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16 setembro 2019

A sociedade industrial para Augusto Comte - roteiro de uma prédica

No dia 15 de setembro de 2019 fiz uma prédica na Igreja Positivista do Rio Grande do Sul sobre a "sociedade industrial", conceito sociológico elaborado por Augusto Comte em sua Sociologia Dinâmica para entender a realidade contemporânea e orientar a ação prática.

Para essa prédica elaborei um pequeno roteiro, que foi mais ou menos seguido na ocasião - os improvisos e as digressões são parte de qualquer exposição oral. Reunindo as anotações iniciais com algumas das observações feitas de improviso, apresento o resumo abaixo, que é razoavelmente explicativo. É claro que se os leitores tiverem dúvidas ou sugestões, elas serão bem-vindas.


*   *   *


-        É um ótimo exemplo de conceito que reúne considerações sociológicas, históricas, filosóficas e morais – e também políticas
o   Assim, é um exemplo de aplicação prática dos preceitos religiosos da Religião da Humanidade
-        A “sociedade industrial” é o conceito com que Augusto Comte define a organização social, política e econômica das sociedades modernas
o   Um paralelo com “capitalismo”, de Marx, é útil: ambos os conceitos referem-se mais ou menos às mesmas coisas e ao mesmo período, igualmente com juízos de valor subjacentes; mas para Marx o “capitalismo” é um sistema totalmente impessoal que deve ser destruído por meios revolucionários em prol do comunismo; já a “sociedade industrial” é uma organização social e política vigente que deve ser aperfeiçoada, mas que permite o desenvolvimento das forças humanas
-        A melhor forma de expor a idéia da sociedade é industrial é adotando o procedimento de Comte, ou seja, por meio da contraposição com as sociedades militares
-        Na verdade, isso consiste na conjugação das leis dinâmicas do entendimento humano, que correspondem às leis VII a IX da Filosofia Primeira:

2ª série: leis dinâmicas do entendimento
1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)
2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)
3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (IX)

-        As sociedades militares foram as características da Antigüidade e da Idade Média, em que as concepções mais amplas de sociabilidade eram a família e a pátria (Antigüidade) e a pátria e a igreja (Idade Média)
o   Como são concepções parciais, a família e a pátria tendem a gerar competições entre as várias famílias e as várias pátrias: essas competições logo se transformaram em guerras
o   É necessária uma concepção universal para que se instaure a paz: somente a Humanidade pode gerar a paz mundial e perpétua
o   O Império Romano, embora baseasse-se na idéia de pátria, tinha uma concepção tendencialmente universalista de ser humano, o que o politeísmo facilitava, ao permitir com maior ou menor facilidade a incorporação dos vários grupos sociais; os romanos diziam, acertadamente, que “faziam a guerra para levar os hábitos da paz”
§  O Império Romano extinguiu até certo ponto as guerras de conquistas, incessantes na Europa e na Ásia Menor até então e criou uma enorme área de relativa estabilidade política, jurídica, econômica (e monetária e de pesos e medidas) na Europa e ao redor do Mar Mediterrâneo; com isso, lançou as bases necessárias para a civilização católico-feudal e para o desenvolvimento posterior da sociedade industrial
o   Na Idade Média o catolicismo permitiu a conjugação da pluralidade política (feudal) com a unidade de fé (católica); mas o caráter absoluto do catolicismo impede a sua plena universalização e, de qualquer maneira, ele entra em choque com outros sistemas absolutos, em particular o Islã
-        A atividade militar, então, foi inicialmente conquistadora (Antigüidade) e depois defensiva (Idade Média)
o   A partir de meados da Idade Média – grosso modo, no século XI – começa a ocorrer um movimento importante: a emancipação das comunas, isto é, das cidades, dos burgos (os habitantes dos burgos eram os burgueses), especialmente pelos reis
o   Essa expressão – “emancipação dos burgos” – significa o seguinte: até então os burgos estavam submetidos à autoridade política e social dos nobres, dos senhores feudais; com a emancipação, os burgos passaram a submeter-se apenas à autoridade dos reis e/ou a ter grande autonomia decisória à as repúblicas italianas, do Norte da Europa e outras surgiram dessa forma
o   As comunas obtiveram essa emancipação porque seus habitantes eram ativos politicamente e pressionavam nesse sentido; da mesma forma, eram artesãos, comerciantes, banqueiros etc., isto é, eram indivíduos e grupos que trabalhavam e produziam bens, serviços e riquezas
o   A emancipação das comunas indica, portanto, a mudança na organização social, que passava de militar e rural para industrial e urbana
-        A sociedade industrial, portanto, surge como um desenvolvimento das sociedades militares
o   Embora surja do desenvolvimento das sociedades militares, a sociedade industrial não é uma continuação delas: antes de mais nada, a sociedade industrial é pacífica
o   Na sociedade industrial há geração da riqueza e não somente espólio e rapinagem, como na atividade militar
-        A sociedade industrial gera riqueza; mas essa “geração de riqueza” não é só ou principalmente o acúmulo de riquezas: é a produção de bens e serviços com vistas ao bem-estar humano
o   Importa lembrar e afirmar com todas as letras: a ação militar visa à destruição dos bens e à morte dos inimigos; se há a busca de algum bem-estar, é da sociedade que conquista, não a da que é conquistada
o   Assim, enquanto as sociedades militares buscam a glória, as sociedades industriais buscam o bem-estar e o conforto
-        Uma precondição fundamental da sociedade industrial é a valorização do trabalho
o   Nas sociedades militares o trabalho é desvalorizado, sendo reservado aos escravos e/ou aos servos da gleba
o   A valorização do trabalho resulta também na repulsa à escravidão e na valorização dos trabalhadores, cuja dignidade é afirmada
o   Aliás, em contraposição às sociedades militares, a sociedade industrial valoriza a vida humana
-        A sociedade industrial suceder as sociedades militares não é somente uma questão de antecedentes e conseqüentes históricos; é necessário ativamente aperfeiçoar a sociedade industrial
o   Antes de mais nada, é necessário ultrapassar os hábitos militares, a busca da glória, o desejo da dominação, o estímulo ao militarismo
o   A noção militar de pátria tem que ser substituída pela concepção pacífica e altruísta de mátria
o   Os trabalhadores têm que ser valorizados e suas condições de vida têm que ser dignas
o   A burguesia (mesquinha e egoísta) tem que ser substituída pelo patriciado positivo (altruísta, generoso, de vistas e ações largas)
o   Os meios violentos têm que ser substituídos radicalmente pelos meios pacíficos
o   O poder Espiritual tem que ter um ascendente sobre a sociedade, em contraposição à ação violenta do poder Temporal
o   Os positivistas devem deixar de ser militares ou, caso permaneçam sendo militares, que orientem suas ações para fins positivos à apoio decidido ao civilismo dos militares
§  Exemplos máximos no Brasil: Benjamin Constant e Marechal Rondon
§  Ensino civilista de Benjamin Constant no Exército à não é à toa que a ação de Benjamin Constant foi duramente combatida pelos militaristas (Jovens Turcos, revista A Defesa Nacional, Olavo Bilac, Missão Alemã, Missão Francesa) e pelos fascistas (Góes Monteiro)
§  Benjamin Constant e doutrina do “soldado-cidadão”: ênfase no “cidadão” e na “civilização” da caserna, ao contrário do que Olavo Bilac pregava, que era a ênfase no “soldado” e na militarização da sociedade
§  Marechal Rondon: o “Marechal da Paz”; frase característica: “morrer se for preciso, matar nunca”
o   O militarismo antigo e medieval era justificável e aceitável; o militarismo moderno é aberrante e inaceitável
§  O nazismo, o fascismo e até o comunismo são militarismos modernos
§  O nacionalismo do século XX apresenta todos os defeitos ligados ao militarismo: xenofobia, intolerância, violência, busca da glória nacional, conservadorismo; situação exemplar do caso Dreyfus (1895-1905)
·         Caso Dreyfus: Exército francês reacionário, monarquista, belicista, xenófobo e antissemita; a libertação de Dreyfus e a reversão de sua condenação uniu vitoriosamente os republicanos e os progressistas franceses contra os grupos reacionários (monarquistas, Igreja Católica, alto comando do Exército, intelectuais literários)
-        Augusto Comte propôs um conjunto de medidas com vistas à consolidação e ao aperfeiçoamento da sociedade industrial, já com vistas à sociocracia

SUMÁRIO DAS MEDIDAS ESPECÍFICAS À TRANSIÇÃO ORGÂNICA

MEDIDAS
ÂMBITO DAS MEDIDAS
COMENTÁRIOS
Liberdade especulativa com o fim dos orçamentos teóricos
Temporal
Necessárias em todos os lugares
Substituição das Forças Armadas pela polícia
Instituição do triunvirato sistemático
Desenvolvimento do culto histórico
Espiritual
Estabelecimento das escolas positivistas
Ascendente do Positivismo sobre o comunismo
Decomposição dos grandes estados
Resume as duas séries anteriores

19 agosto 2019

Raimundo Teixeira Mendes: República pacífica, livre e convergente

Defendida pelos positivistas brasileiros e estrangeiros com clareza e desde sempre, a República é concebida pelo Positivismo como o regime ideal por excelência. Para os positivistas, o regime republicano não é somente, nem principalmente, o regime presidencialista em oposição à monarquia e ao parlamentarismo. Muito mais do que isso, a República é o regime das liberdades e da fraternidade em todos os âmbitos (doméstico, cívico, universal); é o regime que consagra o ser humano e a atividade pacífica, (portanto) convergente e esclarecido pela ciência.

Essas características tornam-se mais relevantes quando comparadas com os regimes militaristas e com as paixões demagógicas. Nesse sentido, o trecho abaixo é exemplar e instrutivo. Ao mesmo tempo ele serve para evidenciar que o Positivismo e os positivistas são e sempre foram pacifistas e que a República é o verdadeiro regime ideal da paz, da convergência e das liberdades.

Esse texto é um pequeno trecho de um opúsculo de 1908, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes, vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, em que ele opõe-se, com base no Positivismo, à lei de sorteio militar, considerando-a um instrumento disfarçado do militarismo e ao mesmo tempo contrária à República e à índole pacífica do povo brasileiro.

(Como o texto é originalmente de 1908, a grafia foi atualizada.)


*   *   *

"[...] Ninguém contesta que a índole do regime republicano reside no predomínio da fraternidade universal, em todas as relações sociais, quer domésticas, quer cívicas, quer planetárias. Esse predomínio conduz logo ao escrupuloso respeito pela liberdade dos homens, sem distinções de raças, de crenças, de fortunas ou de forças etc., a fim de que cada um se dedique, na função que preferir e no lugar que escolher, ao bem geral da Humanidade, servindo à Pátria que herdou dos seus pais ou adotou, graças à Família em cujo seio os seus pendores altruístas recebem o cultivo fundamental, imprescindível à existência social.

Assim, o verdadeiro regime republicano só pode realizar-se plenamente quando a inteligência se concentrar na investigação dos meios capazes de fazer prevalecer a sociabilidade sobre a personalidade e quando a atividade se consagrar exclusivamente à elaboração desses meios, já aperfeiçoando a nossa natureza, já aperfeiçoando a Terra. Em conclusão, o regime republicano supõe a livre preponderância final da poesia, da ciência e da indústria sobre o teologismo, a metafísica e a guerra, que formam a índole preparatória da Humanidade, e que a República aspira [a] substituir".

(Raimundo Teixeira Mendes, Ainda o militarismo perante a política moderna. A propósito da agitação a que está dando lugar a lei do sorteio, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, fevereiro de 1908, p. 7; série da Igreja Positivista do Brasil, n. 249.)



(Facsímile de Raimundo Teixeira Mendes, Ainda o militarismo perante a política moderna, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1908)


Raimundo Teixeira Mendes

08 fevereiro 2016

"Cruzada" como encontro civilizacional

Vários anos atrás, por ocasião do lançamento do filme Cruzada (direção de Ridley Scott, 2005), publiquei na revista O Debatedouro um pequeno texto em que elogiava o filme e tecia algumas considerações sobre o "choque de civilizações". 

Desde então - e já se vão mais de dez anos - o problema das relações entre Ocidente e Islamismo continuou e, em alguns aspectos, até aumentou, embora em certo sentido a sua urgência tenha diminuído.

Por esses motivos, creio que pode ser útil reproduzir o meu texto. A versão impressa do artigo pode ser lida aqui.

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“CRUZADA” COMO ENCONTRO CIVILIZACIONAL

Na noite do sábado, dia 7 de maio, assisti ao filme Cruzada e gostei muito dele. Fui vê-lo pelos motivos básicos e evidentes (filme épico e do bom circuito comercial), mas também por ser um filme histórico e ser a respeito de um período de que gosto bastante, a Idade Média das cruzadas.

Ora, tendo visto o filme no sábado dia 7, na quarta-feira anterior li um comentário de página inteira na Folha de S. Paulo, assinado por Sérgio Dávila, em que o autor afirma que o filme é um elogio velado à era George W. Bush[1]. Fiquei interessado no comentário, li-o inteiro e achei uma besteira: considerei que o articulista está tomado por uma obsessão anti-estadunidense, mas resolvi que o melhor, antes de dar um veredito sobre o artigo e, em última instância, sobre o filme, seria assistir à própria obra do diretor Ridley Scott.

Bem, visto o filme, eis minha opinião: ele é ótimo, vale a pena e Sérgio Dávila deveria ler o livro de Jean-François Revel, A obsessão anti-americana (Rio de Janeiro, Univercidade, 2004).

Muito ao contrário do que o articulista da Folha dá a entender, o filme é muito bom, não apresenta nenhum elogio à guerra ao terror (como, aliás, afirmou o próprio diretor[2]) e, se fosse para jogarmos com títulos de livros famosos, diríamos que trata muito mais da crítica ao “choque de fundamentalismos” (Tariq Ali) que da apologia ao “choque de civilizações” (Samuel Huntington).

De fato, o filme deixa muito claro quais são seus valores: a racionalidade, a cortesia, a tolerância religiosa e filosófica, a honradez, a responsabilidade pessoal pelas ações. Dirão alguns, talvez, que a honradez e a responsabilidade pessoal são características norte-americanas e que isso poderia ser uma pista para o “bushismo”; é claro que isso seria um completo disparate. Indo exatamente na contramão dos radicalismos atuais, que têm no obscurantismo religioso sua justificação e sua legitimação, o filme afirma a importância de considerar a racionalidade como guia das ações, medindo cada um de nossos atos ao mesmo tempo de acordo com suas conseqüências políticas e também morais (se se desejar: “éticas”). Parafraseando o grande José Bonifácio, o filme deixa claro que a “sã política é filha da moral e da razão”.

Há, sem dúvida, alguns estereótipos discutíveis, como o de os franceses como os malucos beligerantes do lado dos católicos (embora o mocinho do filme, Balian, interpretado por Orlando Bloom, também seja francês, como se vê logo na primeira cena), mas, mais do que isso, não se vê os muçulmanos como radicais desmiolados querendo dizimar tudo e todos. Certo: há um líder muçulmano com essa característica, mas claramente ele é subordinado; quem de fato manda no lado do islã é Saladino, cujos valores são, como já indiquei, os mesmos que os do mocinho: a honradez, a racionalidade, o respeito mútuo.

O que dissemos acima permite-nos comparar esse filme com dois outros: A paixão de Cristo e Herói. A paixão de Cristo, independentemente de seu conteúdo, veio em um momento em que os valores religiosos, a tão falada “fé”, tem ganho uma importância desmesurada no mundo inteiro. Ora, a fé, em Cruzada, freqüentemente é posta como secundária ou desimportante, ou mesmo como fator de imbecilização; as únicas manifestações aceitáveis de fé, como se percebe no filme, são aquelas mediadas pela razão e pelo senso de comedimento.

Já a comparação com o filme Herói é mais difícil – não porque não haja elementos mais ou menos evidentes para comparar-se ambos, mas porque o filme chinês é excelente e não é tão facilmente criticável quanto A paixão de Cristo. Herói é a lenda nacional da China, é a China afirmando-se como um país de longa tradição, que se define muito antes e muito além da longa decadência por que passou desde o século XVI até chegar ao comunismo. Ora, há um aspecto nesse filme que deve ser indicado: ele trata da tentativa que um espadachim faria para assassinar um rei, que tenta unificar os vários reinos em que se dividia a antiga China mas que, para tanto, adota, como seria difícil não fazer, métodos violentos e não raro tirânicos. O aspecto que quero realçar é o projeto de unificação da China e, ainda mais, os meios adotados: a violência (a conquista) e a tirania: esse rei seria a versão chinesa do “príncipe perfeito” que foi d. João II em Portugal, isto é, o príncipe perfeito a partir dos critérios maquiavelianos e hobbesianos, que define um grande fim – a unificação de vários reinos, isto é, a criação de uma nova pátria, com a conseqüente cessação das lutas e das mortes e o progresso material (e, quiçá, também moral) – e lança mão dos meios necessários para tanto. Em Cruzada vemos, sem dúvida, o tema da conquista, mas ele é muito mais uma desculpa para tratar do relacionamento entre dois povos – ou melhor, duas civilizações – e da “sã política” de José Bonifácio que qualquer outra coisa. Especificamente, a conquista, quem faz, são os muçulmanos, que procuram reconquistar a cidade de Jerusalém e obrigam os ocidentais a manterem uma posição defensiva[3]. Como se vê ao longo de toda a fita, a cordialidade mútua e o respeito ao próprio código cavalheiresco pautam a disputa, reconhecidas as legitimidades de ambos os pleitos (a pretensão de conquista dos muçulmanos – causada, aliás, por uma provocação ocidental – e a defesa da cidade). Assim, sem desmerecer o filme chinês, como ocidentais aprendemos muito assistindo ao Herói, mas, como ocidentais e como seres humanos que vivem em uma época estranha, aprendemos (ou reaprendemos) bem mais vendo Cruzada.

Cruzada indica com clareza que, se há “choque de civilizações” nos dias correntes, ele deve-se muito ao radicalismo de alguns, mas que os meios para evitar-se esse radicalismo e resolver os conflitos são algo presente na civilização ocidental e também na islâmica. Esse “algo” não é a crença religiosa (cristão ou islâmica, tanto faz), mas a percepção de que todos somos seres humanos, de que todos queremos viver e de que todos podemos viver em paz e harmonia se soubermos assim proceder – além, é claro, de manterem-se os radicais claramente subordinados na condução da política, tanto de um lado quanto de outro.

Assim, no final das contas, Cruzada não tem nada de “apologia velada à era Bush”, mas um elogio claro, às escâncaras, a um relacionamento pacífico e racional entre duas civilizações que compartilham muitos mais valores do que se poderia pensar à primeira vista.
Em outras palavras, é uma aula de civilidade: vale a pena.




[1] DÁVILA, S. 2005. “Cruzada” faz apologia velada da era Bush. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200506.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[2] SCOTT, R. 2005. “O filme não é sobre a guerra ao terror!”. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200507.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[3] Lembremos a filosofia da história do grande Augusto Comte: a Idade Média caracterizou-se, como a Antigüidade, pelas guerras, mas, ao contrário de gregos e romanos, foram, exatamente, guerras defensivas. Aliás, o mocinho Balian, enquanto não está preocupado com os conflitos militares, dedica-se seriamente a esforços industriais bem-sucedidos, em que o respeito aos pequenos e aos subordinados é um dos traços mais característicos. Em outras palavras, o filme é um exemplo de conduta: como seria um elogio, mesmo que velado, à doutrina Bush?

16 novembro 2015

15 de novembro – Proclamação da República Brasileira (1889)



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

 

No dia 15 de novembro comemoramos no Brasil a Proclamação da República[1]. Esse belo e importante acontecimento ocorreu por meio da conjunção de inúmeros indivíduos e grupos que, de diferentes maneiras, baseados em diversos princípios e com variadas intensidades, desde pelo menos 1789 almejavam que o Brasil fosse uma república livre e progressista. O movimento que resultou no fim da monarquia em 1889 teve a importantíssima participação dos positivistas brasileiros, de Norte a Sul do país, e foi liderada pelo professor de Matemática e Coronel do Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – ele também positivista e adepto da Religião da Humanidade.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães

Neste ano desejo celebrar a memória de Benjamin Constant por meio da apresentação de elementos da teoria republicana. Assim, creio, será possível entender um pouco das idéias que moveram esse grande cidadão e patriota; da mesma forma, creio que será possível percebermos que a República é um verdadeiro ideal político, capaz de orientar as ações dos cidadãos ainda por muitas e muitas gerações – se é que em algum dia ela deixará de ser um ideal.

Definindo a “República”

 

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade” (Augusto Comte, Système de politique positive, v. I, p. 70).

De acordo com o Positivismo, a República define-se pelo menos por duas características, uma negativa e outra positiva.

(1) Contra a monarquia, a favor da meritocracia

 

A característica negativa refere-se à oposição à monarquia. Isso não significa apenas que a sociedade deve ser governada por um presidente e não por um rei; que seus impostos devem remunerar governantes capazes e não toda uma casta que parasita a sociedade. A oposição à monarquia implica também o fim das sociedades de castas, de “estados”, de “ordens”, isto é, das sociedades em que a condição jurídica, política e até moral de cada indivíduo é dada pelo seu nascimento. Assim, em vez de termos “reis”, “príncipes”, “marqueses”, “duques”, “condes”, “barões” etc. – que, apenas por terem nascido nas famílias em que nasceram, valeriam mais ou menos que o comum das pessoas, como ocorre ainda hoje na Inglaterra, nos Países Baixos, na Espanha, na Suécia e em vários outros países –, temos apenas cidadãos.

Isso resulta em que o valor dos indivíduos é dado não por seu nascimento, mas pelo seu mérito individual. Ora, a valorização do mérito individual, ao mesmo tempo em que deve resultar na meritocracia, implica um sério problema prático, na medida em que as condições sociais concretas dificultam o desenvolvimento das capacidades de muitos cidadãos, em particular dos mais pobres. Para contornar esse problema e, no limite, remediá-lo, tanto o governo quanto a sociedade civil devem esforcem-se para conferir condições para que os mais pobres possam desenvolver suas capacidades.

Além disso, um outro procedimento é necessário; esse procedimento adicional é mais difícil, pois ele exige reflexão e ponderação e também porque ele é abstrato: o mérito individual deve ser avaliado abstratamente, não em termos concretos, considerando as contribuições que cada indivíduo dá para a coletividade. Assim, não é possível entender por “mérito” apenas a capacidade econômica de cada um, mas também outros aspectos, como aptidões artísticas, elaborações filosóficas, pesquisas científicas, manutenção de famílias saudáveis, estímulo à cooperação social e ao desenvolvimento do altruísmo.

Augusto Comte

Como argumentava Augusto Comte, a avaliação do mérito individual é a função social mais difícil de realizar, em virtude da sua grande complexidade: por esse motivo, deve ser feita por um órgão social (não governamental) especialmente dedicado a isso, que analise serenamente o conjunto da vida de cada cidadão e leve em consideração as várias circunstâncias envolvidas[2]: esse órgão é o sacerdócio positivista.

(2) Dedicação à coletividade, subordinando a política à moral

 

O aspecto positivo da definição da república consiste na dedicação à coletividade, a partir da subordinação da política à moral.

A dedicação à coletividade consiste em cada indivíduo buscar ser um cidadão útil, contribuindo ativamente da melhor maneira possível, dentro de suas condições, para a sociedade. Essas contribuições são de vários tipos: evidentemente, as atividades econômicas são as mais extensas e as mais básicas, mas não são as únicas, pois o ser humano não se limita nem se resume ao estômago. Assim, as contribuições também podem ser afetivas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas, organizacionais, familiares e assim por diante.

Cumpre notar também que todo cidadão desenvolve ao mesmo tempo pelo menos dois tipos de atividades: as particulares e as gerais. As particulares são as suas atividades específicas: suas profissões, seus trabalhos; já as gerais são aquelas que se referem à coletividade e que, de acordo com o senso comum, são chamadas de “políticas”. Esses dois tipos de atividades são complementares e, dessa forma, não faz sentido opor uma à outra: todo trabalhador é e deve ser um cidadão, todo cidadão é e deve ser um trabalhador.

Mas, por outro lado, é necessário reconhecer que as atividades particulares consomem bastante tempo, o que impede que o grosso dos cidadãos dediquem-se exclusivamente às atividades gerais; ao mesmo tempo, as sociedades modernas oferecem um sem-número de atividades de lazer, de possibilidades de gozo da vida individual, familiar, coletiva que não se referem ao que chamamos de “política”; essas atividades são legítimas e integram o que chamamos de “bem-estar”. Inversamente, há indivíduos que se dedicam exclusivamente à condução dos negócios gerais: tais indivíduos constituem o governo. Há uma separação clara entre governantes e governados, entre o Estado e os cidadãos; essa separação é boa, é correta e é necessária. Nesse quadro, o comum dos cidadãos participa da vida política principalmente do acompanhamento dos negócios públicos, no âmbito da sociedade civil e por meio da opinião pública.

A subordinação da política à moral consiste em que cada indivíduo, cada cidadão, cada empresa, cada organização, cada país, cada civilização deve visar à convergência em seus esforços, limitando as atividades divergentes e particularistas; deve buscar estimular e satisfazer o altruísmo, comprimindo os vários egoísmos e esforçando-se para orientá-los em direção ao altruísmo; deve fortalecer e estimular a atividade pacífica, evitando as guerras e resolvendo o máximo possível os conflitos por meio das negociações e com instrumentos pacíficos.

No ser humano, o egoísmo é mais forte que o altruísmo, assim como as formas que o egoísmo assume são mais variadas que as do altruísmo. O “egoísmo” significa a satisfação de necessidades e desejos individuais mas que visam a fins particulares; em contraposição, o altruísmo significa o estímulo e a satisfação de necessidades também individuais mas que visam a beneficiar outrem e/ou a coletividade. Assim, não é possível erradicar o egoísmo e nem faria sentido isso; mas daí não se segue que o egoísmo possa ser um fim em si mesmo. É necessário limitar o egoísmo e direcioná-lo para outros objetivos que não nós mesmos: a moralidade, portanto, consiste no estímulo e no desenvolvimento do altruísmo. Quando Augusto Comte afirmava que a política deve subordinar-se à moral ele queria dar a entender isso: que a política e o conjunto das atividades humanas devem orientar-se em direção ao altruísmo e não se resumir nem se consumir no egoísmo.

Ao definir o sentido positivo do seu conceito de “república”, Augusto Comte incluía um elemento que chamava “social”. Evidentemente, a definição de moralidade que apresentamos acima é “social”, pois o altruísmo consiste nos esforços em bem dos demais indivíduos e da coletividade de modo geral; mas o traço “social” da república, de modo específico, é melhor entendido em contraposição a uma definição estritamente política da república. Nesse sentido, para Augusto Comte e para o Positivismo, a república não pode ser apenas um regime político, que se opõe à monarquia, mas deve também ser uma forma de organização social que integre e valorize todos os seus membros; em particular, realizando a “incorporação social do proletariado”. Assim, o regime político cujo nome significa, literalmente, “coisa pública” e que, de acordo com Augusto Comte, caracteriza-se pelo primado do altruísmo e da preocupação com os demais, deve realizar na prática esse primado e essa preocupação a começar pela combate à miséria, pelas políticas de geração de renda, pelas políticas de geração de emprego e assim por diante.

As virtudes cívicas libertam, o “desejo” escraviza

 

Uma outra forma de entender a subordinação da política à moral é uma concepção mais clássica da “república”, a saber, que a república é o regime político e social mantido pelas virtudes cívicas, a que se contrapõe a corrupção. Quando falamos em “virtudes cívicas” queremos dar a entender as virtudes próprias à atividade política na República: o interesse pela coletividade, o espírito de grupo, a generosidade, a honestidade, a fraternidade, o respeito às opiniões divergentes, o entendimento de que as divergências devem ser solucionadas via argumentação racional e não por meios violentos, a convergência e a busca de amplos entendimentos e consensos.

As virtudes cívicas, portanto, andam bastante próximas da forte ênfase de Augusto Comte em relação aos deveres sociais. Sem serem impostos pelas leis, os deveres são regras de comportamento que obrigam entre si os cidadãos, no sentido indicado antes, ou seja, a favor do altruísmo, da incorporação social do proletariado e assim por diante. Conseqüentemente, ao rejeitar a sua definição nas leis, a noção de deveres baseia-se na opinião pública: cada indivíduo, cada cidadão deve aceitar voluntariamente essas obrigações, de tal sorte que elas definam comportamentos adotados de “dentro para fora” – afinal de contas, o altruísmo só é verdadeiro e só produz os seus melhores resultados quando é voluntário, não quando é imposto de fora e pela ameaça do uso da força (como ocorre com as leis).

Um famoso publicista brasileiro, que há pouco tempo foi Ministro da Educação, bem ao gosto “pós-moderno”, ao tratar da República afirmou que as virtudes cívicas devem ser contrapostas ao “desejo”, às vontades íntimas; segundo ele, a virtude coage e os desejos “libertam”. Essa concepção é claramente um sofisma, um jogo de palavras que distorce a realidade e tem péssimos resultados. A virtude não coage ninguém, sejam as virtudes cívicas (que beneficiam diretamente a vida coletiva), sejam as virtudes individuais (que regulam o comportamento individual: temperança, modéstia, humildade etc.). Como vimos, as virtudes regulam o comportamento humano, estimulam o altruísmo e orientam o egoísmo em favor do altruísmo: essa regulação é fundamental para uma verdadeira vida coletiva e pacífica. Em contraposição a isso, o “desejo” é a vontade individual em sua forma mais clara, ou seja, é o egoísmo. Enquanto a virtude cívica tempera algumas paixões pessoais e políticas por meio do uso da inteligência e do altruísmo, os desejos são as paixões humanas em estado puro, sem a mediação da inteligência e do altruísmo. Ou melhor, os desejos até usam a inteligência, mas apenas para buscarem sua satisfação: ora, a satisfação dos desejos é sempre uma satisfação pessoal, ou seja, egoísta; além disso, como se sabe há séculos (e mesmo milênios), as paixões e os desejos não se satisfazem nunca. Em outras palavras, exatamente ao contrário do que argumentou o publicista, as virtudes libertam e são condição da liberdade; o desejo é sempre elemento de egoísmo, de conflitos permanentes e de escravização pessoal e coletiva.

As virtudes cívicas contra a corrupção

 

A preocupação com o bem comum – que pode ser entendida como uma forma de resumir as várias virtudes cívicas – inclui o acompanhamento dos negócios públicos. É importante notarmos que “acompanhar os negócios públicos” não é o mesmo que “conduzir os negócios públicos”: a condução da vida política cabe antes de mais nada ao governo (aos “governantes”, ao “Estado”), mas os cidadãos têm o dever de acompanhar as decisões e as medidas adotadas. Esse dever impõe-se a todos não apenas porque a vida política diz respeito a todos; ele é necessário também porque os cidadãos “comuns” formam a sociedade civil, que, por sua vez, expressa-se por meio da opinião pública: para que a opinião pública opine de maneira racional, ela deve estar no mínimo bem informada. Além disso, o acompanhamento constante dos negócios públicos é o instrumento mais importante e mais poderoso para que os governantes desempenhem suas funções realmente em favor da coletividade e não em favor de si próprios: em outras palavras, a opinião pública ativa é o instrumento mais importante no combate à corrupção.

Concluindo: a República em memória de Danton, de Paris e da França

 

As concepções expostas acima estão bem longe de esgotar o conceito de República. A idéia e a prática da “república” começaram na Roma Antiga, no século VI a.e.a., foram retomadas na Idade Média em várias cidades italianas e neerlandesas, passaram pela Inglaterra, atravessaram o Oceano Atlântico e foram finalmente consagradas na França, em 1792, no curso dos tormentosos, mas gloriosos, eventos que chamamos de Revolução Francesa. O responsável pela proclamação da República na França foi o grande Georges Jacques Danton (1759-1794); ao fazê-lo, ele procurava realizar o programa duplo indicado acima: contra a monarquia, a favor da coletividade e do bem comum. Com isso, ele consagrava também os princípios da liberdade e da fraternidade, além da igualdade perante a lei.

Georges Danton

Igualdade perante a lei, liberdade e fraternidade: esses ideais são universais. Por meio da obra de Augusto Comte, os princípios consagrados pela República francesa foram aplicados e realizados no Brasil, graças à ação de inúmeros cidadãos e patriotas, entre os quais tiveram papel de destaque muitos e muitos positivistas: Benjamin Constant, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Júlio de Castilhos e outros.



Miguel Lemos

R. Teixeira Mendes

Júlio de Castilhos

A República no Brasil, assim, deve muito à França. Neste dia 15 de novembro de 2015, temos que nos lembrar tanto dos patriotas brasileiros do 15 de novembro de 1889, mas também temos que lamentar que o país que nos forneceu muitos dos nossos mais importantes valores tenha sido alvo de crimes radicalmente opostos aos nossos, apenas dois dias antes, ou seja, em 13 de novembro de 2015.





[1] Publico o presente artigo no dia 16 em vez de no dia 15 devido ao seguinte motivo. Após os crimes ocorridos em Paris, em que terroristas ligados ao Estado Islâmico mataram centenas de inocentes na noite do dia 13 de novembro, passei os dois dias seguintes lendo e escrevendo a respeito disso, procurando entender o que ocorrera e quais os desdobramentos de um tal acontecimento. Assim, não tive imediatamente condições intelectuais e morais para tratar de um assunto mais abstrato, como é a teoria da República.
[2] Nesses termos, parece claro que as acerbas disputas que têm ocorrido no Brasil em que se opõe o auxílio governamental do “bolsa-família” ao “mérito individual” são muito mal concebidas. Os defensores do “bolsa-família” desprezam, sem mais, uma verdadeira conquista civilizacional, que é a afirmação social do mérito; já os supostos defensores da meritocracia têm uma concepção estreita do mérito, cuja consequência no final das contas é também desprezar os méritos. Em ambos os casos as avaliações são rasas, apressadas e concretas.