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14 maio 2024

Sobre a liberdade absoluta de consciência

No dia 23 de César de 170 (14.5.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a crítica de Augusto Comte ao dogma da consciência ilimitada de consciência.

Além disso, fizemos nossas exortações habituais e lembramos algumas datas importantes:

1) Sejam altruístas: o altruísmo não tem limites e tudo pode e deve ser objeto do altruísmo. O desastre ambiental que está tendo curso no Rio Grande do Sul exige, em particular, que todos sejam altruístas neste momento. No dia 8 de maio fizemos um apelo altruísta em favor do Rio Grande do Sulhttps://acesse.dev/Uhtbm.

2) Façam orações: as orações positivistas, que são formas ativas de meditação, devem ser feitas três vezes por dia (ao acordarmos, antes de dormirmos e no meio dia); além disso, as orações positivistas não são interessadas nem interesseiras, mas são formas de reconhecimento de dívidas de gratidão: dessa forma, elas são exercícios de altruísmo.

3) Façam o Pix da Positividade, contribuindo para a Igreja Positivista Virtual. A nossa chave pix é esta: ApostoladoPositivista@gmail.com.

4) No dia 11 de maio celebrou-se o aniversário da fundação da Igreja Positivista do Brasil, ocorrido em 1881.

5) No dia 12 de maio celebrou-se o Dia das Mães: embora seja uma data comercialista, bem ou mal ela celebra uma importante função social, uma fonte e um símbolo eterno de amor, carinho e dedicação. Embora a anarquia moderna, na forma da metafísica feminista, despreze o ideal da maternidade, a moral positiva estabelece como símbolo da Humanidade uma mulher que é também mãe.

6) No dia 13 de maio celebrou-se a abolição da escravidão no Brasil, ocorrida em 1888. Essa data celebra o fim do desprezível cativeiro dos brasileiros originários da África e, com isso, também celebra a união dos três principais grupos que constituem o Brasil (os portugueses, os índios e os africanos). A Igreja Positivista do Brasil também estabeleceu essa data para celebrar a memória do líder republicano, proclamador da independência do Haiti, o ex-escravo Toussaint Louverture.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/X3Pnb) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/5YrQa). O sermão começou aos 45 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Sobre a liberdade absoluta de consciência 

-        Há um tema importante ao Positivismo que, por vezes, como infelizmente acontece também com outros temas, há incompreensões e interpretações equivocadas: a “liberdade ilimitada de consciência” é um deles

o   Augusto Comte tratou desse tema desde o início de sua carreira – por exemplo, no “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno” (de 1820) e no “Considerações sobre o poder espiritual” (de 1826) há referências diretas e explícitas a ele

o    Augusto Comte usava a expressão “liberdade ilimitada de consciência”; mas como essa expressão pode gerar confusão, eu prefiro usar às vezes “liberdade absoluta de consciência” – pois, além de evitar confusões desnecessárias, essa fórmula descreve mais acuradamente o problema

§  Em todo caso, a leitura direta das observações de Augusto Comte basta para esclarecer a expressão e evitar qualquer confusão a respeito

-        O tema da “liberdade absoluta de consciência” envolve aspectos morais, intelectuais, políticos e históricos de maneira muito direta; ele tem conseqüências (ou reflexões) muito importantes no Positivismo

o   Neste sermão, adotaremos inicialmente uma exposição histórica para, a partir dela, tratarmos filosoficamente do tema

-        A primeira observação que temos que fazer é a seguinte: todo ser humano tem capacidade de reflexão autônoma e procura entender o mundo ao seu redor; isso é um esforço que se faz para cada um localizar-se no mundo, entender como é que as coisas funcionam e, a partir disso, agir

o   Assim, cada um de nós e todos temos liberdade de pensamento, que também podemos chamar de “autonomia” (alguns sociólogos contemporâneos chamam-na de “agência”)

o   É claro que ao longo do tempo e conforme as sociedades varia essa autonomia individual: algumas sociedades são mais restritivas, outras menos

o   Mas a autonomia individual não é uma questão puramente individual, no sentido de que não se trata apenas da “liberdade de consciência”, que é algo que com freqüência é reduzido à oposição simples e binária entre “indivíduo” e “sociedade”

§  A concepção individualista entende que cada ser humano existe por si só no universo, que se torna adulto sozinho, que suas idéias e seus valores são os mesmos em qualquer parte do mundo – e, coroando essas tolices, o individualismo entende que o indivíduo está sempre ameaçado por agrupamentos de outros indivíduos (sejam eles meras coalizões passageiras, sejam eles a temível “sociedade”)

o   Na verdade, em outras palavras, é necessário adotarmos uma perspectiva sociológica – que, aliás, é a que o Positivismo adota

§  Adotar uma perspectiva individual (e individualista) para entender essa questão produz apenas concepções irracionais e imorais, ou seja, não se entende a questão, surgem problemas insolúveis e suas conseqüências sociais e políticas são desastrosas (e injustas)

-        Adotando-se a correta perspectiva sociológica, temos que ter muito em mente que ninguém nasce sabendo nada e acreditando em nada; só conhecemos e acreditamos em coisas porque aprendemos ao longo do tempo, ou seja, com a sociedade

o   Além disso, no processo de aprender está sempre implícita – às vezes, implícita demais – a confiança nos demais e, em particular, naqueles que nos ensinam e transmitem conhecimentos e valores

o   Da mesma forma, seja porque nossas concepções quaisquer seguem aquelas que aprendemos de outrem (e, novamente, entra aí a confiança), seja porque precisamos de estabilidade nas concepções, o fato é que é necessário que haja interpretações e concepções socialmente estabelecidas, compartilhadas e estáveis

§  Essa necessidade vale para toda e qualquer sociedade; isso não tem nada a ver com “autoritarismo”, “intolerância” e/ou “falta de progresso”

o   De qualquer maneira, uma das conseqüências dessa necessidade de concepções compartilhadas é a constituição do poder Espiritual

§  O poder Espiritual tem funções ao mesmo tempo sociais e políticas, filosóficas e didáticas, além de funções morais: em outras palavras, ele é o responsável por elaborar, sistematizar e transmitir idéias e valores

§  A importância da separação entre os dois poderes (o Temporal e o Espiritual) fica bastante evidente aí: se há união entre os dois poderes, as idéias e os valores serão impostos ao público com o peso da lei

o   De um modo geral, podemos dizer que quanto maior a confiança do público no poder Espiritual, maior a liberdade de que goza esse público; ou, dito de outra maneira, quanto mais frágil o poder Espiritual absoluto, mais ele tenderá a buscar o apoio do poder Temporal para ser imposto

§  Como observava Augusto Comte, as crenças absolutas tendem a procurar governos autoritários

-        As crenças teológicas (em particular as monoteístas) são ao mesmo tempo absolutas e fictícias, de tal sorte que elas não são passíveis de comprovação e lidam muito mal com a discussão – embora, por outro lado, de maneira contraditória, na medida em que não são passíveis de comprovação, elas estimulam muito as discussões, que não têm fim

o   Essas características intelectuais da teologia (monoteísta) por si só exigem a constituição de um poder Espiritual organizado, para regular e disciplinar as crenças

-        Durante a Idade Média, as crenças teológicas foram reguladas pela igreja católica, que, por sua vez, gozava de ampla confiança

o   A igreja regulava as concepções, estabelecendo as linhas gerais do que era ou não aceitável

o   Devido às características de ficção e de absolutismo da crença teológica, nos séculos iniciais da igreja houve muitas disputas filosóficas; embora muitas concepções afirmadas baseassem-se no bom senso, na medida em que atrapalhavam a racionalidade do dogma (e o dogma cristão é profunda e necessariamente irracional e confuso), elas foram proscritas – eram as heresias

o   Também há que se notar que os próprios doutores da igreja com freqüência percebiam as dificuldades intelectuais e morais do próprio dogma; por isso, essas dificuldades tinham que ser atenuadas ou simplesmente postas de lado, em particular quando se tratava das aplicações práticas

§  Assim, tinha lugar a “sabedoria prática” de muitos sacerdotes, muitas vezes dos próprios papas

o   Mas, estabelecidas as diretrizes gerais do dogma, ou seja, identificadas e suprimidas as heresias, estabeleceu-se um amplo terreno para discussão e especulação

§  É nesse sentido que Santo Agostinho (354-430) propôs esta bela frase: “No essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”

o   O governo espiritual da igreja dava-se, então, por meio da educação; as interpretações individuais subordinavam-se à interpretação da igreja

§  Nesse sentido também devia ser entendido a fórmula “Extra ecclesiam nulla salus” (“fora da igreja não há salvação”)

o   Por fim, vale notar que o governo espiritual da igreja dava-se também pelo princípio – mais ou menos implícito, mais ou menos explícito – da infalibilidade papal

-        A decadência da ordem católico-feudal conduziu à desmoralização progressiva das concepções teológicas

o   Essa desmoralização foi estimulada por diversos motivos: relativismo intelectual, moral e prático derivado das cruzadas; reintrodução no Ocidente, por intermédio dos árabes, da cultura grego-romana; desenvolvimento das ciências

o   Tudo isso conduziu a uma emancipação mental cada vez mais acentuada

§  A emancipação mental significa deixar de acreditar na divindade e/ou de raciocinar em termos sobrenaturais e extra-humanos

o   A liberdade mental evidentemente aumentou muito nesse sentido

§  Vale notar que apenas a partir daí – da sua decadência – a igreja católica constituiu de verdade o tribunal do santo ofício, isto é, a inquisição

-        O processo de destruição do governo espiritual da igreja foi espontâneo nos primeiros dois séculos da idade moderna, ou seja, nos séculos XIV e XV; a partir do século XVI, ele tornou-se sistemático

o   O processo espontâneo correspondeu diretamente à emancipação mental, ou seja, o ser humano tendeu cada vez mais à “secularização”, à “laicização” mental

o   O processo sistemático assumiu um caráter propriamente destruidor, em que a emancipação tornou-se secundária em relação à destruição

§  Isso fica evidente no protestantismo, cuja preocupação é ser anticatólico em vez de emancipar mentalmente os seres humanos; a liberdade por ele promovido é claramente anárquica

-        Nos dois trechos abaixo Augusto Comte resume esse processo:

o   Citação de “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”[1]:

“Preparada, ou, para melhor dizer, reclamada como indispensável, por esse estado de coisas, a revolução francesa explodiu, e tomou, desde a sua origem, uma falsa direção, havendo destruído a realeza. Não tardou, entretanto, esta última a reconstituir-se, porque, sendo, em França, a cabeça e o coração do antigo sistema, só com ele pode extinguir-se, assim como um sistema não pode ser extinto senão quando outro já existe completamente formado e pronto para substituí-lo.

O resultado final de todo esse grande abalo foi a abolição dos privilégios, a proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência e, por fim, o estabelecimento da constituição inglesa outorgada pelo próprio poder real.

A abolição dos privilégios não fez senão completar a ruína do feudalismo e reduzir inteiramente o poder temporal apenas ao do rei.

A proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência aniquilou completa e irrevogavelmente o poder espiritual[2]”.

o   Citação de “Considerações sobre o poder espiritual”[3]:

“Em todo o curso desse período [séculos XVI a XVIII], que se pode, com todo direito, qualificar de revolucionário, todas as idéias anti-sociais foram agitadas e transformadas em dogmas, a fim de serem empregadas, de maneira contínua, na demolição do sistema católico e feudal, e reunir, contra ele, todas as paixões anárquicas que fermentam no coração humano, e são, nos tempos normais, comprimidas pela preponderância de um regime social completo.

Assim, o dogma da liberdade ilimitada de consciência foi criado, a princípio, para destruir o poder teológico; em seguida, o [dogma] da soberania do povo para derrubar o poder temporal; e, por fim, o [dogma] da igualdade, para dissolver a antiga classificação social, sem falar das idéias secundárias, menos importantes, que constituem a doutrina crítica, dentre as quais cada um procurava demolir uma peça correspondente do antigo sistema político.

[...]

Por uma fatalidade irresistível, os diversos dogmas de que se compõe a doutrina crítica não puderam adquirir toda a energia que lhes era necessária para preencherem completamente seu destino natural, a não ser tomando um caráter absoluto, que os tornou necessariamente hostis, não apenas ao sistema que tinham de destruir, mas relativamente a qualquer sistema social [...]”.

-        A destruição direta da autoridade moral foi necessária: o instrumento intelectual disso foi, justamente, o dogma da liberdade ilimitada de consciência

o   Ao destruir o governo espiritual anteriormente vigente e proclamar a autossuficiência individual, o dogma da liberdade absoluta de consciência estabelece propriamente a anarquia mental, ou seja, a ausência de parâmetros compartilhados e respeitados

§  Na verdade, é pior do que pode parecer à primeira vista, pois esse dogma não apenas estabelece a anarquia mental como postula que a anarquia é o estado normal do ser humano

o   Esse dogma proclama que cada indivíduo é sempre e suficientemente capaz de avaliar qualquer coisa por si só, independentemente de qualquer preparação específica e prévia para isso

o   Em outras palavras, o dogma da consciência ilimitada (ou absoluta) de consciência erige sistematicamente a arrogância em padrão de conduta mental

o   Além de violentamente arrogante e individualista, esse dogma conduz naturalmente à rejeição da confiança mútua: afinal, não há porque os indivíduos confiarem nos demais para afirmarem suas próprias idéias

-        O agente concreto da destruição do antigo poder Espiritual e da afirmação do dogma da liberdade absoluta de consciência foram os protestantismos

o   As supostas inovações de Lutero foram basicamente destruições da autoridade intelectual da igreja; as críticas que ele fez à igreja já tinham sido feitas antes, por outros pensadores seculares ou teológicos, sem compartilharem o caráter destruidor do monge alemão

o   A par do seu caráter destruidor, o protestantismo não afirmou a liberdade de consciência nem a emancipação mental – nem mesmo a liberdade política, como os exemplos de Lutero, Calvino e outros ilustram com clareza

§  Em relação à liberdade política, basta lembrar que Lutero, Calvino e outros foram autoritários, despóticos, tirânicos

o   Ao rejeitar a autoridade da igreja, o protestantismo afirmou o individualismo, a arrogância e a anarquia mental

o   Outra conseqüência da rejeição da autoridade da igreja foi acabar com as interpretações adaptadas à realidade humana, sugeridas pela “sabedoria prática” do clero

§  Em outras palavras, isso consistiu em rejeitar o relativismo prático em favor de um absolutismo teórico (a partir de um literalismo interpetativo da Bíblia)

o   Além disso, ao erigir cada crente em juiz único e autossuficiente para julgar qualquer coisa, o protestantismo substituiu a infalibilidade do papa pela infalibilidade do próprio crente

§  Uma das conseqüências práticas dessas disposições mentais e morais é a multiplicação incessante de seitas protestantes, a olhos vistos mesmo hoje em dia

o   Devemos notar, entretanto, que em termos de apoio a governos despóticos, todavia, alguns protestantes adotaram um comportamento diferente, ao defenderem e constituírem a liberdade espiritual:

§  De modo geral, foram ingleses ou originários da Inglaterra: os niveladores (levellers) de Oliver Cromwell, os quacres, alguns batistas (como Roger Williams, fundador de Rhode Island)

-        Pode parecer que tratar hoje da liberdade absoluta de consciência seja somente uma curiosidade histórica, mas não é

o   Por um lado, a liberdade ilimitada de consciência infelizmente é uma realidade nos dias atuais, seja na permanência fática da anarquia moderna, seja na afirmação da anarquia moderna como um ideal moral e mental (!)

o   Além dos problemas intelectuais, morais e práticos, há ainda concepções que pretendem – erradamente – aproximá-la da ciência

-        Há algumas propostas que afirmam que a ciência moderna baseia-se na liberdade absoluta de consciência

o   Essas propostas, com freqüência e não por acaso, também defendem que a ciência ter-se-ia originado do protestantismo

§  Essas propostas com freqüência são de origem anglossaxônica e/ou protestante; quando não são diretamente anglossaxônicas, são influenciadas fortemente por elas e, de qualquer maneira, são também (ou principalmente) influenciadas pelo protestantismo

o   A ciência exige a confiança mútua, bem como a humildade intelectual; o preceito moral geral do Positivismo, segundo o qual a “submissão é a base do aperfeiçoamento”, é seguida à risca na ciência

§  Na ciência – seja em sua prática cotidiana, seja em suas instituições – também se exige o respeito ao seu caráter coletivo: a sua cumulatividade histórica, a sua cumulatividade teórica, o longo processo de iniciação prática (iniciação científica, graduação, mestrado, doutorado), a opinião compartilhada (bancas de examinação, avaliação por pares)

§  Da mesma forma, e como conseqüência das características acima, não tem lugar na ciência a criticidade corrosiva e sistemática

o   Concepções da ciência que exaltam o individualismo, a criticidade corrosiva, o caráter não cumulativo – concepções, mais uma vez não por acaso, profundamente influenciadas pelo protestantismo – não entendem o que é, como funciona e para que serve a ciência, como nos casos de Karl Popper e Alfred N. Whitehead

o   Um exemplo bastante simples, claro, atual e desastroso de o quanto a ciência repele a liberdade absoluta de consciência são os negacionismos contemporâneos

§  Os antivacinistas atuais, os terraplanistas, os negacionistas do clima e muitos outros: todos eles são pessoas que não conhecem nem entendem a ciência, que no fundo desprezam-na e que, armados apenas de preconceitos (políticos e também teológicos) julgam-se capazes de avaliar todas as questões científicas, mesmo que isso resulte na morte de milhões de concidadãos e de servidores da Humanidade

-        Em suma:

o   A liberdade ilimitada (ou absoluta) de consciência é a pretensão de que cada indivíduo possui condições totais de avaliar tudo e qualquer coisa, independentemente de preparação específica prévia

§  A necessária crítica à liberdade absoluta de consciência não tem nada a ver com a autonomia moral e intelectual de cada um

§  A liberdade absoluta de consciência baseia-se e resulta em graves defeitos morais, a começar pela arrogância e pelo egoísmo, passando pelo absolutismo

§  Em termos sociológicos, a liberdade ilimitada de consciência resulta no que Augusto Comte chamava de “anarquia moderna” (a ausência de parâmetros morais e intelectuais compartilhados e socialmente regulados); essa anarquia vige seja como realidade fática, seja como ideal social e moral

o   O protestantismo de modo geral é o grande promotor dessa atitude

§  O protestantismo reforça a mentalidade absoluta, anti-humana e estritamente individualista; estimula o espírito destruidor; promove a crença da infalibilidade dos crentes: em suma, ele é um dos agentes da anarquia moderna

o   A ciência não se baseia na liberdade absoluta de consciência; bem ao contrário, a ciência exige a humildade intelectual e a confiança mútua

§  Embora, a par da permanência revolucionária e anárquica dos hábitos críticos, o dogma da liberdade ilimitada de consciência infelizmente ainda apresente grande relevância, nos últimos anos ela tem-se reafirmado de maneira desastrosa, como se vê no caso dos chamados “negacionistas”, isto é, de todos aqueles que se julgam capacitados a negar a ciência sem nunca terem estudado nem conhecido de verdade a ciência

·         São os antivacinistas contemporâneos, os negacionistas do clima, os terraplanistas etc. etc.



[1] Augusto Comte, “Segundo opúsculo: abril de 1820 – Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 26-27.

[2] “Esta proclamação tornou impossível o estabelecimento de qualquer autoridade teológica, quer política, quer simplesmente moral; porque, sendo deixadas as crenças ao arbítrio de cada indivíduo, não poderá haver, talvez, duas profissões de fé completamente uniformes, e a de cada indivíduo poderá mudar da manhã para a tarde, seguindo todas as variações inspiradas pelo estado perpetuamente móvel de suas afeições morais e físicas, bem como pelas circunstâncias sociais, igualmente variáveis, nas quais o mesmo indivíduo se encontrará sucessivamente colocado.

Numa palavra, é claro que a liberdade ilimitada de consciência e a indiferença teológica absoluta significam exatamente o mesmo quanto às conseqüências políticas. Em ambos os casos, as crenças sobrenaturais não podem mais servir de base à moral. É um fato que, longe de dever ocultar-se, não se poderia salientar em demasia por provar a necessidade de constituir-se sobre outros princípios positivos (isto é, deduzidos da observação), a moral, que é a base, ou antes, o laço geral da organização social” (nota de Augusto Comte).

[3] Augusto Comte, “Quinto opúsculo: março de 1826 – Considerações sobre o poder espiritual”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 182.

27 abril 2024

Moral pública: não mentir e não trair

O trecho abaixo, escrito por Augusto Comte (1798-1857) no início da undécima conferência do Catecismo positivista (1852), é notável.

Nele, o fundador da Sociologia indica de que maneira deve-se entender o preceito republicano de que a política deve submeter-se à moral: por meio da realização da fórmula “Viver às claras” (“vivre au grand jour”, no original em francês). Essa máxima significa basicamente que todos devemos adotar parâmetros em nossas condutas (sejam privadas, sejam públicas) que possam ser “publicamente confessáveis”, isto é, que possam ser justificadas para o grande público (e, bem entendido, aceitas pelo grande público).

Mas, enquanto no âmbito privado o “público” do “viver às claras” de modo geral corresponde à família, aos amigos e, talvez, aos colegas de trabalho, no âmbito cívico o “público” corresponde ao conjunto da sociedade e à opinião pública. Isso, por sua vez, tem duas conseqüências. No que se refere aos líderes – ou seja, tanto no que se refere aos ocupantes de cargos públicos quanto aos líderes que atuam no chamado “setor privado” –, a sua vida privada deve estar sob escrutínio público; o sentido disso não é para fofocas, intrigas etc., mas para que a sociedade saiba se, como e em que grau os líderes são honestos, são corretos etc. Por outro lado, o “viver às claras” no âmbito público implica duas regras específicas: falar a verdade e cumprir as promessas. Ou, por outra, não mentir e não trair (ou não enganar).

Viver às claras, escrutínio público moral (mas não moralista) da vida privada dos líderes, não mentir, não trair: esses princípios resumem a moral pública. Esses princípios são tão simples e tão importantes quanto são desrespeitados (ou são distorcidos). Além disso, a relevância desse trecho dá-se na medida em que Augusto Comte põe-se frontalmente contra uma certa tradição de pensamento político ocidental, iniciada com Nicolau Maquiavel [1] e que continua desde o século XVI até os dias atuais: é a tradição segundo a qual é errado aplicar parâmetros morais à política, ou, dito de outra maneira, a política não deve se submeter à moral. Sob um rótulo de “cientificidade” que, não por acaso, aproxima-se do cinismo, a proposta de que a política deve ser amoral logo se converte, ou logo se revela, em práticas francamente imorais, justificando mentiras, traições e a famosa “política do poder”, que é a aplicação cada vez mais clara da violência na política (nacional ou internacional). Para quem considera correto separar a política da moral, não deve existir nenhum problema em escândalos de corrupção, assassinatos políticos, brutalidade policial, privilégios político-sociais, parcialidade judicial etc. Para o fundador do Positivismo, tudo isso é altamente problemático e vai contra a verdadeira política republicana, na medida em que nega, ou rejeita, a submissão da política à moral.

Alguns esclarecimentos preliminares antes de citar diretamente Augusto Comte. O trecho abaixo é do Catecismo positivista, que é uma exposição do Positivismo dirigida ao povo, isto é, aos proletários e às mulheres. Essa exposição apresenta-se na forma de um diálogo, ou seja, de uma conversa com aspecto didático, em que o coração sugere as questões e a inteligência responde a elas. (Considerando o aspecto de diálogo do livro, cada capítulo é intitulado como “conferência”, a partir do francês “entretien”; mas poderíamos também traduzir por “diálogo” ou “conversa”.) A tradução que usamos é a de Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, em sua quarta edição, de 1934 (páginas 352 a 355) – edição divulgada na coleção “Os pensadores” –; as duas notas indicadas com asteriscos são da autoria de Miguel Lemos.

O “regime” a que se refere Comte é a parte da religião que trata das relações sociais e da vida concreta, assim como, antes, o “culto” é a parte da religião que sistematiza e estimula os sentimentos; o “dogma” é a parte que trata da inteligência.

Por fim, a “anarquia” a que se refere Augusto Comte no final do trecho corresponde à ausência de parâmetros sociais e morais amplamente compartilhados na sociedade. Para Comte, os grandes e graves conflitos sociais da atualidade têm origem, em última análise, nessa anarquia: as disputas entre revolucionários e retrógrados, as lutas de classe, as lutas de sexo, as lutas “raciais”, os conflitos internacionais. Daí a necessidade de parâmetros humanos, claros, compreensíveis, compartilhados; em outras palavras, daí a necessidade da Religião da Humanidade. 


*          *          * 


A MULHER – Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar para o outro.

O SACERDOTE – [...]

Quanto às disposições da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o Positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o verdadeiro impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno*. No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heróicos antepassados:

La fede unqua non deve esser corratta,

O data a un solo, o data insieme a mille;

.......................

Senza giurare, o segno altro più espresso,

Basta una volta Che s’abbia promesso.**

Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana.


*   *   * 


* Dante, Paraíso, canto último:

Senhora, tão grande és, e tão potente

Que mercês implorar sem teu auxílio

Equivale a querer voar sem asas.

Tua benignidade não sufraga

Somente a orações; mas, com freqüência,

Com generosos dons as antecipa

Em ti misericórdia, em ti piedade,

Em ti munificência se coadunam

E quanto tem mais nobre a criatura

(Tradução de Bonifácio de Abreu.)

 

** Ariosto, Orlando furioso, canto 21, 2ª estância:

A fé nunca deve ser quebrada,

Ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo

.......................

Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso,

Basta ter prometido uma vez.

 



[1] Vale a pena notar que o próprio Maquiavel (1469-1527) foi bastante ambígüo a respeito. Em O príncipe (1513) ele propôs uma política amoral ou mesmo imoral; a partir dessa obra surgiu a tradição a que nos referimos acima. Mas em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1517), ele adotou uma outra perspectiva, afastando-se do amoralismo/imoralismo de O príncipe, ao defender a busca do bem comum, o republicanismo como um regime político bom etc.

17 abril 2024

Valorizar a Idade Média implica ser conservador?

No dia 23 de Arquimedes de 170 (16.4.2024) realizamos nossa prédica positiva. Demos então continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a décima conferência (dedicada ao regime privado) e iniciando a undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão respondemos a uma questão histórica, filosófica, moral e política: valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Q5vGG) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6isxj). O sermão começou aos 47 min 48 s.

As anotações que serviram de base para exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *

Valorizar a Idade Média implica ser conservador? 

-        A questão que intitula este sermão pode parecer curiosa, surpreendente e até meio deslocada: de onde teria saído essa relação entre Idade Média e conservadorismo? Aliás, por que isso seria importante?

o   De fato, essa não é uma questão evidente, nem é evidente as suas respostas, mas, ainda assim, ela é importante e tem grandes conseqüências intelectuais, morais e práticas

-        Por que essa questão apresenta-se? Na verdade, quem a formulou?

o   Há diversos críticos do Positivismo – e mesmo algumas pessoas próximas a ele, não raras vezes católicos – que afirmam que a valorização da Idade Média por Augusto Comte implica a valorização das concepções católicas e, portanto, implica um claro conservadorismo

§  Vale realçar: essa crítica é feita mesmo por autores católicos – que, de maneira incoerente, buscando criticar o Positivismo, não hesitam em criticar o catolicismo

§  A noção de “conservador”, aqui, significa “retrógrado” e/ou repressor, favorável à censura, autoritário, fanático, intolerante.

o   De maneira implícita (mas muitas vezes explícita) está o raciocínio de que ser “progressista” implica desvalorizar a Idade Média e/ou valorizar a Antigüidade e/ou a modernidade

o   Também está implícita a concepção de que a Idade Média teria sido a “noite dos mil anos”, um longo período de fanatismo e barbárie

§  A concepção da “noite dos mil anos” é defendida não somente pelos “progressistas” anti-históricos como, não por acaso, pelos anglossaxões (ingleses e estadunidenses em particular), que adotam uma visão protestante e anticatólica da Idade Média

o   Em suma: como Augusto Comte valorizou a Idade Média, ele teria valorizado a barbárie, o fanatismo, a estupidez etc., assim como teria desvalorizado o progresso, as luzes, o esclarecimento etc.

§  De maneira implícita, Augusto Comte também teria valorizado (ou defendido) algum “autoritarismo”

·         Essa valorização (ou defesa) de “autoritarismo” ocorreria porque a valorização da Idade Média, por Augusto Comte, ocorreu a partir da leitura dos autores católicos José de Maistre e Luís de Bonald

o   Comte valorizava em De Maistre a atuação do papado (e, de modo geral, do sacerdócio) como intermediário moral das relações sociais medievais, não o irracionalismo teológico nem o despotismo político

·         A associação maliciosa entre Comte e De Maistre-De Bonald foi afirmada, por exemplo, pelo ex-frade Roberto Romano – que, não por acaso, sempre fingiu ignorar que Augusto Comte valorizava Diderot, D’Alembert, Condorcet etc. e que (como veremos longamente abaixo) a opinião de Comte sobre a Idade Média era qualquer coisa menos “acrítica”

-        Para limpar o terreno e responder com clareza à pergunta inicial (“valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?”):

o   Augusto Comte afirmou: Trata-se sobretudo, no fundo, de incorporar intimamente ao Positivismo, com melhoramentos radicais, tudo quanto o sistema católico da Idade Média pode realizar ou sequer esboçar de grande e de terno” (Correspondência Sagrada, 32ª carta, de Augusto Comte a Clotilde; de 5 de agosto de 1845[1])

-        Qual a importância, no âmbito do Positivismo, da valorização da Idade Média?

o   São vários os sentidos; podemos indicar os seguintes: (1) afirmação da continuidade humana, com o vínculo entre a Antigüidade e a modernidade; (2) estabelecimento do terceiro termo do progresso; (3) desenvolvimento moral, após os desenvolvimentos intelectual e social

o   Talvez o aspecto mais importante seja a afirmação da continuidade humana, com todas as conseqüências disso

§  A noção de continuidade humana indica que a Idade Média seguiu-se de maneira orgânica à Antigüidade e que dela seguiu-se a Idade Moderna

§  Lembremos que a reação à decadência do catolicismo, a partir do século XIV, passou a desvalorizar a Idade Média com a noção de “renascimento”

§  Essa concepção foi entronizada mesmo por autores que afirmaram o progresso humano, como no caso exemplar de Condorcet e seu “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”

o   Reafirmada a continuidade humana, Augusto Comte estabelece que a Idade Média é o terceiro termo de uma série progressiva

§  Uma progressão, ou, em todo caso, uma série qualquer só pode ser estabelecida quando há três termos; assim, para que fosse possível realmente afirmar o progresso humano, a partir do caso exemplar do Ocidente, a apreciação da Idade Média era necessária

o   Deixando de lado as concepções segundo as quais a Idade Média foi uma “noite de mil anos”, o seu duplo aspecto católico-feudal constitui para Augusto Comte o desenvolvimento moral, com conseqüências sociais bem marcadas

§  Assim como a Idade Média correspondeu ao desenvolvimento moral, a Grécia correspondeu ao desenvolvimento intelectual e Roma, ao desenvolvimento prático

o   Algumas citações interessantes:

§  Comenta o Prof. David Carneiro (Civilização católico-feudal, São Paulo, Athena, 1940; p. 125): “Foi Augusto Comte quem veio mostrar, contrariando os seus precursores sociológicos, que a Idade Média não constituía rotura da continuidade humana e que emanava do regime precedente; que a sua função era provisória e não definitiva e que enfim a Idade Moderna proveio da Idade Média”

§  Frederic Harrison (em The New Calendar of Great Men, 2ª ed., MacMillan, London, 1920; p. 273) resume da seguinte maneira as missões da Idade Média:

 

 

Missão

Agente principal

1)                   

Purificar e disciplinar as mais ferozes paixões humanas, especialmente a desumanidade, o orgulho e a luxúria

Igreja Católica

2)                   

Como meio e corolário da missão anterior, elevar a posição da mulher

3)                   

Proteger os fracos, dignificar a gentileza e elevar o valor da natureza humana

4)                   

Suprimir a prevalência da guerra universal e transformar a guerra de conquista em guerra de defesa

Feudalidade/cavalaria

5)                   

Estabelecer verdadeiros governos locais, sob a sanção de deveres recíprocos, em vez da submissão a um império centralizado

6)                   

Suprimir a escravidão e fundar a instituição do trabalho livre

 

§  Ainda observa Harrison: “O resultado foi atingido, é verdade, muito imperfeitamente: com muita confusão, crueldade e loucura; mas também com magníficos heroísmo e autodevotamento. Se em última análise [o esforço da Idade Média] foi um fracasso, isso ocorreu porque o sucesso era impossível com tão limitado conhecimento e falsas idéias. Mas ela foi o ponto de virada da história; foi a transição cardeal e produziu algumas grandes coisas que nunca foram vistas na Terra antes ou desde então. As memórias amargas que seus fracassos deixaram são devidas a isto: que nunca se reconheceu quão inteiramente provisório ela foi” (p. 273).

o   Em suma: a valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos: (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna) e (2) desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

o   Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso

§  O progresso aí é tanto o desenvolvimento do ser humano quanto a regulação dos atributos humanos

§  Para quem conhece o Positivismo e a Religião da Humanidade, é tão evidente que chega a ser escandaloso que digam ou sugiram o contrário, mas, ainda assim, é necessário reafirmá-lo: todo progresso implica, como pré-condição, a liberdade, que, aliás, é condição da ordem e não do progresso

-        A valorização da Idade Média e da continuidade histórica não é algo secundário, não é detalhe nem é mero ornamento:

o   O Positivismo não pode desprezar ou negligenciar as religiões preliminares, devendo incorporar seus avanços: “o Positivimso não poderia ser a verdadeira religião se ele não pudesse sempre aceitar plenamente a sucessão do teologismo, e mesmo do fetichismo, que devem ser, em todos os aspectos, os seus precursores naturais ” (Política[2], II, p. 346)

o   Nesse sentido, vale lembrar adicionalmente que há um impulso contemporâneo em favor da valorização de todas as religiões e perspectivas; esse impulso tem um aspecto multicultural e, nesse sentido, é pleno de problemas e incoerências, mas, de qualquer maneira, ele visa a de fato fazer respeitar todas as religiões: em face desse impulso, por que estaria errado o Positivismo?

-        Exposta a parte negativa deste sermão (em que demonstramos que é falsa e de má fé a acusação de conservadorismo feita a Augusto Comte devido ao seu elogio da Idade Média), podemos passar para a parte positiva do sermão, examinando rapidamente como de fato Augusto Comte apreciava a Idade Média

o   Faremos na seqüência várias citações indiretas de Augusto Comte, tanto para apresentar o seu pensamento a respeito da Idade Média quanto para indicar o quanto é errada e maliciosa a crítica de que o Positivismo seria conservador ao avaliar a Idade Média

-        Em primeiro lugar, Augusto Comte considera que a Idade Média durou 900 anos, entre os séculos V e XIII, ou, grosseiramente, entre os anos 400 e 1300

o   A Idade Média divide-se, então, em três fases, cada uma de três séculos de duração:

§  “Estabelecimento fundamental”[3]: dispersão política, com ênfase na autonomia local; séculos V a VII

§  “Guerras defensivas contra os politeístas do Norte e sua incorporação pela força e pela religião”[4]: coordenação central: séculos VII a X

§  “Guerra defensiva contra o monoteísmo islâmico, em que há o estabelecimento do papado como maior poder e em que o poder temporal se distingue do espiritual”[5]: conjugação da autonomia local com a coordenação central: séculos XI a XIII

-        Como vimos, a Idade Média apresentava um duplo aspecto: o católico e o feudal

o   Ambos esses elementos foram responsáveis por um dos mais importantes resultados da Idade Média: a preponderância dos sentimentos sobre a ação e sobre a inteligência (Apelo[6], p. 30)

o   Cada um desses elementos foi o responsável principal – mas não único, nem exclusivo – por alguns desenvolvimentos ocorridos durante o período

o   A ação do catolicismo deveu-se em parte à sua doutrina, mas em parte muito maior à ação de seu sacerdócio

§  A doutrina católica foi importante para a afirmação do universalismo doutrinário; para a afirmação direta da moralidade humana; de maneira um tanto confusa, para a separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  A emancipação feminina e a valorização das mulheres; a emancipação dos trabalhadores; a adoçamento dos hábitos; a separação entre os dois poderes: isso foi obra do sacerdócio

·         Como observa Augusto Comte, a sabedoria prática do sacerdócio, a começar pelo papado, foi a principal responsável por alguns dos mais importantes progressos ocorridos na Idade Média

·         O sacerdócio, além disso, foi o responsável pela aplicação atenuada, racional e relativa do dogma católico; sem essa sabedoria prática, o dogma seria aplicado em sua inteira irracionalidade, com os previsíveis piores resultados possíveis (como, diga-se de passagem, em escala muito aumentada e piorada, vê-se hoje em dia)

§  Outros aspectos importantes sobre a ação social e moral do catolicismo indicados por Augusto Comte, em particular em relação às limitações e aos defeitos da doutrina católica:

·         A moral universal baseada nos deveres é instituição católica (Política, II, p. 120)

·         A transição realizada pelo Positivismo visa a reconstruir, melhor que na Idade Média, a República Ocidental (Política, IV, p. 501)

·         O catolicismo fez prevalecer a repressão do egoísmo, mas o desenvolvimento do altruísmo é mais eficaz, pois a melhor restrição de um impulso é o desenvolvimento de seu antagonista, como feito pela cavalaria na Idade Média (Política, IV, p. 282)

·         O catolicismo não produziu as mudanças medievais, mas apenas as consagrou (Política, II, p. 109)

·         O catolicismo é incapaz de regular a vida pública, limitando-se à doméstica (Política, II, p. 112)

·         Na Idade Média, embora a vida privada fosse regrada pelo viver às claras, a vida pública continuava regrada pelos mistérios e pelas intrigas (Política, IV, p. 460)

·         Além disso, há a necessidade de uma concepção geral do futuro para que se possa efetivamente viver às claras – algo que só o Positivismo pode fazer (Política, IV, p. 460)

·         O catolicismo foi contraditório ao querer sistematizar a moral mas retirando o homem do mundo (Apelo, p. 30-31)

·         O Positivismo deve reparar os estragos católicos, em particular ao afirmar a existência natural do altruísmo (Apelo, p. 31)

§  Retomando o tema da crítica católica à valorização positivista da Idade Média:

·         No final das contas, isso não é casual

·         Vale notar que foram as reflexões da reação católica à Revolução Francesa que permitiram a Augusto Comte apreciar a Idade Média (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[7], p. 421)

o   Mas – o que é notável e que era notável no século XIX como, de modo geral, ainda o é hoje em dia – o Positivismo faz mais justiça a De Maistre que o catolicismo (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, p. 87)

o   O Positivismo é a única religião capaz de glorificar sem incoerência todas as etapas preliminares da Humanidade (Apelo, p. 85-86)

o   Ainda assim, os retrógrados (e os revolucionários) são ingratos em relação ao Positivismo, não retribuindo a justiça praticada pela religião positiva (Apelo, p. 86)

o   O Positivismo deve obter apoios entre os retrógrados, desde que isso não seja entravado por fanatismos que realcem os meios em vez dos fins (Apelo, p. 86)

o   A retrogradação não possui nunca um caráter orgânico (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados são contraditórios, pois exigem a unidade mas não cumprem as suas principais condições da unidade (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados concebem o século XIX isolando-o do século XVIII, assim como concebem a Idade Média sem a filiar à Antigüidade: sem considerarem a totalidade histórica (ou seja, do passado), são incapazes de conceber o futuro e elaboram uma síntese parcial, local e temporária (Apelo, p. 89)

·         A anarquia metafísica nega a influência histórica (Apelo, p. 43)

·         O espírito revolucionário devastou o sentido de continuidade, especialmente a partir da Idade Média e em relação a ela (Apelo, p. 43)

·         O catolicismo negou a continuidade, ao repudiar seus antecessores (Apelo, p. 44)

·         O catolicismo é tão culpado disso quanto o protestantismo ou o deísmo, pois foi o primeiro a romper a cadeia da continuidade, ao negar seus antepassados antigos (Política, IV, p. 371)

·         Depois do catolicismo, foram os protestantes e os deístas que negaram seus antecessores, cometendo a mesma injustiça em relação ao catolicismo que este cometera em relação ao seu próprio passado (Apelo, p. 44)

·         A Idade Média tendia, em termos espirituais (catolicismo), para a teocracia, ao passo que, em termos temporais (feudalidade/cavalaria), tendia para a modernidade (Apelo, p. 47)

·         Os únicos que são capazes de compreender a Idade Média são os positivistas, ao ligá-la aos seus antecedentes e aos seus sucessores (Apelo, p. 95)

o   O elemento feudal desenvolveu outros traços importantes:

§  Desenvolveu a cavalaria e os hábitos sistemáticos de gentileza, cuidado com os fracos e os pobres, veneração e dedicação às mulheres

§  Também desenvolveu o governo local, com a necessária coordenação com o poder central

·         Esse traço, importante por si só, também resultou em hábitos de autogoverno e na chamada “emancipação das comunas”, que foram os germes das cidades industriais e republicanas posteriores

-        Sobre a cavalaria, Augusto Comte observa o seguinte:

o   O catolicismo desenvolveu a pureza, mas foi a cavalaria que desenvolveu a ternura (Apelo, p. 53-54)

o   A cavalaria é que operou empiricamente a conciliação entre a espiritualidade católica e a temporalidade feudal (Apelo, p. 94)

o   O impulso regenerador da cavalaria foi interrompido bruscamente pelo protestantismo (Apelo, p. 117)

§  Os ideais cavaleirescos ainda eram vivos e pulsantes no século XVI, como ilustra a vida e a atuação de Pierre Terrail, o Cavaleiro Baiardo (1473-1524)

o   A cavalaria manteve e desenvolveu o preceito de subordinar dignamente a vida privada à pública, como indicado pela Antigüidade (Política, IV, p. 292)

o   Inácio de Loiola buscou retomar os esforços da cavalaria, além do culto à Virgem; mas seus esforços fracassaram e sua tentativa transformou-se em uma hipocrisia opressiva e degradante (Apelo, p. 117)

o   Vale lembrar que os cruzados (atuantes na terceira fase medieval) paulatinamente substituíram a ficção extra-humana de deus pela idealização humana da Virgem Maria (Apelo, p. 118)

o   Uma prova de que o culto da Virgem Mãe é mais devido à ternura feudal que à pureza católica é o fato de ele não se ter desenvolvido entre os bizantinos, a despeito da identidade doutrinária (Política, IV, p. 412)

o   Sem o instinto cavalheiresco, isto é, sem a atuação da cavalaria, a Idade Média teria entravado o dogma do Grande Ser (Apelo, p. 37-38)

-        Em suma:

o   A valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos:

§  (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna)

§  (2) Desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

§  Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso, não no do “conservadorismo”

§  A valorização da Idade Média por Augusto Comte implicava necessariamente a seleção dos aspectos positivos desse período, que devem ser incorporados com “melhorias radicais”

o   A Idade Média constituiu-se pela fusão do catolicismo e do feudalismo

§  O catolicismo teve aspectos positivos principalmente devido à atuação prática do seu sacerdócio, que regulou principalmente a vida privada e estimulou a pureza (a contenção, ou, no caso, a repressão do egoísmo)

§  O feudalismo teve efeitos positivos principalmente devido à cavalaria, estimulando a ternura (o estímulo direto do altruísmo) e subordinando a vida privada à vida pública

 



[1] Ver também, de R. Teixeira Mendes, O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900), p. 295.

[2] Augusto Comte, Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929.

[3] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[4] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[5] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[6] Augusto Comte, Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899.

[7] Augusto Comte, Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme, in: Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929, v. I.