06 setembro 2023

Celebração de Sofia Bliaux; celebração de José Bonifácio

No dia 24 de Gutenberg de 169 (5.9.2023) realizamos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista; em particular, prosseguimos a "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (as chamadas "ciências humanas", isto é, a Sociologia e a Moral).

Na parte do sermão comemoramos o aniversário da transformação de Augusto Comte (ocorrido justamente no dia 5 de setembro) e a Independência do Brasil (no dia 7 de setembro). Para isso, celebramos respectivamente as memórias de Sofia Bliaux e de José Bonifácio.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/hJvkX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/lyjK3). A celebração de Sofia Bliaxu pode ser vista a partir de 43' 50"; a celebração de José Bonifácio pode ser vista a partir de 1h 20' 16".

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Transformação de Augusto Comte, celebração de Sofia Bliaux[1] 

-        O dia 24 de Gutenberg (5 de setembro) é a data em que ocorreu a desastrosa transformação de Augusto Comte, há 166 anos

o   A transformação de Augusto Comte foi “desastrosa” porque tirou da vida objetiva o fundador do Positivismo, que, embora já tivesse escrito o principal de sua obra, tinha ainda previstos muitos livros que desenvolveriam aspectos importantes da Religião da Humanidade

o   Mas como sabemos, embora triste por si só, a transformação encerra a vida objetiva útil e inicia plenamente a vida subjetiva de todos nós

§  O nascimento deve ser sempre valorizado, mas é na transformação que podemos avaliar a atividade realmente desenvolvida pelos indivíduos e, daí, podemos avaliar se foram altruístas ou egoístas, construtivos ou destruidores etc.

§  Em outras palavras, enquanto o nascimento constitui apenas uma promessa – certamente, sempre uma bela e fundamental promessa, mas, ainda assim, apenas uma promessa –, é na transformação que avaliamos a vida e, portanto, que celebramos efetivamente a vida de cada um

o   Assim, a data da transformação é realmente para ser celebrada

-        Ao mesmo tempo, é a data da celebração de Sofia Bliaux

o   No calendário da Igreja Positivista do Brasil, no dia 19.1 celebramos o nascimento de Augusto Comte e a memória de sua mãe, Rosália Boyer; no dia 8.10, celebramos a festa de Comte e Clotilde

o   Assim, considerando a importância de Sofia para a vida de Augusto Comte e também a instituição dos seus “três anjos”, no dia 5.9 celebramos Sofia

-        Sofia Bliaux nasceu em 18.9.1804, na pequena comuna de Oissy, no Somme (Norte da França)

§  Assim, ela era seis anos mais nova que Augusto Comte e 11 anos mais velha que Clotilde

o   Quando criança mudou-se com os pais para Paris, onde levava uma vida pobre, tendo que trabalhar desde cedo, sempre com humildade e devotamento

o   A obediência e o devotamento aos patrões era tanta que solicitou aos patrões a permissão para casar-se (no que foi atendida); seu marido, Martinho Thomas, era entregador de uma farmácia próxima à rua Monsieur-le-Prince; foi usando esse serviço (para receber poções e cremes de beleza) que Carolina Massin travou contato com Martinho Thomas e, a partir disso, soube das dificuldades crescentes de Sofia, que cuidava sozinha de uma casa grande com crianças que cresciam

o   Após muitas insistências de Carolina Massin, Sofia afinal passou ao serviço de Augusto Comte em 1841 (um ano antes de Carolina abandonar definitivamente o lar conjugal); na verdade, na época Sofia entrou ao serviço de Carolina e não propriamente ao de nosso mestre

o   Logo Sofia percebeu, por um lado, que Carolina era uma péssima esposa e que não dava paz de espírito a nosso mestre; por outro lado, ela percebeu que Augusto Comte era uma pessoa simples, de existência modesta, mas cuja atividade era intensa e que era inteiramente dedicada à renovação moral, intelectual e social e que, por isso, precisava de apoio material

§  A partir disso, a partir de uma humildade simples, confrontando a grandeza moral de Augusto Comte com sua própria existência modesta, ela entendeu que poderia e deveria dedicar-se a auxiliá-lo o máximo que pudesse

o   Em 1842, quando Carolina Massin abandonou o lar pela última vez, Sofia permaneceu na rua Monsieur-le-Prince; mas, devido à vinculação inicial de Sofia com Carolina Massin, e devido à péssima experiência que tivera com sua ex-esposa, Augusto Comte desconfiava profundamente dela

§  Apenas com o passar do tempo, e considerando as simpatias de Comte para com os proletários, Augusto Comte foi reconhecendo a sinceridade da devoção de Sofia e tornando-a, bem como ao seu marido, uma companheira habitual em seu lar

o   Quando o amor de Comte por Clotilde irrompeu, logo Sofia percebeu a importância disso para o filósofo e com freqüência atuava como mensageira entre ambos; depois também se tornou confidente de Clotilde

o   Devido à sua triste história, a saúde de Clotilde era frágil; em suas últimas semanas (março de 1846), Sofia foi enfermeira, cuidadora e verdadeira irmã de Clotilde, tendo pernoitado 18 dias na casa de Clotilde, até seu falecimento

§  Após a morte de Clotilde, Sofia reconfortou Augusto Comte e mesmo o afastou de pensamentos de suicídio

o   Em virtude da perseguição acadêmica que Augusto Comte sofria, em 1847 e, ainda mais, em 1848 ele perdeu seus modestos empregos acadêmicos; nesses dois anos, em 1847 e, depois, em 1848, Sofia e seu marido ofereceram suas economias para auxiliar Augusto Comte em suas despesas (que, em sua parte mais importante, eram destinadas à pensão de sua ex-esposa); o primeiro oferecimento foi recusado, mas o segundo nosso mestre viu-se obrigado a aceitar

o   Observa José Longchampt (p. 85) que Sofia converteu-se à Religião da Humanidade: “Foi por estas conversações diárias que Augusto Comte realizou, na única mulher que dele se aproximava, a primeira conversão à Religião da Humanidade”.   

o   Reconhecendo os sacrifícios feitos por Sofia ao longo dos anos, não apenas em termos de salário e de alimentação, mas também em termos de convívio com sua família, em 1848 Augusto Comte convidou Martinho Thomas que fosse morar em seu apartamento com Sofia e seu filho, o que o casal aceitou

§  Esse reconhecimento foi devido não apenas ao devotamento do casal, mas também devido à valorização da domesticidade e mesmo do casamento

§  Dando continuidade à afirmação da domesticidade em sua própria vida, Augusto Comte proclamou Sofia como sua filha em 18.7.1850, na cerimônia de casamento do dr. Segond

§  Mais tarde, a valorização de Sofia atingiu seu máximo com a consagração de ser indicada como um dos seus “três anjos”

o   Após a morte de nosso mestre, Sofia recebeu de Augusto Comte um retrato de Clotilde, bem como lhe foi destinado uma pensão até sua morte, sob responsabilidade dos executores testamenteiros, e o direito de residir no apartamento da rua Monsieur-le-Prince

o   Ela morreu em 5.12.1861; conforme solicitação explícita de nosso mestre em seu Testamento, ela foi enterrada juntamente com Augusto Comte, no “cemitério do Leste” (o Père Lachaise)

§  Em 28.3.1867 Martinho Thomas faleceu; seu filho, Paul Thomas, ficou sob a responsabilidade de José Longchampt e tornou-se também positivista

 

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Independência do Brasil, celebração de José Bonifácio 

-        Esta exposição baseia-se em importante medida em uma postagem feita em 7.9.2015, chamada justamente “7 de setembro – Independência do Brasil e comemoração de José Bonifácio

o   Além disso, usamos aqui como referência as publicações do Apostolado Positivista do Brasil (como o opúsculo A pátria brasileira, de 1881, e a bela biografia de Benjamin Constant, escrita por Teixeira Mendes em 1891) e o livro de David Carneiro, A vida gloriosa de José Bonifácio de Andrada e Silva e sua atuação na Independência do Brasil (de 1977)

-        O Positivismo celebra a Independência do Brasil e a memória de José Bonifácio porque o Brasil é uma pátria e, portanto, uma das associações humanas fundamentais

o   Como sabemos, os três níveis normais de associações humanas são: a família (baseada nos sentimentos), a pátria (baseada na atividade prática) e a Humanidade (baseada na inteligência)

-        Ao celebrar cada pátria, o Positivismo constitui-se como uma religião cívica

o   Para entendermos o que isso quer dizer, e embora o Positivismo, como regra geral, rejeite as distinções sutis, temos que estabelecer a diferença entre “religião cívica” e “religião civil

o   Essa diferença espelha a diferença entre a teoria política absoluta (teológico-metafísica) e a teoria política relativa (positiva), especialmente no que se refere à divisão entre teoria e prática, ou, o que equivale em termos políticos, a divisão entre a igreja e o Estado

o   A religião cívica celebra valores cívicos, mas faz questão de não se impor sobre os cidadãos nem de usar o apoio estatal para sua difusão: por definição, é a Religião da Humanidade

§  Vale lembrar que o Positivismo, como religião cívica, tem clareza de que as pátrias na sociedade normal serão denominadas de “mátrias”, organizadas em regimes sociocráticos e que isso implica, desde já (na verdade, desde o começo do século XIX), que todas as mátrias baseiem-se na fraternidade e na paz universal e, portanto, também na rejeição da violência, da guerra e do militarismo (e do nacionalismo imperialista e/ou xenofóbico)

o   A religião civil é a religião imposta pelo Estado (ou seja, é obrigatória) e que tem a sua igreja sustentada pelo Estado: são as religiões teológicas e é a proposta da democracia de Rousseau

§  Rousseau, em sua proposta democrática, afirmava com todas as letras que o Estado tem que ter religião oficial, imposta a todos os cidadãos; inversamente, os cidadãos que rejeitassem essa religião oficial seriam presos ou, no limite, expulsos do país

-        No dia 7 de setembro celebramos a Independência do Brasil e, por isso mesmo, comemoramos a figura de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o grande “Patriarca da Independência”

-        Para realizarmos essa celebração, temos antes que lembrar, ou afirmar, as condições e as exigências da política moderna

o   A política moderna baseia-se na existência de pátrias livres; essas pátrias têm que ser menores do que costumam ser ainda hoje, mas, de qualquer maneira, a liberdade é uma condição fundamental e insuperável

o   O que significa essa “liberdade”?

§  Significa a possibilidade de decidir com autonomia os rumos a tomar, sem imposições externas e de acordo com os parâmetros específicos de cada país

§  Assim, ao mesmo tempo em que cada pátria deve poder decidir o que deseja fazer, sua conduta deve caracterizar-se pelo respeito a todas as outras nações, no que se refere à sua dignidade e às suas condições de existência, e ao desenvolvimento de ações pacíficas e coordenadas com vistas à melhoria material e moral de todas.

o   Em outras palavras, a política moderna não pode ser definida pela “soberania”, entendendo-se a soberania como a consideração de que cada país é o juiz único e último de suas ações, em desrespeito e desconsideração aos demais países

o   Ao mesmo tempo, a necessária interdependência política, material e moral não pode ser entendida e usada como desculpa para intromissões e invasões de uns países sobre os outros.

o   Em termos internos, cada país deve buscar a integração social, a redução e o fim da miséria, o combate e o fim das discriminações sociais, o desenvolvimento técnico, científico e moral etc.

o   No caso do Brasil do início do século XIX, José Bonifácio tinha clareza desses objetivos e dessas condições; foi por isso que tratou de organizar as condições propícias para a independência do Brasil – e que, sendo a eminência parda por detrás do então Príncipe Regente, obteve de fato a independência nacional no 7 de setembro de 1822.

-        Ao falarmos da Independência do Brasil, celebramos José Bonifácio: mas por que ele?

o   O príncipe regente Pedro de Alcântara – depois chamado no Brasil de “(dom) Pedro I” –, embora tenha sido necessariamente o executor concreto da independência, não era uma pessoa preparada politicamente em termos intelectuais, morais e práticos

§  Apesar disso, considerando a situação política, social e institucional do Brasil na época, somente d. Pedro poderia realizar o “grito do Ipiranga”

§  Evidentemente, a falta geral de condições morais, intelectuais e práticas de Pedro de Alcântara não significava que ele não tivesse sentimentos de simpatia pela população brasileira, que não tivesse preconceitos de casta, que soubesse reconhecer o valor da pessoa e dos conselhos de José Bonifácio

o   Por outro lado, quem tinha o preparo e a estatura moral, intelectual e prática era o conselheiro de Pedro de Alcântara, José Bonifácio

§  José Bonifácio, além de ser um homem com a preparação própria e a atividade prática do Iluminismo, tinha o enorme fator de ser brasileiro

§  A primeira carreira de José Bonifácio desenvolveu-se totalmente na Europa, com suas longas viagens de estudos e de pesquisas (em que se revelou um grande pesquisador) e, depois, com sua atuação na burocracia pública portuguesa (em que ocupou simultaneamente inúmeros cargos importantes)

§  A atuação propriamente política de José Bonifácio ocorreu quando ele já era idoso (com cerca de 60 anos de idade) e voltara ao Brasil buscando aproveitar sua aposentadoria

-        A independência do Brasil era uma necessidade na época e, de qualquer maneira, seria uma necessidade política do país

o   Na época era uma necessidade porque, com o término das Guerras Napoleônicas, a permanência da monarquia no Brasil não tinha mais sua justificativa inicial (evitar a submissão à tirania militar de Napoleão)

§  Devemos lembrar que a família real e a corte portuguesa fugiram em 1808 para o Brasil, transformando a antiga colônia em sede do império

§  Depois, em 1815, o Brasil tornou-se membro equivalente do império, que passou a ser o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

o   Além disso, havia os exemplos americanos dos Estados Unidos (1776), do Haiti (1798) e da América hispânica (décadas de 1800 a 1820)

§  Desde o fim do período colonial o Brasil já contava com uma sociedade ativa, organizada, conhecedora dos seus interesses, com projetos nacionais cada vez mais claros e disposta a realizar a independência para isso

§  A independência nacional era vista sempre como acompanhada da república

§  A vinda da família real em 1808 deu um fortíssimo impulso à vida política, social e intelectual do país, reforçando as condições para a autonomia e/ou a independência nacional

o   Ao mesmo tempo em que o Brasil desenvolvia-se, as Cortes Gerais de Lisboa, reunidas após a Revolução Liberal do Porto, de 1820, apesar de afirmarem-se “liberais”, queriam retrogradar a situação do Brasil para a condição colonial, o que implicaria necessariamente uma violenta opressão sobre o país

§  A Revolução Liberal do Porto e as Cortes Gerais de Lisboa (criadas após a revolução do Porto) seguiram o impulso da Revolução Francesa mas adotaram o modelo inglês, em que a crítica ao Antigo Regime assumiu a forma da aberração político-intelectual que é a chamada “monarquia constitucional”

§  De maneira bastante representativa desse movimento foi a exigência das Cortes Gerais de retorno de d. João VI a Portugal, mantendo Pedro de Alcântara no Brasil como Príncipe Regente

§  A regressão do Brasil à condição de colônia seria opressiva por si só, como a conjuntura própria à Inconfidência Mineira deixava claro; mas, em face do desenvolvimento político, econômico e social do Brasil ocorrido desde o século XVIII e fortemente estimulado pela vinda da família real em 1808, a imposição do status colonial ao Brasil implicaria, necessariamente, redobradas opressões e violências

§  Vale a pena notar que tanto a instituição da monarquia constitucional quanto o projeto de regressão do Brasil à condição de colônia são exemplares do caráter dissolvente, absolutista e anti-histórico da metafísica

o   De qualquer maneira, considerando a distância entre os dois países, a disparidade de tamanho e as realidades sociais e políticas, a independência do Brasil teria que acontecer cedo ou tarde

-        Sendo d. João VI obrigado a voltar a Portugal e sendo públicas as pretensões das Cortes Gerais a respeito do Brasil, logo percebeu José Bonifácio que seria necessário agir e com grande rapidez

o   A partir daí, ele procurou acercar-se de Pedro de Alcântara, que soube reconhecer o valor do ancião

o   José Bonifácio soube preparar Pedro de Alcântara para a independência; mas, ao mesmo tempo, teve que enfrentar resistências inesperadas, totalmente retrógradas e mesquinhas, como a de Domitila de Castro, a famosa amante de Pedro de Alcântara tornada “Marquesa de Santos”, que apoiava o projeto “recolonial”

o   O episódio do “Dia do Fico” (9.1.1822), em que Pedro de Alcântara rejeitou a ordem de retorno a Portugal, emitido pelas Cortes Gerais, preparou o 7 de Setembro

-        Exemplares das superiores condições morais, intelectuais e práticas de José Bonifácio são as suas propostas para o Brasil

o   José Bonifácio tinha extrema clareza a respeito dos problemas e das condições brasileiras de então

§  Para ele, cumpria integrar o imenso território nacional, assim como permitir e realizar a integração dos três grandes elementos étnicos nacionais, o português, o africano e o indígena

§  A integração social implicava, necessariamente, a abolição da escravidão, a miscigenação e, depois, o estímulo à alfabetização e à indústria

§  Todavia, ao mesmo tempo, percebendo que o país tinha sua economia baseada na escravidão, em um regime que naquele momento não tinha perspectivas para desaparecer, José Bonifácio entendeu que só seria possível manter o Brasil unido por meio da monarquia: afinal de contas, para ele, a escravidão era inimiga da República

§  Em outras palavras, a monarquia foi instituída para garantir (pelo menos por algum tempo) a permanência da escravidão – o que equivale a dizer que a monarquia foi implantada no Brasil como um regime explicitamente escravista e escravocrata

§  A monarquia apresentava algumas vantagens adicionais de caráter momentâneo: por um lado, assegurava a continuidade institucional por meio da manutenção da dinastia reinante; por outro lado, José Bonifácio temia que a república no Brasil seguisse os passos da América espanhola, com a fragmentação política (e territorial)

o   Essas propostas foram expostas com grande beleza pelo pintor positivista Eduardo de Sá, na famosa tela “José Bonifácio, a fundação da pátria brasileira”

-        Também importa notar que, assim como com Tiradentes, a figura de José Bonifácio foi eternizada e celebrizada por nós, positivistas

o   Mas, não por acaso, a historiografia atual despreza essa nossa importância, ainda que aceite os resultados de nossa atuação

o   Esse desprezo da historiografia atual pela importante atuação dos positivistas em favor da memória de José Bonifácio segue o impulso destruidor da metafísica marxista desde a década de 1960 (ainda que a historiografia atual não seja marxista) e revela, no final das contas, uma profunda mesquinhez

-        Considerando que o Positivismo é uma religião cívica e pacifista, importa afirmar com toda as letras: os desfiles militares não representam a República

o   Nesse sentido, nem a proposta cívica de José Bonifácio nem o caráter pacífico-industrial da política moderna aceitam as demonstrações usuais de “civismo”

o   Desde pelo menos o século XIX – portanto bem antes do regime inaugurado em 1964 –, as comemorações do 7 de Setembro resumem-se a paradas militares. Os desfiles de pelotões, tanques e armamentos acabam concentrando nas Forças Armadas as idéias de “civismo” e “patriotismo” e desvirtuando a convergência pacífica dos cidadãos em prol do bem comum – que é o fundamento e o objetivo da política republicana

o   Já em 1881 os positivistas dizíamos exatamente isso, repetindo-o desde então

-        O 7 de Setembro resume-se na imponente máxima de José Bonifácio, segundo quem “A sã política é filha da moral e da razão”

o   A sabedoria política de José Bonifácio pode ser avaliada por esta frase, que resume de maneira brilhante o programa da política moderna: “A sã política é filha da moral e da razão”

o   É devido a concepções como essas que, juntamente com a Independência do Brasil, no dia 7 de setembro comemoramos também a imponente figura do grande santista que foi José Bonifácio

o   Embora não seja de origem positivista, essa máxima evidentemente está totalmente de acordo com os mais elevados princípios morais, intelectuais e políticos propostos pelo Positivismo

§  A concordância com o Positivismo ocorre também porque essa máxima corresponde aos melhores valores da política moderna

 


[1] Estas anotações baseiam-se na Notícia sobre a vida e a obra de Augusto Comte, escrita pelo dr. Robinet (1860), no livro O ano sem par, de Teixeira Mendes (1900), no livro Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte, de José Longchampt (1898), e, principalmente, no artigo “Un des anges d’Auguste Comte – Sophie Thomas”, de Maurice Wolff (Mercure de France, 44 année, tomo CCXLV, n. 842, 15.jul.1933)

29 agosto 2023

Sacramentos positivos

No dia 17 de Gutenberg de 169 (29.8.2023) realizamos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua oitava conferência, dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e Moral).

Em seguida, apresentamos algumas considerações sobre os nove sacramentos positivos.

A prédica foi transmitida em nossos canais: Positivismo (aqui: https://ury1.com/G4kjX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/72rZ5). O sermão sobre os sacramento pode ser visto a partir de 49' 56".


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Sacramentos positivos 

-        Os sacramentos positivos integram o culto privado

o   No Catecismo positivista, os sacramentos são apresentados e comentados na “Quarta conferência”

o   Os sacramentos estabelecem a particularidade do culto privado, distinguindo-o do culto íntimo e do culto público, ao mesmo tempo que estabelece a ligação entre estes dois cultos

o   Assim, os sacramentos são privados em seu objeto e públicos em sua liturgia

o   Por outro lado, eles constituem a sanção pública para as fases das vidas dos indivíduos

§  Assim, os sacramentos positivos são, acima de tudo, ritos de passagem

-        Os ritos de passagem são momentos importantíssimos na vida coletiva e individual de todas as sociedades

o   Eles regulam a vida dos indivíduos, indicando que eles deixam para trás determinadas situações e ingressam em outras

o   Nessa passagem há a substituição de deveres e prerrogativas, bem como a acumulação com outros pré-existentes

o   Então, por um lado, elas correspondem ao reconhecimento público de que os indivíduos avançam em suas vidas e, com isso, cumprem suas responsabilidades e, por outro lado, elas correspondem aos indivíduos reconhecendo essa passagem e efetivamente assumindo suas responsabilidades

o   Assim, convém notar que os sacramentos são importantes não apenas para a sociedade, mas também para os indivíduos, que, com eles, têm consciência e clareza do que se espera deles em cada fase de sua vida e, com isso, têm também o apoio da coletividade para isso

o   Embora evidentemente a idéia de “religião positiva” não se resuma aos sacramentos, fica bastante claro o sentido dessa concepção a partir dos sacramentos: um sistema geral de regulação da vida humana, pública e privada, coletiva e individual, nos três âmbitos da existência humana (afetivo, intelectual e prático)

-        No Ocidente, o duplo movimento moderno, iniciado após a Idade Média, foi extremamente eficiente em destruir essas marcações sociais e etárias do desenvolvimento individual; o Positivismo institui os sacramentos em bases humanas, históricas, morais e racionais

o   Muitas pessoas rejeitam a noção de sacramentos a partir de preconceitos metafísicos anticlericalistas, confundindo os sacramentos positivos (e os sacramentos em geral) com os sacramentos especificamente teológicos (em particular católicos)

o   Outro motivo para a recusa aos sacramentos, vinculado ao anterior (ainda que indiretamente), mas diferente dele, é o mais puro individualismo, a noção de que a vida de cada é problema só de si mesmo e que não compete a mais ninguém tratar dela

§  Daí, aliás, surge a espantosa concepção de liberdade como ausência de laços, de vínculos, ou seja, a liberdade como a mais completa atomização social – o que, além de impraticável e irracional, é profundamente imoral

§  Uma digressão: é exatamente esse raciocínio imoral e irracional que fundamenta a degradante campanha que a classe média brasileira, a partir do exemplo de sua homóloga estadunidense, promove há duas décadas em favor do consumo das chamadas “drogas recreativas”

o   Evidentemente, ao recusarem os sacramentos, tais indivíduos prejudicam-se de várias maneiras: ao pautarem-se por preconceitos metafísicos; ao recusarem a regulação do avanço de suas próprias vidas; ao recusarem o explícito apoio coletivo ao cumprimento de suas responsabilidades

o   Mas, por outro lado, de maneira muito positiva e extremamente empírica, às vezes inspirados por práticas fetichistas, reconhecendo o valor e a importância dos ritos de passagem, muitos grupos humanistas realizam seus próprios sacramentos

-        Antes de apresentar os sacramentos positivos, é necessário indicar um aspecto essencial deles: eles são todos voluntários e de caráter moral

o   O aspecto moral e voluntário deles significa duas coisas:

§  Por um lado, eles ocorrem paralelamente às obrigações legais (de caráter obrigatório)

§  Por outro lado, quem solicita os sacramentos positivos fá-lo porque reconhece a validade desses sacramentos e, em particular, assume como seus os valores e as concepções da Religião da Humanidade, ou seja, assume-se como positivista religioso (isto é, ortodoxo)

-        São nove os sacramentos positivos: (1) Apresentação; (2) Iniciação; (3) Admissão; (4) Destinação; (5) Casamento; (6) Madureza; (7) Retiro; (8) Transformação; (9) Incorporação

-        Apresentação (ao nascer)

o   É a consagração religiosa de cada nascimento, ou melhor, do nascimento de cada novo futuro servidor da Humanidade; o pai e a mãe apresentam ao sacerdócio o bebê e comprometem-se a votá-lo e a orientá-lo para o serviço da deusa real

o   Indicação de padrinhos sob aceitação do sacerdócio – basicamente espirituais mas, se for o caso, também temporais

o   Nomeação: dois nomes, um teórico e outro prático, a partir dos servidores da Humanidade

§  Quando da emancipação, o novo servidor escolherá um terceiro nome

-        Iniciação (aos 14 anos)

o   O servidor passa da educação doméstica e espontânea, com a mãe, para a educação pública e sistemática, com o sacerdote

o   Até então, o sacerdócio dirigia seus conselhos aos pais e aos padrinhos; a partir de então, os conselhos são dirigidos diretamente ao servidor, em particular para prevenir o coração contra os vícios morais e intelectuais próprios à cultura teórica

o   Este sacramento pode ser adiado e, em casos excepcionais, recusado

o   A educação prática pode e deve ser concomitante a essa educação teórica

-        Admissão (aos 21 anos)

o   É a emancipação da pessoa, em que ela torna-se um livre servidor da Humanidade, começando então a retribuir tudo o que recebeu até então e o que recebe de qualquer maneira

o   Embora esse sacramento indique a passagem da meninice (ou da infância) para a vida adulta, nem sempre o servidor já terá definido sua profissão, ou sua carreira: “Só ele pode decidir convenientemente sobre este assunto, em virtude de ensaios livremente tentados e suficientemente prolongados” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 132)

o   No caso das mulheres, os sacramentos da admissão, da destinação e do casamento ocorrem aos 21 anos

-        Destinação (aos 28 anos)

o   Consagração inicial pública e religiosa de todas as ocupações úteis, públicas ou privadas, por menores que sejam

o   “É o único sacramento suscetível de verdadeira renovação, sempre excepcional” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 133)

-        Casamento (aos 28 anos para os homens, aos 21 anos para as mulheres)

o   É o principal sacramento e completa o conjunto das preparações

o   A função do casamento é o aperfeiçoamento mútuo do casal

o   Só pode ocorrer após o sacramento da destinação, ou seja, após os 28 anos de idade

§  Augusto Comte recomendava fortemente que a idade máxima de casamento para as mulheres fosse 28 anos e para os homens fosse 35 anos

§  Augusto Comte portanto também sugeria que a diferença de idade entre homens e mulheres fosse de sete anos

o   Baseia-se na monogamia e, portanto exige o estabelecimento da viuvez eterna – a única forma de consagrar e desenvolver efetivamente a vida subjetiva

o   Ocorre três meses após o casamento civil

o   Um mês antes do casamento civil, os nubentes juram manter a castidade durante o trimestre que separa a cerimônia civil da religiosa

o   Um ano e meio após o falecimento de um dos cônjuges, o viúvo deve reafirmar sua viuvez eterna

o   Os casamentos mistos são possíveis, desde que cumpridas algumas condições:

§  Deve haver o compromisso formal de que não haverá tentativas de conversão durante o casamento, em particular da parte da mulher sobre o homem

§  O positivista participará passivamente da cerimônia não positivista

§  Inversamente, o não positivista deve aceitar realizar o voto de viuvez eterna no Templo da Humanidade

§  Os ateus militantes e, de qualquer maneira, todos aqueles que rejeitam a regulação da vida humana são proscritos do casamento positivista

o   Cerimônias positivistas de casais que se converteram ao Positivismo depois de casados só podem ocorrer três anos após as cerimônias iniciais

-        Madureza (aos 42 anos para os homens)

o   Corresponde ao início da segunda vida objetiva do servidor, a que realmente importa para a imortalidade subjetiva

o   “Durante os 21 anos que o separam do sétimo [sacramento], o homem desenvolve sua segunda vida objetiva, única decisiva para sua imortalidade subjetiva. Até então, a nossa existência, essencialmente preparatória, naturalmente suscitou desvios, algumas vezes graves, porém sempre reparáveis. Daí por diante, pelo contrário, as nossas novas faltas não comportam quase nunca uma compensação suficiente, seja exterior, [seja] mesmo interior. Importa, pois, impor de um modo solene ao servidor da Humanidade a inflexível responsabilidade que vai começar para ele, tendo especialmente em vista sua função própria, já plenamente apreciável” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 135-136)

-        Retiro (aos 63 anos para os homens)

o   Ocorre quando o servidor da Humanidade deixa suas atribuições práticas

o   Ao realizar o retiro, o último ato prático do servidor consiste em indicar seu sucessor em sua função

o   Ao retirar-se, o servidor substitui suas atividades práticas pelo aconselhamento, ou seja, passa a colaborar com o poder Espiritual

-        Transformação (ao falecer)

o   É a celebração da vida do morto: “Ele deve substituir a horrível cerimônia em que o catolicismo, entregue sem freio ao seu caráter antissocial, arrancava abertamente o moribundo a todos os afetos humanos, para o transportar isolado ao tribunal celeste. Em nossa transformação, o sacerdócio, juntando os pêsames da sociedade às lágrimas da família, aprecia dignamente o conjunto da existência que termina” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 137)

o   Pode ocorrer em várias etapas: nos momentos finais da vida do servidor; durante o velório; na celebração fúnebre três semanas após a morte

-        Incorporação (sete anos após a transformação)

o   Consiste na avaliação da vida do servidor, feita pelo sacerdócio; a partir dessa avaliação, ocorre a decisão de se o servidor será ou não incorporado à Humanidade, isto é, se será ou não objeto de culto sistemático

o   Mais que qualquer outro sacramento, este deve ser solicitado com a mais completa liberdade pelo servidor, mesmo durante o sacramento da transformação; além disso, a família deve confirmar o desejo em realizar esse sacramento

o   No quarto ano após a morte, o sacerdócio emitirá um juízo provisório

o   A avaliação sacerdotal deverá considerar não apenas a atividade objetiva e subjetiva do servidor, mas também a contribuição da esposa, da mãe, das irmãs, das filhas e também dos animais que o auxiliaram

§  As mulheres também podem ser avaliadas

o   Caso o servidor seja de fato incorporado à Humanidade, seus restos mortais serão levados para o Bosque Sagrado e homenageados com inscrições, bustos ou estátuas

o   Caso a incorporação seja recusada, o servidor em análise será levado para o (ou permanecerá no) cemitério civil

o   Os supliciados (isto é, os condenados à morte), os suicidas e os duelistas devem ser recusados