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19 dezembro 2023

Progresso versus cinismo

No dia 17 de Bichat de 169 (19.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime positivo).

No sermão abordamos a oposição entre a esperança vinculada ao progresso e o cinismo atual, buscando responder a uma questão ao mesmo tempo moral, intelectual, sociológica e histórica: como é que se passou da nobre e elevada esperança no aperfeiçoamento humano, vigente no século XIX, para o cinismo atual?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/W1qy7) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6rird). O sermão começou em 1h.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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Progresso versus cinismo  

-        Hoje em dia, no início do século XXI, quando lemos Augusto Comte e os demais positivistas que escreviam no século XIX e início do século XX, dois aspectos surgem com grande clareza:

o   Por um lado, uma grande esperança no ser humano, no aperfeiçoamento das condições da humanidade (materiais, físicas, intelectuais e morais); essa esperança era sintetizada na noção de “progresso”

o   Por outro lado, seguindo o espírito da nossa época, quase instintivamente temos a impressão de que essa esperança mantida no século XIX era “ingênua”, da mesma forma que consideramos que seria mais “correta” uma perspectiva mais ressabiada, ou melhor, mais cínica

o   Entretanto, não há motivo nenhum para seguirmos o atual espírito da época e considerarmos que a esperança e o progresso do século XIX são ingênuos e, daí, desprezíveis

-        A respeito da esperança e do progresso afirmados pela Religião da Humanidade:

o   Afirmam a afetividade humana, o altruísmo, a possibilidade e a necessidade de conhecimento científico da realidade e do ser humano;

§  Afirmam esses conhecimentos a partir do relativismo e do historicismo, valorizando sempre a subjetividade humana

o   Também estabelecem um critério geral de moralidade (o estímulo ao altruísmo e a compressão do egoísmo), que ultrapassa o individualismo egoístico próprio às teologias e às suas metafísicas derivadas e que afirma a noção de dever acima da de direito

o   Afirmam que a paz, a fraternidade, o altruísmo, a colaboração surgem necessariamente da evolução histórica

§  Esses traços, de qualquer maneira, correspondem a tendências gerais, comportando variações e flutuações ao longo do tempo

§  Assim, não há motivo para supor que essas variações e flutuações correspondam à negação do progresso

o   Como observava Augusto Comte, o progresso é mais subjetivo que a ordem (ou seja, é mais diretamente relativa à realidade humana) e abarca aperfeiçoamentos em diversos âmbitos: material, físico, intelectual e, acima de tudo, moral

-        É importante considerarmos o que aconteceu nesse período, isto é, entre meados do século XIX e este início do século XXI:

o   Em termos afetivos, houve o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade entre o final da década de 1840 e meados da de 1850, sistematizando tendências amplas e gerais da humanidade e fortalecendo laços fraternos e altruístas entre povos, classes e grupos variados sobre bases reais

§  O desenvolvimento simultâneo de perspectivas internacionalistas e particularistas, às vezes com sobreposição, às vezes com distanciamento entre elas:

·         O internacionalismo é a afirmação de perspectivas internacionais, de concórdia entre nações (às vezes, equivocadamente, de fim das nações)

·         Os particularismos assumiram formas variadas:

o   Os nacionalismos, às vezes xenofóbicos, mas inicialmente como movimentos de afirmação das nações contra os grandes impérios coloniais,

o   A perspectiva de classe, especialmente do proletariado, contra a burguesia e contra o capital

§  Por vezes o particularismo de classe manifestou-se contra as nações, mas muitas vezes ele foi a favor de nações proletárias

§  Em todo caso, com gigantesca freqüência, o particularismo proletário serviu de apoio, mesmo de desculpa, para movimentos de independência nacional

o   Houve formas especialmente mesquinhas e agressivas de particularismos sobre outras bases, como no caso dos racismos antissemita e de vários outros

·         Citamos aqui os particularismos negativos porque eles tiveram uma terrível importância durante 30 anos no século XX

o   Indiretamente, esses particularismos negativos serviram para evidenciar que eles, na medida em que são particularismos, não servem para fundar sociabilidades maiores, que são as sociabilidades próprias à sociedade pacífica e industrial

o   Em termos intelectuais, podemos indicar o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade, sistematizando o conhecimento humano e permitindo e realizando a regularização e a moralização desses conhecimentos (ciência, filosofia, religião, arte, atividades práticas) em bases reais, humanas e relativas

§  Apesar desse importante acontecimento, a ciência continuou com seu impulso absoluto, indiferente à sua destinação humana

§  Ao mesmo tempo, tendências metafísicas particularistas ganharam espaço:

·         A psicanálise de Freud baseou-se no misticismo e na metafísica alemãs para tentar explicar a subjetividade humana, mas, além dos danos mentais causados em si pela metafísica, as noções de pansexualismo e de inconsciente estimularam, como estimulam, a desconfiança no ser humano

·         O marxismo, com suas infinitas correntes propositalmente “críticas”, estimulou (como estimula) o ódio entre as classes e os países e, daí, considera que tudo o que não é “proletário” é vil, enganador, mentiroso; além disso, a equívoca noção de “materialismo histórico” nega a realidade da moralidade

o   O marxismo é ambíguo a respeito da natureza humana: genericamente o ser humano é bom, mas só após a revolução comunista essa bondade manifestar-se-á

o   As desconfianças, o padrão crítico, o grande esquema histórico baseado na luta de classes: isso e muito mais serve de exemplo permanente para outros movimentos metafísicos e críticos, como o identitarismo negro de origem estadunidense e, ainda mais, o identitarismo feminista

·         Concepções irracionalistas, por vezes mais próximas da poesia e do misticismo que da ciência e da filosofia (como Nietzsche), além de concepções anticientíficas (como as de Bergson e de Max Weber) rejeitaram a possibilidade de estudos científicos do ser humano e de filosofias gerais (e relativistas e humanas) sobre a realidade

o   Muitas dessas concepções irracionalistas (incluindo aí nacionalismos e preconceitos de raça), não por acaso, nega(va)m a paz e estimula(va)m a violência e/ou o culto à violência

o   Em termos práticos, tivemos o seguinte:

§  Além dos amplos, gerais e consistentes esforços dos positivistas em todo o Ocidente em favor da paz, da concórdia, da fraternidade internacional e interna aos países, houve inúmeros movimentos pacifistas, internacionalistas, pela regularização das relações industriais etc.

·         Podemos incluir aí alguns grupos anarquistas, vários movimentos socialistas e mesmo alguns movimentos teológicos sensíveis às condições de vida dos trabalhadores e das sociedades modernas

·         Os nacionalismos de independência, de modo geral, também atuaram no sentido de melhorar as condições de vida, ao afirmarem o respeito às particularidades culturais locais

§  Ocorreu também a difusão do republicanismo, ou seja, da perspectiva humana e meritocrática na política, incluindo aí o estabelecimento da separação entre igreja e Estado

§  Uma prática internacional baseada na diplomacia de segredos (Bismarck) e da corrida colonial de prestígio

§  Afirmação de certos hábitos mentais e práticos burguesocráticos

o   Em suma: ao longo do século XIX tivemos grandes e importantes desenvolvimentos da Humanidade, ou seja, na direção da positividade, ao mesmo tempo que tendências metafísicas, críticas e destruidoras mantiveram seus ímpetos

o   O grande período de clivagem é a I Guerra Mundial (1914-1919), ou melhor, a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945)

 

Os trechos abaixo, destacados em caixas, foram omitidos em linhas gerais na exposição oral da prédica, pois alongariam demais essa exposição oral; ainda assim, são observações úteis para a presente reflexão e, portanto, mantêm-se nestas anotações.

§  A II Guerra dos 30 Anos é composta por três fases: I Grande Guerra (1914-1919), Período de Paz Armada (1919-1939) e II Grande Guerra (1939-1945)

§  Para o que nos interessa, os períodos mais importantes são o da I Grande Guerra, que matou gerações de positivistas, e o Período da Paz Armada, que estimulou e deu livre curso às piores tendências negativas anteriores a 1914 (nacionalismo xenofóbico, irracionalismo, culto à violência, preconceitos de raça etc.)

·         A I Guerra apresentou uma dinâmica nova, em que os soldados ficavam meses a fio nas trincheiras, sob a tensão constante dos combates, sujeitos a ataques violentos e muito agressivos

·         Essas tendências, como se sabe, consubstanciaram-se em movimentos sociais como o comunismo (com as Revoluções Russas em 1917), o fascismo (com a Marcha sobre Roma, em 1922), o nazismo (desde 1922, no poder desde 1933) e diversos outros movimentos autoritários (Frente Nacional na França, franquismo na Espanha, Estado Novo em Portugal etc.)

·         Esses movimentos, devido a seus conteúdos, na esteira da violência da I Grande Guerra, puseram em suspeição as liberdades, o ideal de fraternidade etc.

o    O mundo não ficou incólume a isso: no Brasil tivemos a crítica à I República transformando-se em crítica degradante ao republicanismo; houve o elogio mundial ao autoritarismo; o Japão deu livre curso ao seu violento imperialismo no Leste Asiático etc.

·         A II Grande Guerra, além da sua violência própria, deu lugar ao chamado “Holocausto”, com o genocídio praticado em escala e com métodos industriais

-         A II Guerra dos 30 Anos estimulou movimentos irracionalistas, autoritários, genocidas etc.; mas, no final das contas, foi um longo e dolorosíssimo interregno entre aspirações altruístas, fraternas, pacifistas etc.

o    Um pequeno indicador desse caráter de interregno é a constituição da Organização das Nações Unidas logo em seguida ao conflito e cuja fundação foi acertada pelo menos desde o ano anterior ao término da guerra

-         Com o término da II Guerra dos 30 Anos, alguns movimentos positivos voltaram à ação; mas, ao mesmo tempo, elementos críticos também mantiveram seu curso

o    Um pouco do sentimento de esperança vigente antes da II Guerra dos 30 Anos foi recuperado após o conflito: novamente, a fundação da ONU e do sistema ONU é parte disso, assim como outros movimentos que tiveram lugar nas décadas seguintes: o reconhecimento e o repúdio aos crimes do nazismo; o desenvolvimento do Welfare State; o impulso para o desenvolvimento econômico e social; mais importante, a descolonização da África e da Ásia (iniciada em 1947 com a independência da Índia)

o    A Guerra Fria (1947-1991), baseada na disputa entre Estados Unidos e União Soviética, refletindo uma oposição ao mesmo tempo geopolítica e “ideológica”, teve um caráter ambígüo em termos da esperança e do progresso:

§  Por um lado, os países-líderes difundiam a esperança nas próprias perspectivas (limitadas em si mesmas) e degradavam as perspectivas rivais

§  Por outro lado, o aspecto de guerra por procuração entre as superpotências conduziu a uma instabilidade marcada nos países periféricos, que, a partir dos anos 1950, logo se converteu em golpes militares

§  O advento da televisão, da mentalidade “pós-materialista” no Ocidente e de guerras que se tornaram cada vez mais difíceis de serem justificadas (Vietnã para os Estados Unidos, Afeganistão para a União Soviética, mesmo Vietnã para a China) minaram a confiança internacional nas superpotências

o    Alguns outros aspectos podem ser indicados:

§  A reflexão sobre o Holocausto conduziu muitas pessoas a decretarem, pura e simplesmente, que a esperança na Humanidade e que a noção de progresso são ilusões, que devem ser descartadas e substituídas por um severo “realismo” – que, no final das contas e na prática é muito próximo do cinismo

§  Além disso, a partir dos anos 1960 a chamada “contracultura”, que já vinha desde a década anterior, atuou sistematicamente para minar todos os valores do Ocidente, evidenciando o caráter metafísico do seu irracionalismo, do seu amoralismo e da violenta ruptura entre gerações

§  O marxismo manteve sua atuação crítica, por meio de suas inúmeras metamorfoses, pró, anti, cripto ou parassoviéticas, mas todas elas afirmando os aspectos metafísicos dessa filosofia: a luta de classes e a desconfiança social erigida em princípio normativo, a degradação da moral via sua redução a interesses de classes, a rejeição de toda concepção que não seja marxista (ou que não seja da própria seita), o particularismo proletário-marxista – além do culto à violência, presente hipocritamente em Marx e repetido de diversas maneiras em muitas das suas seitas derivadas

-         O fim da Guerra Fria deu novo alento à noção de progresso, mas sua vinculação à metafísica triunfalista do liberalismo dos EUA, somada à crítica metafísica marxista, conduziu a um novo descrédito da noção de progresso e da esperança

-         Nas últimas duas décadas, duas correntes metafísicas têm tido grande sucesso, ambas contrárias à esperança e ao progresso:

o    A metafísica mística do tradicionalismo, altamente retrógrada e vigente, por exemplo, no Leste Europeu e na Rússia

o    A metafísica irracionalista, agressiva e particularista do identitarismo, que se difunde a partir dos Estados Unidos e, graças ao servilismo intelectual próprio às “elites” intelectuais brasileiras, tem tido grande sucesso em nosso país

 

-        A maior parte deste relato foi uma exposição histórica de como a bela idéia do progresso atuou no século XIX e no começo do século XX, mas viu-se combatida e combalida no século XX, com uma seqüência no século XXI

o   Os problemas enfrentados por essa concepção ligam-se, então, a movimentos autoritários, violentos, (ir)racionalistas do começo do século XX, bem como ao impulso irracionalista e crítico de intelectuais, a maior parte dos quais são academicistas

o   Aqui é necessário afirmar com clareza: os hábitos academicistas estimulam a criticidade antiprogressista e antiesperançosa como virtude moral e intelectual, como suposta marca de superioridade intelectual

§  Essa criticidade pode ser vista na metafísica dos marxistas e também na metafísica dos místicos

-        Entretanto, ninguém – ninguém! – vive sem esperança, ao mesmo tempo em que todos – todos! – alimentam noções de progresso

o   A esperança e o progresso são alimentados por todos mesmo que só de maneira implícita, muitas vezes sem que reconheçam (mesmo para si próprios) essas concepções

o   Todos afirmamos a esperança porque todos precisamos considerar que as coisas vão melhorar; assim, essa é uma questão de saúde mental

o   A noção de que as coisas vão melhorar implica, necessariamente, a noção de progresso, isto é, de desenvolvimento e de aperfeiçoamento material, físico, intelectual e moral

o   Só é possível haver progresso a partir das leis naturais, do relativismo, do subjetivismo, do historicismo próprios à Religião da Humanidade

§  Assim, só é possível haver esperança verdadeira nos quadros do Positivismo

-        No século XIX Augusto Comte reconhecia a validade moral, intelectual e mesmo artística das utopias

o   Na verdade, Augusto Comte afirmava mesmo que as utopias são um gênero literário moderno!

o   Nas últimas décadas – talvez desde os anos 1970 – em vez de utopias o que temos são as chamadas “distopias”

o   As “distopias” são idealizações invertidas, em que não se apresentam quadros da boa sociedade, mas das más sociedades

o   As distopias são produzidas por estúdios de cinema e TV que querem ganhar muito dinheiro com a degradação humana e são consumidas avidamente pelo Ocidente e, daí, pelo resto do mundo

§  Deveria ser evidente – mas a indústria cultural finge que não é – que as distopias alimentam o cinismo, a desconfiança, o isolamento, o egoísmo, o irracionalismo, o imoralismo

o   Assim, é necessário – com urgência e convicção – deixarmos de lado as degradantes "distopias", que no final servem apenas para a “indústria cultural capitalista”, e retomarmos as utopias

o   A retomada das utopias vincula-se intimamente à retomada das noções de esperança e de progresso

§  A retomada dessas noções fará bem para a saúde mental de cada um de nós; dará uma destinação social e altruísta clara para cada um nós; permitirá que os urgentes problemas sociais que vivemos sejam solucionados (ou, pelo menos, encaminhados)

05 dezembro 2023

Sobre razão e fé para o Positivismo

No dia 3 de Bichat de 169 (5.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (agora em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a famosa oposição, de origem teológica, entre "fé" e "razão".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/A7KaN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/U4ucH). O sermão começou em 45 min 31 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão estão reproduzidas abaixo.

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N. B.: nas anotações originais e, daí, na exposição oral fizemos duas pequenas confusões. Augusto Comte retoma a oposição entre fé e razão, mas sua abordagem muda a razão pelo amor; além disso, no que se refere ao Catecismo positivista, essa oposição encontra-se na terceira conferência, dedicada ao conjunto do culto, e não na segunda conferência (dedicada à teoria da Humanidade), como sugerimos ao vivo. Esses dois lamentáveis equívocos ocorreram porque os sermões são, quase sempre, elaborados  sem consulta direta às obras de Augusto Comte para as citações: como é comum a memória trair-nos, tivemos esses problemas no presente caso. Apesar desses dois equívocos, a argumentação apresentada não sofreu grande alteração, sendo necessário fazer apenas algumas modificações tópicas. Por fim, incluímos também os interessantes comentários que nosso amigo Hernani Gomes da Costa teceu logo após a prédica, em caráter privado, via Facebook.

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Sobre razão e fé 

-        Um dos temas mais abordados quando falamos de “religião” é a famosa oposição entre “razão” e “fé”

o   Essa dicotomia opõe a inteligência, o raciocínio, à crença em alguma coisa

§  No âmbito da “razão” também entra o conhecimento empírico (embora a razão, por si só, seja apenas o raciocínio, isto é, a atividade cerebral)

o   Essa dicotomia foi elaborada já nos primórdios do catolicismo (Santo Agostinho empregou-a), mas foi retomada e assumiu maior importância após a Idade Média, na decadência do catolicismo, e representa o caráter cada vez mais inaceitável dos dogmas teológicos

o   No âmbito da teologia, especialmente do monoteísmo, na medida em que, fatalmente, instala-se o conflito entre fé e razão, apenas duas soluções são possíveis:

§  (1) ou a razão é sacrificada pela fé, instaurando-se às claras o irracionalismo

§  (2) ou postula-se que fé e razão têm “domínios separados” e que seria possível pensar de maneira positiva e “crer” de maneira teológica

·         Esta segunda possibilidade instaura também um irracionalismo, mas disfarçado de solução filosoficamente aceitável

·          De qualquer maneira, a “solução” dos dois domínios rompe claramente com qualquer possibilidade unidade cerebral e, portanto, de harmonia humana

-        De uma perspectiva positiva, considerando os termos propostos pela teologia, a dicotomia entre razão e fé não faz sentido e não é aceitável:

o   A “fé”, ou seja, o ato da crença não pode ser desvinculado do conteúdo da crença, ou seja, da “razão”

o   Dessa forma, a fé tem que ser compatível com a razão: isso só é possível se a razão prover o conteúdo da fé

-        Augusto Comte retoma parcialmente essa dicotomia (por exemplo, na terceira conferência do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do culto):

o   Ao retomar essa dicotomia, Augusto Comte muda os termos, de razão e fé para amor e fé

o   A. Comte considera que a fé consiste na inteligência (o que, portanto, incorpora a razão na dicotomia anterior); por sua vez, o amor desdobra-se em amor propriamente dito e nas ações práticas

§  A conseqüência da incorporação da razão à fé é evidenciar aquilo que, em qualquer outra situação, torna-se claro com pouco esforço para qualquer pessoa de boa vontade que considere a questão: que a fé consiste em crenças e que, como tais, elas consistem em idéias (e, portanto, na razão)

§  Uma outra conseqüência da incorporação da razão à fé é que a fé distingue-se da razão propriamente dita por um elemento de confiança nas concepções (e, portanto, na razão) alheia

o   Assim, temos os três elementos da religião: sentimentos (amor propriamente dito), inteligência (razão/fé) e ações práticas (segundo elemento do amor)

o   Augusto Comte observa que nos estados normais a razão deve subordinar-se à fé e que as necessidades sociais com freqüência permitem tal subordinação (por exemplo, durante a Idade Média)

o   A plena subordinação da razão à fé só é possível com a positividade, em que ambas são relativas e que, portanto: (1) a fé (ou melhor, o amor) inspira e orienta a razão; (2) em que a razão é conselheira (nem mestra nem escrava) da fé; (3) em que a fé (ou melhor, o amor e as atividades práticas) é a reguladora da razão, ao estabelecer a fonte e os objetivos da razão

-        A incompatibilidade entre fé e razão indica que há um problema, seja com a “fé”, seja com a “razão”, seja com ambas:

o   A fé, no caso, consiste na fé teológica, isto é, na crença na divindade; a razão, por outro lado, consiste tanto no racionalismo quanto no conhecimento empírico e, portanto, pode ser tomada grosso modo e para os presentes propósitos como equivalente ao conhecimento científico

o   À medida que o método objetivo desenvolve-se, a fé torna-se cada vez mais acuada pela razão, pois os conhecimentos positivos paulatinamente expulsam da realidade humana as concepções absolutas, em particular as teológicas

o   Quando a positividade avança até a ciência da Moral, a antiga fé fica totalmente expurgada do teologismo, mas, ainda assim, não se garante a positividade dos conhecimentos humanos

o   Assim, após a conclusão do método objetivo, em que a razão expurga a fé de seus elementos teológicos, é necessário que a fé seja plenamente renovada, o que ocorre com a renovação preliminar do método subjetivo

§  Importa lembrar: o método subjetivo consiste na aplicação da perspectiva de conjunto, do relativismo e do subjetivismo às várias concepções humanas

o   Com a renovação do método subjetivo, a fé revê e renova o conjunto dos conhecimentos humanos, ajustando então a razão à fé

-        A dificuldade e, portanto, a importância da renovação da fé na forma do método subjetivo pode ser exemplificada pela existência dos chamados “positivistas heterodoxos”

o   Os chamados “positivistas heterodoxos” são os positivistas incompletos, ou cientificistas, que apresentam um caráter mais anticlerical que positivo

o   Os “positivistas heterodoxos” aceitam que a fé seja acuada pela razão, mas rejeitam a efetiva renovação da fé pelo espírito positivo e, a partir daí, a renovação da razão pela fé positiva

o   É interessante notar que os “positivistas heterodoxos” raciocinam por meio da adição de “blocos”, como no brinquedo Lego: esse procedimento é adequado ao racionalismo cientificista, mas é inadequado à renovação da fé e à aplicação da fé positivida-subjetivada à razão

o   Inversamente, a efetiva aceitação da unidade da carreira de Augusto Comte – que, nominalmente, é o ponto que separa os positivistas completos dos incompletos – implica a efetiva aceitação da Religião da Humanidade e do método subjetivo (subentendendo-se aí a aplicação do último ao conjunto dos conhecimentos humanos)

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Comentários do meu amigo Hernani Gomes da Costa, feitos privadamente via Facebook, logo após a prédica, na noite do dia 3.Bichat.169 (5.12.2023). (Versão editada para divulgação pública.)

Muito boa noite, Gustavo! Como sempre, é um imenso prazer ver a realização de mais um passo dado nessa sua longa e perseverante jornada da leitura comentada do Catecismo Positivista. Não sei se você se deu conta, mas foi possível em seu sermão realizar uma interessante e nova “costura” ao tratar da questão entre a razão e a fé.

 Digo isso pelo seguinte: há um uso corrente da palavra fé que é diferente do uso que o Positivismo faz dessa expressão. E em seu sermão você conseguiu com muita habilidade “surfar” entre esse conceito usual e o nosso, ora se expressando nos termos de um desses usos, ora no outro.

Em geral, como você bem notou, a oposição que o teologismo estabelece entre a razão e a fé refere-se à antítese radical fixada entre o que se supõe serem os frágeis recursos da razão humana quando confrontada com a necessidade de uma fé absoluta em um ser que já é definido a princípio como estando além de toda capacidade de compreensão.

Postas as coisas nesses termos pelo teologismo, a fé deve poder justificar-se plenamente por si mesma e por si mesma existir, não só dispensando a razão, como vendo na necessidade de recorrer a ela em seu socorro como o produto de uma fraqueza que denuncia tibieza e excesso de prudência – e, portanto, “pouca fé”.

O exemplo clássico que se invoca em apoio a essa perspectiva é o episódio em que Jesus diz a Tomé que ele acreditou na sua ressurreição apenas por Tomé ter tocado Jesus ressurrecto, sendo que mais bem aventurados seriam aqueles que puderem crer sem a necessidade de tais evidências.

A fé teológica é pois necessariamente passional, tanto no sentido afetivo de “paixão” quanto no sentido intelectual e mesmo prático de “passividade”.

Porém, o sentido constante da idéia de fé em Augusto Comte não se refere diretamente ao sentimento.

Um teólogo pode supor sua fé assim. Mas um positivista não. O dogma teológico, conquanto pretenda oferecer um sentido às coisas e dessa forma prover-nos de bases intelectivas para compreender o mundo e a nossa situação nele, só o faz ao preço de complicar ainda mais as coisas, interpondo entre o homem e o mundo toda sorte de mitos e mistérios que se chocam com a razão.

Um positivista, porém, não vê o que em que consistiria efetivamente a afirmada divisão entre fé e razão.

Tanto isso é assim que no Catecismo positivista o que temos não é uma divisão da religião fundamentada no binômio fé e razão, mas no binômio amor e fé.

Vê-se por aí que no Positivismo a questão da compatibilidade entre a fé e a razão é uma questão que se desenvolve toda ela no âmbito da própria fé.

É no interior da própria fé que se chega a julgar se ela é mais ou menos compatível com a razão e nunca mediante uma oposição a priori, segundo a qual uma e outra já seriam dadas como necessariamente incompatíveis e correspondendo a domínios distintos.

Assim, (1) podemos ter uma fé inteiramente sustentada pela razão quando suas evidências são claras; (2) podemos ter uma fé mais ou menos sustentada pela razão, caso em que essas evidências sejam então, por qualquer motivo, obscuras e duvidosas; (3) podemos ter, por fim, uma fé diretamente antitética à razão, ou seja, a célebre fé no que é impossível, a fé de Tertuliano, do credo quia absurdum est.

Mas o que cabe notar aí é que, independentemente do resultado a que se chegue a respeito de saber qual tipo de fé tem-se diante de si, o exame inteiro da questão da racionalidade maior, menor ou nula da fé, é algo que só se pode dar no campo da fé, no âmbito da fé, no interior da fé.

Assim, o modo pelo qual o Positivismo chega a superar o que se entende usualmente por conflito entre razão e fé não se desenvolve por intermédio de uma conciliação propriamente dita entre dois campos tomados por distintos, mas por meio de uma crítica ao próprio critério que foi estabelecido para justificar uma divisão que na verdade é bastante equívoca.

Nunca se trata realmente, no fundo, de conciliar razão e fé, mas de reconhecer que uma fé pode ser mais (ou menos) racional que outra fé.

Você foi particularmente hábil em servir-se tanto da definição teológica de fé, quanto de sua definição positiva, apenas me parecendo que nessa apresentação de seu sermão você referiu-se à fé como algo que corresponde ao campo do amor, quando em termos positivos a fé – tanto teológica quanto a nossa – é compreendida igualmente como uma tentativa de racionalizar as coisas, de compreender o mundo exterior e de situarmo-nos melhor nele, sendo portanto a fé sempre um aspecto intelectual da religião.

É assim que chegamos a ver, por fim, que o caráter passional da fé teológica, conquanto pareça fundamentar-lhe, não é senão um dos resultados colaterais de sua falta de sustentação teórica, ao passo que a nossa fé, a nossa crença, corresponde à fé na existência geral de leis naturais constatáveis, bem como na fé que depositamos na Humanidade, que as descobre e aplica-as para o nosso bem.

A fé positiva vai, pois, além da razão, sem, no entanto, contrapor-se-lhe, visto como o universo inteiro não nos será jamais inteiramente conhecido e visto também que não fomos nós pessoalmente que descobrimos e demonstramos as leis naturais que tomamos por verdadeiras. Ora, se nós aceitamos as leis naturais nessa condição, fazemo-lo por uma questão de confiança; em outras palavras, aceitando as leis naturais como um dos aspectos de nossa na Humanidade.

Temo que, talvez, eu não tenha sido claro.

Afirmar que o Positivismo concilia razão e fé subentende pelo menos duas coisas: (1) que existam de fato esses dois campos; (2) que eles sejam ou tenham sido postos em oposição.

Porém, desde que se compreende que o conflito não é – nunca foi! – exatamente entre razão e fé, mas um conflito entre a racionalidade maior ou menor que pode ser atribuída a diferentes fés, então a questão inteira de examinar a compatibilidade entre razão e fé cessa de existir, não encontrando mais justificativa para ser sequer colocada.