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03 outubro 2023

Sobre o método subjetivo

No dia 24 de Shakespeare de 169 (3.10.223) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, ainda mais, a Moral).

No sermão abordamos o método subjetivo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/3ABoP) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/OlSVZ). O sermão começa em 56' 30".

Abaixo reproduzimos as anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão.

*   *   *


Sobre o método subjetivo 

-        A idéia do método subjetivo e sua aplicação sistemática é uma das mais belas, impressionantes e importantes elaborações de Augusto Comte

o   O método subjetivo estava presente, mesmo que implicitamente, desde as primeiras elaborações de nosso mestre, mas foi apenas com a criação da Religião da Humanidade que foi possível elaborá-lo de maneira clara e consciente

o   A vinculação do método subjetivo com a Religião da Humanidade já sugere muitas de suas características

-        A presente exposição terá um aspecto geral mais intelectual que qualquer outra coisa; entretanto, é importante ter em mente que, ao tratar-se do método subjetivo, a origem afetiva de todos os pensamentos deve estar bem clara e subjacente

-        Para apresentar de maneira simples e direta, podemos dizer que o método subjetivo consiste na afirmação da perspectiva humana sobre todas as concepções e reflexões humanas; em outras palavras, ele consiste na perspectiva subjetivista

o   Esse subjetivismo também pode ser entendido como a afirmação de um renovado antropocentrismo

o   Além disso, no caso específico do método subjetivo, tal subjetivismo deve ser entendido como sendo social e não individual, a par da origem sociológica da noção de Humanidade e, daí, da moral positiva

§  Caso esse subjetivismo tivesse um caráter estritamente individual, recairíamos nos mesmos problemas da moral e da inteligência teológicas, que são individualistas, solipsistas e não percebem plenamente o caráter social do ser humano

§  Embora a subjetividade do método subjetivo tenha um caráter social, o método subjetivo não desconsidera nem despreza a subjetividade individual

§  A subjetividade individual é incorporada ao método subjetivo por meio das propriedades específicas da ciência da Moral:

·         a Moral estuda diretamente os sentimentos humanos, em particular nos indivíduos

·         a Moral é a ciência que sintetiza todas as ciências anteriores, conforme eles manifestam-se nos indivíduos

·         a Moral é a ciência que realiza diretamente a transição para as artes práticas, começando pela educação e pelo aconselhamento individuais

-        O método subjetivo pode e deve ser entendido em relação de complementaridade com o método objetivo

o   Se o método subjetivo consiste na aplicação dos parâmetros humanos a todas as concepções, reflexões e atividades humanas, o método objetivo consiste no entendimento da realidade a partir da própria realidade, isto é, a partir de uma perspectiva objetiva

o   O método subjetivo é plenamente universal em sua aplicação, na medida em que se refere a tudo o que é humano: essa universalidade (ou generalidade) é, por definição, subjetiva; já o método objetivo é universalizável em termos objetivos, mas essa universalidade depende dos fenômenos considerados

o   Em outras palavras, os métodos subjetivo e objetivo são complementares em sentidos inversos, considerando os princípios de toda classificação: generalidade crescente ou decrescente, objetiva ou subjetiva; particularidade decrescente ou crescente, subjetiva ou objetiva

o   Novamente: enquanto por definição o método subjetivo é plenamente universal e universalizável, o método objetivo varia em sua generalidade de acordo com o fenômeno em questão

§  A constituição do método objetivo segue a classificação das ciências, do mais objetivamente geral e simples para o objetivamente mais específico e mais complicado: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia, Moral

§  Na escala das ciências, a única ciência que é objetivamente plenamente universalizável é a Matemática (na medida em que ela estuda os números, a extensão e o movimento dos corpos); a partir dela, as demais ciências são mais específicas

-        Todas as concepções humanas sujeitam-se e devem sujeitar-se ao método subjetivo (o que inclui as ciências); entretanto, para que ele possa ter a sua adequada primazia, foi necessário antes corrigi-lo, por meio do desenvolvimento do método objetivo e de sua aplicação à realidade humana

o   A necessária correção do método subjetivo deve-se a diversos motivos conexos:

§  o método subjetivo inicialmente é absoluto (e não relativo);

§  ele inicialmente se pretende e afirma-se objetivo (embora seja sempre subjetivo);

§  ele inicialmente se baseia em concepções individualistas (em vez de concepções sociais);

§  ele inicialmente pretende que o mundo é total e infinitamente plástico e obediente às vontades caprichosas dos seres humanos e/ou de tipos semelhantes ou inspirados no ser humano (em vez de obedecer a leis naturais)

o   O método subjetivo é espontâneo, na medida em que se trata da aplicação das perspectivas humanas para tudo, incluindo as concepções sobre a realidade; essa espontaneidade baseia-se nos sentimentos e na percepção imediata da existência humana

o   O método objetivo também é espontâneo, mas sua espontaneidade é menor e mais fraca, na medida em que ela baseia-se na realidade prática e exige a intermediação da inteligência

o   Há assim um descompasso entre os dois métodos, em que o subjetivo surge antes do objetivo e este demora mais para constituir-se

o   Além disso, considerando a lei dos três estados, a subjetividade inicial é teológica (rigorosamente, ela começa fetíchica, mas depois se torna teológica)

§  Daí a necessidade de correção do método subjetivo pelo método objetivo

§  Daí a importância histórica e filosófica das ciências

·         Importa insistir e enfatizar: a longo prazo, a importância das ciências consiste no esclarecimento e na correção do método subjetivo; em comparação com isso, as outras aplicações da ciência (satisfação da curiosidade, estabelecimento de bases para a tecnologia) são secundárias

o   À medida que o método objetivo avança sobre o conhecimento da realidade, vai descobrindo como a realidade funciona e de que maneira o ser humano atua nessa realidade; descobre também que o ser humano não é onipotente, não é onisciente; que suas vontades têm que se submeter a relações constantes e invariáveis que independem de sua vontade (é o dogma das leis naturais) etc.

o   A longa demora na constituição do método objetivo e sua igualmente demorada oposição ao método subjetivo estimularam muitos dos vícios próprios ao método objetivo:

§  seu caráter dispersivo;

§  seu extremado intelectualismo (em contraposição à afetividade e mesmo à atividade prática);

§  seu caráter analítico e detalhista (em contraposição às visões sintéticas e de conjunto);

§  as inúmeras derivas materialistas/reducionistas;

§  a busca de uma síntese objetiva

§  desenvolvimento da impressão de que a ciência é sempre e naturalmente oposta à filosofia e ao método subjetivo

o   Os inúmeros e sérios vícios próprios ao método objetivo só podem ser corrigidos por meio da aplicação do método subjetivo

§  Mas como a renovação do método subjetivo depende do desenvolvimento do método objetivo, desenvolve-se ao longo do tempo uma situação difícil, um verdadeiro impasse

§  Na medida em que o método subjetivo durante muito tempo é teológico, a oposição entre ele e o método objetivo assume a forma da oposição (metafísica) entre a “fé e razão”

§  A única solução possível para esse impasse é por meio da correção e da renovação do método subjetivo a partir de elementos do método objetivo, seguida da correção do método objetivo pelo método subjetivo: esse duplo movimento só é possível na síntese positiva

o   Quando o método objetivo alcança as ciências superiores, muitos dos principais elementos renovadores do método objetivo já estão elaborados em termos gerais – em particular o dogma das leis naturais –, sendo possível então que o método subjetivo seja diretamente reelaborado e que ele possa, afinal, afirmar seu império sobre toda a realidade humana

o   O resultado geral da correção do método subjetivo pelo método objetivo é, após a afirmação da subjetividade humana, também a afirmação do relativismo de todos os nossos conhecimentos

§  A visão de conjunto também se afirma quando o método objetivo adentra as ciências superiores

o   A partir do subjetivismo relativista, o método subjetivo torna-se plenamente apto a realizar seu império sobre o mundo (incluindo a necessária correção dos vícios próprios ao método objetivo)

-        Convém retomarmos uma afirmação que fizemos no início desta exposição: o método subjetivo é a afirmação da perspectiva humana sobre toda a realidade humana; ou seja, é um renovado antropocentrismo

o   Muitos pensadores consideram que todo antropocentrismo é sempre e necessariamente particularista e excludente, especialmente sobre os seres vivos e o meio ambiente

o   À parte o oximoro implícito em “antropocentrismo excludente”, o fato é que o antropocentrismo próprio ao método subjetivo da Religião da Humanidade não nos autoriza a considerar que o ser humano pode fazer o que quiser, em particular em termos dos seres vivos e do meio ambiente e, ao contrário, que de modo geral temos que ter uma postura de cuidado e respeito para com eles

o   O respeito positivista ao meio ambiente baseia-se tanto na concepção ampliada de Humanidade (que inclui os animais domésticos) quanto os sentimentos afetivos e o respeito para com os seres vivos em geral

§  O compartilhamento da mesma estrutura cerebral entre seres humanos, animais superiores e aves é outro motivo para o respeito positivista para com os seres vivos

§  Além disso, a partir de sua renovação com elementos do método objetivo, o método subjetivo reconhece a subordinação do ser humano ao meio ambiente e, portanto, a necessidade de cuidar das condições ecológicas, do equilíbrio dos ciclos vitais etc.

o   Considerando o método subjetivo em relação às três fases da carreira de Augusto Comte, podemos sugerir o seguinte:

§  Sistema de filosofia positiva (1830-1842): consolidação do método objetivo nas ciências inferiores, estabelecimento do método objetivo nas ciências superiores, em particular na Sociologia e em rudimentos da Moral; elaboração implícita do método subjetivo em bases positivas

§  Sistema de política positiva (1851-1854): elaboração direta do método subjetivo em bases positivas, com a elaboração da Religião da Humanidade

§  Síntese subjetiva (1856): desenvolvimento, aprofundamento e aplicação do método subjetivo ao conjunto da realidade humana

-        Como observamos no início, o que expusemos até agora sobre o método subjetivo tem um caráter mais intelectual que qualquer outra coisa; entretanto, o reconhecimento de que o ser humano é acima de tudo afetivo tem conseqüências também sobre o método subjetivo, que deve incluir, necessariamente, aspectos e concepções afetivas

o   O procedimento específico adotado por Augusto Comte para a plena inclusão da afetividade no método subjetivo é a incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final, no que alguns pesquisadores chamaram de “neofetichismo”

o   O resultado disso é que, com isso, o método subjetivo torna-se uma forma de pensar plenamente afetiva (e, inversamente, uma forma de sentir com conseqüências intelectuais)

§  Na verdade, sempre pensamos a partir da inspiração afetiva; o que o método subjetivo faz é reconhecer, estimular, sistematizar e aplicar essa relação

o   Temos aí, por um lado, a instituição da Trindade Positiva: Grão-Meio (o Espaço), Grão-Fetiche (a Terra) e Grão-Ser (a Humanidade)

o   Por outro lado, temos também a lógica positiva: “O concurso normal dos sentimentos, das imagens e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas”[1]

o   Além disso, no final de sua vida Augusto Comte propôs que a lei dos três estados deve ser entendida como uma lei dos quatro estados

§  Essa lei dos quatro estados estabelece que o estado positivo pode e deve dividir-se em estado científico e estado positivo, em que o estado científico mantém o aspecto analítico e potencialmente absolutista da ciência e o estado positivo caracteriza-se pela síntese relativa

§  Comentário pessoal do meu amigo Hernani Gomes da Costa logo após eu terminar a exposição acima, em 3.10.2023:

§  “Você veio confirmar inteiramente uma suspeita que eu vinha desenvolvendo há muito tempo no sentido de apresentar de um modo diferente a lei dos três estados, considerando-a não mais APENAS por referência exclusiva às suas produções externas, isto é, aos respectivos SISTEMAS teológicos, metafísicos e positivo, mas tendo em vista o processo interno de sua gênese. Isso significa, em outros termos, considerar todas as combinações possíveis dos dois binômios subjetivo-objetivo e relativo-absoluto.

Feita essa nova APRESENTAÇÃO, fica bem claro em que consiste o dito ‘quarto estado’.

O estado subjetivo e absoluto corresponderia ao teologismo, incluindo mesmo aí o fetichismo, o estado objetivo e absoluto corresponderia à metafísica espiritualista, o estado objetivo e relativo, à metafísica materialista, e por fim o estado subjetivo e relativo, ao positivismo.”

26 setembro 2023

Sobre títulos e tratamentos

No dia 17 de Shakespeare de 169 (26.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, acima de tudo, Moral).

Em seguida, fizemos nosso sermão a respeito dos títulos e dos tratamentos pessoais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/cLT8S) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/KTD6m). O sermão começa em 46' 47".

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Sobre títulos e tratamentos pessoais 

-        Em termos de relações pessoais e cívicas, a respeito dos pronomes de tratamento e do uso de títulos honoríficos, o Positivismo aplica alguns princípios muito claros e determinados e a regra é: não os usar

o   A base para tal procedimento é a fraternidade universal e a valorização do mérito individual, em um ambiente republicano

o   Em outras palavras, trata-se de realizar a sociocracia nas relações pessoais e cívicas

-        Em algum lugar – cito de memória, pois não consegui recuperar onde li essa bela passagem –, Augusto Comte observa que todos devemos tratar-nos por “senhor” (messieur, em francês), mas subentendendo nessa expressão o título de “cidadão” (citoyen, em francês)

o   A regra é usar “senhor” e também suas variações, como “senhora”, “senhorita”, “senhores” etc.

o   Adicionalmente ao uso de “senhor”, a prática positivista também indica a profissão de cada cidadão: “operário”, “professor”, “médico”, “apóstolo” etc.

-        Essas expressões (“senhor”, “cidadão”) têm uma vinculação inequívoca com a Revolução Francesa e com o seu duplo programa (a abolição da monarquia e do Antigo Regime; a constituição de novas sociedade e sociabilidade)

o   O emprego da expressão “senhor”, no século XIX, apesar de depurada pela Revolução Francesa, possuía ainda um certo elemento feudal, no sentido de que “messieur” referia-se antes aos nobres – daí a necessidade, de qualquer maneira justificada, de reforçar que o elemento “cidadão” deve estar subentendido

o   Na Revolução Francesa e no início da República no Brasil, era muito comum empregar-se o “cidadão” para referir-se aos vários indivíduos: “cidadão Teixeira Mendes”

-        Em todo caso, o que importa notar é que o emprego de “senhor” é uma forma respeitosa e simples de tratar os demais, sem reproduzir as fórmulas habituais: “vossa/sua excelência”, “vossa/sua alteza” etc. etc.

o   Evidentemente, ainda mais que os pronomes de tratamento, a regra sociocrática rejeita o uso dos títulos nobiliárquicos e das comendas: “barão”, “duque”, “marquês” etc.; “membro da ordem X”, “comendador da ordem Y” etc.

o   Isso estabelece uma grande proximidade – quase um igualitarismo – entre as pessoas, tanto afetiva quanto sociopolítica

§  Essa proximidade era uma realidade vivida na Igreja Positivista do Brasil, tanto na época de Miguel Lemos e Teixeira Mendes quanto depois (até os anos 1990)

-        A presente regra é uma orientação geral; mesmo Augusto Comte usava títulos honoríficos ao dirigir-se a outras pessoas, como a dois de seus executores testamenteiros, o espanhol Don José Flores e o alemão Barão Constant-Rebecque

o   É claro que, mesmo usando essas fórmulas tradicionais, Augusto Comte era muito comedido nesse emprego

o   Da mesma maneira, esse emprego de fórmulas tradicionais evidencia o uso de outra regra positivista: “inflexível quanto aos princípios, conciliante de fato”

-        O uso de outros pronomes de tratamento e de títulos honoríficos serve, tanto no Brasil quanto em outros países, para adular, dar carteirada e literalmente discriminar:

o   É extremamente comum vermos documentos oficiais dirigidos a “Sua Excelência o sr. prof. dr. Joãozinho da Silva”, com uma enorme profusão de títulos e pronomes de tratamentos

o   Essa profusão é particularmente notável nas áreas jurídicas, seja em escritórios de advocacia, seja na Ordem dos Advogados do Brasil, seja no Ministério Público, seja nos muitos tribunais

o   O Decreto n. 9.758/2019 estabeleceu que, no âmbito do poder Executivo federal (Art. 1º, § 2º), só se pode usar “senhor” (Art. 2º) – não por acaso, excetuando expressamente todo o pessoal jurídico (Art. 1º, § 3º, inc. II)

-        Uma observação pessoal: muitas pessoas tratam-me por “professor”

o   Embora, evidentemente, o uso de “professor” para dirigir-se a mim seja feito com total boa vontade, boa fé, respeito e reconhecimento de (alguma) capacidade, o fato é que essa palavra é problemática por pelo menos dois motivos:

§  Por um lado, ela não corresponde à minha profissão (eu sou servidor público, ocupando o cargo de sociólogo)

§  Por outro lado, em termos de atuação positivista, não apenas não corresponde à atuação como, pior, ela diminui: eu sou um apóstolo da Humanidade e um sacerdote

o   Vejamos cada um dos âmbitos de atuação:

§  O professor é alguém que domina um assunto e expõe para seus alunos; então, todo apóstolo e sacerdote tem que ser, necessariamente, um professor; mas um professor não é, necessariamente, nem apóstolo nem sacerdote

§  O apóstolo é quem se dedica à difusão sistemática de uma doutrina; sua preocupação é intelectual mas também, e acima de tudo, moral e social; então um apóstolo é um professor, mas cuja atuação é mais ampla

§  O sacerdote (que apresenta os três graus: noviciado, vicariado, sacerdote pleno) é quem divulga uma doutrina, interpreta-a nos diversos casos e atua como educador, conselheiro, avaliador e consagrador; assim, a função sacerdotal abrange necessariamente as atuações como professor e como apóstolo, mas é superior a elas

-        Uma última observação, que faço apenas para não deixar em silêncio o tema em uma prédica dedicada a tratamentos pessoais:

o   Pessoalmente, sou contrário à chamada “linguagem neutra”, que busca abolir a golpes de marretada os gêneros na língua portuguesa e impor um suposto “gênero neutro”, por meio do emprego da terminação “e” nos casos de palavras masculinas (e exclusivamente masculinas) e/ou pelo emprego de “x”, “@”, “#”[1] etc.

o   Sou contra o emprego desse linguajar porque ele é inócuo; porque desrespeita os falantes e os leitores da língua portuguesa; porque é radicalmente contrário ao caráter histórico (e sociológico) da língua; porque é a manifestação lingüística do ultraparticularismo político e moral do identitarismo



[1] Uma curiosidade: o símbolo # em português chama-se “cerquilha”.

11 setembro 2023

Otimismo e pessimismo à luz do Positivismo

No dia 3 de Shakespeare de 169 (12.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista - em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores, isto é, à Sociologia e principalmente à Moral.

Em seguida, na parte do sermão, abordamos como o Positivismo considera o otimismo, o pessimismo e o "negativismo".

Antes da prédica, fizemos alguns comentários sobre o livro do jornalista investigativo do jornal The New York Times Max Fisher, A máquina do caos - como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo (São Paulo: Todavia, 2023). Entre muitos aspectos, e apesar de certas limitações intelectuais e morais do autor, o livro indica como as redes sociais (especialmente o Facebook e o Youtube) de maneira consciente e intencional atuam no sentido de viciar os seus usuários e de estimular a polarização política e social.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://ury1.com/Dhbnz) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/kysA0). O sermão começou aos 58' 08" do vídeo do canal Igreja Positivista Virtual.

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Otimismo e pessimismo à luz do Positivismo 

-        À primeira vista, é extremamente natural falar-se em “otimismo” (e até em “pessimismo”) no âmbito do Positivismo

o   Em um sentido ingênuo e popular, as expressões “positivismo”, “positividade” e “espírito positivo” equivalem a otimismo, a uma esperança geral e difusa, a uma boa vontade também geral e difusa

§  Assim, por exemplo, em seu primeiro mandato, Lula afirmou que seria necessário mais “positivismo no Brasil”

o   Essa associação do Positivismo com o otimismo não está errada e pode ser incluída no Positivismo; mas, ao mesmo tempo, ela é imprecisa, vaga e pode originar desvios intelectuais, morais e práticos, de modo que tem que ser devidamente avaliada e corrigida

o   A partir da associação ingênua e popular do Positivismo com o otimismo, também podemos considerar as relações do Positivismo com o pessimismo e com algo chamado de “negativismo”

-        Comecemos então com os sentidos da palavra “positivo”:

o   A origem da expressão “positivismo” vincula-se ao conhecimento positivo, isto é, real, efetivo, verdadeiro; daí também a expressão “ciências positivas”, conforme usado, por exemplo, por Francis Bacon

§  Por extensão, em uma primeira abordagem, muito básica, o Positivismo refere-se àquilo que é real, que é verdadeiro, que é efetivo

§  Com gigantesca e escandalosa freqüência, as definições que manuais e vídeos de Sociologia, Moral e Filosofia dão do Positivismo limitam-se a esse conceito básico

·         Esse conceito em si mesmo não está errado, mas é tão limitado e tão básico que, no final das contas, ele sugere e daí deduz uma concepção de Positivismo que é (total ou majoritariamente) errada

·         É necessário dizê-lo com clareza: manuais e vídeos que adotam esse conceito são intelectualmente molengas, covardes e, no limite, desonestos, ao preferirem repetir frases feitas a partir da lei do mínimo esforço (ou do nenhum esforço)

o   Todavia, apenas a “realidade” não basta, seja porque o “realismo” tem que ser complementado por outros atributos próximos, seja porque precisamos e aplicamos outros parâmetros

§  Além disso, o desenvolvimento do Positivismo na obra de Augusto Comte acrescentou parâmetros inauditos à primeira vista

§  Daí os sete sentidos indicados por Augusto Comte no Apelo aos conservadores: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

 

N.

Acepção

Opõe-se a

Estatuto teórico

1.   

Real

Irreal (fictício)

Condições fundamentais

2.   

Útil

Inútil

3.   

Certo

Incerto

Atributos intelectuais

4.   

Preciso

Vago

5.   

Relativo

Absoluto

Propriedades sociais

6.   

Orgânico

Crítico

7.   

Simpático

Antipático (ou egoísta)

Fonte moral

 

o   Das acepções acima, na minha opinião, o que se distancia, delimita e modifica o “real” são o “útil”, o “orgânico” e o “simpático”

§  O útil estabelece uma delimitação muito clara e direta, embora nem sempre seja compreendida nem devidamente aplicada

§  O orgânico relaciona-se com o relativo e, de qualquer maneira, é o que distancia o “positivo” da metafísica

§  O simpático, ao afirmar o caráter moral do Positivismo, dá um conteúdo que lembra com clareza que a inteligência e a prática não podem, nunca, separar-se do altruísmo

o   Dito isso, em que sentido podemos considerar que o Positivismo é uma forma de otimismo?

§  De duas formas que, com freqüência, combinam-se na mentalidade popular: por um lado, com a esperança; por outro lado, com a simpatia

§  No que se refere à esperança, as leis naturais permitem-nos prever o que será a partir do que é e, com isso, permite-nos agir adequadamente; ou, por outra, como a verdadeira esperança é aquela que se baseia na realidade, o Positivismo, ao indicar-nos o que pode e o que não pode ser feito, permite-nos desenvolver uma adequada confiança nas possibilidades humanas

§  No que se refere à simpatia, o Positivismo afirma que todos devemos ser altruístas: a lei-mãe da Filosofia Primeira estabelece que devemos elaborar sempre a hipótese mais simples, mais sintética, mais estética e mais altruísta, o que equivale a basicamente ver com bons olhos os seres humanos

-        Entretanto, afirmada a esperança e o altruísmo no Positivismo, temos que ter clareza de que ele não é um providencialismo:

o   O providencialismo é aquela postura geral frente ao mundo que considera que tudo está bom, que tudo é perfeito, que não há nada de errado no mundo

§  Essa postura tem clara origem teológica (em particular monoteísta), ao considerar que a divindade – onisciente, onipotente e onibondosa – criou o mundo com perfeição

·         Essa origem teológica já evidencia que o providencialismo incorre no vício intelectual e moral do espiritualismo

§  A concepção metafísica mais geral, a da Natureza, muitas vezes também recai no providencialismo; muitos cientistas (especialmente matemáticos, astrônomos e físicos) com freqüência adotam uma perspectiva providencialista

§  Leibniz propôs a concepção (metafísica) de que vivemos no melhor dos mundos possíveis; Voltaire ridicularizou essa concepção em seu Cândido, ou o otimismo

§  É certo que essa perspectiva caracteriza-se por grande altruísmo, mas: é um altruísmo vago e, acima de tudo, é uma concepção que falha miseravelmente na parte da realidade (isso para não mencionar a parte da utilidade)

§  Além disso, é necessário notar também que o providencialismo estimula a passividade

o   A realidade é extremamente imperfeita

§  Se por vezes isso não é evidente, a mera necessidade de termos que realizar uma série interminável de aperfeiçoamentos no mundo e na vida deveria acabar com qualquer pretensão providencialista

§  Afinal de contas, só podemos aperfeiçoar o que é imperfeito

o   No que se refere ao providencialismo, por vezes aparece uma tradução para o português da máxima “vivre au grand jour” que tem um aspecto providencialista – o que já deveria indicar que essa tradução é errada

§  O francês “vivre au grand jour” é traduzido como “viver às claras”

·         O francês jour significa tanto “dia” quanto “claridade”, “clareza” em português

§  Mas há pessoas que não conhecem o francês – e/ou não conhecem a tradução consagrada – e palpitam traduzir como “viver para o grande dia”

§  O problema de “viver para o grande dia” é que sugere que o Positivismo adota um messianismo e/ou um milenarismo, ao afirmar um suposto “grande dia”, alguma coisa como “o juízo final” – o que deveria ser muito claro que não corresponde, de maneira nenhuma e nunca, ao Positivismo 

-        Passando para o pessimismo em face do Positivismo:

o   Considerando os aspectos indicados acima, parece claro que não há muito espaço para o pessimismo no âmbito do Positivismo

o   Evidentemente há momentos em que podemos ficar pessimistas; mas ficar pessimista em alguns momentos, em algumas ocasiões, a respeito de alguns assuntos, é muito diferente de assumir o pessimismo como uma postura geral perante a vida

§  De modo geral, o Positivismo adota uma perspectiva otimista em relação ao ser humano e uma esperança a respeito do seu aperfeiçoamento

o   Muitas filosofias são “pessimistas” porque conjugam um suposto “realismo” com um estímulo a estados mórbidos

§  Sobre o suposto “realismo”:

·         Ele adota uma perspectiva negativa do ser humano, negando totalmente o altruísmo e também o desenvolvimento histórico e considerando que o ser humano é sempre egoísta e que ele nunca muda ao longo da história

·         Essa concepção, que é largamente herdeira do monoteísmo cristão, com facilidade descamba em ou justifica o cinismo

·         Da mesma forma, esse “realismo” antialtruístico justifica um amoralismo que, na verdade, é apenas uma desculpa para o imoralismo

·         Além disso, muitos pessimistas adotam uma perspectiva e/ou um comportamento blasé, de ironia e/ou desprezo fácil e incoerente em relação aos esforços de aperfeiçoamento humano

§  Sobre os estados mórbidos:

·         O pessimismo conduz a negar as alegrias da vida e, com isso, a tirar toda a satisfação nas atividades

·         Daí, os indivíduos não se satisfazem com o convívio social nem com suas atividades individuais: o resultado é a depressão

·         Como esse quadro moral não tem solução, os assim chamados pessimistas vivem em uma situação contraditória, consciente ou inconscientemente, obtendo satisfação com suas atividades e com o convívio social e reconhecendo possibilidades de melhorias, mas fingindo que nada disso ocorre

-         A respeito de um suposto “negativismo” como oposto ao Positivismo:

o   Por vezes já ouvi perguntarem-me a respeito do que seria um suposto “negativismo” como contrário ao Positivismo

o   Uma possibilidade inicial pode ser o pessimismo, que comentamos acima

o   Uma outra possibilidade desse “negativismo” dar-se-ia pela negação dos sentidos da palavra “positivo”; assim, o negativismo seria o irreal, o inútil, o incerto, o impreciso, o absoluto, o crítico e/ou o antipático

o   Dependendo da referência, podemos considerar que esse negativismo como antítese do Positivismo seria a teologia (irreal, incerta, impresa e absoluta) ou talvez a metafísica (irreal, incerta, imprecisa, absoluta, crítica e antipática)

§  Apesar de seu irrealismo, a teologia afirma coisas e, nesse sentido, ela não é negativista, no sentido de que ela não nega coisas

§  Por outro lado, nem toda metafísica é puramente negativa; por exemplo, Platão desenvolveu u’a metafísica que atuou como solvente do politeísmo e como preparatória para o monoteísmo

§  Mas a metafísica moderna, começando com o protestantismo e seguindo pelo liberalismo e pelo espírito revolucionário consagrado pelo marxismo e chegando aos pós-modernos atuais, é cada vez mais negativista

§  Essa metafísica moderna, apesar de profundamente negativista, é claro que muitas vezes tem que se haver com a realidade concreta e, aí, de maneira profundamente contraditória, vê-se obrigada a aceitar a positividade, como na frase de Trótski: “pessimismo da razão, otimismo na prática”

-        Em suma:

o   O Positivismo aceita e estimula um certo otimismo, seja em relação aos seres humanos em geral, seja em relação às nossas possibilidades de atuação

§  Mas esse otimismo de fundo exige sempre ser temperado pela prudência e pelo cuidadoso conhecimento das realidades que vivemos

§  Além disso, esse otimismo não pode nunca ser confundido com o providencialismo

o   Por outro lado, de maneira inversa ao otimismo, é possível dizer que somos contrários ao pessimismo como postura de vida

o   No que se refere ao “negativismo”, especialmente da metafísica moderna, somos totalmente contrários a ele