24 maio 2023

Teoria positiva da religião

No dia 3 de São Paulo de 169 (23.5.2023) fizemos nossa habitual prédica positiva. Na parte da leitura comentada, demos continuidade e concluímos a "Sexta conferência" do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do dogma; no sermão reapresentamos a teoria positiva da religião.

As anotações que serviram de base para a o sermão estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/sQgY8) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/xdGrS). O sermão começa aos 54' 15".

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Sobre a religião

 -        A idéia de religião é um dos mais importantes e centrais do Positivismo; isso não poderia ser diferente, na medida em que o seu nome adequado é “Religião da Humanidade”

-        Antes de vermos o conceito de religião no Positivismo, temos que fazer uma observação prévia fundamental: para o Positivismo, “religião” e “teologia” são coisas muito diferentes

o   A teologia é uma das formas de conceber-se a religião

o   De acordo com a lei dos três estados, todo conceito passa, ao longo do tempo, por três estados – teológico, metafísico e positivo (o que também pode ser entendido como passando do absolutismo para o relativismo) –; assim, a religião começa teológica, assume um aspecto metafísico e, chegando à relatividade, torna-se positiva

o   As religiões teológicas são, pela ordem: o fetichismo (e a astrolatria), o politeísmo, o monoteísmo; as religiões metafísicas são o panteísmo, crenças sobrenaturalistas intelectualistas e espiritualistas de modo geral, as crenças materialistas e até o ateísmo; a religião positiva é, por definição, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade

-        Para o Positivismo, a religião é a instituição que coordena e regula o conjunto da existência humana, em seus vários aspectos: afetivo, intelectual e prático; coletivo e individual; público e privado

o   A religião deve ser entendida em termos de religare, isto é, “re-ligar”, ligar duas vezes

§  Conferir a unidade individual (pelo amor) e ligar cada um de nós aos demais (pela fé)

§  Uma outra forma de ver isso é entender em termos de regrar o ser humano e reunir todos para com todos (em francês: regler e rallier)

-        A organização da natureza humana é a divisão mais básica para entendermos a Religião da Humanidade

o   Cada uma das partes da natureza humana é regulada com instituições específicas: os sentimentos pelo culto, a inteligência pelo dogma, a atividade prática pelo regime

o   Na verdade, a divisão tríplice da natureza humana baseia-se em uma divisão dual anterior: o amor e a , sendo que o amor, por sua vez, divide-se em sentimentos e atividade

o   No que se refere à natureza humana, o aspecto mais importante são os sentimentos; eles são o fundamento da existência humana e o objetivo último de todas as nossas atividades

o   A inteligência indica os meios para satisfação dos sentimentos e, assim, é a ministra do coração; a atividade prática provê os meios para tal satisfação e é o regulador geral da existência humana

-        A religião – ou seja, a coordenação e regulação geral da existência humana – é necessária porque o ser humano tem inúmeras características que, por um lado, exigem regulação e que, por outro lado, exigem coordenação (quando não subordinação)

o   O problema fundamental do ser humano não é nem propriamente o chamado “problema da coordenação”, que é a dificuldade de organizar os muitos indivíduos em ações coletivas; essa dificuldade sempre existe, mas ela é secundária e derivada do problema realmente fundamental

o   O problema fundamental é multiplicidade e maior força dos instintos egoístas e o menor número e a maior fraqueza dos instintos altruístas

o   Tanto uns quanto outros existem naturalmente e são reais, são efetivos; mas ao longo da história humana, o egoísmo foi mais forte que o altruísmo (embora o altruísmo ganhe intensidade com o passar do tempo)

o   Além disso, há uma multiplicidade de instintos, sejam egoístas, sejam altruístas; o egoísmo, que se compõe de oito instintos e divide-se em interesse e ambição, tem seus instintos específicos competindo entre si pela primazia o tempo todo, o que gera instabilidades constantes, sejam individuais, sejam coletivas

o   Já o altruísmo tem menos instintos específicos (apego, veneração e bondade) e com menor intensidade, mas eles são harmônicos entre si e, quando devidamente estimulados e orientados, conseguem subordinar e coordenar o egoísmo: daí provêm a nobreza e a força do altruísmo

-        A solução para o problema humano, então, é a primazia do altruísmo e a subordinação do egoísmo a ele

o   A parte da religião que regula e estimula diretamente os sentimentos é o culto

o   O altruísmo é inato; como observou Augusto Comte, apenas o cinismo e o egoísmo poderiam negar essa realidade, seja devido ao egoísmo sacramentado pela teologia, seja devido ao intelectualismo academicista

o   A primazia do altruísmo ocorre tanto pelo estímulo direto dos sentimentos altruístas (subjetivamente) quanto pela vida coletiva (objetivamente)

§  A mera vida coletiva força-nos a limitar o egoísmo e a desenvolver o altruísmo

o   É sempre importante lembrar: subordinar o egoísmo não equivale a negar o egoísmo: este continua existindo, mas é restringido em sua intensidade e, na medida do possível, é satisfeito por vias altruísticas

§  A solução do problema humano e a relação entre altruísmo e egoísmo é dada pela fórmula “viver para outrem”

§  Qualquer aperfeiçoamento exige a admissão prévia de imperfeição, que, por sua vez, exige a admissão de uma perfeição (ideal ou não) que está acima de nós: assim, o aperfeiçoamento sempre exige a submissão

·         A submissão com vistas ao aperfeiçoamento comprime o egoísmo e desenvolve (direta ou indiretamente) o altruísmo

§  Mas é claro que é preferível, ainda que não se possa realizá-lo exclusivamente, o estímulo direto do altruísmo

·         O estímulo do altruísmo é a ternura; a compressão do egoísmo é a pureza

o   Evidentemente, o enunciado teórico, abstrato, do problema humano é bastante simples, mas a solução concreta do problema humano é de solução complicada, pois a subordinação do egoísmo ao altruísmo tem que ser constante e permanente, além de ocorrer ao mesmo tempo em indivíduos e nas coletividades

§  Por isso, todos os esforços possíveis devem ser envidados, o tempo todo, o máximo que se puder, para que o problema humano seja satisfeito

§  A satisfação do problema humano exige a mobilização de toda a natureza humana, ou seja, a inteligência e a atividade prática devem, necessariamente, ajudar ativamente os sentimentos nesse esforço

§  Quando o problema humano é satisfeito e a natureza humana concorre toda ela para sua satisfação, nós temos a harmonia, com a felicidade individual e o bem-estar coletivo

·         Tal satisfação é possível e ocorre mais ou menos em diversas sociedades e ao longo de nossas vidas

o   Vale também lembrar que o estímulo do altruísmo ocorre também por meio da idealização, seja a poética, seja a intelectual (seja mesmo a prática, por meio de projetos)

o   Por fim: o estímulo do altruísmo e a perspectiva social constituem o padrão de moralidade do Positivismo

§  Inversamente, o que dificulta ou nega o altruísmo e/ou o caráter social do ser humano constitui a imoralidade

§  O mais importante desenvolvimento de que o ser humano é capaz é o progresso moral

-        Como indicamos antes, a inteligência é ministra do coração, no dogma

o   Isso quer dizer que a inteligência explica a realidade, esclarece os sentimentos, indica os meios de satisfazer as necessidades afetivas, corrige rumos: tudo isso é, de fato, muita coisa; mas ser “muita coisa” não equivale a que a inteligência seja a fonte ou a destinação da existência humana

o   Sempre que se considera que a inteligência é a origem das orientações fundamentais do ser humano, o resultado é que a inteligência permanece ministra do coração, mas o coração passa a obedecer – sem que se reconheça isso – ao egoísmo, geralmente ao orgulho e/ou à vaidade

§  Essa relação é dada pela fórmula “agir por afeição e pensar para agir”

o   A parte da religião que regula a inteligência é o dogma; o dogma, por sua vez, deve ser entendido como tendo pelo menos duas grandes partes: uma primeira, concreta e abstrata, relativa ao conjunto dos conhecimentos humanos mais ou menos dispersos, e uma segunda parte, abstrata e filosófica: esta segunda parte é chamada de “síntese” e corresponde ao trabalho intelectual que constitui a religião

o   Além de auxiliar os sentimentos e a atividade prática, a inteligência também pode e deve, ela mesma, tornar-se mais altruística

§  Isso se dá por meio das idealizações intelectuais, na medida em que toda abstração consiste em idealizações da realidade

§  Uma forma indireta, mas fundamental, de tornar altruística a inteligência é assumir o relativismo dos conhecimentos humanos, rejeitando o absolutismo e as preocupações absolutas

§  Também é importante lembrar que todos os conhecimentos humanos convergem para a Moral, seja como ciência, seja como arte

-        A atividade prática é regulada pelo regime

o   É importante notar que, ao mesmo tempo em que o regime deve ser, por si só, regulado, ele também é um importante regulador, tanto dos sentimentos quanto, principalmente, da inteligência

§  Vale notar que a inteligência submete-se duplamente: aos sentimentos e à atividade prática

o   A importância da atividade prática é mais ou menos evidente: apenas por meio das atividades práticas é que o ser humano relaciona-se com outros seres humanos e que pode realmente satisfazer suas necessidades

§  Mesmo os sentimentos só têm valor quando resultam em ações concretas, no sentido de que os atos sempre contam mais que as intenções

o   É por meio da atividade prática que se realiza principalmente o caráter coletivo do ser humano: logo, é sempre imperativo tratar com grande atenção desse âmbito, para que o problema humano seja satisfeito também coletivamente

o   A atividade prática também confere uma utilidade e, daí, uma orientação efetiva para a inteligência – que, como sabemos, entregue a si mesma, descaminha-se com enorme facilidade

o   É devido às íntimas relações, às vezes indiretas, entre os sentimentos e a atividade prática (em particular em contraposição à inteligência, ou seja, à “fé”), que esses dois aspectos da natureza humana correspondem ao âmbito geral do “amor” na religião

o   O regime é regulado por diversas fórmulas, mas a que é especialmente dedicada à atividade prática é o “viver às claras”

§  Outras fórmulas do regime: a já indicada “agir por afeição e pensar para agir”; “o capital é social em sua origem e deve ser social em sua destinação”; “dedicação dos fortes pelos fracos, devotamento dos fracos pelos fortes”

-        Todos esses aspectos são coordenados no Positivismo, na síntese subjetiva positivista; entretanto, a síntese por si só é uma elaboração intelectual, faltando então uma concepção que congregue a síntese intelectual com a simpatia afetiva e a sinergia prática: essa concepção é a “Humanidade” – daí a “Religião da Humanidade”

o   A Humanidade deve ser entendida como o conjunto de seres humanos passados, futuros e presentes, de tal modo que a continuidade humana, dada pelas populações subjetivas, seja sempre afirmada sobre a solidariedade, dada pelos agentes presentes

§  Os animais, especialmente os domésticos e os mais diretamente úteis, integram a Humanidade; da mesma forma, por meio do neofetichismo, o meio ambiente (a Terra, o Sol, a Lua) e muitos objetos também integram a Humanidade

o   A Humanidade é um ser compósito e subjetivo: ele é composto por muitos pequenos agentes, que atuam de maneira coletiva e que se reúnem subjetivamente para cada um de nós

o   A Humanidade não é um ideal distante de nós (embora, por meio da idealização, esteja distante das paixões): cada um de nós tem acesso direto a representantes concretos, objetivos, do Grande Ser: mães, esposas, irmãs; famílias, grupos de amigos, pátrias (ou melhor, mátrias)

o   Rigorosamente, os seres humanos vivos não integram a Humanidade: a incorporação é um sacramento póstumo, realizado sete anos após a transformação de cada agente concreto

§  Em outras palavras, devemos merecer a incorporação à Humanidade

o   A Religião da Humanidade só foi possível graças ao desenvolvimento histórico do ser humano, em termos de culto, dogma e regime

§  Antes de um limiar de desenvolvimento do ser humano simplesmente não era possível a Religião da Humanidade, embora tenham havido antes ensaios mais ou menos próximos desse ideal

·         Para que fosse possível a instituição da Religião da Humanidade, as diversas forças e capacidades humanas tiveram que se desenvolver: o dogma positivo teve que ser completado, o relativismo teve que se afirmar em sua totalidade, a atividade pacífico-industrial teve que se sobrepor crivelmente à guerra, a noção planetária de humanidade teve que se tornar possível em face das famílias e das pátrias

o   Isso tudo só ocorreu a partir do século XIX e, em particular, na Europa Ocidental

·         Os ensaios prévios foram a Roma antiga (da instituição da República até o final do século II) e, em menor grau, a China confuciana

18 maio 2023

Teoria positiva da confiança

No dia 24 de César de 169 (16.5.2023) realizamos nossa prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada da sexta conferência do Catecismo positivista (dedicada ao conjunto do dogma positivo), proferimos um sermão sobre a teoria positiva da confiança. As anotações que serviram de base para essa exposição, acrescidas de comentários sugeridos pelo público, estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/gl2k6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/vPER3). O sermão pode ser visto a partir de 41' 45".

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Sobre a confiança

 -        Podemos dizer que a confiança é a base todas as relações sociais

o   Assim, a confiança é um dos conceitos sociais, políticos e morais mais importantes de qualquer sociedade e de qualquer pessoa

o   A confiança seria importante para o Positivismo de qualquer maneira; mas, além disso, o Positivismo fundamenta de diferentes maneiras e tira inúmeras conseqüências da confiança

-        A confiança em si mesma tem aspectos subjetivos e outros objetivos

-        À primeira vista, a confiança seria apenas subjetiva e individual

o   Podemos defini-la basicamente como a crença de que alguém e/ou alguma instituição merece respeito e apoio

§  Em certo sentido, a confiança aproxima-se da esperança: mas, enquanto a esperança tem um aspecto mais abstrato e de longo prazo, a confiança é mais concreta e de curto prazo

o   Mais do que apoio e respeito: trata-se da crença de que, em um determinado âmbito da vida, podemos confiar no julgamento e nas ações tomadas por outras pessoas e/ou instituições

§  Assim, esse aspecto puramente subjetivo assume um âmbito coletivo e tem conseqüências diretas também coletivas

o   Um outro aspecto importante, também subjetivo e objetivo, individual e coletivo: a confiança exige sempre a liberdade e, portanto, a autonomia dos indivíduos

§  Inversamente, isso equivale a dizer que em face do medo, da coerção, da ameaça de violência, não é possível a confiança

 

[Comentários de Hernani Gomes da Costa, feitos em 14.5.2023.]

Boa tarde, Gustavo! Tudo bem? Acabei de ler a sinopse de seu próximo sermão. Pareceu-me capaz de fornecer as bases necessárias para uma apresentação completa do assunto em seu próprio âmbito.

Assim, tenho pois a acrescentar aqui apenas uma sugestão, que embora me pareça acessória (e dispensável, portanto, à compreensão do assunto) proveria o sermão de uma base mais geral e sistemática.

Ela consiste em ligar o tema específico da confiança fazendo-o derivar do conjunto inteiro do dogma, isto é, vinculando-o à concepção fundamental deste.

Se a base da nossa confiança reside na fé demonstrável segundo a qual a Humanidade habita um mundo onde os fenômenos quaisquer seguem leis apreciáveis, é esta precisamente a confiança que nos haverá de conferir toda a segurança emocional necessária à nossa harmonia mental nas relações humanas. O “mundo assombrado pelos demônios”, de que fala Carl Sagan, é o mundo onde se imagina que “tudo pode acontecer”, e que longe de nos favorecer a confiança seja lá no que for, apenas pode nos fazer mergulhar a mente nas mais delirantes e antipáticas possibilidades todas elas tornadas igualmente plausíveis.

Einstein em contrapartida (que costumava “jogar pra a platéia” servindo-se de metáforas teológicas para exprimir seu pensamento, de maneira atraente) certa vez afirmou que “o Senhor é sutil mas não malicioso”, querendo, no fundo, dizer com isso que a Natureza não se furta nunca a dar-se a conhecer à Humanidade, podendo cada um de nós, confiar nela tal como confiaria em alguém radicalmente honesto. Essa fé na regularidade dos fenômenos quaisquer corresponde à mais longínqua referência a que podemos levar o conceito de confiança.

Aquele mesmo pensamento que Einstein exprimiu em termos teológicos, Carl Rogers o expressou vantajosamente em termos fetíchicos, quando afirmou que “os fatos são amigos”. Ora se um amigo é fundamentalmente digno de confiança, nada nos impede de dizer, inversamente, que o que é digno de confiança é amigo.

Assim, a transparência que fundamenta as relações fraternas entre os homens não é um sentimento que precise ser procurado e desenvolvido apenas no interior da ordem moral. Ao contrário ele nos é desde sempre e o tempo todo exemplificado e robustecido por uma concepção diretamente sugerida já pela própria ordem física e mesmo pela ordem lógica. Com efeito, o mundo espontaneamente se oferece à Humanidade tal como sistematicamente as pessoas se propõem a fazê-lo guiadas pelo altruísmo. Ao apenas ser tal como é, e portanto ao tão só manifestar-se a nós apenas (e totalmente) pelo que é, o mundo vem assim a nos prover do mais recuado exemplo físico e lógico de tudo aquilo que nós devemos ser e desenvolver moralmente.

Um outro ponto que talvez merecesse comentar é o contraste radical entre os conceitos teológico e positivo de confiança: o mesmo teologismo que nos convida (ou antes nos intima) a confiar cegamente num ser que - a menos de ser concebido a priori como bom - não poderia deixar de ser tomado como o responsável direto por todas as nossas misérias (sempre então imaginadas como devendo obedecer a algum propósito maior que nos escapa) esse mesmo teologismo, dizia, é também aquele que não hesita em pôr sob suspeita e em difamar a Humanidade inteira, declarando maldito o homem que confia no próprio homem; e isso, note-se, não importando quais possam ter sido as maiores e as mais numerosas provas reconhecíveis e decisivas de sua sempre e inconfundível benevolência progressiva para com seus filhos.

 

-        A confiança exige comportamentos práticos reiterados:

o   É uma questão (1) de honestidade; (2) de coerência dos comportamentos entre si ao longo do tempo; (3) de coerência das idéias e dos valores entre si ao longo do tempo; (4) de coerência entre idéias/valores e atos ao longo do tempo

o   Daí, portanto, o “viver às claras”: sem a publicidade dos atos, é impossível averiguar a coerência e a constância dos comportamentos

-        A Religião da Humanidade estabelece que o dever de simpatia implica uma postura geral de boa vontade de todos para com todos: essa boa vontade implica, por sua vez, uma boa-fé generalizada, o que equivale a uma confiança generalizada

o   Essa é uma das conseqüências da lei-mãe da Filosofia Primeira, “formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte os dados disponíveis”

o   Entretanto, como indicamos antes, a confiança tem que ser comprovada e merecida na prática

§  Os atributos que nos permitem desenvolver a confiança são pelo menos estes: liberdade (e/ou autonomia), honestidade, coerência, constância (ou consistência), publicidade

o   Aquele que deixa de merecer a confiança de outrem tem que tratar de reconstituí-la, agindo de maneira adequada

§  Nesse caso, evidentemente, o esforço de recuperar a confiança é daquele que a perdeu, não daquele(s) que foi(ram) frustrado(s)

-        Dois aspectos do “viver às claras”, ambos evidentemente relacionados entre si: um mais moral, outro mais político

o   O sentido moral é o sentido básico e corresponde à moralidade dos atos quaisquer, em que se deve sempre poder justificar publicamente nossas condutas e nossas decisões

o   O sentido político é o da publicidade dos atos quaisquer, sejam públicos, sejam privados

-        A confiança abrange também aspectos sociais e mais objetivos:

o   Há a confiança diretamente nas instituições

§  Exemplos: na ciência; no Estado; nas igrejas; nas escolas

o   Diferentes sociedades, filosofias e modos de entender a realidade estimulam mais ou menos a confiança nas pessoas e/ou nas instituições

§  Exemplo positivo, que comprova diretamente a importância e a validade da confiança: na China pré-comunista, havia uma confiança generalizada e espontânea no governo

§  Exemplos negativos, que comprovam indiretamente a importância da confiança: (1) a teoria política ocidental, herdando a concepção monoteísta e teológica de que qualquer crítica ao governo é uma sublevação (quase) herética, tende a consagrar a revolta sistemática como sinal de afirmação da liberdade; (2) da mesma forma, herdando no fundo uma concepção absolutisto-monoteísta, a teoria política ocidental tende a considerar que a liberdade é ausência de qualquer parâmetro, ou seja, que a liberdade é anárquica e/ou caprichosa; (3) a metafísica consagra a concepção de que todos os poderes e, no fundo, todas as instituições são imerecedoras de confiança

§  Devemos insistir, a partir das considerações acima, em que a metafísica, com seu caráter corrosivo, é completamente contrária à confiança

§  Como, no Ocidente, vivemos em uma época metafísica, a valorização efetiva da confiança torna-se uma tarefa complicada, difícil e até heróica

-        O Positivismo distingue vários tipos de relações sociais; daí, podemos determinar várias “direções” da confiança:

o   Sentidos vertical e horizontal da confiança:

§  Sentido horizontal: entre “iguais” (amigos, correligionários, namorados, cônjuges etc.)

§  Sentido vertical de baixo para cima: dos seguidores para os líderes

§  Sentido vertical de cima para baixo: dos líderes para os seguidores

o   Sentidos restrito e ampliado da confiança:

§  Assim como todo ser humano é um servidor da Humanidade (nesse sentido amplo e um tanto figurado, um “servidor público”) e tem uma atuação restrita (sua profissão, seu ofício) e outra ampliada (a preocupação com as atividades coletivas e a respectiva fiscalização), podemos dizer que a confiança também tem um âmbito restrito e outro ampliado

§  Sentido restrito: confiança nas atividades específicas e limitadas de cada qual (exemplos: nos médicos que nos atendem, nos professores que nos ensinam)

§  Sentido ampliado: confiança que depositamos em alguém e/ou alguma instituição de caráter geral (exemplo: no sacerdócio positivo)

·         É importante lembrar que somos todos servidores da Humanidade, quer trabalhemos no setor “privado”, quer trabalhemos no setor “público”

-        Há um aspecto diretamente político da confiança (“político” no sentido de “pólis”, isto é, de vida coletiva):

o   Toda função social sempre se baseia na confiança

§  Isso quer dizer que não é possível a ninguém desempenhar suas funções (sejam elas estritamente privadas, sejam elas públicas) sem que o conjunto da sociedade e os demais concidadãos confiem uns nos outros

§  Sem essa confiança, o exercício das funções e a eficácia social das atividades fica seriamente prejudicada

o   A plena responsabilidade dos atos e do cumprimento das funções sociais baseia-se sempre na plena confiança

§  Ao dever geral de confiança (ou seja, de confiarmos uns nos outros) corresponde, em contrapartida, o dever específico de que os servidores da Humanidade sejam sempre responsáveis perante o conjunto da sociedade e os demais concidadãos

·         Convém lembrar que a “responsabilidade” significa aqui tanto a efetiva capacidade de ação quanto a responsabilização dos servidores da Humanidade

·         Também importa lembrar que, quanto maiores as responsabilidades, maiores os poderes necessários

15 maio 2023

Positivismo contra o imperialismo ocidental na China

O trecho abaixo apresenta uma crítica dura e direta ao que chamamos atualmente de imperialismo, ou seja, ao esforço ativo de um conjunto de países para explorar econômica e politicamente um outro país - no caso, o Ocidente explorando a China. Essa crítica foi elaborada por Pierre Laffitte, positivista ortodoxo, em uma conferência realizada em 1858, ou seja, logo após a transformação de Augusto Comte (1798-1857).

O trecho abaixo foi extraído de uma série de conferências que Laffitte fez sobre a China; estas, por sua vez, integravam um curso de história geral da Humanidade.

Logo após a citação em português (cuja tradução é de minha autoria) reproduzo o original em francês.

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“Assim, as relações comerciais do Ocidente com a China tornaram-se cada vez mais anárquicas, sobretudo por meio da proteção da força pública. Elas podem melhorar-se, recebendo entretanto ainda mais de extensão, quando os governos compreenderem a necessidade de corrigir os seus abusos, em vez de entregarem-se aos impulsos de uma opinião pública que, infelizmente, favorece demasiado tais aberrações. – Porque, sob a preponderância sobretudo da autodenominada escola progressista, viemos, no Ocidente, a sistematizar a opressão e a exploração do resto do Planeta, sob o especioso pretexto de ‘civilização’. Formou-se relativamente à China, e às relações do Ocidente com ela, um conjunto de opiniões que se deve caracterizar.

Essas opiniões resumem-se em um sentimento orgulhoso da preponderância da civilização ocidental e em um desprezo cego por todas as outras civilizações quaisquer. Daí resulta a disposição de fazer prevalecer em toda parte, e sobretudo pela força, sob o vago nome de ‘progresso’, a anarquia mental e o industrialismo sem regras que cada vez mais prevalecem no Ocidente”.

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« Ainsi les relations commerciales de l’Occident avec la Chine ont pris um caractère de plus en plus anarchique, surtout par la protection de la force publique. Elles pourront s’améliorer, en recevant néanmoins plus d’extension encore, lorsque les gouvernements auront compris la necéssité d’en corriger les abus, au lieu de se laisser aller aux impulsions d’une opinion publique qui, malheureusement, favorise trop de telles aberrations. – Car, sous la prépondérance surtout de l’école soi-disant progressive on en est venu, en Occident, à systématiser l’oppression et l’exploitation du reste de la Planète, sous le spécieux prétexte de civilisation. Il s’est formé relativement à la Chine, et aux relations l’Occident avec elle, un ensemble d’opinions qu’il faut caractériser.

Ces opinions se résument en un sentiment orgueilleux de la prépondérance de la civilisation occidentale, et en un mépris aveugle de toutes les autres civilisations quelconques. D’où résulte la disposition à faire prévaloir partout, et surtout par la force, sous le nom vague de progrès, l’anarchie mentale et l’industrialisme sans règles quie prévalent de plus en plus en Occident. [...] »

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(Pierre Laffitte, Considérations générales sur l’ensemble de la civilisation chinoise et sur les relations de l’occident avec la Chine. Paris: Dunod, 1861, p. 139-140. Disponível, na edição de 1900, aqui : https://archive.org/details/considrationsg00laff/page/130/mode/2up.).