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04 janeiro 2007

Liberdades reais e liberdades formais


Um dos procedimentos mais simples e mais eficazes para a discussão de temas filosóficos – na verdade, para a reflexão em geral na vida – é por meio da contraposição de dois termos opostos. Às vezes, esses dois termos são inconciliáveis entre si de um ponto de vista moral (por exemplo, Bem e Mal) ou lógico[1] (no princípio do tertium non datur – “não existe terceira opção”), mas muitas vezes são apenas um recurso para a exploração das possibilidades lógicas e teóricas em uma área qualquer do conhecimento. Essas oposições são chamadas de “dicotomias” e aquelas que são inconciliáveis entre si, de “antinomias”[2].

Na Teoria Política há diversas dicotomias, que podem ou não ser antinômicas. No que se refere à discussão sobre a liberdade, podemos começar com uma celebrizada pelo teórico alemão Karl Marx, pai do comunismo ou do “socialismo científico”. Ao analisar a sociedade contemporânea, Marx diagnosticou uma série de problemas: crescimento vertiginoso, exploração e pauperização do proletariado, alienação do ser humano, egoísmo da burguesia e dos grupos dirigentes de modo geral. Embora os métodos por ele empregados e as soluções propostas por Marx sejam inadequados (os métodos) e incorretas e desastrosas (as soluções), permanece o fato de que os problemas que indicou existem e devem ser enfrentados com clareza e decisão.

A dicotomia que Marx sugeriu foi entre as liberdades “reais” e as liberdades “formais”. Considerando as liberdades civis, “clássicas” – isto é, de ir e vir, de pensamento, de expressão, de crença, de associação –, Marx perguntava-se até que ponto elas são reais, efetivas, para uma população crescentemente depauperada e que vivia no limite da sobrevivência. A essas liberdades, de caráter político, ele opunha liberdades econômicas; não no sentido da inexistência de obstáculos à produção e à movimentação de bens e serviços, mas a liberdade das privações econômicas. Livre, nesse sentido, seria aquele que não passasse por necessidades econômicas extremas e pudesse, com dignidade, fruir a vida: em outras palavras, livre seria aquele que vive e não meramente sobrevive.

Em uma sociedade em que a simples sobrevivência material das pessoas está em questão, a dicotomia marxiana é uma questão real e urgente, frente à qual as liberdades políticas são percebidas como formais, talvez quase como embustes criados pelos grupos dominantes para explorar desimpedidamente os fracos e pobres. Aliás, a partir disso, embora não sejam similares, a dicotomia liberdade real-liberdade formal pode ser convertida na dicotomia igualdade-liberdade.

A discussão sobre as liberdades muitas vezes é abstrata e, por isso, tem-se a sensação de que é irreal ou falsa; frente às necessidades urgentes de inúmeros grupos sociais, as liberdades civis desvanecem-se em favor da satisfação das necessidades mínimas dos “excluídos”. Quantas vezes já não se ouviu, cotidianamente, as denúncias sobre as péssimas condições de vida de comunidades inteiras, juntamente ou não com clamores em favor da justiça social ou da “emancipação humana”?

Todavia, a história do século XX demonstrou que essa oposição, conquanto muito difundida, é falsa, isto é, não é aceitável para o ser humano opor as liberdades “reais” às liberdades “formais”. Se as liberdades civis são “formais”, isto é, questões de apenas forma e não de conteúdo, elas são secundárias; além disso, se elas são o instrumento da dominação e da exploração econômica e “humana” de um grupo restrito sobre outro, bem maior, não há porque manter essas liberdades: elas são descartáveis. Em seu lugar, a liberdade “real” é buscada: sociedades que, a partir da autoridade do Estado, mantêm sistemas de educação, saúde, geração de trabalho e renda universais, especialmente para as populações mais desfavorecidas. Em troca, a população não tem as liberdades “formais”, civis: não pode associar-se, não tem liberdade de pensamento e de crença nem, como conseqüência, liberdade de expressão. Em outras palavras, em troca das condições mínimas de vida, deve-se obediência cega (ou muda) ao Estado[3]...

Como indicamos, o século XX demonstrou que não é válida a oposição entre as liberdades “formais” e as liberdades “reais”. Na verdade, os próprios nomes da oposição já indicam como podem ser enganadores: as liberdades “formais” revela(ra)m-se tão substantivas quanto as liberdades “reais”: pode-se viver e não apenas sobreviver, mas não se tem os motivos nem as condições para realizar essa vida.

Referências bibliográficas

ARON, R. 1966. Trois essais sur l’age industriel. Paris: Plon.

BOBBIO, N. 1996. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro.

Comte, A. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil.



[1] O estruturalismo de Lévi-Strauss, por exemplo, explica as realidades sociais por meio de oposições binárias lógicas.

[2] Augusto Comte, reconhecendo a importância lógica das oposições binárias para o pensamento humano, sugeriu que, no caso em que os termos opostos, polares, não são inconciliáveis, introduza-se um terceiro elemento, cujo papel é operar a ligação entre os dois extremos e que apresenta elementos de ambos (15ª lei da Filosofia Primeira – cf. Comte (1934, p. 479)).

[3] Basta pensar em Cuba ou na China, mas o Camboja e a União Soviética são exemplos mais gritantes disso; se se desejar, mesmo o regime militar brasileiro de 1964 aproximou-se disso, com o “milagre econômico”. Em contraposição, os trabalhadores liberados da opressão econômica aproveita(ra)m cada vez mais as liberdades civis (cf. ARON, 1966).

Luta de classes e senso comum

Luta de classes e senso comum[1]

Quem ler qualquer revista ou jornal, ou livros acadêmicos, ou vir o vestibular (da usp, da UFPR, da Unicamp) não demorará muito até encontrar frases do tipo “a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas” ou “o capitalismo baseia-se na exploração de uns pelos outros”. Essas idéias, que infelizmente já se incorporaram ao senso comum, são, apesar disso, extremamente danosas.

Não é difícil vermos os conflitos de classe como integrantes da sociedade. A todo instante percebemos negociações entre patrões e empregados, vemos como a taxa de desemprego é alta, que muitos – demais, até – empresários não se preocupam com o corpo de empregados, visando apenas ao lucro etc. A partir daí aceitamos, quase como conseqüência natural, que não é possível a sociedade sem a “luta de classes”.

Essa perspectiva, contudo, é errada. É lógico que há esses problemas sociais, que são, de fato, problemas, e que quem está desempregado não vai trabalhar apenas por mudar de ponto de vista: mas não se trata disso. A questão é outra: de fato a sociedade baseia-se em um pequeno grupo de ricos explorando o trabalho de muitos outros? Essa visão é correta, isto é, a sociedade é efetivamente assim e nossa vida em comum torna-se melhor se a percebermos dessa forma? Mais precisamente: a descrição científica corresponde à realidade e os postulados éticos são corretos?

Na verdade, quem faz profissão de fé em que a luta de classes é básica e fundamental para a sociedade não entende o mínimo do ser humano, especialmente no que se refere à importância dos valores para nossa existência coletiva. Nenhum grupo mantém-se sem valores que regulem sua conduta, isto é, que evitem os excessos de uns e que protejam a fraqueza de outros. Enfatizo: nenhum grupo fica sem tais valores. Querer afirmar que a nossa sociedade, tachada de “capitalista”, é desregrada e que alguns podem explorar a grande massa a seu bel-prazer é adotar um cinismo suicida, tanto em termos econômicos quanto políticos. Além disso, tais concepções só são aceitáveis porque há grupos que os defendem – e não são os “capitalistas”.

O sociólogo alemão Max Weber argumentou com sucesso, em 1904, que o “capitalismo”, assim como o conhecemos, só é possível porque algumas seitas protestantes, nos séculos XVI e XVII, buscando realizar a vontade divina na terra, tornaram correto o individualismo econômico mais brutal, em que cada pessoa deve satisfações apenas a seu Deus, ao invés de preocupar-se com os demais. Weber afirmou que esse padrão de conduta teve um sucesso enorme – como é evidente – em virtude dos seus resultados econômicos, difundiu-se e tornou-se dominante. Ou seja: o capitalismo foi antes de tudo um valor moral praticado por certos grupos.

É simplesmente errado afirmar que “a classe dominante sempre busca explorar a classe dominada”. As coisas não são assim, tão simplistas e tolas. É lógico que, por exemplo, nos dias atuais, um capitalista busca o lucro, da mesma forma como é evidente que há capitalistas que adotam comportamentos predatórios (basta pensarmos no trabalho semi-escravo ainda existente no Brasil), assim como, inversamente, a incorporação do proletariado à sociedade é a tarefa social mais urgente, em nosso país e no mundo.

Onde está o erro? Está na generalização brutal e violenta, ao afirmar que “todos os que estão no poder (os capitalistas) querem a exploração”.

Essa forma de pensar é típica das teorias da conspiração: “há alguém querendo nos dominar”, “todos ‘eles’ são maus”, “os de cima não prestam”. Divide-se o mundo em dois campos, “nós” e “eles”, sendo que nós, a maioria, somos bons, sinceros e corretos, mas temos sido enganados até agora; eles são a minoria, má, hipócrita e desonesta, que manipula, engana e pensa apenas em si própria. O mundo será um lugar melhor apenas se eles deixarem o poder; mas como nós não os conhecemos, devemos “duvidar de tudo” e adotar uma atitude de “resistência”, mantendo uma “luta” sem cessar, uma “guerra sem trincheiras”, até o dia em que mostraremos ao mundo quem são eles e tomaremos o poder, “fazendo a revolução”; além disso, todo o discurso “de cima” é uma enganação que serve para “dominar”, isto é, é “ideologia”.

Esse esquema, que lembra a série de televisão Arquivo X, resume o programa político do marxismo e da esquerda em geral, apenas substituindo “eles” por “neoliberais”, “capitalistas” ou coisa que o valha.

Isso é senso comum e do pior tipo, pois é o mais daninho, o mais destrutivo, o mais cínico. Ele mina completamente a possibilidade de confiança de uns nos outros, além de proclamar que a revolta e a rebelião são o estado normal da sociedade. Dessa forma, sempre que alguma coisa nos desagradar, diremos que “é uma conspiração dos fortes (ou da burguesia) contra nós”, e poderemos agir como quisermos.

Por exemplo: com base no discurso acima, posso afirmar – como diversos “acadêmicos” de esquerda dizem – que a eleição de Luís Inácio Lula da Silva é boa para o capitalismo, pois a exploração aumentará e a massa de trabalhadores (transformada em boiada) aceitará melhor tudo. Como as coisas passam-se assim, não preciso respeitar nenhuma instituição, nem devo a mínima lealdade ao Presidente da República; aliás, como ele é o “traidor da classe”, pois vendeu-se para “eles” (para a burguesia), não há nada que me impeça de ir a Brasília cometer um atentado (desculpem-se: um ato de desagravo)...

Dirão alguns que isso é radicalismo. Não: é honestidade e coerência, admitindo as conseqüências lógicas da maneira de pensar da esquerda e de seu senso comum. A esquerda, que adora dizer que “devemos policiar nossas idéias, em virtude de suas conseqüências políticas”, deveria prestar maior atenção às tais “conseqüências políticas de suas idéias” (ou ser mais honesta e coerente).

Para concluir, duas observações. Em primeiro lugar, esse senso comum da luta de classes, apesar de parecer natural, é o resultado de um esforço consciente de diversos grupos, há décadas – de modo geral os partidos políticos de esquerda, cuja influência é enorme, refletindo-se nos meios de comunicação, nos currículos escolares, na produção artística, na direção do Estado (basta lermos os escritos do comunista italiano Antônio Gramsci – que, não por acaso, há tempos são algumas das principais leituras da esquerda).

Em segundo lugar, creio estar claro que não defendo a irresponsabilidade de inúmeros capitalistas, nem a farra financeira internacional, muito menos a hipocrisia de vários grupos que pregam a “caridade” para explorar melhor (ou mesmo escravizar) os trabalhadores – tudo isso é revoltante. A irresponsabilidade e a hipocrisia têm que ser condenadas e combatidas com energia, e temos todos que buscar vigorosamente soluções para esses problemas sociais. O que não se pode aceitar, de maneira alguma, é que a revolta moral contra injustiças sirva de justificativa para uma forma de pensar cínica, tão nociva à sociedade quanto os próprios abusos dos capitalistas.



[1] Artigo publicado no jornal O Estado do Paraná em 16 de fevereiro de 2003.