Mostrando postagens com marcador metafísica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador metafísica. Mostrar todas as postagens

08 dezembro 2022

Comentários sobre o sobrenatural

No dia 4 de Bichat de 2022 (6.12.2022), após nossa prédica positiva (dedicada à leitura comentada da continuação da teoria do culto privado - quarta conferência do Catecismo Positivista), na parte das reflexões semanais, fizemos algumas reflexões sobre o "sobrenatural" (e, feitas as devidas adaptações, também às teorias da conspiração).

As anotações que elaborei e nas quais me baseei para a exposição reproduzidas abaixo.

É possível assistir ao vídeo dessas reflexões no canal Positivismo (aqui: l1nq.com/Predica) e no canal Apostolado Positivista (aqui: l1nq.com/Sobrenatural). No canal Apostolado Positivista, essas reflexões podem ser vistas a partir de 49' 10''.

*   *   *

Comentários sobre o sobrenatural

 

-        A noção de sobrenatural é um problema ao mesmo tempo intelectual e afetivo

o   A parte intelectual exige maiores comentários que a afetiva

o   As partes intelectual e afetiva encontram soluções na Religião da Humanidade

§  O que se chama atualmente de “sobrenatural” é o resquício de teologia e metafísica em uma sociedade que se torna, felizmente, cada vez mais positiva e relativista

o   É possível incluir na forma de pensar própria ao “sobrenatural” também as chamadas “teorias da conspiração”

§  As teorias da conspiração, evidentemente, têm um caráter formalmente menos teológico que o “sobrenatural”; mas, ainda assim, mantêm e até acentuam, de maneira radical, a busca do absoluto, a rejeição do relativismo e as mais complicadas hipóteses e interpretações da realidade[1]

-        A noção de “sobrenatural” é contraditória: se algo existe, evidentemente é “natural”

o   Da mesma forma, a expressão “ciências ocultas”, que se aproxima da de “sobrenatural”, também não faz o menor sentido

o   A expressão “ciência oculta” não faz sentido em termos de objeto e de sujeito:

§  No que se refere ao objeto: se é ciência, o seu objetivo é desvelar, é revelar, ou seja, é acabar com o caráter “oculto” do objeto

§  No que se refere ao sujeito: a ciência é pública e, portanto, ela repele em princípio qualquer caráter exotérico ou esotérico

-        A noção de sobrenatural vincula-se ao âmbito do imaginário: é um desejo de que existam coisas que não se verifica empiricamente

-        Durante a teologia e até durante a metafísica, o sobrenatural é aceitável:

o   Seja porque, por definição, o sobrenatural corresponde à explicação disponível na teologia e, assim, o sobrenatural como que integre o mundo durante essas fases da Humanidade

o   Seja porque o ser humano não tem base empírica suficiente para avaliar o mundo, isto é, para avaliar o que existe ou não no mundo

o   Seja porque não se tem o conhecimento das leis naturais e, daí, explica-se o mundo por meio de vontades arbitrárias invisíveis

§  Nesse sentido, a invisibilidade das vontades aproxima o “sobrenatural” do “metafísico”

-        A manutenção atual da crença no “sobrenatural” vincula-se a diversos fatores:

o   Persistência da crença na teologia (de maneira implícita ou explícita)

o   Sensação de que o que existe efetivamente é “pouco” (ou, inversamente, sensação de que é limitador considerar que somente a “nossa” realidade existe de fato)

-        Os motivos que justificariam a crença atual no “sobrenatural”, portanto, são puramente subjetivos e rejeitam a realidade e a objetividade

o   Cada vez mais, eles referem-se à pura crença na existência do “sobrenatural”

o   É importante insistir: se algo existe de verdade, é natural e não há necessidade de nenhuma “crença” para que essa existência seja provada empiricamente

§  A ciência por si só é cética a respeito das afirmações quaisquer (em última análise é a navalha de Ockham) e, no que se refere ao “sobrenatural”, tal ceticismo chega no máximo ao agnosticismo

§  O ônus da prova cabe sempre a quem afirma algo, não a quem descrê da afirmação

o   Essa pura crença no sobrenatural é muito próxima da estrutura mental da do protestantismo e, em particular, da do protestantismo dos EUA

-        Mas a crença no sobrenatural não se justifica atualmente:

o   O ser humano já conhece muito do mundo para saber o que existe e o que não existe

§  É importante reiterar: o ônus da prova cabe a quem afirma!

§  É importante reiterar: a mera crença subjetiva, o mero “crer”, não é prova de nada (ou melhor: nada além de que o ser humano é capaz de manter crenças subjetivas)!

o   A realidade é maior e mais ampla do que qualquer pessoa consegue imaginar:

§  Não se trata, com essa afirmação, de propor que o “sobrenatural” existe, mas, bem ao contrário, trata-se de considerar que a exploração do que existe de verdade é sempre surpreendente

§  O conhecimento da realidade satisfaz muito a nossa imaginação:

·         Seja porque conhecer novas coisas com freqüência é surpreendente

·         Seja porque para explicar as coisas temos que usar muito a imaginação

·         Como sugere Christopher Hitchens (deus não é grande), muitas das explicações científicas propostas são tão ou mais surpreendentes que muitas daquelas propostas pela teologia e pela metafísica

o   As explicações científicas, ou melhor, as leis naturais rejeitam as vontades arbitrárias invisíveis

§  Vale lembrar que o sobrenatural é a persistência da crença em vontades arbitrárias invisíveis

§  Vale também lembrar que essas vontades arbitrárias são apenas a postulação-transposição de que uma realidade puramente subjetiva existe objetivamente

-        Os comentários até aqui foram basicamente de caráter intelectual; mas importa notar que, em termos morais, a crença no sobrenatural combina um quê de arrogância com um quê de insatisfação com os limites da realidade

o   Assim, em qualquer caso, a crença atual no sobrenatural é uma forma de imaturidade

-        Ainda assim, há um aspecto que convém também reconhecer: como o próprio Augusto Comte afirmava, a ciência por si só resseca o coração; as tendências materialistas da ciência tendem a tornar o mundo um ambiente radicalmente seco e “desértico”

o   Isso é o que a metafísica idealista alemã chamava de “desencantamento do mundo”

-        A Religião da Humanidade resolve – na verdade, evita – o problema do “desencantamento do mundo”:

o   Augusto Comte, após resolver diretamente o principal problema humano (obtenção da harmonia via disciplinamento altruísta do egoísmo), aprofundou suas reflexões e percebeu que o primado da afetividade na existência humana é um princípio realmente geral e que deve ser aplicado de maneira sistemática

o   Em outras palavras, a Religião da Humanidade estabelece que o mundo todo deve ser objeto (e sujeito!) da afetividade

o   O meio para a “afetivização” geral da realidade é a incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final, na forma do “neofetichismo”

o   De modo mais específico, a Trindade Positiva estabelece subjetivamente que tudo no mundo é dotado de afetividade, com variados graus de atividade e de inteligência

§  Trindade Positiva: Grão Ser (Humanidade: inteligente, ativa e afetiva), Grão Fetiche (Terra: ativa e afetiva), Grão Meio (Espaço: só afetivo)



[1] A extensão destas reflexões sobre o sobrenatural às teorias da conspiração (feitas as devidas adaptações) tornou-se evidente (para mim, pelo menos) à medida que lia descrições de algumas dessas teorias, em particular vinculadas ao nazismo (cf. Conspirações sobre Hitler, de Richard Evans (Crítica, São Paulo, 2022)).

Por outro lado, em conversa pessoal, após a exposição destas anotações no dia 6.12.2022, nosso amigo Hernani Gomes da Costa sugeriu que as teorias da conspiração correspondem à metafísica própria à fase militar defensiva da Humanidade; além disso, ele notou que essas teorias atribuem aos “grupos secretos” um poder e uma eficácia social muito maior que aquela atribuída, na Idade Média, ao diabo – embora a função social supostamente desempenhada pelos grupos secretos seja idêntica à atribuída ao diabo.

16 novembro 2022

Importância da visão de conjunto

No dia 11 de Frederico de 168 (15.11.2022) fizemos uma prédica positiva; na parte da leitura comentada do Catecismo positivista, concluímos a teoria geral do culto, tratando da influência intelectual do culto positivo. Já na parte de sermão, tratamos da importância da visão de conjunto para o ser humano, bem como da rejeição contemporânea da visão de conjunto pelo pós-modernismo e pela política identitária.

As anotações que serviram de base para a (longa) exposição sobre a importância da visão de conjunto estão disponíveis abaixo. A exposição oral está disponível aqui (no canal Positivismo do Youtube) e aqui (no canal Apostolado Positivista do Facebook), a partir de 53' 30".

*   *   *

Importância da visão de conjunto

 

-        A visão de conjunto permite que se entenda a realidade

o   A visão de conjunto tem conseqüências morais, intelectuais e sociais:

§  A visão de conjunto oferece sentido ao mundo e à vida

§  É somente por meio da visão de conjunto que se pode explicar a sociedade e os indivíduos, ao inseri-los em “contextos”

·         Ao entendermos a totalidade, sabemos onde fica cada coisa e, portanto, sabemos onde cada um de nós fica, está e como se relaciona com os demais

§  A verdadeira moralidade só é possível com base na visão de conjunto:

·         Somente a partir da visão de conjunto é possível definir o que é bom e o que é ruim, o que é justo e o que é injusto

o   Inversamente, a ausência de visão de conjunto, ou a negação da visão de conjunto, resulta em que a realidade torna-se incoerente e irracional e qualquer discussão sobre o que é certo e o que é justo torna-se impossível (quando não irrelevante)

§  A irracionalidade e a incoerência resultantes da ausência de síntese tem resultados muito claros: a perda do sentido da vida, a confusão mental, a perda de referências morais (em termos individuais e coletivos)

§  As consequências acima resultam, por sua vez, em aumento dos conflitos sociais e da violência social e política, em guerras (internacionais e/ou civis), no fanatismo e na intolerância, no adoecimento mental e físico

§  A rejeição da visão de conjunto, portanto, é ao mesmo tempo imoral, irracional e antissocial (e antipolítica)

-        Afirmar a possibilidade, a necessidade e até mesmo a indispensabilidade da visão de conjunto torna-se ainda mais urgente desde os anos 1960-1970 no Ocidente, com o desenvolvimento do pós-modernismo

o   O pós-modernismo foi elaborado na França mas logo foi importado pelos Estados Unidos; na França ele manteve-se como uma modinha academicista, mas nos EUA ele desenvolveu-se, aprofundou-se e derivou para a prática política, na forma da política identitária

o   O pós-modernismo nega, rejeita, despreza, impede as visões de conjunto, que ele chama de “visões totalizantes” ou de “grandes narrativas”

§  Os historiadores também desenvolveram suas próprias formas de desprezo pelas visões de conjunto

o   De acordo com esses pensadores, não há motivo para elaborar-se visões de conjunto, pois objetivamente elas seriam impossíveis e, além disso, elas seriam desnecessárias

o   Para eles, portanto, o bom é a fragmentação das idéias, a justaposição incoerente e irracional de concepções puramente subjetivas

§  A partir desse ultrassubjetivismo, o pós-modernismo afirma que não existe realidade objetiva, mas apenas “narrativas”

o   Essa é a própria definição e afirmação do que Augusto Comte chamava de “anarquia”, ou seja, a ausência de valores e concepções compartilhados

-        Ao longo de toda a história da Humanidade, o ser humano procurou elaborar visões de conjunto, ou sínteses

o   Essas sínteses foram chamadas inicialmente de “religiões” e, depois, também (ou apenas) de “filosofias”

o   Como se sabe, as metafísicas sempre atuaram como corrosivas das sínteses anteriores, mas, entre cada grande transição, a metafísica do momento já introduzia elementos da nova síntese

§  Com o início da mais recente grande fase de transição (após a Idade Média), a metafísica introduziu a sua corrosão, mas apresentando um caráter ambíguo: por um lado, auxiliando a ciência; por outro lado, desenvolvendo a pura corrosão

§  No século XVIII, algumas filosofias que tinham ainda um pé na metafísica afirmaram o espírito positivo e a visão de conjunto: foram os enciclopedistas, especialmente na França e na Escócia

§  Vale notar que mesmo algumas metafísicas modernas sem muito espírito positivo e/ou com forte espírito corrosivo (“crítico”) estimularam a visão de conjunto: Hegel e até Marx tiveram essa preocupação

o   Entretanto, algumas ciências – não por acaso, as ciências superiores – exigem a visão de conjunto

§  Essa exigência é inaugurada pela Biologia, seja em termos globais, com a Ecologia, seja em termos individuais, com o estudo da inserção dos órgãos no corpo

§  A Sociologia e a Moral também exigem a visão de conjunto

§  Vale lembrar, entretanto, que a ciência é ambígua: se por um lado há ciências que exigem a visão de conjunto, por outro lado a ciência entregue a si mesma tende ao absoluto e, como a ciência é pelo detalhe, por si mesma ela vai contra a visão de conjunto

-        A metafísica que rejeita a visão de conjunto, não por acaso, vincula-se à concepção individualista do ser humano: toda a tradição liberal é individualista e contrária à visão de conjunto

o   Para os liberais (progressistas ou conservadores; ingleses ou alemães ou estadunidenses ou austríacos), a visão de conjunto equivale sempre à opressão da sociedade sobre o indivíduo

§  O máximo de “sociedade” que os liberais concebem é a justaposição de indivíduos e dos seus respectivos egoísmos

o   O individualismo que descamba no liberalismo é o resultado da secularização da teologia: sai a divindade, mantém-se o egoísmo e rejeita-se a perspectiva social

o   O liberalismo é uma degradação do republicanismo, em particular na perda do sentido coletivo da vida humana

o   Mas é importante indicar que o liberalismo, apesar de seus defeitos intelectuais e morais, concebe ainda uma visão de conjunto em termos de leis válidas para todos (os indivíduos) – a isonomia

o   Da mesma forma, ainda que limitado pelo individualismo, o liberalismo reconhece a importância da ciência

-        O pós-modernismo (com sua conseqüência prática, a política identitária) é uma filosofia especificamente academicista e consiste no desenvolvimento sem freios da metafísica, isto é, do seu espírito corrosivo

o   O pós-modernismo e a política identitária aprofundam os aspectos críticos, isto é, corrosivos da metafísica (da mesma metafísica que resultou no liberalismo e, paradoxalmente, também no marxismo)

o   O pós-modernismo e a política identitária rejeitam (1) a ciência, (2) a visão de conjunto, (3) os valores compartilhados, (4) o universalismo nas políticas públicas

o   De maneira correlata, o pós-modernismo e a política identitária defendem (1) o particularismo, (2) o irracionalismo anticientífico, (3) o exclusivismo e a exclusão de quem não é do grupo identitário, (4) as “narrativas” identitárias exclusivas e excludentes

§  Ao longo da história já tivemos exemplos concretos de tais “narrativas” identitárias: foram a “ciência proletária” de Stálin e a “ciência ariana” de Hitler; atualmente há as “epistemologias negras”, “epistemologias queer”, “epistemologias feministas” etc. etc. etc. – tudo isso devidamente identitário, antiuniversalista, particularista, sectário

§  Duas aplicações práticas do sectarismo pós-moderno-identitário:

·         A defesa de discriminações “positivas”: “racismo inverso” (dos “negros” contra os “brancos”), “sexismo inverso” (das mulheres contra os homens) etc.

o   Uma consequência institucional das discriminações positivas são as cotas de vagas

·         A afirmação do “lugar de fala”, que consiste na defesa, no âmbito da retórica, de cotas exclusivas para os membros dos grupos identitários, de tal maneira que só podem falar sobre esses grupos os membros do próprio grupo, excluindo da possibilidade de falar desses grupos quem não os integrar

o   Versões mais suaves do “lugar de fala” até admitem que não-membros dos grupos identitários possam falar sobre os grupos identitários – mas sempre de maneira subordinada

-        É fundamental ter-se clareza de que não é necessário ser identitário para combater-se o racismo e promover a integração “racial”; para valorizar as mulheres e combater as discriminações e as violências contra elas; para valorizar os homossexuais e combater as discriminações e as violências contra eles etc.

o   A associação (interessada) entre determinadas pautas sociais e políticas e o identitarismo prejudica as próprias pautas

o   É possível e necessário encampar essas pautas sem recorrer ao identitarismo e aos seus profundos vícios morais, intelectuais e políticos

o   Ao reconhecermos a justiça das pautas defendidas pelo identitarismo mas recusarmos seus defeitos morais, intelectuais e políticos, cada uma das políticas identitárias em particular deve ser entendida como um "grito dos excluídos"

-        Insistimos: em contraposição à rejeição intelectual, moral e política da visão de conjunto realizada pelos pós-modernos, é necessário reafirmar a possibilidade e a necessidade das visões de conjunto, ou melhor, das sínteses

o   A visão de conjunto tem aspectos objetivos e subjetivos:

§  Ela é subjetiva na medida em que é o ser humano (o sujeito) quem elabora e a quem se direciona a síntese

§  Ela é objetiva na medida em que se baseia em elementos objetivos, sejam eles cósmicos, sejam eles humanos (históricos e morais)

§  Deixando de lado o escandaloso (mas “charmoso”!) elogio da irracionalidade feito pelos pós-modernos, é questão de perguntarmos com clareza e de respondermos com ainda maior clareza: qual o problema com que a síntese seja subjetiva? Ora, nenhum!

o   O Positivismo, a Religião da Humanidade afirma a visão de conjunto e a síntese:

§  A moralidade e a racionalidade estabelecidas por meio da subordinação progressiva de indivíduos e grupos a coletividades e perspectivas cada vez maiores: família, mátria, Humanidade atual (objetiva), Humanidade histórica (subjetiva)

o   Apenas por meio da visão de conjunto e da síntese propostas pela Religião da Humanidade é possível realizar com êxito a busca da harmonia individual, do bem-estar coletivo, do sentido da vida, da felicidade


17 maio 2021

Reflexões sobre um evento com marxistas ortodoxos

Há alguns dias eu participei de um debate à distância sobre “classes sociais no Brasil contemporâneo”.

A minha participação consistiu em afirmar que é necessário usarmos o conceito de classes sociais nas sociedades industriais, na medida em que as clivagens básicas dessas sociedades dão-se em termos de riqueza, ou seja, de classes sociais; todavia, é necessário deixar de lado o aspecto sublevador e destruidor – revolucionário, em uma palavra – que o marxismo associou a esse conceito. Ao mesmo tempo, para combater os particularismos tanto proletário do marxismo quanto, de modo mais atual, das propostas identitárias, é necessário retomar-se o conceito de república, com seu universalismo da cidadania.

Depois de mim apresentaram dois professores marxistas – bem entendido, marxistas ortodoxos. E aí eu fiquei espantado ao constatar como o marxismo pode ser extremamente sedutor e eficiente em termos retóricos.

A moralidade marxista é simplista e tende ao maniqueísmo (isso quando não é diretamente maniqueísta): o proletariado é bom mas é explorado, a burguesia é má e é exploradora. A sua promessa de solução dos problemas sociais oferece uma enorme esperança e sua “radicalidade” baseia-se também no seu simplismo maniqueísta, adicionando um elemento mágico: quando a luta de classes acirrar-se tanto e a tal ponto que ocorra uma revolução proletária universal, todos os conflitos sociais acabarão de uma vez por todas, a malvada burguesia exploradora deixará de existir e o proletariado deixará de sofrer e de ser explorado e poderá viver em paz e com dignidade.

É realmente espantoso que esse simplismo convença as pessoas. É claro que ele convence também porque, aparentemente, oferece “soluções” para os problemas que a maior parte das pessoas sofre; ou melhor, o marxismo oferece uma crítica moral, disfarçada de análise sociológica, que parece sugerir soluções para os problemas. Creio que é aí que reside muito da sedução marxista.

Mas, como observei, tudo isso é simplista e maniqueísta. Em termos individuais, isso nega, isso rejeita a noção de responsabilidade individual; ou melhor, reduz a responsabilidade individual ao maniqueísmo básico: ou ajuda o proletariado e revolução universal ou ajuda a burguesia, a dominação e a exploração.

Além disso, esse maniqueísmo afirma um universalismo proletário que nega a realidade dos países, das nações. Esse universalismo de classes ignora fatos básicos e acarretou conseqüências terríveis: por um lado, a lealdade nacional é um dos elementos mais básicos e mais fortes que une entre si os indivíduos nas sociedades; por outro lado, esse mesmo universalismo de classe provocou ou estimulou ou justificou, no início do século XX, violentas reações nacionalistas; além disso, o universalismo de classes sempre foi utilizado como desculpa para a manipulação internacional dos proletariados nacionais; por fim, as revoluções comunistas ocorreram ao redor do mundo com objetivos nacionalistas, muito mais que internacionalistas.

Mas o presente início do século XXI indica que existem vários outros problemas adicionais na crítica do internacionalismo de classes às lealdades nacionais, baseada no maniqueísmo marxista. Por um lado, por mais que se diga que o “capitalismo” – esse conceito profundamente metafísico – é internacional, o fato é que as disputas entre os países ocorrem em bases nacionais, não internacionais. Por outro lado, após a II Guerra Mundial o mundo organizou um sistema coletivo internacional de gerenciamento das crises políticas; um sistema imperfeito, não há dúvida, mas que minora muitos dos defeitos do anterior sistema baseado exclusivamente nos nacionalismos e em suas rivalidades mútuas; entretanto, como esse sistema coletivo surgido após 1945 não é proletário e, portanto, é burguês, esse sistema é visto como intrinsecamente ruim.

Além disso, as duas críticas acima reforçam por um lado uma perspectiva sociológica e moralmente particularista e, por outro lado, minam os esforços coletivos de coordenação dos assuntos internacionais: isso integra e/ou faz par, de pleno direito, ao particularismo nacionalista e identitário que elegeu Donald Trump como Presidente dos EUA, bem como inúmeros demagogos de extrema-direita mundo afora.

Por fim, considerando uma perspectiva um pouco diferente, o maniqueísmo marxista e seu universalismo proletário negam a possibilidade de projetos nacionais legítimos de desenvolvimento nacional, em que a responsabilidade pessoal esteja direcionada de verdade para o bem-estar coletivo (nacional e internacional) e para a melhoria das relações sociais. Em particular, a atual pandemia exige uma coordenação internacional, mas ela está sendo enfrentada em termos nacionais, o que é inescapável diga-se passagem; além disso, esse enfrentamento evidencia a importância de estados nacionais ativos, fortes, articulados e capazes de implementar com eficiência políticas públicas – no caso do Brasil, por meio do SUS e do Programa Nacional de Imunizações. Nada disso teria lugar ou é justificado pelo maniqueísmo marxista e por seu rasteiro universalismo proletário.

No evento de que participei, como o objetivo não era um expositor criticar as perspectivas dos outros, não me manifestei a respeito dessa série inacreditável de sofismas e simplismos morais, sociológicos, históricos e filosóficos. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando em como seria difícil expor oralmente, em alguns minutos, essa série de raciocínios que expus por escrito acima.

Enfim, mais uma vez registro meu espanto: o público que assistia às nossas exposições era composto por jovens estudantes universitários, todos eles devidamente burgueses mas, ao mesmo tempo, muitos deles piamente convencidos desses sofismas marxistas.

(Cá entre nós, não é à toa que o atual Presidente do Brasil tem uma base fiel e fanática: são discursos igualmente superficiais, simplistas, maniqueístas, adotados por pessoas ávidas de discursos desse tipo. A diferença entre uns e outros nem ao menos é de classe social, mas de “âmbito”: como observei, o marxismo afirma-se internacionalista, ao passo que o atual “nacional-populismo”, ou (neo)fascismo, é resolutamente nacionalista e anti-internacionalista.)

28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.

11 março 2016

Sociologização do indivíduo ou reducionismo da sociedade?

 

Nas Ciências Sociais – e, possivelmente, também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1]. O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações, idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos; assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.

Essas concepções, conforme as entendo, são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações. Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações, elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos teóricos”.

Tais situações apresentam-se com clareza quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas, sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões. Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual interpretação dos resultados.

Ora, é necessário termos clareza de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características e traços – consiste em um excesso de empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”) com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”): por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais, intelectuais e práticos.

Por outro lado, a dificuldade em realizar a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas “indivíduos”, mas coletividades em ação – essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no fundo ele consiste no principal) “obstáculos epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição da Sociologia[3].

Assim, temos que ter clareza de que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos ao longo do tempo[4].

Em suma: o erro que origina a dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].

O caráter de “obstáculo epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7], evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em meados do século XIX:

[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que perante o antigo [a divindade cristã]. [...]

A citação seguinte é ainda mais clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no original): “Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.

Uma última observação para concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos, de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências teóricas e metodológicas que isso acarreta.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. 1996. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto.

BECKER, Howard S. 2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar.

BORGES, Camila D. & SANTOS, Manoel A. 2005. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.

BOTELHO, André. 2013. Essencial Sociologia. São Paulo: Companhia das Letras.

CASTRO, Celso. 2014. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar.

COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

FREITAS, Renan S. 2003. Sociologia do Conhecimento. Pragmatismo e pensamento evolutivo. Bauru: USC.

GONDIM, Sônia M. G. 2003. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161.

KING, Gary; KEOHANE, Robert O. & VERBA, Sidney. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. New Jersey: Princeton University.

Lacerda, Gustavo B. 2022. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. In: _____. Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.

SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.

SILVA, Tomaz T. 1990. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.

WRIGHT MILLS, Charles. 1972. A imaginação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.



[1] Esta postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024 ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação substancial.

[2] Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016, considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos (2005)).

[3] A idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é perfeitamente aplicável à Sociologia.

[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico, no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência). Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito, com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista, cf. Lacerda (2022).

Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma sugestão de H. Becker (2007).

[5] Tomaz Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.

[6] A chamada “Sociologia weberiana” padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor: na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã (romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)! Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna” (!) Sociologia.

Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão “imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação individual da situação de cada indivíduo na sociedade (Wright Mills, 1972).

Por fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras (Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas, propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se percebe, válidas para todas as Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social exaltada nas coletâneas acima indicadas.

[7] O caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal. Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um aspecto teórico. No caso que nos interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e acima de tudo, descreve a realidade – no caso, a realidade própria ao ser humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes conseqüências morais e políticas.

[8] Um esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso do Soneto de fidelidade, a expressão “posto que” tem um sentido adversativo e significa “embora”, ao contrário do entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.

[9] Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um “obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria, o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p. 192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo, sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais, primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras, vincula-se precisamente às viagens como procedimento metodológico.