02 dezembro 2021

Comemorações de 168-234 (2022)


Centenários

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

1.           

Anacreonte

563 aec-478 aec

2.500 anos de morte

3.Homero

31.jan.

2.           

Berthollet

1748-1822

200 anos de morte

19.Bichat

21.dez.

3.           

Cujácio

1522-1590

500 anos de nasc.

15.Descartes

22.out.

4.           

Delambre

1749-1822

200 anos de morte

5.Gutenberg

17.ago.

5.           

Shelley

1792-1822

200 anos de morte

27.Dante

11.ago.

6.           

MOLIÈRE

1622-1673

400 anos de nasc.

21.Shakespeare

30.set.

7.           

S. Francisco de Sales

1567-1622

400 anos de morte

25.Dante

9.ago.

8.           

Varignon

1654-1722

300 anos de morte

3.Bichat

5.dez.

 

“Cinqüentenários”

N.

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

J.-G.

9.           

Anaxágoras

500 aec-428 aec

2.450 anos de morte

4.Aristóteles

1.mar.

10.         

Arquitas

428 aec-347 aec

2.450 anos de nasc.

12.Aristóteles

9.mar.

11.         

Broussais

1772-1838

250 anos de nasc.

27.Bichat

29.dez.

12.         

Coligny

1519-1572

550 anos de morte

8.Frederico

12.nov.

13.         

Constantino

272-337

1750 anos de nasc.

8.São Paulo

28.maio

14.         

Duclos

1704-1772

250 anos de morte

12.Descartes

19.out.

15.         

Fourier

1772-1837

250 anos de nasc.

13.Bichat

15.dez.

16.         

Geoffroy

1672-1731

350 anos de nasc.

18.Bichat

20.dez.

17.         

Johan de Witt

1625-1672

350 anos de morte

11.Frederico

15.nov.

18.         

Pedro Damião

1007-1072

950 anos de morte

16.Carlos Magno

3.jul.

19.         

PLATÃO

428 aec-348 aec

2.450 anos de nasc.

28.Aristóteles

25.mar.

20.         

Ramus

1515-1572

450 anos de morte

4.Descartes

11.out.

21.         

S. Bonifácio

672-754

1.350 anos de nasc.

16.São Paulo

5.jun.

22.         

Tancredo

1072-1112

950 anos de nasc.

9.Carlos Magno

26.jun.

 

N

NOME

VIDA

COMEMORAÇÃO

CALENDÁRIO

1.             

Arsène Kin

11.10.1822-4.1.1890

200 anos nasc.

4.Descartes

FONTES: Wikipédia; “Apêndice” de Apelo aos conservadores (autoria de Augusto Comte; Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899), organizado por Miguel Lemos; Comité des travaux historiques et scientifiques (http://cths.fr/)

NOTAS:

1.     As datas de vida foram pesquisadas na internet (basicamente na wikipédia), considerando que esse procedimento permitiria obter o que há de mais atualizado a respeito das diversas biografias; além disso, cotejaram-se essas datas com as disponíveis no “Apêndice” do Apelo aos conservadores.

2.     Letras maiúsculas em negrito: nomes de meses.

3.     Letras maiúsculas simples: chefes de semanas.

4.     Letras em itálico: tipos adjuntos, considerados titulares nos anos bissextos.

5.     Os artigos da Wikipédia foram selecionados basicamente em português, mas em diversos casos ou só havia em outra(s) língua(s) ou eram melhores em outra(s) língua(s) (espanhol, francês, inglês).

18 novembro 2021

Sobre a peça "Medéia" e sua "atualização" brasileira

Recentemente li a peça Medéia, de Eurípedes (480 aec-408 aec), em uma desafiadora tradução de Trajano Vieira, publicada pela ed. 34. Vale notar que Eurípedes integra o calendário positivista concreto (o "calendário histórico"), no mês de Homero (o segundo mês do ano, dedicado à poesia antiga), na semana de Ésquilo.



A história é terrível e impressionante. Medéia era uma princesa-bruxa que vivia no extremo oriental do Mar Negro. Traindo sua família, ela ajudou Jasão a obter o velo de ouro. Depois de muitas aventuras e de terem um par de filhos, ao chegarem a Corinto Jasão renega a esposa, para casar-se com a princesa local. Medéia fica profundamente encolerizada e, para vingar-se do ex-marido, após matar o rei local e a nova esposa de Jasão, mata os próprios filhos. E, ao contrário do que ocorre em outros ciclos terríveis (como o ciclo de Édipo ou a Oréstia), em que é o destino que impõe aos indivíduos os sofrimentos, na Medéia é a vontade autônoma que decide e realiza os atos.

Ao mesmo tempo, lembro-me da peça A gota d'água, de Chico Buarque. Essa peça, escrita em 1974 em coautoria com Paulo Pontes, "atualiza" e "contextualiza" "criticamente" a peça de Eurípedes. Embora tenha ganhado prêmios, seja sucesso de vendas etc., a versão de Chico Buarque parece-me uma porcaria. A "atualização contextualizada" significa mudar alguns nomes (em particular o de Medéia, que vira "Joana") e inserir a tragédia de Medéia em um ambiente de favela com vistas a criticar a luta de classes.

Não tenho nada contra peças e obras que abordem a luta de classes, nem que tratem da situação social brasileira. Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, está à disposição de todos e é muito eficiente no que se propõe. Mas Gota d'água joga fora o elemento trágico de Medéia e da "solução" assassina que ela trama para vingar-se do ex-marido (o assassinato dos filhos). Não que na versão brasileira não haja esse assassinato, mas não há o sacrifício inicial de Medéia (que renega as próprias família e pátria por amor a Jasão); por outro lado, a versão brasileira insere a loucura de Medéia em um conflito de classes e, em particular, caracteriza a nova esposa e o novo sogro de Jasão como desprezíveis e exploradores burgueses.

Em suma, enquanto na peça de Eurípedes tem-se clareza do drama que se desenrola, na peça de Chico Buarque não se sabe o que importa, se a vingança assassina de Medéia-Joana ou se o conflito de classes (em que a traição de classes é recompensada pela infanticídio dos favelados). O resultado é que nem o drama de Medéia é efetivamente valorizado nem a luta de classes é "denunciada". Como eu disse antes, o resultado é uma porcaria. Mas, mesmo assim, os autores ganharam prêmios e recebem direitos autorais por isso.

15 novembro 2021

Entendendo a série "Lost"

Saindo um pouco do âmbito habitual deste blogue, apresento aqui algumas reflexões sobre a série televisiva Lost, no sentido de entender o que (e quais) são os principais grupos e personagens dela. Como se verá, embora refira-se a um seriado comercial, os mistérios de fundo da séria exigem uma solução que não é trivial - ainda que seja profundamente teológico-metafísica.

Como o canal pago Sy-Fy repete sem cessar a série Lost (produzida e exibida entre 2004 e 2010), resolvi acompanhá-la desde o início. Vendo todos os episódios, muita coisa na história faz sentido, mas o conjunto da trama exige um distanciamento analítico.

A série apresenta elementos que realmente chamam e prendem a atenção; mas, por outro lado, quando ela terminou, na sexta temporada, uma quantidade enorme de problemas e mistérios apresentados ao longo da história ficaram simplesmente sem solução, isto é, sem resposta, o que, claro, é muito insatisfatório. Além disso, a dubiedade moral de várias personagens incomoda muito – pelo menos, incomoda a mim. Isso tudo fez-me pensar em como entender a intrincada trama exposta ao longo das seis temporadas: as anotações abaixo são o resultado das minhas reflexões. 

Antes de mais nada, durante muito, muito tempo fiz questão de manter distância da história confusa apresentada na série. Eu só passei a assistir a ela porque, mais ou menos na terceira temporada (ou seja, em 2006 ou 2007), o ator que interpretou a personagem de Benjamin Linus – o inglês Michael Emerson – recebeu um prêmio por sua atuação e agradeceu de maneira tão gentil, tão cortês, que fiquei impressionado com seu comportamento e, a partir disso, com vontade de ver a atuação que lhe rendeu o prêmio.

Parece-me que a série teve três atrativos principais. O primeiro e mais evidente eram os seus curiosos mistérios: por exemplo, logo no episódio inicial vimos ursos polares em florestas tropicais, monstros de fumaça negra durrando árvores e assim por diante. Entretanto, esses mistérios, à medida que se acumulavam sem serem explicados com facilidade, acabavam não sendo tão atrativos quanto se poderia pensar à primeira vista (no meu caso, assim como no de várias outras pessoas, foi a esquisitice desses mistérios que me afastou da série desde o início). E não podemos deixar de lado o trocadilho: o nome "Lost" ("Perdidos") refere-se tanto às personagens retratadas na série quanto aos expectadores; uns e outros tentam entender o que se passa na "ilha".

O segundo fator atrativo é a estrutura narrativa da série, em que cada episódio entremeava ações comuns a todas as personagens e no presente com cenas no passado, específicas de uma das personagens principais. Na verdade, a partir da quarta temporada as cenas no passado deram lugar a cenas no futuro, enquanto na sexta temporada elas deram lugar a cenas de uma realidade paralela (que, depois, descobrimos que também são cenas no futuro). Enfim, essa alternância entre os tempos da narrativa deu um bom ritmo à série.

Em terceiro lugar, em parte como decorrência do elemento anterior, as personagens principais eram realmente interessantes, densas e carismáticas (cada uma à sua maneira). Assim, víamos os mocinhos enfrentando problemas pessoais e profissionais desafiadores, vilões realizando atos generosos, anti-heróis alternando entre a generosidade, a canalhice e a diversão etc. A estrutura narrativa com alternância entre ações no presente e no passado também permitia desenvolver mais e melhor essas personagens, indicando como e porquê elas chegaram a ser quem eram na história e, da mesma forma, como e porquê chegaram, afinal, à ilha em que estavam perdidos.

Passando agora para o entendimento da série: sem maiores rodeios, o quadro mais geral é dado pela “ilha”, que consiste em u’a metáfora para a mitologia monoteísta judaico-cristã (o deus caprichoso, ora violento, ora distante, do Velho Testamento; a divina trindade do Novo Testamento). Tudo isso tem a pista do “pastor cristão” (Christian Shepard) que aparece esporadicamente ao longo de toda a série. E, claro, há a referência evidente a Jacó (“Jacob”), que, na mitologia judaico-cristã, é o fundador dos israelitas e que também é irmão-rival de Esaú (a quem trapaceia e com quem entra em conflito). Jacó (“Jacob”) e seu preposto Ricardo (“Richard”) Alpert no fundo são criminosos; o grupo chamado “Os Outros” é um culto de fanáticos (também criminosos); Benjamin Linus e Charles Widmore meramente disputam a liderança do culto de fanáticos, estabelecendo uma guerra civil. Todas (todas!) as outras personagens são vítimas dessas quatro pessoas e de seus seguidores fanáticos. Por fim, esse conjunto é disfarçado com uma cobertura de confeitos de nomes de pensadores liberais (Edmund Burke, John Locke, David Hume, Jeremy Bentham - embora tenham faltado John Stuart Mill e seu pai James Mill; Thomas Hobbes e Francis Bacon) - que no fundo são pequenas piadas, com a função de distrair e confundir.

Esse quadro, todavia, só se torna claro quando se assiste a todos os episódios, em particular da quarta temporada em diante, e quando se deixam de lado os dramas pessoais e coletivos que constituem o grosso do drama.

Sumariando tudo, o que temos é isto:

-        um líder imortal que assassina o irmão e gera um conflito multimilenar insolúvel; que, extremamente à distância, estimula a criação de um culto de fanáticos por meio de um preposto; que se apresenta como um dos “mocinhos” e manipula a vida de dezenas de pessoas para que tenham vidas miseráveis e sejam obrigados a chegar à “ilha”; como líder imortal, é o “defensor” da “ilha” e assim é uma emanação dessa “ilha”;

-        um preposto tornado imortal que organiza o culto de fanáticos mas atua como eminência parda desse culto ao aceitar-indicar o líder da vez do culto de fanáticos;

-        um irmão imortal assassinado pelo líder imortal em última análise porque desejava sair da “ilha” e que, assim, vê-se transformado em um “monstro” de fumaça capaz de assumir a forma de pessoas mortas; na medida em que é um “monstro”, é também uma emanação da “ilha”;

-        um culto de fanáticos que manipula, chantageia, seqüestra, faz lavagem cerebral, estimula a síndrome de Estocolmo e/ou mata todos os que têm a desgraça de chegar à “ilha”, em particular durante sua guerra civil;

-        uma equipe de pesquisadores bem intencionados mas com inclinação para o misticismo e com alguns integrantes perturbados;

-        vários grupos de náufragos e de sobreviventes de acidentes aéreos que são manipulados e/ou que têm o azar de chegarem à “ilha”;

-        uma “ilha” que “age certo por meio de linhas tortas”, com “poderes” imensos mas de emprego arbitrário e caprichoso; que pode fazer muito mas também, por algum motivo, precisa ser “defendida”; que age às vezes diretamente, às vezes por meio de prepostos; que tem um “defensor” imortal adventício que é também a própria “ilha”; que tem prepostos, profetas, intérpretes e seguidores fanáticos.

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


*     *     *




O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).