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26 março 2024

Que é a "ditadura republicana"?

No dia 2 de Arquimedes de 170 (26.3.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

No sermão abordamos a proposta de "ditadura republicana".

Antes do sermão, comentamos o livro O homem e sua ficha, do positivista cearense Jesus Pereira Soares (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988), que é um belo e interessante relato e profissão de fé do autor como servidor público inspirado e orientado pelo Positivismo e como integrante da assessoria econômica da Presidência da República nos anos 1940 e 1950.


Fonte: https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-assessoria-economica-do-segundo-governo-vargas/

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/4fjrm) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wkWus). O sermão começou em 58 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O que é a ditadura republicana? 

-        Como sabemos, quando se fala popularmente no Positivismo, pensa-se de modo geral em alguns chavões, com freqüência mal explicados ou simplesmente errados: a lei dos três estados, o “Ordem e Progresso”, alguns militares positivistas – e, no que depende dos liberais, também a “ditadura republicana”

o   A associação contemporânea da palavra “ditadura” com autoritarismos, com violência, com truculência (e, não por acaso, com os militares e com a violência policial), torna o conceito de “ditadura republicana” algo bastante delicado de ser tratado

o   De qualquer maneira, há algumas semanas um interessado no Positivismo pediu que tratássemos desse tema: assim, aqui estamos[1]

-        Para limparmos o terreno, antes de começarmos a tratar do que é a ditadura republicana, é importante sabermos o que ela não é[2]

o   A ditadura republicana não é um autoritarismo

§  Pode não parecer muito evidente, mas Augusto Comte não usava a palavra “autoritarismo”, que é de uso bastante contemporâneo (posterior à II Guerra Mundial)

§  Para nós, “autoritarismo” é um regime político moderno, mantido pela força, isto é, pela violência militar, policial e civil-burocrática

·         O autoritarismo, nesse sentido, equivale à “ditadura”, e é oposto à “democracia”

·         A “democracia”, por sua vez, consiste em um regime de liberdades, em que o governo obedece à “vontade popular”; em que o governo é eleito periodicamente e em que a atuação do Estado é limitada tanto por uma carta constitucional quanto pela “separação dos poderes”

§  Seguindo a tradição filosófico-política vigente no século XIX, os regimes políticos autoritários, ou melhor, os regimes políticos negativos para Augusto Comte eram a tirania, o despotismo, o absolutismo político e a opressão

·         As características desses regimes políticos negativos eram o emprego político da violência, a ausência de liberdades, a imposição de crenças e também um caráter retrógrado geral – e a união dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  Augusto Comte, na Política positiva (1851-1854), emprega habitualmente a expressão “ditadura” em um sentido neutro, ou seja, como sinônima de “governo” ou de “regime político”

·         Assim, há ditaduras progressistas, ditaduras liberais (no sentido de que apóiam as liberdades), ditaduras pacíficas; inversamente, há ditaduras retrógradas, ditaduras violentas, ditaduras militares etc.

·         Entre o rol de ditaduras, há a “ditadura republicana”

·         A palavra ditadura é empregada por Augusto Comte no sentido de “ditar”, isto é, de indicar as regras e as leis – ou seja, no sentido de “governar”

-        A expressão “ditadura” tem origem romana; ela consistia em uma magistratura excepcional[3]

o   (As magistraturas eram os cargos públicos de Roma)

o   Na República romana, em situações de grande perigo público – como no caso de guerras em que estivessem à beira da derrota, ou em caso de invasões do seu território, ou mesmo no caso de graves distúrbios civis –, escolhia-se um “ditador”

o   O ditador tinha um mandato fixo (seis meses, prorrogáveis por mais seis) e seus poderes eram os mais amplos possíveis (vida e morte, decisões com aplicação imediata, justiça irrecorrível), mas não eram ilimitados: ele não podia mudar as instituições fundamentais da República

-        Até o final do século XIX, a palavra ditadura tinha um sentido neutro ou mesmo positivo[4]; foi com o comunismo que isso mudou, seja com a proposta de “ditadura do proletariado” (cujo sentido de “autoritarismo do proletariado” nunca foi fingido por Marx), seja com a Revolução Russa em 1917

o   A ditadura nazista (1933-1945) foi a pá de cal final sobre os sentidos neutros ou positivos para a palavra “ditadura”

o   Após a II Guerra Mundial, os estadunidenses popularizaram a “ditadura” como conceito antinômico em relação à “democracia”, fosse para defender a sua democracia no âmbito da Guerra Fria, fosse para caracterizar as ditaduras opostas (nazista e/ou soviética)

-        Agora que vimos o que a ditadura republicana não é, podemos com tranqüilidade passar para o que ele é

-        Ainda com o objetivo de limparmos o terreno, convém apresentarmos alguns aspectos gerais da ditadura republicana, antes de abordarmos seus elementos específicos[5]

o   É um regime de liberdades: liberdades civis (ir e vir, devido processo legal, habeas corpus) e, ainda mais, de plenas liberdades de consciência, de expressão e de associação

o   Considerando a separação dos dois poderes, é um regime de governo limitado

o   É o regime político próprio à sociocracia, isto é, à organização social positiva, baseada na prevalência da opinião pública

o   Ainda vinculados à sociocracia estão os elementos do pacifismo (e da rejeição da violência), do fim do militarismo, da confiança mútua (entre o governo e os cidadãos; entre os cidadãos entre si), da responsabilidade social e política, dos estados de pequena extensão, da afirmação das mátrias, da afirmação da Humanidade sobre as pátrias/mátrias

-        Para entendermos a ditadura republicana, temos que ter clareza e lembrar que, assim como não se pode ter o espírito absoluto na filosofia, não se pode ter o espírito absoluto na política

o   Assim, não faz sentido a pesquisa puramente abstrata e de caráter teológico-metafísico sobre “o melhor tipo de governo”: cada sociedade tem seu tipo adequado de governo

o   Durante a Idade Média e, de modo geral, durante os períodos teológicos, o governo foi absoluto, no sentido de que suas ordens eram indiscutíveis; além disso, o governante era visto como o representante da divindade na Terra

o   Em uma sociedade positiva e relativa, as decisões do governo têm que ser passíveis de exame e de crítica pública; o governo é o agente do interesse público; a importância da confiança pública e da responsabilidade social é plenamente reconhecida e valorizada

o   No meio do caminho entre a teologia e a positividade há a metafísica – e a teoria política metafísica atualmente é liberal e democrática

§  Lembremos: a metafísica é destruidora, dissolvente, “crítica”; em termos políticos, uma outra característica da metafísica é considerar como permanente instituições puramente transitórias (em particular aquelas destinadas a destruir as instituições anteriores)

§  O aspecto mais claramente metafísico no liberalismo é a desconfiança radical em relação ao poder: essa desconfiança vincula-se à decadência dos poderes antigos, que, após a Idade Média, passaram a tornar-se desregulados e opressivos

·         A idéia, e até o sentimento, de que o poder sempre será ruim está na base dos raciocínios dos liberais (políticos e/ou econômicos) e apóia o individualismo liberal

§  No que se refere à metafísica democrática, ela apresenta-se com clareza ao considerarmos a concepção da “soberania popular”

·         Entendida de maneira positiva (ou melhor, positivada), ela pode ser entendida como o governo da opinião pública

·         Nos textos de Rousseau, a soberania popular é a consideração de que o “povo” sempre sabe tudo, sempre sabe o que quer, nunca erra e exige que todos creiam em uma religião civil

o   A ditadura republicana surge como uma instituição intermediária e temporária entre a fase atual, da metafísica democrático-liberal, e a fase sociocrática plenamente positiva

-        Agora que limpamos o terreno, demos algumas indicações elementares sobre a política positiva e indicamos o aspecto de transição da ditadura republicana, torna-se mais simples, rápido e fácil apresentar seus elementos específicos[6]:

o   A ditadura republicana é um regime político republicano, em que o bem comum (“res publica”) é o parâmetro fundamental, afirmado pela opinião pública, e em que as liberdades devem ser, sempre, garantidas

o   Em particular, a separação entre os dois poderes (Temporal e Espiritual) deve ser cuidadosamente mantida: como o objetivo da ditadura republicana é realizar a transição, a sua atuação deve ser no sentido de garantir as condições sociais e políticas próprias à transição

o   Em que consiste a transição? A transição consiste no restabelecimento da ordem espiritual, ou seja, (1) no restabelecimento de um poder espiritual legítimo, verdadeiro e adaptado à sociedade e, portanto, (2) no estabelecimento de um poder espiritual positivo

o   O papel da ditadura republicana, então, é o de manter a ordem temporal em meio à anarquia espiritual, enquanto o poder espiritual positivo estabelece-se: evidentemente, a condição fundamental e necessária para isso é a liberdade espiritual (liberdades de consciência, de expressão e de associação)

o   Considerando por um lado o papel específico da ditadura republicana como regime de transição e por outro lado a necessidade permanente da separação entre os dois poderes nas sociedades modernas, o resultado é que a ditadura republicana deve assumir a característica da “laicidade do Estado”, conforme é habitualmente entendida

o   Augusto Comte determina três fases progressivas na transição:

§  (1) nem o conjunto da sociedade nem o governante é positivista, mas é possível e necessário adotar uma série de medidas: garantia clara e plena das liberdades de consciência, expressão e associação; fim do anonimato; fim dos orçamentos teóricos (igrejas, universidades); extinção da legislação de propriedade intelectual; sistema público de comemorações históricas

§  (2) a sociedade não é positivista, mas o governante é e por isso o governo assume um caráter progressista, ao adotar as seguintes medidas: supressão das Forças Armadas, transformação de Paris em metrópole ocidental, junção das máximas “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”

§  (3) tanto o governante quanto a sociedade são positivistas

o   Quando ocorrer a terceira fase da transição, será possível instalar o regime político normal, em que o poder do Estado será organizado em um triunvirato, ou seja, dividido entre três governantes, cada um deles oriundo de um ramo do patriciado bancário e responsável por uma área específica

§  Interior (proveniente da agricultura)

§  Finanças (proveniente da indústria)

§  Exterior (proveniente do comércio)

§  Os eventuais conflitos graves entre os triúnviros são mediados pelo poder Espiritual

-        Em termos institucionais, a ditadura republicana caracteriza-se pelo seguinte:

o   Governo unipessoal: ou seja, república presidencialista

o   Parlamento apenas orçamentário e reunido apenas durante suas atividades orçamentárias

§  O parlamentarismo apresenta uma série enorme de defeitos e problemas morais e políticos: dispersa (e/ou nega) a responsabilidade; divide e inutiliza o poder; finge que é um órgão espiritual; estimula a mesquinhez, a corrupção e as intrigas (apoiando e sendo apoiado pelo jornalismo político)

o   A “soberania” é da sociedade (logo, não é nem divina nem do “povo”): a sociedade manifesta-se sozinha e com autonomia, por si só, seja por meio do poder Espiritual, seja por meio de seus órgãos variados (clubes cívicos, associações, sindicatos etc.)

o   As leis são propostas pelo governo e submetidas à avaliação pública durante períodos variáveis durante alguns meses; a sociedade manifesta-se e, com base nas manifestações sociais e após elas, o governo decreta finalmente as leis

o   Os mandatos são vitalícios, até a idade da aposentadoria (Augusto Comte indica a idade de 63 anos); o governante indica o seu sucessor, que é sujeito à avaliação (e, portanto, à aceitação) pública

§  Esse é o instituto da “hereditariedade sociocrática”

o   Augusto Comte aceita a instituição do voto – voto universal, aliás –, apesar do seu caráter profundamente crítico e dissolvente, com três modificações fundamentais, introduzidas a fim de garantir-se a responsabilidade nas decisões:

§  Voto apenas a partir dos 28 anos

§  Voto público (isto é, a descoberto)

§  Voto transferível (ou seja, a possibilidade de um eleitor atribuir a própria capacidade de votar a outro cidadão – que, por sua vez, passa a poder contar com dois votos – e assim sucessivamente)

o   Como deve ter ficado evidente, todas as instituições propostas acima para a transição (e, aí, para a ditadura republicana) ficam na dependência de o poder Espiritual fazer valer a preponderância do altruísmo sobre o egoísmo



[1] A presente exposição baseia-se longamente no livro de nossa autoria, ou seja, de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte (Curitiba: UFPR, 2019). Nesse livro eu cito longa e textualmente Augusto Comte e discuto em detalhes cada um dos aspectos considerados, incluindo os temas contemporâneos que geram confusão (como, por exemplo, a equivalência contemporânea entre “ditadura” e “autoritarismo”).

[2] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[3] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[4] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[5] Cf. Lacerda, cap. 3, cap. 5 (em particular seções 5.2-5.3) e cap. 6.

[6] Cf. Lacerda, seção 5.3.

28 fevereiro 2024

O que é o espírito positivo?

No dia 2 de Aristóteles de 170 (27.2.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

Na seqüência procuramos responder a seguinte questão: o que é o espírito positivo?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/6f9tT) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/l2wvx). O sermão começou em 50 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.

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O que é o espírito positivo? 

-        A pergunta desta semana que buscaremos responder é, talvez, uma das mais básicas quando estudamos o Positivismo e a Religião da Humanidade: o espírito positivo

o   Se, do ponto de vista moral, a nossa meta, ou melhor, a lei da felicidade e do dever é viver para outrem, isto é, ser altruísta, do ponto de vista intelectual podemos dizer que o parâmetro é realmente o espírito positivo

-        Mas o que é o espírito positivo?

o   Podemos dizer que o espírito positivo é aquela forma de entender o mundo que segue os parâmetros da positividade

o   Mas, para não ficarmos dando voltas ou apresentando definições circulares, eis os parâmetros do espírito positivo:

§  Comecemos por expor os sentidos da palavra “positivo”, conforme expostos por Augusto Comte no Apeloaos conservadores (de 1855 – p. 25): real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

·         Essa relação foi afirmada e refinada por Augusto Comte desde que ele proferia o seu curso de filosofia positiva; uma versão anterior, levemente diferente, foi exposta de maneira formal, inicialmente, no Discurso sobre o espírito positivo (de 1844)

·         Sem desconsiderar as outras características, aqui insistiremos no “relativo” e no “simpático”, pois elas indicam, por um lado, que o Positivismo opõe-se ao absoluto e, por outro lado, que o Positivismo afirma e estimula o altruísmo

§  Adicionalmente, da nossa parte podemos também incluir que integram o espírito positivo o espírito histórico e, daí, o caráter social – sendo que essas expressões devem ser lidas com toda a polissemia que com freqüência caracteriza o estilo de Augusto Comte

§  Da mesma forma, convém acrescentar que o espírito positivo pressupõe e afirma a visão de conjunto

o   Uma outra forma, evidentemente complementar, de entender o espírito positivo é por meio da “primeira lei da filosofia primeira”, cujo enunciado é o seguinte: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar

§  As leis da filosofia primeira são os princípios universais que regem todos os fenômenos, em um total de 15 leis

·         As leis da filosofia primeira incluem leis do entendimento humano e também leis do funcionamento da realidade cósmica; elas são tanto objetivas quanto subjetivas

§  A primeira lei da filosofia primeira é chamada de “lei-mãe” da filosofia primeira, pois ela rege a formulação e a elaboração de todas as nossas concepções, em termos normativos (como devemos racionar) e descritivos (como raciocinamos de fato)

·         Assim, ela pressupõe e orienta a elaboração do espírito positivo

-        Mudando de âmbito, há um outro sentido para a expressão “espírito positivo”, um sentido popular, muito comum atualmente

o   Esse sentido estende-se a outras expressões, como “positividade” e até “positivismo”

o   Esse sentido é o do espírito positivo como “pensamento positivo”

-        O “espírito positivo” como “pensamento positivo” significa que devemos sempre buscar o melhor das coisas, tentar não reclamar muito, procurar sorrir etc.

o   Em um sentido geral, o Positivismo assume o “pensamento positivo”

§  Todos sabemos como a vida requer confiança nas próprias capacidades, confiança nos demais, um ambiente familiar, laboral e social afirmativo etc.

§  Trata-se, portanto, de um lado, do bom humor, da alegria, da felicidade; por outro lado, da autoestima e da confiança em nossos familiares e concidadãos, por outro lado ainda, da esperança

o   Há algumas interpretações místicas que consideram que o “pensamento positivo” por si só influencia objetivamente a realidade, em particular modificando a realidade física

§  Isso incorre no grave erro intelectual, moral e prático de negar a realidade das leis naturais inferiores; na verdade, isso é mesmo um misticismo, pois consiste em uma versão ultrassubjetivista das vontades arbitrárias próprias às divindades (ou seja, à teologia)

o   No Discurso preliminar sobreo conjunto do Positivismo (1848/1851), Augusto Comte nota que o Positivismo não é nem fatalismo nem otimismo

§  Para o que nos interessa, o otimismo é a concepção segundo a qual a realidade é toda ela totalmente boa, perfeita, completa

·         Essa concepção desconhece – de maneira voluntária ou involuntária – o fato de que a realidade não é perfeita e que, portanto, ela é passível de aperfeiçoamento

·         A origem do erro do “otimismo” vincula-se à teologia (em particular monoteísta), que considera que a divindade criou todo o universo; este, por ter sido criado por um ser supostamente perfeito, também seria perfeito (ainda que, contraditoriamente, incognoscível, ou seja, misterioso e impossível de ser conhecido e compreendido)

§  O fatalismo é um erro intelectual complementar, segundo o qual as leis naturais impedem qualquer intervenção humana – em particular nos fenômenos humanos

·         A origem desse erro está no fetichismo (em particular na astrolatria) e na extensão da interpretação própria às leis astronômicas a toda a realidade

·         O erro do fatalismo está em desconhecer as características próprias às diversas categorias dos fenômenos, em particular que, quanto mais complicado um fenômeno, mais modificável ele é

§  A complementaridade entre fatalismo e otimismo está em que um nega qualquer possibilidade de modificação e o outro nega qualquer necessidade de modificação

o   Há um último problema vinculado ao “espírito positivo” entendido como “pensamento positivo”: é o que alguns chamam de “positividadetóxica

§  A positividade tóxica é a tendência a querer que tudo tenha que ser encarado “positivamente”, sem haver possibilidade de reclamações, pessimismo, irritações ou até tristeza

·         Em outras palavras, a positividade tóxica é a exigência de rejeitar e negar os sentimentos negativos

§  No âmbito do Positivismo, essa “positividade tóxica” pode ser assimilada ao “otimismo” comentado e criticado por Augusto Comte, na medida em que esse otimismo considera que tudo é bom

·         Mas, além disso, essa positividade tóxica também incorre no desconhecimento geral do dogma positivo, no sentido de que desconhece que a realidade tem uma objetividade que não depende do ser humano – para o que nos interessa, que não depende do nosso estado de humor

·         Nesse sentido, há a necessidade de afirmar-se o aspecto do realismo do espírito positivo: é uma questão de reconhecermos a existência de situações incômodas, desagradáveis, tristes ou simplesmente difíceis e/ou contrárias aos nossos desejos e vontades

-        Em suma:

o   O espírito positivo, como tudo no Positivismo, tem um aspecto afetivo, um intelectual e um prático

§  O espírito positivo pode ser definido por seus atributos: real, útil, certo, preciso, relativo, simpático; histórico e social; afirmador da visão de conjunto

§  A lei-mãe da filosofia primeira também constitui e orienta o espírito positivo: “formular a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto de dados disponíveis”

o   O espírito positivo rejeita duas interpretações comuns em particular: de um lado a negação da possibilidade de qualquer modificação, que é o fatalismo; por outro lado, a negação da necessidade de modificação, que é o otimismo

o   No senso comum, o espírito positivo equivale a "pensamento positivo"

§  O pensamento positivo tem um aspecto que se aproxima do Positivismo: trata-se da alegria, da generosidade, do manter boas relações sociais, da confiança e da esperança

§  Mas há alguns aspectos do chamado pensamento positivo que se afastam do Positivismo:

·         O misticismo de considerar que a realidade modifica-se apenas pela força do pensamento

·         O “otimismo” criticado por Augusto Comte

·         A chamada “positividade tóxica”, que rejeita sentimentos negativos e, no fundo, rejeita a exigência de realismo de nossas concepções


21 fevereiro 2024

Será que o relativismo impede convicções profundas?

No dia 23 de Homero de 170 (20.2.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista e começando a décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão buscamos responder à seguinte questão: "será que o relativismo impede convicções profundas?".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (Youtube.com/ThePositivism) e Igreja Positivista Virtual (Facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual). O sermão começou em 1h 00 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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O relativismo impede convicções profundas? 

-        A pergunta do título na verdade supõe uma afirmação prévia: “o relativismo impede convicções profundas”

o   Por outro lado, essa afirmação supõe duas meias “constatações” populares – na verdade, dois preconceitos – no sentido de que (1) o relativismo liga-se, propicia, estimula convicções frágeis e de que, inversamente, (2) as convicções profundas ligam-se apenas ao absolutismo

o   Há uma série de outros pressupostos aí; esses pressupostos são literalmente pressupostos, isto é, são subjacentes aos raciocínios explícitos

§  Por exemplo: o preconceito pressuposto segundo o qual o relativismo implica, ou significa, um estado de dúvida sistemática e, assim, de flutuação das idéias e das convicções

o   Ao tratarmos do relativismo e das “convicções”, o que está em questão não são apenas aspectos intelectuais, de entendimento do mundo (a partir do relativismo), mas também questões práticas, vinculadas ao caráter e às atividades efetivamente realizadas por todos e cada um

o   Por outro lado, da nossa parte o que está implícito nos comentários acima é que, para o Positivismo, o relativismo não impede convicções profundas – na verdade, bem ao contrário, ele estimula e exige tais convicções

-        Para tratarmos do tema, vejamos cada um dos termos principais que estamos considerando, “relativismo” e “convicções”

-        Comecemos com as “convicções”, pois, para os nossos propósitos, elas são um tema mais rapidamente tratável

o   Podemos entender as convicções como sendo crenças íntimas que mantemos e que nos orientam para determinadas direções práticas

o   Assim, nesse sentido, as convicções são as idéias que sustentam os comportamentos práticos

-        “Relativismo”: o relativismo é a perspectiva segundo a qual o ser humano constitui-se por meio das relações e, assim, tudo o que o ser humano conhece baseia-se nas relações que ele estabelece com o ambiente

o   Em outras palavras, a realidade humana é relacional

§  O caráter relacional do ser humano significa então duas coisas: (1) que o ser humano vive em relação com o ambiente e (2) que, portanto, o ser humano só consegue conhecer aquilo com que mantém relações

o   O relativismo rejeita as concepções segundas as quais (1) existem realidades existentes por si sós e (2) são possíveis conhecimentos daquilo que existe por si só

§  Em outras palavras, o relativismo rejeita o absolutismo

o   O absolutismo que consideramos aqui é o absolutismo filosófico, ou seja, a concepção não relativista ou anti-relativista; mas, como o absolutismo filosófico vincula-se à teologia, é perfeitamente possível entendê-lo no limite como se estendendo também ao absolutismo político

§  Augusto Comte lembrava que concepções indiscutíveis vinculam-se a ordens não criticáveis

o   Em relação aos nossos conhecimentos, o aspecto relacional do relativismo implica, por um lado, que as nossas concepções dependem do ambiente em que vivemos; por outro lado, implica também que as nossas concepções modificam-se de acordo com o tempo e com o espaço

§  As relações que percebemos e que fundamentam o nosso conhecimento são as de coexistência e de sucessão; ou seja, são as relações que ocorrem ou que se estabelecem entre dois ou mais fenômenos simultânea ou sucessivamente

§  Um aspecto fundamental nessa concepção é que, sem nunca negar a atividade interna própria ao cérebro, o interior subordina-se ao exterior, assim como os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros

·         Isso significa que há e deve haver uma troca constante entre a objetividade e a subjetividade

o   Essa troca varia conforme o fenômeno considerado e também conforme a operação intelectual envolvida

o   Como se sabe e como veremos, o excesso ou a falta de objetividade ou de subjetividade, dependendo da operação intelectual envolvida, pode prejudicar seriamente as concepções resultantes

·         Dessa forma, as variações nas concepções não são aleatórias

§  A variabilidade das concepções humanas segue os princípios do método subjetivo:

·         Como já indicamos, o primeiro princípio é o de que, sem negar a atividade interna ao cérebro, o interno submete-se ao externo

·         Em segundo lugar, todos os fenômenos seguem leis naturais

o   As leis naturais são as relações de coexistência ou de sucessão

·         Em terceiro lugar, quando mais nobre for o fenômeno considerado, mais complicado, imperfeito e modificável ele será

o   O relativismo, dessa forma, por definição é “autocrítico” e capaz de reavaliações contínuas de suas perspectivas

§  Todavia, tais reavaliações não significam, nem podem significar, a negação dos fundamentos do relativismo

§  Por certo que tais reavaliações recomendam sempre a prudência e o cuidado: mas prudência e cuidado são muito diferentes de tibieza, moleza e pusilanimidade

·         Há um aspecto de caráter mesmo nas elaborações intelectuais

·         Nesse sentido, as convicções são necessárias não apenas para as atividades práticas, mas também para as próprias elaborações intelectuais

-        Além da concepção verdadeira de relativismo, que é a esposada pelo Positivismo, há (pelo menos) outras duas concepções

o   A concepção de relativismo do Positivismo é verdadeira não porque seja a do Positivismo, mas porque ela reconhece e valoriza a natureza, reconhece e valoriza as relações do ser humano com o ambiente (e, claro, com o próprio ser humano) e, a partir disso, regula essas relações

o   As duas concepções adicionais de relativismo que nos interessam aqui são:

§  O relativismo metodológico próprio à Antropologia

§  O relativismo ultrassubjetivista antipositivo próprio aos pós-modernos

-        Vejamos rapidamente o relativismo metodológico da Antropologia

o   Embora ele aproxime-se um tanto daquele que nos importa aqui, no final das contas é uma outra concepção e não nos interessa de verdade neste momento

o   Essa concepção afirma que cada sociedade tem sua própria visão de mundo, que deve ser respeitada e valorizada por si mesma a fim de podermos estudar sociedades e culturas diferentes das nossas

o   Assim, podemos dizer que esse relativismo consiste, (1) por um lado, em uma suspensão dos juízos da nossa sociedade a respeito das outras sociedades e, (2) por outro lado, na valorização dessas outras sociedades

o   Esse relativismo antropológico tem um aspecto moral importante, no sentido de estimular o respeito e a valorização de outras culturas, em particular combatendo o chamado “etnocentrismo”

o   Mas, por outro lado, esse relativismo tem que ser empregado com cuidado e não pode ser generalizado de um ponto de vista filosófico:

§  Por um lado, é necessário entendê-lo principalmente como um princípio metodológico

§  Por outro lado, a sua aplicação indiscriminada impede que se valorizem efetivamente as várias sociedades e, portanto, impede que se avaliem os diversos traços de cada sociedade

·         A aplicação indiscriminada do relativismo antropológico impede a avaliação das sociedades porque postula, pura e simplesmente, que todas as culturas seriam “equivalentes” entre si, que todas as culturas seriam, então, “iguais” entre si, independentemente de suas concepções, de suas práticas, de seus valores efetivos

·         No limite, o que a aplicação indiscriminada do relativismo antropológico estabelece é a visão de mundo da “colcha de retalhos” cultural

o   Essa visão de mundo da “colcha de retalhos” é própria à obra do antropólogo teuto-americano Franz Boas e, daí, do multiculturalismo propagado e praticado pelos Estados Unidos e pelo Canadá

-        A segunda outra concepção de relativismo que devemos considerar aqui é a do senso comum atual

o   Para o senso comum atual, o “relativismo” é entendido de uma forma que se aproxima do Positivismo em alguns aspectos, mas que difere em aspectos importantes:

§  O “relativismo” do atual senso comum – e é importante enfatizar que se trata do atual senso comum – opõe-se de fato ao absolutismo, mas opõe-se de maneira bastante dura

§  O relativismo do senso comum postula que convicções firmes só existem no âmbito do absolutismo

·         O fundamento dessas convicções firmes absolutas estaria em que somente o indiscutível é firme e sólido

·         Inversamente, as concepções relativistas seriam frouxas ou, ainda, fluidas ou, ainda, “suaves”

§  Uma forma bastante reveladora de entender essa dicotomia – e trata-se aqui, de fato, de uma dicotomia, ou seja, de uma divisão entre duas concepções opostas – é considerar que quem tem convicções firmes seria “dogmático”, no sentido de que seria duro, incapaz de discutir idéias, pouco ou nada afeito à reflexão “crítica”, ao autoexame, à reavaliação das próprias concepções etc.

o   Reiterando, então: o que está subjacente é que a firmeza de concepções é própria ao absolutismo e que o relativismo implica uma certa debilidade

§  Essa debilidade do relativismo deve-se a que, nessa concepção, não há “verdade”, mas apenas situações momentânea e fugidiamente estáveis ou acordos parciais e/ou contextuais, na forma de “jogos”, “convenções”, “construções sociais” etc.; além disso, rejeitam-se as noções universalistas e generalistas, em favor de concepções particularistas

·         Dizendo de outra forma: trata-se de um ultrassubjetivismo, que, além disso, rejeita a noção de objetividade

o   Essa forma de entender o relativismo vincula-se às concepções do chamado “segundo Wittgenstein” que, a partir dele, influenciou (e influencia) gerações de filósofos e teóricos

§  As reflexões do “segundo Wittgenstein”[1], expostas no livro póstumo Investigações filosóficas (1953), por um lado rejeitavam a busca da verdade e, por outro lado, propunham para a filosofia a tarefa de ser “terapêutica”

§  Há nessas reflexões um viés antimetafísico, antiessencialista e antiabsolutista (o que sem dúvida as aproxima do Positivismo); mas, como decorrência disso e da rejeição da verdade, há também a concepção de que toda e qualquer verdade é sempre, necessária e profundamente contextual

o   Essas concepções foram reafirmadas ao longo do século XX por diferentes pensadores, especialmente os de origem (ou de vinculação) anglossaxônica e próximos às chamadas “filosofia da linguagem” e “filosofia analítica”

§  Os pensadores pós-modernos são herdeiros diretos dessas concepções

§  Essas concepções são tão intensas que mesmo pensadores que não são “pós-modernos”, como Ernst Gellner[2], acabaram aceitando-as, especialmente no que se refere à definição atual de “relativismo”

-        A concepção atual de relativismo apresenta, portanto, alguns elementos importantes (o antiabsolutismo, por exemplo), ao mesmo tempo em que apresenta traços profundamente problemáticos (como a rejeição de qualquer busca da verdade e a correlata concepção de que a verdade é meramente um acordo instável e temporário entre grupos e indivíduos que estão perpetuamente em disputa)

o   Dessa forma, essa concepção atual de relativismo realmente se distancia bastante das convicções profundas; na verdade, ela sugere e estimula uma atitude meio superficial em relação à vida

o   Inversamente, essa concepção atual de relativismo estimula a concepção de que as convicções profundas são próprias (apenas) a perspectivas absolutistas

§  O resultado, portanto, é que apenas os teológicos (e, por extensão implícita, os fanáticos) são verdadeiramente convictos de suas idéias; os relativistas são superficiais, banais, frágeis e, daí, meio covardes

-        É necessário retornarmos ao Positivismo e à questão do título deste sermão: será que o nosso relativismo estimula convicções fracas?

o   Respondendo de mais clara e direta: não, o nosso relativismo não estimula convicções fracas; ao contrário, ele estimula convicções firmes

§  É claro que “convicções firmes” não equivalem a “convicções fanáticas” – nem equivale às variações que o atual senso comum vincula ao fanatismo: ausência de “autocrítica”, ausência de “senso crítico”, “dogmatismo”, “dureza de concepções” etc.

o   Como e por quê o nosso relativismo estimula convicções firmes?

§  Antes de mais nada: viver a vida exige tanto regras claras e estáveis quanto firmeza de propósitos

·         A firmeza de propósitos é uma qualidade por si só (é um atributo prático), mas é evidente que regras claras e estáveis facilitam essa firmeza

o   Já afirmamos várias vezes nesta exposição de diferentes maneiras, mas convém reafirmar mais uma vez: a “firmeza de propósito” (e as regras claras e estáveis) não equivale à incapacidade de cada um reavaliar o próprio comportamento, as próprias concepções etc.; em outras palavras, a firmeza de propósito (e as regras claras e estáveis) não implica necessariamente concepções absolutas

§  A firmeza de propósitos é necessária simplesmente porque a vida impõe dificuldades e obstáculos que, para serem enfrentados, exigem persistência (ou seja, manutenção do comportamento adotado e/ou necessário ao longo do tempo)

·         A multiplicidade de caminhos possíveis a serem adotados na vida (bons ou ruins, certos ou errados etc.), por seu turno, também requer regras claras e estáveis para a firmeza de propósitos

o   Devemos perceber que o verdadeiro relativismo rejeita apenas as concepções absolutas, mas não impede (nem haveria por que impedir) a busca de verdades

§  Como vimos antes, a variabilidade das verdades não implica que elas sejam aleatórias, na medida em que elas vinculam o interior ao exterior por meio das relações de coexistência e sucessão (ou seja, das leis naturais)

o   Também devemos ter clareza a respeito das relações entre inteligência e atividade prática:

§  A inteligência esclarece o mundo a fim de orientar a atividade prática: isso significa que, por mais importante que sejam as nossas concepções sobre o mundo, tais concepções são importantes acima de tudo como um meio, isto é, como um instrumento para que possamos agir no mundo

·         A utilidade desse instrumento vincula-se à adequação ao mundo, exatamente nos parâmetros das leis naturais, e não como acordos ultrassubjetivos, frágeis e locais entre pessoas que não se levam muito a sério

§  Na medida em que a inteligência é um instrumento a serviço da atividade prática, ela deve subordinar-se à atividade prática

·         Evidentemente, isso não significa que a subordinação da inteligência à atividade prática equivalha à degradação da inteligência

·         Isso significa, sim, que, sendo a operação da inteligência e seus possíveis objetivos muito grandes e variáveis, eles devem pautar-se e orientar-se pelos parâmetros da atividade prática, a fim de que não se descaminhem

·         A concepção da inteligência como subordinada à atividade prática e como orientada por ela corresponde à visão positiva da inteligência – e, por extensão, do relativismo

§  Nesse sentido, é necessário termos clareza de que os objetivos propostos pelos pós-modernos, por R. Rorty e pelo segundo Wittgenstein para a inteligência correspondem ao descaminho da inteligência, à sua perda de rumo

-        Em suma:

o   O verdadeiro relativismo não apenas permite como exige convicções profundas:

§  As convicções profundas próprias ao relativismo não equivalem à ausência de autocrítica, à incapacidade de reavaliar o próprio comportamento, ao dogmatismo etc.

§  As convicções profundas são estimuladas pelo relativismo, na medida em que enfrentar a vida exige esforços contínuos e esclarecidos pelo conhecimento da realidade

§  Essa forma de entender o relativismo, as convicções profundas e suas relações corresponde à concepção positiva disso tudo; o que nega tais concepções constitui perspectivas metafísicas, críticas, destrutivas e prejudiciais ao ser humano

o   O atual relativismo nega não apenas as concepções absolutas como quaisquer concepções da verdade

§  O atual relativismo afirma que não existe nenhum tipo de verdade, apenas acordos parciais, temporários, frágeis, particularistas e ultrassubjetivos

·         Essa concepção baseia-se – pelo menos em sua versão do século XX – nas idéias do segundo Wittgenstein (das Investigações filosóficas), serve de fundamento para os pós-modernos e é exemplificada pelo estadunidense Richard Rorty

§  Para o atual relativismo, a filosofia – e, por extensão, a inteligência – não tem nenhuma utilidade maior além de sacramentar e mais ou menos permitir conversas superficiais entre grupos específicos de seres humanos

·         O objetivo de tais conversas é apenas dar satisfação momentânea às ansiedades dos seres humanos

§  A filosofia (e, daí, a inteligência) é portanto superficial, banal e mais ou menos inútil; as convicções daí decorrentes são frágeis

·         É inevitável chegar à conclusão de que o atual relativismo constitui um descaminho dos objetivos da inteligência e que, portanto, ele corresponde a uma concepção metafísica da inteligência, da existência humana e das suas relações com a atividade prática

§  É claro que, apesar de sua superficialidade, de sua banalidade e de sua fragilidade, esse atual relativismo apresenta por outro lado uma capacidade intensa de criticar como sendo “acrítico”, “dogmático”, “essencialista” etc. tudo aquilo que não padece dos seus próprios defeitos



[1] A expressão ao “segundo Wittgenstein” refere-se à segunda grande parte da carreira desse pensador, desenvolvida a partir da década de 1930 e voltada à chamada “filosofia da linguagem comum”. Tendo vivido entre 1889 e 1951, a primeira grande parte da sua carreira desenvolveu-se até os anos 1920 e dedicou-se à filosofia da matemática, à filosofia da lógica e a investigações que consideravam a linguagem como um tipo de lógica (e vice-versa). A grande obra da primeira fase de Wittgenstein é o Tratado lógico-filosófico (1921); como indicamos acima, a grande obra da segunda fase é o livro póstumo Investigações filosóficas (1953).

[2] A referência que fazemos aqui a Ernst Gellner (1925-1995) deve-se a que ele, sendo um defensor do racionalismo de origem iluminista e um crítico tanto do absolutismo (teológico) quando do laxismo filosófico, moral e prático do pós-modernismo, não elaborou nenhuma concepção de relativismo que fosse além das difundidas pelos pós-modernos a partir de Wittgenstein. De modo mais específico, expondo suas concepções, Gellner participou do evento “O relativismo enquanto visão de mundo”, que ocorreu em 1993 e que teve seus anais publicados em 1994 sob o título Banco Nacional de Idéias – O relativismo enquanto visão de mundo e organizado por Antônio Cícero e Waly Salomão; da mesma forma, Gellner expôs essas suas concepções no volume Pós-modernismo, razão e religião (Lisboa, Instituto Piaget, 1994). Assim, a referência a Gellner é feita a título de exemplo da adesão generalizada à concepção vulgar de relativismo, mesmo da parte de pensadores que são, ou seriam, críticos dessa concepção vulgar.