04 janeiro 2007

Palavras na Festa da Humanidade

Festa da Humanidade

(1º de Moisés – 1º de janeiro)

“Nós cansamo-nos de agir e até de pensar, mas jamais nos cansamos de amar” (Augusto Comte).

O dia 1º de Moisés no calendário positivista concreto, a que corresponde o dia 1º de janeiro no calendário júlio-gregoriano, é a data da festa maior do Positivismo; é quando se comemora a festa da Humanidade.

A Humanidade é o símbolo do Positivismo, é nosso Ser Supremo, é a síntese de nossas aspirações. Esse Ser Supremo, embora seja abstrato, é real; como sabemos, ele é composto pelo conjunto dos seres humanos convergentes do passado, do futuro e do presente. Ou melhor: do passado e do futuro, pois os seres do presente, aqueles que vivem – nós – podemos apenas aspirar a sermos incorporados à Humanidade.

Todos somos servidores da Humanidade: todos contribuímos de alguma forma com o bem-estar moral, intelectual ou material do conjunto da sociedade. Sem dúvida que há diversos indivíduos que vivem apenas para si ou que vivem sem se preocupar com seus irmãos, seus semelhantes; além disso, há aqueles que, ao invés de procurarem melhorar a vida, procuram piorar as coisas, aumentando a miséria, o sofrimento, a dor: nem os primeiros nem os segundos integrarão a Humanidade.

O ser humano tem uma natureza mista, ao mesmo tempo boa e má, ou melhor, egoísta e altruísta. Diferentemente do que dizia São Paulo, o ser humano não é mal por natureza e bom apenas pela graça divina; na verdade, séculos de observação atenta indicaram e demonstraram que o ser humano possui pendores egoístas e pendores altruístas: todos temos que comer, todos temos nossos projetos pessoais e a maior parte das pessoas quer constituir famílias: esses são alguns dos pendores egoístas. Eles são mais ou menos disciplináveis, são mais ou menos passíveis de servirem a objetivos altruístas, mas nem por isso deixam de ser egoístas. O que ocorre é que isso não esgota as potencialidades do ser humano e não nos impede de sermos altruístas, ou seja, de realizarmos ações boas pelo desejo de sermos gentis, educados ou, simplesmente, generosos. A palavra “egoísmo” vem de outra, “ego”, que significa “eu”: egoísmo é preocupar-se consigo mesmo. “Altruísmo” vem de “alter”, “outro”: o altruísmo é preocupar-se com os outros. É claro que não é possível alguém não se preocupar consigo mesmo, pois todos temos que viver, mas isso não quer dizer que nossas vidas esgotem-se em si mesmas, que devamos preocuparmo-nos apenas conosco, em desconsideração com os demais.

Viver é agir, é realizar; mesmo quando não fazemos nada realizamos alguma coisa. Viver em sociedade exige esforços ativos e contínuos; as ações, para realizarem-se, exigem o conhecimento da realidade, o conhecimento de como as coisas são e de como elas podem vir a ser. Devemos sempre sonhar, devemos ter metas e projetos – mas esses projetos, para realizarem-se, devem ser, antes de tudo, possíveis: conhecer a realidade é uma exigência, não um luxo. Da mesma forma, a ação e o conhecimento nunca se dão gratuitamente, pois que são sempre motivados pelos nossos pendores, nossos sonhos, nossos desejos. Daí a importância de desenvolvermos o altruísmo ao máximo e disciplinarmos o egoísmo. Como diz a sabedoria popular, “o amor é a única coisa que aumenta quando é dividida”.

Quando alguém nasce, surge em um mundo que lhe dá tudo: a própria vida, amor, carinho, cultura, língua. É certo que lhe dá também dor, sofrimento, dificuldades de toda ordem: mas o fato é que sozinho não tem nada e qualquer coisa que deseje conseguirá apenas com o apoio dos demais. De modo geral, até a maioridade somos dependentes de nossos pais; a partir dos 18 anos – antes eram 21 – somos responsáveis por nós mesmos e, a partir de certo ponto, por nossas famílias. Ora: até os 18 anos continuamos consumindo, sem repor nada – embora as alegrias domésticas sejam muito grandes! Depois dos 18 anos passamos a retribuir tudo aquilo que recebemos – mas será que em algum momento conseguimos devolver, de verdade, o que recebemos? É difícil. São de fato poucos os que conseguem devolver alguma para os demais. Essa situação de “dívida objetiva” – para com nossos antepassados e também para com nossos contemporâneos – implica que o dedicar nossas vidas para melhorar a vida das outras pessoas, o “viver para outrem” é tanto uma necessidade social como uma regra moral.

Será possível sermos obrigados a sermos altruístas? Será “bom”? Uma escritora francesa do século XIX, cuja vida foi muito dura, dizia que “nada excede aos prazeres da dedicação” e que “não existe nada de real exceto amar”: curiosamente, a ação altruísta traz uma satisfação pessoal que nenhuma ação egoísta produz!

A Humanidade é a nossa verdadeira providência, pois ela dá-nos tudo de que precisamos: afeto, conhecimentos, alimentos. Mas dar tudo não significa fazer qualquer coisa, não significa não obedecer a regras: a Humanidade não é um ser caprichoso e voluntarioso; não é um ser que “escreve certo por linhas tortas”. A Humanidade é um ser verdadeiro, real, que se realiza por meio da ação de seus filhos, dos seres humanos reais; como dizia um poeta do renascimento, “ela é filha de seu próprio filho”. Assim, enquanto existirem seres humanos, existirá a Humanidade, mas cessada a vida humana, a Humanidade deixará também cessará. Sua existência submete-se às leis naturais – da Astronomia, da Física, da Química, da Biologia, da Sociologia, da Moral – como qualquer ser vivo, apenas com a diferença de que a Humanidade mantém-se ao longo do tempo, com os seres humanos.

O mundo – aí incluído, sem dúvida, o Brasil – passa por problemas enormes, cujas dificuldades aumentaram em virtude da chamada “globalização”; o fanatismo, a ignorância, a irresponsabilidade têm aumentado ao extremo nos últimos anos, a serviço de interesses egoístas e mesquinhos, além de seres fantasioso; apenas ações claramente humanas, altruístas e esclarecidas, por meio da ação conjunta, sinérgica, das diversas forças das sociedades, poderão resolvê-los.

Em outras palavras, o ideal supremo é amar, conhecer e servir a Humanidade. Feliz festa da Humanidade!

Teorias sociais, violência e integração

Teorias sociais, violência e integração
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Há alguns dias o meu amigo Elias Marcos Gonçalves fez-me uma pergunta bastante interessante. Infelizmente, como sói acontecer com as perguntas interessantes, essa não tinha uma resposta simples ou direta, exigindo considerações um pouco mais amplas. O curioso é que essa pergunta, em virtude dos acontecimentos recentes em São Paulo e em outras unidades da federação, tem uma atualidade dramática: quais teorias sociais insistem na violência, quais insistem na integração dos indivíduos?
Como se verá, este artigo não comporta nenhuma conclusão; ele consiste mais em uma longa exposição feita para um amigo, que julguei útil pôr à disposição de um público mais amplo. É claro que é limitado – mas é apenas uma introdução sumaríssima em duas páginas e meia.
Uma primeira resposta sobre o tema da violência é: todas abordam-no. A violência, percebida como algo positivo, negativo ou simplesmente um fato da vida, é algo presente em todas as sociedades e, portanto, todas as teorias têm que se haver com esse fato. O que muda, portanto, é o juízo de valor, ou, por outra, a maneira de lidar com ela – e aí as perspectivas são as mais diversas possíveis. Em todo caso, é interessante notar que a posição a respeito da violência tem uma certa simetria em relação à integração social, no sentido de que quanto maior a ênfase na integração, menor a na violência.
Além disso, é necessário um comentário talvez epistemológico: as teorias podem ou não pretender ser aplicadas mais ou menos imediatamente na prática. Assim, elas podem ser apenas o conhecimento do que os seres humanos fazem, importando apenas e tão-somente esse conhecimento, ou elas podem ser também um instrumento prévio para uma ação prática posterior. O grau de politização daí decorrente, ou seja, o grau de comprometimento com propostas político-partidárias variam.
O francês Augusto Comte, fundador da Sociologia, tinha uma perspectiva histórica da violência, especialmente no que se refere à evolução do Ocidente. Assim, na Antigüidade e na Idade Média a prática política e econômica fundava-se na violência mais ou menos sistematizada, mas na modernidade as relações tendem a ser pacíficas, com a violência sendo cada vez mais abominada (e abolida). Todavia, é importante notar que, para Comte, enquanto o Estado mantém a ordem civil (em última análise por meio da violência), a sociedade deve organizar-se autonomamente, de acordo com sua dinâmica própria, havendo um amplo espaço para o poder da opinião pública; a opinião pública, na verdade, é um outro poder, que se contrapõe ao Estado, complementando-o, por meio da legitimidade. Sendo os seres humanos ao mesmo tempo egoístas e altruístas, a integração social dos indivíduos dá-se em vários níveis: na economia, na vida cívica, na família, nas igrejas e escolas.
O alemão Carlos Marx talvez seja mais famoso (embora não necessariamente o mais conhecido). Suas opiniões teóricas a respeito da violência e da integração eram bastante ambíguas, se bem que suas opiniões práticas não o fossem. Para ele, a sociedade, capitalista, é uma violência institucionalizada: a burguesia explora economicamente o proletariado, alienando-o dos resultados de seu trabalho e do que o faz um ser humano. A violência a que é submetido o proletariado é ruim, mas para acabar com ela apenas mais violência, por meio da revolta coletiva, da classe proletária contra a classe burguesa, por meio da revolução social. O sentido da “revolução”, nesse caso, não tem nada de metafórico: Marx tinha em mente a Revolução Francesa, de 1798, e, depois, a Comuna de Paris (1871), quando usava essa palavra, pensando em uma violência apocalíptica e, messianicamente, redentora. A integração no capitalismo é um embuste; para criar uma verdadeira integração, apenas com o fim do capitalismo, que será também o fim das classes e da violência. Em suma: a violência é ruim, mas já que existe...
O francês Emílio Durkheim elaborou sua teoria sociológica observando os tipos de integração que cada sociedade apresenta, chegando a dois tipos extremos: a solidariedade mecânica e a orgânica. Enquanto a primeira caracteriza-se pela pouca diferenciação entre os indivíduos, a outra consiste na grande diferenciação entre cada qual, sendo que cada um tem uma grande consciência de si. Na solidariedade orgânica, os indivíduos são integrados à sociedade pela íntima dependência funcional que todos apresentam em relação a todos; além da divisão do trabalho, a consciência de que participam de um empreendimento comum é importante para essa integração. Ora, quando há integração, não há violência e vice-versa: são necessárias, portanto, instituições que permitam a cada um integrar-se econômica e “psicologicamente”.
Por fim, o alemão Max Weber tinha uma perspectiva mais limitada em relação a esses temas. Para ele, a violência era um fato da vida; nos limites do território nacional, o Estado é que controla exclusivamente seu uso legítimo mas, entre as nações, não há essa exclusividade e, se for necessário, que seja utilizada (Weber era um defensor do imperialismo alemão prévio à I Guerra Mundial, embora fosse admirador de Bismarck e, portanto, prudente). Weber não pretendia que sua teoria sociológica fosse “utilizada” – pelo menos, não além da compreensão das motivações humanas em seus atos.
É interessante notar que, mais recentemente, dois autores franceses, sem serem marxistas – aliás, bem longe disso! – adotaram perspectivas semelhantes à marxista no que se refere à violência na sociedade. Pedro Bourdieu e Miguel Foucault afirmaram, a respeito de diferentes objetos, que a violência é constitutiva da sociedade: para Bourdieu, além da violência física de que o Estado é o detentor em regime monopolístico, existe a violência simbólica, que, grosso modo, a classe dominante exerce sobre a classe dominada. Para Foucault, além da “grande violência” controlada pelo Estado, há uma série de “microviolências” que perpassam toda a sociedade, com vistas ao controle e à manipulação dos corpos individuais: a escola, o hospital, a prisão.
Já o norte-americano Talcott Parsons retomou, de maneira bastante idiossincrática, a perspectiva durkheimiana, enfatizando a integração dos indivíduos na sociedade e a irrupção da violência como sinal de falha nessa integração.
Os autores acima foram teóricos sociais, mas é importante não deixar de lado a teoria política. Mais que na teoria social, na teoria política a violência é um tema central e as relações violência-política delimitam duas grandes linhas teóricas: as que as percebem como antinômicas e as que as percebem como estreitamente vinculadas.
Aristóteles é o grande autor que apresenta a primeira corrente. Segundo ele, a violência pertence aos âmbitos doméstico e “internacional”: ela é possível “apenas” com a família, com os escravos e com as outras cidades, mas na deliberação pública dos rumos a seguir, entre indivíduos livres e iguais que buscam o bem comum, ela não é possível. Em outras palavras, a violência é pré-política, infrapolítica e extrapolítica – jamais verdadeiramente política. Essa concepção foi esposada pelos teóricos da Idade Média – Tomás de Aquino, por exemplo – e, após um longo interregno, foi retomada pela alemã Hannah Arendt, no século XX, que afirmava a centralidade do diálogo racional e tolerante para a vida política. O também alemão Jürgen Habermas tem uma concepção semelhante, com sua “teoria do agir comunicativo”. É claro que a violência, para esses autores, representa o fracasso da integração e a impossibilidade de uma coletividade.
A segunda corrente surgiu, historicamente, da negação da primeira, e é mais “moderna”, isto é, mais próxima de nossa realidade. Entre seus grandes autores podemos indicar o inglês Tomás Hobbes e o italiano Nicolau Maquiavel. Ambos consideravam que o ser humano é naturalmente violento, sendo necessário determinar os meios de controlar e/ou usar essa violência com fins legítimos. Para Hobbes, o potencial de violência é tão grande que apenas um poder absoluto, obtido pela cessação da liberdade de todos os indivíduos menos um, pode impor a paz. Maquiavel considerava que a violência é um meio entre outros de que dispõem os homens para a consecução de seus objetivos: a questão é saber se ela é adequada, não se ela é “legítima”. Exceção feita a H. Arendt e a Habermas, as teorias políticas contemporâneas adotam variações ou derivações das de Hobbes e Maquiavel.
Por fim, uma última teoria política que vale a pena citar, neste contexto, é a do alemão Carlos Schmidt. Mais ou menos variação da anterior, sua concepção é interessante porque afirma que a “essência” da política é a oposição amigo-inimigo: a partir do momento em que distinguimos entre “nós” e “eles”, por um motivo qualquer, estamos na política. Os motivos e os meios que opõem os “amigos” dos “inimigos” podem ser os mais variados possíveis – e a violência é um instrumento evidente.
Nessa segunda tradição de teoria política não se pode falar propriamente de “integração” (embora na primeira também não se possa); com Max Weber, é melhor falar em “legitimação”. A dissensão está sempre presente, às vezes à espreita; o que cumpre fazer é civilizar esses impulsos, mudando os hábitos e os costumes e criando instituições capazes de receber demandas de divergência, processá-las e dar respostas adequadas.