profissão ou mesmo pela mentalidade, seriam os menos propensos a tal tipo de conduta.

Ainda mais interessante é o fato de que o valor da responsabilidade social, ainda que possa ser comparado ao da “caridade”, não é igual a ela, pois não se trata de remediar a condição de vida de quem sofre, mas de evitar que quem sofre sofra, ou seja, é um comportamento preventivo, ao invés de paliativo.

Sem dúvida alguma é uma alteração profunda, absolutamente necessária para a sociedade, e que, se tem sido mais difundida (no Brasil) apenas nos últimos anos, a verdade é que é um valor, um conceito existente há mais de um século e meio.

Foi o filósofo francês Augusto Comte (1991), autor da frase que está em nossa bandeira nacional, Ordem e Progresso, quem pensou pela primeira vez os termos da responsabilidade social; são eles muito simples.

A idéia básica, fundamental, é que a sociedade é um todo e não uma coleção de indivíduos que, por acaso ou por necessidade, interagem. Essa totalidade caracteriza-se mais por sua existência ao longo do tempo, através das gerações sucessivas, que pelo mero tempo presente; além disso, nela cada um tem seus deveres para com os demais, a começar pelo respeito mútuo. A segunda idéia é que o trabalho, isto é, a atividade humana, não é apenas a econômica, pois envolve tudo o que fazemos: as idéias, os pensamentos, a política, a produção material, as obras artísticas e assim por diante. A terceira idéia é que o ser humano tem uma constituição tal que somos naturalmente altruístas, ou seja, somos venerantes, fraternos e bondosos, cumprindo apenas exercitar esses sentimentos e desenvolvê-los.

Essas percepções – que não são idéias abstratas, porém questões de fato – têm algumas conseqüências claras: quando trabalhamos, não o fazemos apenas ou principalmente para nós mesmos, para satisfazer nosso egoísmo presente. É claro que precisamos viver e, nesse sentido, não há como não ser egoísta: mas os frutos de nossa ação ultrapassam a mera satisfação de nossos próprios desejos ou necessidades, tanto “neste momento”, no presente, quanto ao longo do tempo; o que fazemos influencia a vida dos demais, incluindo-se aí as gerações posteriores, que serão as principais afetadas por nossos atos de hoje.

Além disso, as pessoas não iguais; cada um é diferente dos outros, e disso resulta que as habilidades e as competências são, também, diferentes. Da mesma forma como há indivíduos mais propensos e habilitados a serem filósofos, ou poetas, ou engenheiros, ou médicos, ou artesãos, ou políticos, há indivíduos hábeis na condução dos negócios econômicos, e são eles que devem cuidar desses assuntos, com a máxima liberdade possível. Mas essa “máxima liberdade possível” só se justifica porque são os empresários que sabem como lidar com os assuntos sob sua responsabilidade, assim como sabem quais são os problemas que enfrentam; nesse sentido, a liberdade, que deve ser garantida, exige, em contrapartida, a máxima responsabilidade na condução dos negócios. E, como dissemos antes, a sociedade não é uma coleção de indivíduos egoístas que interagem para satisfazer seus desejos...

Outra tendência que tem se acentuado no Brasil, desde os anos 1990, é a difusão dos cursos de Administração. Fora os aspectos técnicos dos diversos tipos de administração, é interessante notar que um “administrador” é alguém que gere o patrimônio alheio, tendo para isso muita liberdade – afinal, é ele que sabe quais são os problemas que enfrenta na gestão – mas, da mesma forma, tendo que prestar contas periodicamente aos donos da empresa ou ao corpo de acionistas; caso malverse os recursos à sua disposição, ou seja incompetente, é substituído por alguém mais capaz.

É exatamente essa mentalidade que deve generalizar-se pela sociedade; mas, ao invés de sermos “administradores de empresas”, seremos “funcionários sociais”, responsáveis pela gestão da sociedade naquilo que nos cabe; ao invés de buscarmos o lucro para a satisfação mesquinha de desejos egoístas de acumulação material e ostentação, buscaremos a melhoria das condições de vida e de existência do ser humano.

Da mesma forma, a concepção que temos da propriedade mudará, ou deverá mudar: não sendo nunca “coletiva”, como propõe o socialismo, ela será social; não teremos a “propriedade” dos bens, mas apenas a “posse” ou seu “usufruto”. Ao dispormos dos bens, temos liberdade para tanto, sujeitando-nos também à completa responsabilidade (social) implicada. Ou, como disse o filósofo Comte, “O capital é social em sua origem; deve ser também em sua destinação”.

Liberdades reais e liberdades formais


Um dos procedimentos mais simples e mais eficazes para a discussão de temas filosóficos – na verdade, para a reflexão em geral na vida – é por meio da contraposição de dois termos opostos. Às vezes, esses dois termos são inconciliáveis entre si de um ponto de vista moral (por exemplo, Bem e Mal) ou lógico[1] (no princípio do tertium non datur – “não existe terceira opção”), mas muitas vezes são apenas um recurso para a exploração das possibilidades lógicas e teóricas em uma área qualquer do conhecimento. Essas oposições são chamadas de “dicotomias” e aquelas que são inconciliáveis entre si, de “antinomias”[2].

Na Teoria Política há diversas dicotomias, que podem ou não ser antinômicas. No que se refere à discussão sobre a liberdade, podemos começar com uma celebrizada pelo teórico alemão Karl Marx, pai do comunismo ou do “socialismo científico”. Ao analisar a sociedade contemporânea, Marx diagnosticou uma série de problemas: crescimento vertiginoso, exploração e pauperização do proletariado, alienação do ser humano, egoísmo da burguesia e dos grupos dirigentes de modo geral. Embora os métodos por ele empregados e as soluções propostas por Marx sejam inadequados (os métodos) e incorretas e desastrosas (as soluções), permanece o fato de que os problemas que indicou existem e devem ser enfrentados com clareza e decisão.

A dicotomia que Marx sugeriu foi entre as liberdades “reais” e as liberdades “formais”. Considerando as liberdades civis, “clássicas” – isto é, de ir e vir, de pensamento, de expressão, de crença, de associação –, Marx perguntava-se até que ponto elas são reais, efetivas, para uma população crescentemente depauperada e que vivia no limite da sobrevivência. A essas liberdades, de caráter político, ele opunha liberdades econômicas; não no sentido da inexistência de obstáculos à produção e à movimentação de bens e serviços, mas a liberdade das privações econômicas. Livre, nesse sentido, seria aquele que não passasse por necessidades econômicas extremas e pudesse, com dignidade, fruir a vida: em outras palavras, livre seria aquele que vive e não meramente sobrevive.

Em uma sociedade em que a simples sobrevivência material das pessoas está em questão, a dicotomia marxiana é uma questão real e urgente, frente à qual as liberdades políticas são percebidas como formais, talvez quase como embustes criados pelos grupos dominantes para explorar desimpedidamente os fracos e pobres. Aliás, a partir disso, embora não sejam similares, a dicotomia liberdade real-liberdade formal pode ser convertida na dicotomia igualdade-liberdade.

A discussão sobre as liberdades muitas vezes é abstrata e, por isso, tem-se a sensação de que é irreal ou falsa; frente às necessidades urgentes de inúmeros grupos sociais, as liberdades civis desvanecem-se em favor da satisfação das necessidades mínimas dos “excluídos”. Quantas vezes já não se ouviu, cotidianamente, as denúncias sobre as péssimas condições de vida de comunidades inteiras, juntamente ou não com clamores em favor da justiça social ou da “emancipação humana”?

Todavia, a história do século XX demonstrou que essa oposição, conquanto muito difundida, é falsa, isto é, não é aceitável para o ser humano opor as liberdades “reais” às liberdades “formais”. Se as liberdades civis são “formais”, isto é, questões de apenas forma e não de conteúdo, elas são secundárias; além disso, se elas são o instrumento da dominação e da exploração econômica e “humana” de um grupo restrito sobre outro, bem maior, não há porque manter essas liberdades: elas são descartáveis. Em seu lugar, a liberdade “real” é buscada: sociedades que, a partir da autoridade do Estado, mantêm sistemas de educação, saúde, geração de trabalho e renda universais, especialmente para as populações mais desfavorecidas. Em troca, a população não tem as liberdades “formais”, civis: não pode associar-se, não tem liberdade de pensamento e de crença nem, como conseqüência, liberdade de expressão. Em outras palavras, em troca das condições mínimas de vida, deve-se obediência cega (ou muda) ao Estado[3]...

Como indicamos, o século XX demonstrou que não é válida a oposição entre as liberdades “formais” e as liberdades “reais”. Na verdade, os próprios nomes da oposição já indicam como podem ser enganadores: as liberdades “formais” revela(ra)m-se tão substantivas quanto as liberdades “reais”: pode-se viver e não apenas sobreviver, mas não se tem os motivos nem as condições para realizar essa vida.

Referências bibliográficas

ARON, R. 1966. Trois essais sur l’age industriel. Paris: Plon.

BOBBIO, N. 1996. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro.

Comte, A. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil.



[1] O estruturalismo de Lévi-Strauss, por exemplo, explica as realidades sociais por meio de oposições binárias lógicas.

[2] Augusto Comte, reconhecendo a importância lógica das oposições binárias para o pensamento humano, sugeriu que, no caso em que os termos opostos, polares, não são inconciliáveis, introduza-se um terceiro elemento, cujo papel é operar a ligação entre os dois extremos e que apresenta elementos de ambos (15ª lei da Filosofia Primeira – cf. Comte (1934, p. 479)).

[3] Basta pensar em Cuba ou na China, mas o Camboja e a União Soviética são exemplos mais gritantes disso; se se desejar, mesmo o regime militar brasileiro de 1964 aproximou-se disso, com o “milagre econômico”. Em contraposição, os trabalhadores liberados da opressão econômica aproveita(ra)m cada vez mais as liberdades civis (cf. ARON, 1966).

Augusto Comte e a tecnocracia

Uma versão amplamente revisada – tanto em termos gramaticais quanto, principalmente, nas idéias e nos conceitos – deste artigo foi publicada no livro Teoria política positivista: pensando com Augusto Comte (Poiesis, 2013). Esse livro pode ser adquirido aqui.

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AUGUSTO COMTE E A tecnocracia[1]

Resumo
O presente artigo investiga uma afirmação recorrente na literatura sociológica e politológica, a respeito da possibilidade de uma tecnocracia a partir da obra de Augusto Comte. Para isso, inicialmente definimos a tecnocracia, adequando-a ao período em que viveu o pensador francês, de maneira a termos elementos para investigar a obra de Comte. Na seqüência, tratamos diretamente da questão, precedida de uma rápida apresentação de elementos do pensamento comtiano e seguida por uma rápida comparação entre a maneira como ele percebia a sociedade e o que chamamos de tecnocracia com as perspectivas de alguns outros teóricos sociais. Sugerimos que no sistema comtiano, especialmente a partir da leitura da obra Apelo aos conservadores, a separação político-social entre os poderes Temporal e Espiritual e o relativismo do “espírito positivo” impede a tecnocracia.
Palavras-chave: Augusto Comte; tecnocracia; separação dos poderes; poder Temporal; poder Espiritual; espírito positivo; política; técnicos.

Cuando las doctrinas pretenden dominar el orden temporal de la fuerza y la riqueza, se establecen regímenes tiránicos, en que no sólo es necesario obedecer sino aplaudir” (Lagarrigue, 1937, p. 15).
[...] Assim, o principal vício da situação moderna resulta da traição da inteligência que, sonhando um ambicioso domínio, se coloca ao serviço da força, concentrada ou dispersa, em vez de subordinar-se à influência moral” (COMTE, 1899, p. 198).

I. INTRODUÇÃO
Uma definição básica de tecnocracia indicaria ser ela um regime político, ou um tipo de sociedade, em que os governantes pretensamente atuam como técnicos, não como políticos; suas responsabilidades seriam verificadas por sua eficácia e sua eficiência no atingimento de fins cientificamente estipulados. Ora, essa formulação, genérica como é, sugere uma série de questões para reflexão: qual o “verdadeiro” conhecimento? Qual o papel da ciência na existência humana (social e “vital”)? Qual a natureza da política e qual seu papel na sociedade? Qual a natureza da sociedade contemporânea? Quais seus valores?
A tecnocracia é um problema sociológico contemporâneo; na verdade, ele é propriamente da Sociologia Política, na medida em que se refere a relações sociais e ao problema do poder na sociedade e nas diversas instituições. Ele vincula-se estreitamente ao tema da especialização do conhecimento e à constituição da técnica, no sentido moderno da expressão, isto é, vinculado ao conhecimento científico da realidade e à sua aplicação prática. Dessa forma, a discussão sobre a tecnocracia surge como uma discussão sobre as próprias sociedades modernas, sobre suas constituições sociais e também intelectuais.
Tradicionalmente se considera que Augusto Comte, fundador do Positivismo, na medida em que afirmava explicitamente a importância social e política da ciência – falava em “política científica”! –, seria também um teórico, ou precursor, da tecnocracia. Sua obra, referindo-se ao conjunto da sociedade, afirmava a importância de aplicar-se os resultados e os cânones da ciência à “reorganização social”, sendo que sua Sociologia seria um instrumento teórico com tal fim: por que não suspeitar que, aí, existe uma tecnocracia latente?
Todavia, uma suspeita não é uma confirmação: é no máximo uma hipótese a ser testada. Esse, portanto, é o objetivo deste texto: examinar se a obra de Augusto Comte sugere ou permite a tecnocracia. Essa proposta já sugere sua organização: inicialmente apresentaremos uma definição da tecnocracia, de maneira a termos elementos para investigar a obra de Comte. Na seqüência, trataremos dessa questão, precedida de uma rápida apresentação de elementos do pensamento comtiano e seguida por uma rápida comparação entre a maneira como ele percebia a sociedade e o que chamamos de tecnocracia com as perspectivas de alguns outros teóricos sociais. Por fim, faremos alguns comentários a título de conclusão.
Antes de seguir adiante, duas advertências. Em primeiro lugar, importa notar que a obra de Augusto Comte é profundamente sistemática e sistêmica, ou seja, não é possível compreender um elemento sem o relacionar a diversos outros, separando a parte do conjunto. Entretanto, não é nosso propósito uma exposição do conjunto da obra comtiana, mas apenas o exame de um seu aspecto: para evitar os inevitáveis inconvenientes dessas limitações, sugerimos a consulta às obras do próprio Comte (1890; 1899; 1957; 1996) ou a de intérpretes autorizados (ARNAUD, 1965; 1969; ARON, 1999; LACROIX, 2003; DESTEFANIS, 2003).
Em segundo lugar, concentrar-nos-emos em uma obra específica e de pouco conhecida de Comte para esta discussão: o Apelo aos conservadores (COMTE, 1899), escrita alguns anos antes da morte do pensador – o texto é de 1855 e ele morreu em 1857 – e, com preocupações essencialmente práticas, dirigida aos políticos e aos industriais. Dessa forma, considerando que o último pensamento é o mais “correto” na vida de um autor, podemos ter maior segurança na representatividade das idéias de Comte e na adequação da obra escolhida para a presente discussão.
II. UMA DEFINIÇÃO BÁSICA DA “TECNOCRACIA”
O que nos interessa neste momento é obtermos uma definição operacional da tecnocracia. Conforme indica Fisichella (1994, p. 1233), esse termo é utilizado em diversos contextos, com variados sentidos, em uma verdadeira “inflação conceitual”: uma avaliação dessas interpretações, portanto, é necessária.
Uma apresentação histórica da tecnocracia foi feita por Carlos Estevão Martins (1975); ao realizar sua discussão sobre os teóricos da tecnocracia e suas aplicações concretas, Martins selecionou um grupo curioso, pois heterogêneo e limitado: Platão, Henri de Saint-Simon, Thornstein Veblen e John K. Galbraith. Entre o primeiro autor e os outros três separa uma distância de cerca de 25 séculos, de modo que suas elaborações referem-se a contextos históricos (ou seja, sociais, políticos e intelectuais) diversos. Ainda assim, essa escolha apresenta algumas qualidades, além da comum atribuição de destaque político conferido aos “sábios”: analisando-se os contextos e os argumentos de cada um desses autores, organizados cronologicamente, o que se percebe é que a sociedade – ocidental, bem entendido –, ao industrializar-se, racionalizar-se e tornar-se científica, passou a apresentar uma complexidade que exige, de modo indispensável, a atuação dos técnicos, dos especialistas, dos possuidores do conhecimento científico.
Enquanto o grego antigo Platão, no século V a. C., valorizou politicamente a figura do sábio, daquele que conhece a Verdade, indicando que apenas ele, o “rei-filósofo”, seria capaz de realizar uma sociedade “correta”, o filósofo francês Saint-Simon adaptou essa idéia e afirmou, no início do século XIX, que em uma sociedade científica e industrial os cientistas devem ser os responsáveis pela organização material e espiritual, em uma “teologia científica”. O economista norte-americano de origem sueca Thornstein Veblen, por seu turno, nos anos 1910-1920 afirmou que uma sociedade industrial altamente organizada, complexa e baseada nos conhecimentos científicos, para manter sua eficiência econômica e responder a critérios de justiça social, deve ser globalmente organizada e gerida pelos técnicos responsáveis pela produção econômica: a tecnocracia seria uma forma de sociedade, um regime político, um ethos cultural e uma forma de legitimação política[2]. Por fim, o economista norte-americano de origem canadense John Kenneth Galbraith considerou que, mais que um projeto de sociedade, a tecnocracia já seria uma realidade, ao menos nos Estados Unidos dos anos 1960 e, embora tenha inúmeros pontos positivos, para evitar seus males seria necessário melhorar a educação e a instrução dos técnicos responsáveis pelas operações sociais: tratar-se-ia, portanto, de aperfeiçoar a tecnocracia, não a impedir ou propô-la (MARTINS, 1975, cap. 1-4).
Podemos acrescentar a obra de Max Weber à seqüência proposta por Martins: não porque Weber fosse um defensor da tecnocracia – muito ao contrário –, mas porque seus estudos sobre a burocracia e sobre a burocratização das instituições (por ex., WEBER, 1997) assinalam uma tendência de aumento da importância dos técnicos na sociedade como um todo.
Desse quadro, percebem-se alguns motivos gerais que justifica(ria)m a tecnocracia:
- solução para a desordem e a injustiça econômico-social (Platão, Saint-Simon, Veblen);
- percepção de que existe um conhecimento verdadeiro, superior ao senso comum e detido por relativamente poucos (Platão, Saint-Simon);
- burocratização das instituições e aumento das atuação dos técnicos “competentes” (Weber, Veblen, Galbraith) e
- busca de eficiência e racionalidade econômica e social, contra as disputas políticas (Veblen, Galbraith)[3].
Também é possível perceber, no quadro acima, uma evolução nos agentes da tecnocracia: do sábio platônico passa-se para o filósofo cientista de Saint-Simon, ambos em um nível por assim dizer utópico, de projeto; a partir daí, contra o pano de fundo da sociedade industrial e científica, há uma tendência à especialização, em que o possuidor do conhecimento verdadeiro é, de fato, um técnico, detentor de competências específicas e de que depende o funcionamento de diversas instituições e estruturas sociais.
Podemos extrair desse quadro que a tecnocracia ocorre quando os técnicos deixam de ser meramente técnicos, isto é, especialistas subordinados, e passam a realizar ações gerais de mando, detendo poder decisório; quando deixam de executores de atividades e tornam-se atores políticos, mantendo o ethos técnico na atuação política e rejeitando, no discurso, a prática política. Embora possa haver atores políticos técnicos na burocracia, não é propriamente a atuação profissional desses atores o que constitui a tecnocracia, mas uma forma específica de regime político (isto é, de organização do Estado e de processamento do poder político) e de legitimação política e social, de tal sorte que pode haver tecnocracias operadas por não-técnicos e técnicos atuando em regimes não-tecnocráticos.
Fisichella (1994) precisa essa definição mais ou menos intuitiva, realçando que a tecnocracia é um fenômeno específico das sociedades industriais – o que relegaria Platão e outros pensadores “tecnocráticos” “pré-industriais” (Francis Bacon, por exemplo) à condição de “prenunciadores” ou “precursores”. Ela também se caracteriza pela atuação generalista do especialista: quando o técnico, detentor de uma competência específica, arroga-se a capacidade de opinar e atuar não apenas em sua área particular mas em todas as demais, gerindo o conjunto da sociedade: “[...] enquanto o técnico se qualifica como um perito do particular, o tecnocrata é definido como um perito do geral. Se o primeiro é um especialista, o segundo é um perito em idéias gerais, caracterizado por uma polivalência de funções, por um conhecimento global das variáveis em ação” (idem, p. 1234). Sendo mais específico: o debate sobre a tecnocracia “[...] pode ser resumido por e reduzido a uma questão de fundo: qual a relação entre competência e política?” (idem, p. 1235); “quem é o generalista? O tecnocrata, segundo sua aspiração omnicompreensiva, ou, em última análise, e apesar de tudo, o político?” (idem, p. 1236). Levando em consideração a visão de mundo abarcada pela concepção tecnocrática, Fisichella questiona: “Embora se torne cada vez menos fácil responder à pergunta, o dilema nos remete ao problema dos fins. Generalista é, na verdade, aquele que, apoiando-se nas diferentes variáveis, mesmo instrumentais, indica os fins em todas as suas formas, neles compreendida a manipulação. Mas basta a competência para decidir sobre os fins?” (ibidem; sem grifos no original)[4].
A discussão acima remete a um aspecto em que devemos insistir: o fenômeno tecnocrático relaciona-se com as sociedades industriais, marcadas necessariamente pela atuação de técnicos competentes para seu bom funcionamento; não é fácil obter uma resposta do ponto de vista da prática política para os limites entre a atuação técnica dos especialistas e sua atuação política. , especialmente porque a operação dessa sociedade pauta-se “[...] pela noção de que os problemas políticos são realmente de natureza administrativa e gerencial, ou que idealmente deveriam ser reduzidos a isso [...]” (WILSON, 1997, p. 759; grifos no original).Como vimos anteriormente, Martins (1975, cap. 3) esclarece que a origem da expressão e uma de suas formas teoricamente mais acabadas são devidas a T. Veblen, que preconizava uma totalidade social tecnocrática – precisamente de base industrial[5].
Abstraindo um pouco da definição e passando a algumas questões metodológicas, podemos considerar dois âmbitos de análise, por assim dizer próprios, um, à modernidade e, outro, à pós-modernidade. A primeira questão a assinalar refere-se ao governo dos técnicos, dos especialistas, tidos como mais racionais, mais capazes e mais generosos para organizar a vida social: a crítica a essa modalidade de afirmação dá-se por meio da afirmação da racionalidade política, da natureza inerentemente conflitiva da vida social (que não pode ser reduzida à mera administração das coisas, com fins dados a priori, por meio de critérios “técnico-científicos”) e da discussão permanente dos valores e dos fins a que objetiva a sociedade. Evidentemente, essa argumentação é muito esquemática, havendo outras possibilidades mais ricas e mais complexas: o que importa indicar aqui é que são críticas de caráter sociológico e político, que em momento algum põem em questão a validade da ciência e do procedimento científico, fazendo, ao contrário, a denúncia de uma utilização “errada” da ciência. As críticas marxistas à tecnocracia são exemplares dessa posição, como se pode perceber nas obras de Martins (1975) e Covre (1983); embora seja mais ou menos ambivalente, em certo sentido poderíamos também incluir Weber (1977; 2004) nesse gênero de crítica.
A segunda possibilidade é pós-moderna porque foi elaborada por autores pós-modernos, como Lyotard (2006) e Foucault (1998a; 1998b), que põem em questão não apenas a legitimidade do poder dos técnicos mas também a legitimidade da fonte de seu poder, isto é, o próprio procedimento científico. Como se sabe, os pós-modernos identificam no discurso científico – como em qualquer outra forma de discurso, especialmente os derivados da racionalidade instrumental – uma forma de poder, de modo que, independentemente do juízo que façamos a respeito de suas críticas à tecnocracia, é claro o fato de que elas são mais “radicais” que as anteriores, na medida em que, por assim dizer, para eles qualquer regime político que lance mão da ciência para legitimar-se será “tecnocrático”.
Não nos interessa aqui entrarmos em detalhes sobre cada uma dessas posturas; correndo o risco de ligeireza, é necessária uma observação crítica, antes de prosseguirmos. Os teóricos pós-modernos fazem objeções de fato interessantíssimas sobre a ciência, a racionalidade instrumental e suas relações sociais. Todavia, à parte o problema do irracionalismo na postura pós-moderna – que não é de somenos importância –, sua crítica à tecnocracia, realizada por extensão de sua crítica à ciência, tem como efeito apenas desvalorizar o empreendimento científico, sem, todavia, impedir que a ciência continue existindo, sendo realizada e tendo seus diversos efeitos na sociedade. Em outras palavras, são formulações bonne à penser, como diria Claude Lévi-Strauss, mas que não resolvem o problema que se propõem resolver nem permitem uma ação mais ampla no mundo.
Retornemos à discussão principal. Da discussão acima, um dos elementos mais importantes talvez se refira à dimensão histórica da tecnocracia. Novamente: conforme indicado por Veblen e Fisichella, ela é um característico das sociedades industriais, que necessitam de técnicos especializados de para operar as máquinas e prover os mais variados serviços; em termos cronológicos, podemos considerar as sociedades de meados do século XIX até meados do século XX – digamos, de 1870 a 1950, isto é, o período da II Revolução Industrial (HOBSBAWM, 1999). Entretanto, ficamos com uma dificuldade teórica, pois a época de Augusto Comte era outra, anterior à essa sociedade industrial; é certo que ele foi um seu teórico, mas, concretamente, viveu antes da emergência dos técnicos especialistas e de sua atuação nas instituições. Embora a insistência na filiação intelectual de Comte em relação a Saint-Simon seja, via de regra, incorreta e exagerada (cf. Gouhier, 1933), neste caso ela não é ilusória, pois o universo social e intelectual de ambos era a Europa posterior à Revolução Francesa e a Napoleão Bonaparte; era a Europa do início do século XIX, dos sábios e dos cientistas, dos pesquisadores isolados, que passavam a pesquisar a realidade social e passaram a ser chamados a interferir nessa realidade. Para que se torne inteligível o presente artigo, é necessária uma definição lato sensu de tecnocracia: mantendo o ethos do tecnocrata da sociedade industrial, o melhor é pensarmos em uma versão científica do rei-filósofo platônico: um “rei-cientista” st.-simoniano.
III. COMTE E A TECNOCRACIA
Considerar que Augusto Comte foi um profeta não apenas da sociedade industrial e científica mas, também, da tecnocracia é um desses conhecimentos que pertencem ao senso comum acadêmico: pensemos em algumas expressões por ele utilizadas no início de sua carreira: “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”, “Física Social”, “política científica” (COMTE, 1977). A usual vinculação a Saint-Simon também facilita essa idéia, como se percebe no livro de Martins (1975, p. 40, 46) ou em Wilson (1997, p. 759).
Em contraposição a essas postulações genéricas, todavia, um exame mais atento da obra comtiana revela outra perspectiva, como exemplifica a observação sumária mas decisiva de Jean Lacroix (2003, p. 101): “sua concepção de poder Espiritual afastava-o [...] de qualquer tendência tecnocrática”. Ultrapassando as assunções genéricas sobre o pensamento comtiano, o comentário de Jean Lacroix fornece uma resposta preliminar à questão sobre o suposto caráter tecnocrático de Augusto Comte e indica em que parte de sua obra deve ser pesquisada a rejeição à tecnocracia: conforme sugerimos alhures (LACERDA, 2004, p. 74), ela reside na “separação dos dois poderes”.
III.1. Elementos do pensamento comtiano
Entrementes, precisamos recapitular preliminarmente alguns elementos do pensamento comtiano, por questões de ordem lógica. Como indicamos acima, uma primeira consideração refere-se ao caráter sistemático e sistêmico do pensamento de Comte, que não pode ser compreendido sem que uma parte ligue-se às demais e sem que se faça referência ao conjunto (KREMER-Marietti, 2003): este artigo focaliza apenas um aspecto que, por importante que seja para a Teoria Política contemporânea, nem por isso deixa de ser uma pequena parte; descontextualizada, ela torna-se sem sentido. Se compararmos Comte a Marx e a Weber a esse respeito, notaremos que é relativamente mais fácil fazer esses “recortes” nas obras dos dois alemães, pois são, de fato, mais fragmentárias (embora Marx tivesse uma preocupação totalizante com sua teoria, ao contrário de Weber).
Em segundo lugar, o sentido de historicidade na obra comtiana é muito forte: de fato, a sua própria formulação fundamental, a lei dos três estágios, é histórica, na medida em que indica como, ao longo do tempo, modificaram-se e modificam-se as concepções humanas e as instituições sociais. Assim, não é apenas o conjunto presente da sociedade humana que deve ser analisada, mas o conjunto da história: para usar a terminologia estruturalista, para Augusto Comte, sem embargo da importância da análise sincrônica, mais importante que ela é a análise diacrônica. Daí surgem duas possibilidades de análise da sociedade: em um momento dado e ao longo da história: são as Estática e Dinâmica sociais. A Estática Social verifica as condições de existência das sociedades – ou seja, da Ordem –, determinando cinco instituições fundamentais, existentes em todas as sociedades: família, religião, linguagem, poder Temporal (governo) e poder Espiritual; a Dinâmica Social determina as mudanças e as condições dessas mudanças das instituições fundamentais, bem como as diversas inter-relações entre os grupos sociais, ao longo da história[6] – é o Progresso.
A natureza humana é tríplice: os homens são seres afetivos, intelectuais e práticos; as instituições devem satisfazer essas respectivas necessidades. A fórmula de caráter moral “agir por afeição e pensar para agir” também é epistemológica e resume as relações entre cada um dos elementos da natureza humana: nas diversas ações e na vida de um modo geral, a motivação fundamental e os fins a que almejam as pessoas são dadas pelos sentimentos (cujo significado é lato) e a inteligência atua como intermediária, indicando os meios adequados para a consecução dos objetivos.
Em relação à afetividade, Comte substituiu os conceitos teológicos, absolutos, de Bem e Mal pelos instintos altruístas e egoístas, isto é, pendores que se referem ao indivíduo e ao interesse por si e pendores que se referem à coletividade e aos outros. Todos os seres humanos são tanto egoístas quanto altruístas: a questão é em que grau é-se cada uma das coisas; as instituições sociais podem e devem atuar para regular esses pendores.
No sistema comtiano a primeira lei sociológica descoberta (no duplo sentido, cronológico e teórico) é a lei dos três estágios: “cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes” (COMTE, 1996, p. 210). Na verdade, é necessário indicar que, sendo tríplice a natureza humana, há outras duas leis dos três estados, relativas respectivamente à afetividade e à ação prática: “a sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos” e “a atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial” (ibidem). Essas três leis pertencem à Dinâmica Social e, complementares entre si, indicam que as sociedades contemporâneas tende(ria)m a tornar-se cada vez mais positivas, mais pacíficas e mais preocupadas com a universalidade do ser humano[7].
Iii.2. A separação entre os dois poderes
No que se refere ao governo, à atividade comumente chamada de “política”, a partir de Hobbes e em termos não muito diferentes dos de Weber (1977), Comte localiza no poder Temporal o responsável pela manutenção da ordem pública e, eventualmente, pelo desenvolvimento material da sociedade[8]. Enquanto o poder Temporal pode ser facilmente identificado com a figura do Estado, de maneira complementar existe o poder Espiritual, que é o responsável pela formação das opiniões e das crenças e que, embora possa ser identificado também nas igrejas, integram-no também professores, filósofos, jornalistas, escritores de um modo geral e os diversos artistas. O poder Espiritual, ao formar opiniões e crenças, serve como um liame para a sociedade, indicando-lhe os fins a aspirar, criando a “comunidade imaginária” de Benedict Anderson e estabelecendo as condições de atuação do poder Temporal, ou seja, conferindo-lhe legitimação (cf. LACERDA, 2004). A partir dessas características, torna-se claro que uma forma de encarar a tecnocracia no sistema comtiano, conforme sugerido por Lacroix (2003, p. 101), aliás, é que ela seria uma forma de confusão entre os dois poderes.
Em termos de história da Ciência Política, deve-se atentar para um fato capital: “poder”, para a teoria política, é “poder político”, de tal sorte que se reduz a discussão ao Estado e às querelas respectivas. Todavia, cumpre realçar que, para Augusto Comte, as opiniões e os conselhos não são algo residual ou secundário; sem negar a evidente importância do Estado, ou melhor, do poder Temporal, o fato é que ele sempre se relaciona e é relacionado ao império das opiniões, necessitando delas para manter-se. Seguramente, esse vício teórico de teor materialista, que percorre grande parte da Teoria Política contemporânea, é um dos motivos profundos da usual má-interpretação de Comte[9].
Uma das justificativas dadas por Augusto Comte para a separação entre os dois poderes é de ordem sociológica, antes que política, e refere-se à separação dos ofícios, à separação entre a teoria e a prática. A teoria deve iluminar a prática e esta deve fornecer os materiais e os temas para aquela investigar: são atividades diversas e que não devem ser confundidas, sob perigo de malogro de ambas. O mesmo refere-se à atividade política: o filósofo, o cientista político ou social não devem mandar, da mesma forma que o governante não deve ter pretensões intelectuais qua governante, i. e., de ser um “rei-filósofo” platônico. Nesse sentido, não seria descabido aplicar a Comte a conhecida fórmula weberiana que distingue a ética da convicção da da responsabilidade.
Outro elemento importante é mais “lógico” que “político” e refere-se à natureza do “espírito positivo”: conforme se percebe em várias obras (COMTE, 1899; 1990), um dos seus elementos fundamentais, talvez o mais importante, seja o relativismo do positivismo[10]. Esse relativismo caracteriza-se pela oposição ao absoluto, pelo que é revelado e incapaz de ser demonstrado. Ora, a dinâmica da ciência é baseada na contínua discussão, ou melhor, na contínua possibilidade de discutir e pôr à prova as afirmações e as diversas postulações[11]. Embora não tenhamos encontrado análises filosóficas mais profundas sobre a tecnocracia (exceto pela rebuscada discussão feita por Maria Covre (1983), a partir do marxismo com elementos foucaultianos), as referências à tecnocracia indicam que o governo dos sábios, ou dos técnicos, dar-se-ia, entre outros motivos, porque eles conheceriam a Verdade, isto é, a verdade absoluta, impassível de discussão e crítica. O relativismo positivo impede que se estabeleça uma tal “Verdade” e veda a pretensão a obtê-la. Aliás, indo mais diretamente ao ponto: um dos motivos políticos da separação dos dois poderes em Comte é, precisamente, a possibilidade e a necessidade de crítica do poder Espiritual sobre o poder Temporal[12].
Na obra Apelo aos conservadores (COMTE, 1899) – destinada aos homens práticos, isto é, aos políticos e aos “capitalistas” –, são freqüentes as referências à separação entre os poderes e à sua necessidade. Senão, vejamos.
De maneira decisiva, Comte indica que a separação entre os dois poderes é condição para a reorganização da sociedade, sistematizando o que se fez, de modo espontâneo mas instável durante a Idade Média pelo catolicismo (de que o pontificado de Gregório VII, no século XI, foi o melhor exemplo). Além disso, na confusão entre os dois poderes, considera Augusto Comte que, embora, com a falência da doutrina católica, o individualismo tenha-se desenvolvido e o poder Temporal tenha encampado o Espiritual (pense-se em Henrique VIII, na Inglaterra), o perigo maior vem do poder Espiritual, não do Temporal: em outras palavras, o perigo é que quem regula o pensamento queira, também, mandar, com a conseqüência de impor suas opiniões, tornadas irrespondíveis por via da força e, portanto, opressivas, em um regime de mediocridades intelectuais.
“[...] cumpre constituir irrevogavelmente a divisão fundamental dos dois poderes, prematuramente esboçada na Idade Média mediante uma doutrina insuficiente. O princípio revolucionário consiste sobretudo na absorção do poder espiritual pelas forças temporais, que não reconhecem outra autoridade teórica senão a razão individual, pelo menos quanto às questões mais importantes e mais difíceis. Todos os partidos atuais merecem assim ser igualmente qualificados de anárquicos e de retrógrados, pois que eles concordam em pedir às leis as soluções reservadas aos costumes. Essa perturbação tem-se tornado por tal forma universal e profunda que os melhores amigos da liberdade não hesitam nunca em recorrer aos meios materiais para fazer prevalecer suas opiniões quaisquer” (idem, p. XXVIII).
“Antes, porém, de caracterizar essa solução[13], eu devo especialmente recordar que ela exige, acima de tudo, uma plena e constante separação entre o sacerdócio e o governo. Ora, a divisão dos dois poderes, prematuramente esboçada na Idade Média, decorre espontaneamente da natureza, espiritual e temporal, do regime positivo, do qual ela constitui o fundamento geral. Ela não pode ser nunca gravemente comprometida pelo poder prático, que fez diretamente malograr a nobre tentativa do catolicismo. Os únicos perigos que ela deve finalmente temer resultariam de uma viciosa ambição do sacerdócio, abusando do seu ascendente normal sobre o proletariado, para fazer degenerar a sociocracia em teocracia, ou antes, em pedantocracia, oprimindo o patriciado. É afim de prevenir tal alteração que o clero positivo deve renunciar tanto à riqueza como ao mando [...]” (idem, p. 73-74).
O mando pedantocrático, todavia, é incompetente e, não reconhecendo a separação entre a teoria e a prática, ou seja, entre o abstrato e concreto, apenas estorva a política e a economia:
“Aos limites a serem observados pelo poder Espiritual o proletariado estará atento e não aceitará ninguém que não subordine a inteligência ao coração e que não garanta a pureza de sua doutrina pela estrita abstinência do poder político. Por um apelo aos princípios da política positiva, ele verificará qualquer tola esperança da parte dos filósofos de ambições políticas e restaurarão o poder Temporal ao seu lugar próprio. Ele estará atento a que, embora os princípios gerais da vida prática baseiem-se na ciência, não cabe à ciência dirigir sua aplicação. A incapacidade dos teóricos para aplicar praticamente suas teorias foi há muito reconhecida para assuntos menores e será agora reconhecido como igualmente aplicável às questões políticas. A província do filósofo é a educação e o resultado da educação, o conselho” (COMTE, 1957, p. 419; sem grifos no original)[14].
A separação entre os dois poderes deveria ter uma posição pessoal a partir do poder Espiritual, não somente relativa ao poder Temporal como ao controle de riquezas, com a “Abnegação do clero positivista a respeito do mando e da riqueza” (COMTE, 1899, p. 138).
Além da separação institucional entre os dois poderes, há uma hierarquia entre os níveis de existência, entre a ação prática e a inteligência, que se reflete institucionalmente: a inteligência apenas ilumina as possibilidades da ação prática. De passagem, perceba-se nas citações abaixo a preocupação em abarcar o conjunto da existência humana e a instituir o estudo da moral e a prevalência dos sentimentos:
- “Ora, os dois programas aos quais pode ser assim reduzido o conjunto das aspirações humanas consistem sobretudo, um a fazer prevalecer a ação sobre a especulação, para completar a subordinação da vida privada à vida pública; o outro a disciplinar a inteligência e a atividade pelo sentimento” (idem, p. 47; sem grifos no original);
- “Diretamente destinada a guiar nossa conduta, a moral não pode ser erigida em supremo estudo sem que a subordinação da especulação à ação esteja normalmente estabelecida” (idem, p. 48; sem grifos no original) e
- “[...] As condições morais consistem: de um lado, em separar os dois poderes sociais [Temporal e Espiritual]; do outro lado, em fazer sempre prevalecer o sentimento sobre a inteligência e a atividade. Esse duplo programa da Idade Média, repelido pelos revolucionários e pouco sentido entre os conservadores empíricos [...]” (idem, p. 96).
Todavia, separar os dois poderes não implica, no caso do poder Espiritual, desconsiderar os problemas materiais, políticos ou sociais em sentido amplo; como vimos, a separação dos poderes é condição para o cumprimento de suas responsabilidades e, portanto, para a avaliação dos problemas e o encaminhamento das soluções. A separação, em particular, permite uma aliança do poder Espiritual com o proletariado: “[...] Todos os verdadeiros servidores do Grã-Ser [i. e., da Humanidade], tanto práticos quanto teóricos, conservando-se cuidadosamente afastados de todo domínio temporal, deverão obter com mais facilidade do proletariado uma confiança espiritual que ele há de recusar cada vez mais à ambição dos letrados [isto é, dos metafísicos]” (idem, p. 140).
As citações acima são claras a respeito da posição de Comte sobre os dois poderes. O interessante é que, reconhecendo a possibilidade de que os dois poderes confundam-se, ele atribui aos “letrados”, isto é, como indicamos, aos autores metafísicos, a busca dessa confusão:
“Não há duvidar que essas disposições[15] lhes são sobretudo inspiradas pela necessidade de conservarem um domínio incompatível com a separação fundamental que religião da Humanidade vem irrevogavelmente estabelecer entre o conselho e o mando. Mais incapazes de se apegarem ao novo sacerdócio que ao antigo [i. e., católico], os letrados querem perpetuar uma confusão que é o único meio que permite sua preponderância [...]” (idem, p. 128-129; sem grifos no original).
Inversamente, o poder Temporal tem que respeitar a autonomia do poder Espiritual, mantendo as mais amplas liberdades:
“[...] Respeitar escrupulosamente o movimento intelectual, por mais desregrado que ele se torne. [...] Ele é especialmente exigido pela obrigação universal de proclamar, como base necessária da ordem e do progresso, a separação, primeiro espontânea, depois sistemática, da influência teórica da autoridade prática. [...]
Nada justifica o poder Temporal de comprimir a liberdade de exposição e mesmo de discussão, desde que os perigos que ela suscita numa época de anarquia mental e moral podem ser suficientemente superados pelo poder Espiritual” (idem, p. 141).
As citações acima deixam claro que, por exemplo, são improcedentes os comentários que Isaiah Berlin fez a propósito de Augusto Comte – de que no pensamento comtiano a sociedade deveria ser governada por uma elite autoritária e “científica” (BERLIN, 2002, p. 587).
Por outro lado, passando para o outro extremo do espectro ideológico, não deixa de ser inesperada a coincidência de perspectivas entre Comte e o teórico anarquista Mikhail Bakunin[16]: os dois autores, opostos em tantas perspectivas[17], têm a mesma opinião sobre o papel que os intelectuais devem, ou não, desempenhar: “Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade, logo acabaria por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por conseqüência, mais necessitada de seu governo e de sua direção” (BAKUNIN, 2000, p. 36). Mesmo o anarquismo revolucionário de Bakunin seria até certo ponto conforme a posição comtiana de chamamento do poder Espiritual ao seu objetivo precípuo pelo povo: “o que prego é, até certo ponto, a revolta da vida contra a ciência, ou melhor, contra o governo da ciência, não para destruir a ciência – seria um crime de lesa-humanidade – mas para recolocá-la em seu lugar [...]” (idem, p. 66; grifos no original). Por fim, os objetivos consignados por Bakunin à ciência também são concordes com Augusto Comte: a ciência “[...] é somente um meio para a realização de um objetivo bem mais elevado: o da completa humanização de todos os indivíduos que nascem, vivem e morrem na Terra” (idem, p. 67).
Aliás, a respeito da limitação do papel da ciência na existência humana, igualmente concorda com Augusto Comte o sociólogo alemão Max Weber (2004), embora também por outros motivos. Na verdade, bem vistas as coisas, é curioso que as críticas de Weber ao cientificismo incluam presumivelmente Augusto Comte, embora dirigiam-se em princípio a Marx.
Como se sabe, o teórico da revolução socialista afirmava que, por meio da dialética, a ciência deve desvelar as “essências” subjacentes às “aparências”, descobrindo a Verdade – em uma metodologia claramente metafísica. Além disso, discípulo malgré lui même de Saint-Simon, para Marx a ciência tem um papel messiânico e suas teorias deveriam fundir-se, por meio da práxis, na prática política do proletariado contra a burguesia. Finalmente, a filosofia e a ciência seriam superestruturas, simples epifenômenos da infra-estrutura econômica (MARX & ENGELS, s/d; 2006).
Todos esses elementos conformam um cientificismo que desconsidera a importância dos elementos intelectuais e “espirituais”, vistos como instrumentais ou secundários em relação à economia e, em menor proporção, à política. À parte o economicismo subjacente, essa combinação poderia resultar, como de fato resultou, em uma forma tecnocrática extrema: o comunismo soviético[18].
IV. À GUISA DE CONCLUSÃO
Ao contrário do que usualmente se pensa, a obra de Augusto Comte, em particular em sua última fase – triste e injustamente percebida como marcada pela loucura –, consiste em um sério esforço de criar as condições sociais e políticas para que o ser humano desenvolva-se o máximo possível, dentro de uma situação de plena liberdade. A respeito do que discutimos neste texto, o resultado principal é que a exigência de separação dos poderes e o caráter relativo do espírito positivo seriam, e são, duas formas de evitar não apenas a tecnocracia como outras formas políticas liberticidas ou desumanizadoras, como os totalitarismos.
Ainda assim, é importante notar que a realidade a que se referia Augusto Comte em aspectos não é a mesma que a atual: como vimos, os cientistas e os filósofos comtianos – o “sacerdócio positivo” – não são os técnicos operadores de Veblen e Galbraith, nem os burocratas sem alma de Weber, nem, ainda, os revolucionários profissionais de Marx – nem, muito menos, são os profissionais liberais e de colarinho branco das sociedades pós-industriais.
Importa reconhecer que deixamos de lado um aspecto importante da discussão sobre a tecnocracia e, na verdade, para qualquer discussão de Teoria Política: o caráter conflitual da atividade política. Essa exclusão não foi desavisada nem foi ingênua, mas deveu-se a uma precaução teórica e também metodológica; longe de ser um conceito claro e unívoco, esse caráter conflitivo da política assume uma multiplicidade semântica que apenas nos atrapalharia nesta discussão. As disputas devem-se a diferentes concepções de mundo, a projetos de poder ou ao duelo de personalidades? Os conflitos políticos referem-se à luta partidária pelo poder em termos parlamentares ou militares? Assim como é enganadoramente fácil afirmar que Augusto Comte seria pela tecnocracia, é enganadoramente fácil, por extensão, afirmar que ele seria a favor da despolitização da sociedade. Todavia, a qual política referimo-nos quando se fala em “despolitização”? Carl Schmidt lamentava o fim das disputas “vitais” da política européia, que passou das guerras de religião para a União Européia: de acordo com seu juízo de valor, não haveria mais política digna desse nome – embora o mesmo Carl Schmidt afirmasse que, em última análise, a política é redutível à oposição “amigo-inimigo”. Dessa forma, ao invés de procurarmos tratar de mais um tema que exige pesquisa cuidadosa na obra de Augusto Comte – e que deixaria este artigo com um objeto mal definido –, preferimos circunscrever a presente discussão a um tema mais facilmente discutível. Fica aí, é claro, a possibilidade, e mesmo a necessidade, de um exame futuro.
Aqui invertemos uma seqüência da redação de artigos, para fazer agora o que, geralmente, faz-se no início, isto é, justificar o estudo da obra de Augusto Comte. Para tanto, podemos retomar as considerações feitas por Alexander (1996, p. 45-52) sobre a importância dos clássicos, isto é, daqueles autores fundantes das disciplinas, cujas contribuições são percebidas como mais ou menos permanentes. Sem entrar no debate entre Sociologia Histórica e Sociologia Metódica, queremos reter suas observações sobre a atualidade dos clássicos. O autor observa que há razões diversas para a permanência desses cânones; entre elas, indicamos as seguintes: as obras dos clássicos simplificam o debate, estereotipando a miríade de proposições de cada autor; elas também permitem a interpretação de estados mentais, em que as descrições dos clássicos, sendo altamente empáticas, facilitam a compreensão da realidade; as obras dos clássicos contêm reconstruções do mundo empírico, com grande capacidade sintética e, ao mesmo tempo, riqueza de detalhes e, last but not least, elas contêm avaliações morais e ideológicas[19]. Como vimos, a obra comtiana apresenta essas características, mas, no caso da tipificação dos argumentos de cada autor, é fácil perceber que se formaram estereótipos sobre o pensamento de Comte. Todavia, ao invés de facilitarem o debate, esses estereótipos apenas o dificultam, na medida em que não correspondem ao seu pensamento. Talvez só esse fato justifique a recuperação do pensador francês, mas seríamos injustos com ele: suas acuradas e ricas descrições do ser humano, seu notável e elegante poder de síntese – elevado à condição de exigência epistemológica e teórica! – e, mais importante, seus juízos de valor são importantes contributos, que merecem constantes releituras e meditações.
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[1] Este artigo consiste no trabalho final da disciplina Tópicos avançados em Teoria clássica, do doutorado em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ministrada pela Profª Drª Júlia Guivant. Desde já agradeço a colaboração da Profª Guivant e a de meus colegas doutorandos nas discussões que este artigo é um resultado, ressaltando, é claro, que as falhas deste texto são de exclusiva responsabilidade do autor. Também agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela oportunidade de ser seu bolsista e, com isso, dedicar-me com maior calma e tranqüilidade ao doutorado.
[2] A proposta de Veblen era tão coerente e radical, incluindo todos os aspectos da vida social, que Martins chama a tecnocracia de um verdadeiro “modo de produção”, distinto do capitalista e do socialista (MARTINS, 1975, p. 68).
[3] Podemos incluir o brasileiro Roberto Campos como defensor teórico e prático da tecnocracia a partir dessa motivação (cf. PEREZ, 1999).
[4] A referência de Fisichella aos generalistas não deixa de ser curiosa e de pautar-se por uma interpretação bastante específica do conhecimento generalista: afinal, pelo senso comum, diríamos que os tecnocratas são os especialistas que querem, além de opinar a respeito de tudo, mandar em tudo. Da mesma forma, um dos mais vigorosos entre os recentes movimentos teóricos é o que afirma a importância das vistas de conjunto, de que a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são aplicações concretas na prática científica (sobre isso, e a despeito de alguns de seus exageros, cf., por ex., Morin (1996)).
[5] Embora a tecnocracia refira-se às sociedades industriais, o fato é que o avanço das sociedades pós-industriais, caracterizadas pelas economias de serviços em oposição às economias fabris, apenas realça e mantém, mutatis mutandis, o tema da tecnocracia (Fisichella, 1994, p. 1234). Sobre os conceitos de sociedades industrial e pós-industrial, cf. respectivamente Hall (1997) e Diani (1997).
[6] Ao comentar a obra de Weber, Raymond Aron (1999) comentou que ela é um exemplo de Sociologia ao mesmo tempo histórica e sistemática, de acordo com os termos de Robert Merton: como visto, da mesma forma, a obra comtiana é histórica e sistemática.
[7] Para exposições competentes do sistema comtiano, que explicam em maior detalhe essas características: Aron (1999), Destefanis (2003) e Lacroix (2003), além, é claro, do próprio Comte (1899; 1957; 1996).
[8] Talvez seja importante notar que Comte tinha claro o fato posteriormente lembrado por Weber (1977), de que não houve nenhuma função que o “Estado” não se propusesse.
[9] Essa tendência de reduzir as opiniões ao poder político, tão exemplar, por exemplo, em Marx, foi reeditado no século XX por Foucault e pelos pós-modernos a ele associados, com sua insistência na interpretação politicista da fórmula baconiana “saber é poder”. A mesma tendência foi também reeditada, de certa forma, por Bourdieu, com sua “violência simbólica”, tão facilmente conversível na violência física (cf. Verdes-Leroux & Lacerda Neto, 2004).
[10] No Apelo aos conservadores Comte indicou três “condições fundamentais” para o positivismo: 1º supremacia do sentimento; 2º relatividade completa e 3º indivisibilidade da verdadeira síntese (COMTE, 1899, p. 30-34, 201). Da mesma forma, a palavra “positivo” comporta sete significados: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático (idem, p. 25).
[11] Esse, aliás, é um dos múltiplos sentidos da expressão “política científica”, quando usada por Augusto Comte. Respeitando o espírito da obra comtiana e face à evolução teórica e prática da política no século e meio que nos separam de Comte, seria mais adequado usar, alternativamente, a expressão “política positiva”.
[12] À medida que desenvolvia suas reflexões, Comte aprofundou o relativismo filosófico, aplicando-o à própria ciência. Dessa forma, criticou as pretensões cientificistas de constituição de um “absoluto científico” (cf. MENDES, 1898; LAGARRIGUE, 1937; ARNAUD, 1965). Essa crítica, embora pareça paradoxal face à sabedoria comum no que se refere a Comte, valeu-lhe o reproche de acadêmicos e intelectuais de sua época que anteriormente aplaudiram sua obra filosófica e, juntamente com motivações de ordem material, deram origem ao mito da loucura de Comte (LACERDA NETO, 2004); em contraposição, esses acadêmicos foram criticados por A. Comte como constituindo uma “pedantocracia” (COMTE, 1899, p. 74). De qualquer forma, assim como indicado na nota anterior, importa notar que é mais adequado, porque mais correto, falar em “espírito positivo” que em “espírito científico” em Comte.
[13] O problema a cuja “solução” refere-se no trecho em questão é o problema político do Ocidente evidenciado com a Revolução Francesa, que, nos termos comtianos, consiste em conciliar ordem com o Progresso (COMTE, 1899, p. 73).
[14] Tradução livre do autor.
[15] As “disposições” a que A. Comte refere-se são “desviar os proletários do positivismo e manter a metafísica negativa [rousseauniana e voltairiana] como base da solução popular” (COMTE, 1899, p. 128).
[16] Agradecemos à Profª Júlia Guivant a sugestão em ler Bakunin, que, como se verá, teve resultado inesperado.
[17] Duas perspectivas fundamentais em que os autores divergem são os papéis atribuídos ao Estado, ou ao poder Temporal, e a importância atribuída aos indivíduos. Por um lado, Bakunin pregava o fim de todas as formas de Estado, propondo, em substituição, algo próximo a um cooperativismo autogestionário, a partir de uma valorização extrema dos indivíduos; por seu turno, Augusto Comte não concebia sociedade alguma sem o poder Temporal (cuja ação pode variar de modo e de intensidade, claro está) e, embora reconhecesse a importância central dos indivíduos para a realização da Humanidade, não concedia importância sociológica, epistemológica ou moral para eles. Para detalhes dessas posições, cf. Comte (1899; 1996) e Bakunin (2000; 2001).
[18] Assim, as críticas de Martins (1975) e Covre (1983) à tecnocracia tornam-se ingênuas, quando não hipócritas, considerando que foram feitas a partir do marxismo e que, por sua vez, o marxismo permitiu o surgimento de uma das mais violentas tecnocracias da história. De qualquer forma, a referência à tecnocracia soviética sugere uma comparação das experiências históricas a partir da lei dos três estados: considerando que, nos termos comtianos, a tecnocracia é uma forma de confusão entre os dois poderes, teríamos que no estado teológico, essa confusão seriam as diversas teocracias; no estado metafísico, poderia ser o Culto à Razão e à Natureza instituído por Maximilien Robespierre durante a Revolução Francesa (cf. CARNEIRO, 1943); na sociedade industrial, os totalitarismos nazista e comunista.
[19] Além das razões que citamos, Alexander indica outras; embora essas outras também possam ser mais ou menos aplicadas à obra de Comte, as razões citadas são mais evidentes no caso em apreço.