10 maio 2017

"Bancada religiosa" deturpa proposta de reforma política

Na verdade, em vez de exigir a desincompatibilização de sacerdotes, o que se deveria fazer é a completa ineligibilidade dos sacerdotes.
A lisura dos dois poderes - o Temporal (o Estado) e o Espiritual (as religiões, os órgãos de aconselhamento e de opinião etc.) - requer, necessariamente, a separação entre si. Assim, sacerdotes simplesmente não podem, ou não poderiam, nem se candidatar a nenhum cargo político nem se elegerem a nada.
A ação da "bancada religiosa" evidencia, mais uma vez, o quanto as igrejas desejam o poder do Estado para imporem-se. Deve-se notar um fato muito importante: a "bancada religiosa" é basicamente cristã, composta pelos evangélicos e pelos católicos.

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A matéria abaixo foi publicada originalmente na Gazeta do Povo, em 9.5.2017; o original pode ser lido aqui.

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Reforma política: relator sofre derrota por pressão da bancada religiosa

Comissão queria unificar em seis meses o prazo para candidatos de 40 ocupações profissionais se afastarem de suas funções antes da eleição. Deputados evangélicos e católicos foram contra

  • Brasília
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A bancada religiosa, formada por deputados evangélicos e católicos, mostrou seu poder e força na comissão especial de Reforma Política da Câmara na noite desta terça-feira (9). Parlamentares desse segmento conseguiram excluir do relatório que líderes religiosos candidatos numa eleição tenham que se desincompatibilizar dessas funções seis meses antes do pleito. O relator Vicente Cândido (PT-SP) buscou unificar o prazo de seis meses para mais de 40 ocupações, cujos profissionais são candidatos.
A bancada religiosa ameaçou rejeitar todo o capítulo. E tinha votos para vencer. Ao sentir a pressão, o comando da comissão e os que seriam votos contrários, recuaram e fizeram um acordo: aprovava todo o capítulo, com a ressalva de votar em separado a exclusão dos líderes religiosos. E assim se deu.
A sugestão de incluir pastores e padres na regra, entre outros missionários, foi do Ministério Público Eleitoral, do procurador Nicolao Dino, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Pelo texto aprovado, a regra vale para presidente, diretor e conselheiro de empresa privada, de associação, de entidade ou organização não-governamental que receba benefício fiscal ou tributário.
A medida atinge também líderes sindicais. Deputados do PT e do PCdoB reconheceram que cochilaram ao não incluir essa categoria entre as exceções, como os religiosos. Cândido reconheceu que, se fosse a voto, o lobby religioso venceria e derrotaria todo seu texto. “Ali é força. Se levasse a voto, íamos perder”, disse o relator.

04 abril 2017

24 março 2017

200.000 visitas!

Hoje batemos a marca de 200.000 visitas no blogue Filosofia Social e Positivismo!

Para um blogue dedicado ao Positivismo, sem dúvida alguma essa é uma grande marca, é um grande feito. Fundado em 4 de janeiro de 2007 - pouco mais de dez anos atrás -, em 23 de julho de 2015 alcançamos 100.000 visitas e agora, após 14 meses, conseguimos dobrar as visitas.

Modestamente, isso comprova a relevância do Filosofia Social e Positivismo - em outras palavras, ele atende às necessidades sociais, políticas e intelectuais de nossa sociedade. É tudo o que almejamos.

22 março 2017

O Globo: "Defesa do Estado laico"

Artigo publicado em O Globo, do Rio de Janeiro, em 22.3.2017. O original encontra-se disponível aqui.

É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.

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Defesa do Estado laico

Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público e um tribunal não se prestam a esta finalidade


por 

Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.

Em benefício do direito à informação, achamos importante prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, o diretor do Arquivo efetivamente promoveu reuniões em favor da sua religião, e não “encontros” nos quais múltiplas crenças estavam representadas, como afirmou o magistrado. Os cultos eram semanais e somente cessaram após o fato ter sido denunciado pela imprensa (O GLOBO, 17-7-2016). Portanto, a ação trata exatamente da preferência a uma religião em detrimento das demais.

Em segundo lugar, a liberdade constitucional de culto nada tem a ver com a proibição de que as dependências, equipamentos e servidores de uma instituição pública sejam usados para proselitismo religioso. Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público ou um tribunal não se prestam a esta finalidade, mas sim a outras, do interesse de cidadãos crentes e não crentes.

A esse respeito, é importante aprofundar a discussão para além do lugar-comum “o Estado é laico, e não ateu”. Não é demais lembrar as guerras e perseguições históricas contra os que não professam esta ou aquela crença. Talvez uma das principais lições que podemos extrair da História seja a da importância de se garantir a separação entre o interesse público, representado pelo Estado, e os interesses e valores das várias religiões. Tal princípio encontra-se previsto na Constituição, que proíbe o Estado de manter com representantes de igrejas relações de dependência ou aliança.

Assim, se o Estado não deve impedir o exercício da fé, tampouco pode permitir que grupos religiosos loteiem ou capturem o serviço público, utilizando as estruturas custeadas por todos para promover seus interesses particulares. Erro grosseiro comete quem afirma que os defensores da laicidade pregam a intolerância, pois é exatamente o contrário disso: em um mundo impregnado por fundamentalismos, deve-se assegurar o igual respeito a todas as crenças e impedir que os espaços das instituições públicas sejam transformados em púlpitos, como ocorreu no auditório do quase bicentenário Arquivo Nacional.

Perseguição religiosa haveria se a Justiça proibisse cultos em locais privados ou a ocupação de ruas ou praças para a realização de festas ou procissões, o que não é o caso. A comparação a Hitler, feita pelo magistrado, não poderia ser mais infeliz pois, em tempos como os atuais, nos quais vem se tornando comum prefeitos entregarem “a Deus” as chaves do município, não há nada mais contra a maioria do que defender a laicidade estatal como valor democrático necessário à convivência pacífica de múltiplas visões de mundo. Mais do que tolerância, a neutralidade exigida pelo Estado laico assegura o respeito à liberdade religiosa de todos.

Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos são procuradores da República no Rio de Janeiro.

18 março 2017

Gazeta do Povo: "Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda"

Artigo de minha autoria, publicado em 18.3.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba.

O original pode ser lido aqui.


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Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda

As discussões sobre o projeto “Escola sem Partido” têm sido marcadas por grandes mal-entendidos em parte acidentais, em parte propositais. Como não poderia deixar de ser, dificultam a compreensão dos sérios problemas ligados ao projeto.
Notemos à partida que o nome “Escola sem Partido” é enganoso. Ele foi proposto no Senado pela bancada evangélica, com apoio católico, supostamente para evitar o proselitismo político nas salas de aula. Mas, ao sair das generalidades, o projeto evidencia sua meta: ao afirmar uma preponderância das famílias na educação de crianças e adolescentes, deseja-se evitar que as escolas desempenhem o seu papel de esclarecimento e de transmissão do conhecimento. Mais especificamente: o que a bancada evangélica deseja é que nem a Teoria da Evolução nem temas de educação sexual sejam ensinados e que, em geral, todos os conhecimentos contrários ou polêmicos para a teologia (cristã) possam ser questionados e impedidos de serem apresentados. É a instrumentalização direta do Estado por denominações teológicas específicas para manipular os currículos. É o puro obscurantismo em ação.
A família é fundamental, não é todo-poderosa ou onisciente. A escola é a intermediária entre família e sociedade: transmite conhecimentos e também estabelece o convívio. Ela é uma etapa na vida coletiva e, assim, estabelece uma ruptura com a família. Caso vivêssemos presos ao âmbito familiar, nunca teríamos a vida política, ou o conceito de “público”, ou o Estado-nação, ou a noção de “humanidade” – apenas o despotismo paterno.
Por outro lado, muitos dos críticos do Escola sem Partido são – para dizê-lo com um eufemismo – ambíguos a respeito de suas motivações. É certo que o Escola sem Partido institui mais que um controle sobre os professores: quer um verdadeiro patrulhamento ideológico. Mas muitos dos que defendem a necessária e correta liberdade de cátedra defendem-na desejando, na verdade, manterem-se livres para o proselitismo político – sendo mais específico, o proselitismo político (quando não político-partidário) de esquerda.
O Escola sem Partido teve sua origem na chamada “direita”, em grupos liberais e neoliberais, dos moderados aos radicais. Tais grupos apresentam propostas desvairadas – o “Estado mínimo”, a intervenção militar –; mas, neste caso em particular, eles estão corretíssimos. Uma parte substancial do ensino fundamental e médio é política e ideologicamente enviesada, encarada como “espaço de disputa” política. A própria ideia de ensino “crítico” já evidencia a intensa politização do tema.
Nesse sentido, basta passar os olhos pelos livros de História e até de Geografia, quando não de Sociologia e mesmo de Filosofia. Noções como “luta de classes” e “burguesia versus proletariado” abundam. Isso vale para o ensino público e para o privado e, o que é pior, vige desde bem antes dos governos esquerdistas do Partido dos Trabalhadores.
Pode-se dizer que não existe ensino sem “ideologia”. De fato, o ensino não é nem tem como ser neutro. Mas não ser neutro não pode equivaler a doutrinação. O mesmo motivo que leva a rechaçar o projeto evangélico é aplicável à prática da esquerda. Se há valores a organizar o ensino fundamental e médio, que sejam universalistas e includentes – o humanismo, a ciência, a cidadania, a fraternidade e a preparação para o mercado –, e de maneira nenhuma o obscurantismo, a teologia e a revolução do proletariado.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

17 março 2017

Dois erros sobre o Positivismo: "autoritarismo", "funcionalismo público"

Em 2008 escrevi um pequeno mas agudo artigo, tratando de dois mitos difundidos a propósito do Positivismo: as idéias de autoritarismo e, vinculada a ela, de "funcionalismo público". Esses mitos são difundidos há muitas décadas, por boa vontade ou com má-fé, por autores de direita e de esquerda, liberais, católicos ou marxistas: em qualquer caso, estão errados. O texto indica esses erros e mostra em que consistem os erros.

Quase dez anos depois de publicado, em termos de teoria política ele mantém-se atual. Mas é em termos dos debates públicos que ele revela-se e afirma-se importante; embora ele dedique-se a refutar erros teóricos, ele sugere concepções aptas a superar os graves problemas políticos por que passa o Brasil desde, pelo menos, o ano de 2013.

N. B.: tendo sido escrito há vários anos, procurei respeitar sua versão original, de modo que não fiz nenhuma atualização nele. O texto foi publicado na Revista Espaço Acadêmico, de Maringá, n. 87, de agosto de 2008.

N. B. 2: em 19.9.2023 realizei uma prédica positiva na Igreja Positivista Virtual, em que abordei novamente o conceito de "funcionários públicos". As anotações que serviram de base para a exposição oral e o vídeo da prédica podem ser vistos aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/09/sobre-expressao-funcionarios-publicos.html.

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Dois erros sobre a doutrina política comtiana: 
“autoritarismo” e “funcionalismo público”

Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Resumo: Este artigo comenta dois erros de interpretação bastante comuns a respeito da doutrina política de Augusto Comte: 1) a idéia de que seria ela autoritária e 2) o (mau) uso da expressão “funcionário público”. No primeiro caso, consideramos que não existe autoritarismo, na medida em que as liberdades públicas são resguardadas e incentivadas, dentro do quadro teórico da “liberdade republicana”. No segundo caso, afirmamos que em Comte o “público” não equivale a “estatal”, pois que isso negaria a autonomia da sociedade civil e, avant la lettre, justificaria estados totalitários. Concluímos fazendo algumas considerações a respeito das dificuldades teóricas e estilísticas que a obra comtiana apresenta.

Palavras-chave: Positivismo; Augusto Comte; interpretação; autoritarismo; público; estatal.

Não é nenhum segredo o fato de que o fundador do Positivismo, Augusto Comte, ser um autor pouco lido, a despeito de reputar-se-lhe o caráter de “clássico”. Apesar disso – ou, talvez, devido a isso – abundam as observações críticas a respeito de sua obra, isto é, comentários negativos em que se imputam a Comte as mais variadas opiniões e perspectivas, tão díspares, desencontradas e contraditórias entre si quanto em relação à letra e ao espírito comtianos.

No que se refere à sua doutrina política, dois erros em particular são bastante comuns mas, ao mesmo tempo, são pouco discutidos e problematizados: o Positivismo como “autoritário” e a afirmação de Comte de que, no estado normal, todos os cidadãos deverão ser considerados como “verdadeiros funcionários públicos”. Esses erros são tão mais dignos de exame quanto autores sérios e competentes na análise de outros aspectos da obra comtiana, como Bosi (2007) e Pickering (2007), cometem-nos. Assim, vejamos cada um deles.


I

Comecemos pela segunda questão, que é mais simples de ser analisada, e que se refere à afirmação, presente no livro Discurso sobre o conjunto do Positivismo (COMTE, 1957), segundo a qual no estado normal todos os cidadãos serão “verdadeiros funcionários públicos”.

Inicialmente, temos que determinar o sentido que Augusto Comte dá a essa expressão – e, para isso, é necessário fazer uma referência a alguns traços gerais de sua filosofia da história. Para ele, quando a sociedade ocidental encerrar sua fase de transição das épocas teológico-metafísicas, de caráter absoluto e militaristas, e passar para a positividade, de caráter relativo, pacífico e industrial, todos os cidadãos subordinarão o egoísmo ao altruísmo, buscando a melhoria das condições de vida uns dos outros, em termos materiais, intelectuais e principalmente morais: esse é o “estado normal”. A subordinação do egoísmo ao altruísmo e a dedicação de cada um aos demais não significa o fim do egoísmo, isto é, dos pendores e das preocupações de cada um consigo próprio, mas seu disciplinamento, de modo que cada qual busque servir ao conjunto da sociedade ao mesmo que satisfaz as próprias necessidades individuais. Dessa forma, na medida em que os cidadãos contribuirão para a satisfação de necessidades coletivas, serão como “funcionários públicos”.

“Público”, aí, não equivale a “estatal”; se não produzisse um círculo vicioso, poderíamos simplesmente dizer que “público”, no caso, equivale a... “público”, ou seja, aquilo que é comum a todos. Esse é um problema mais de interpretação que de tradução; para evitar mal-entendidos, talvez pudéssemos sugerir o “público” como sendo “social e democrático”.

Qual o problema com essa expressão? Tomar o “funcionário público” como “funcionário do Estado”. Esse erro tem sua origem lógica em uma interpretação especificamente jurídica da palavra “público”, na medida em que, no Direito, o que se opõe ao “privado” é o “público” cuja representação empírica é apenas e tão-somente o Estado. Assim, essa confusão à partida empobrece tremendamente a análise filosófica e social, pois retira toda verdadeira autonomia da chamada “sociedade civil” e supõe que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida “pública”. Teorizado juridicamente por Hans Kelsen (apud LACERDA NETO, 2004, p. 244), o esquerdista Alfredo Bosi (2007, p. 218) cometeu esse erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal” seriam uma justificativa para o aumento do aparelho estatal.

Mas as conseqüências de tal confusão não param aí, pois que dão azo à muito mais séria interpretação de que o Positivismo é a favor de alguma coisa como uma “estatolatria”, quando não simplesmente de um “Estado total”, ou seja, de um totalitarismo. Essa é a versão que o direitista Olavo de Carvalho dá à expressão “funcionário público” em Comte (apud LACERDA NETO, 2004, p. 243-245).

A doutrina comtiana favorece um governo – diríamos um “Estado” – forte, com capacidade de intervenção na sociedade. A esse respeito, o fundador do Positivismo adotava uma recomendação geral: o Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar a sociedade (ao menos, não onerar em demasia). Mas um Estado que seja “o menor possível” não equivale a “Estado mínimo”, conforme defendido pelos liberais. A esse respeito, Comte criticava fortemente os economistas políticos de sua época por erigirem em dogma político a inação e a omissão do Estado em relação aos problemas sociais. Por outro lado, há momentos em que a ação estatal é necessária para estimular e desenvolver aspectos da sociedade, em particular os relacionados à economia e aos problemas econômicos[2]. Mas é importante notar: a ação do governo, no que se refere ao conjunto da sociedade e à economia em particular, é limitada e complementar em relação à “sociedade civil”.

Ao mesmo tempo, Comte estabelecia como característica fundamental do regime político da sociedade positiva a separação entre os poderes Temporal e Espiritual. Veremos novamente esse tema na próxima seção, mas importa notar agora que tal separação tem como conseqüência uma sociedade civil articulada e forte (o poder Espiritual), capaz de fiscalizar o Estado (o poder Temporal).

Dessa forma, não há como reduzir no pensamento comtiano o “público” ao “estatal”, nem, muito menos, deduzir que o “público” em Comte revelaria uma “estatolatria”, um totalitarismo em germe.

Embora tanto Bosi quanto Carvalho tenham cometido o mesmo erro interpretativo, o de Bosi foi menor: seus comentários sobre a expressão foram desenvolvidos, além disso, por uma clara simpatia – no mínimo, por um respeito à letra e ao espírito de Comte. Já no caso de Carvalho, o erro foi maior e pior: sua interpretação, mais extremada, animou-se por um vivo desprezo pelo fundador do Positivismo[3].

II

Passemos à primeira questão que nos propusemos a tratar neste artigo, relativa ao afirmado autoritarismo de Augusto Comte. Essa questão, por apresentar conseqüências maiores e basear-se em pressupostos valorativos mais profundos, requer um tratamento um tanto mais detalhado.

Antes de mais nada, que é ser autoritário? Etimologicamente, autoritário é aquele que faz questão de enfatizar a autoridade nas relações humanas, especialmente nas que assumem aspectos políticos; além disso, essa autoridade é percebida como hierárquica, isto é, deixando claro que os que estão embaixo devem obediência aos que estão acima deles, com o adicional de negar aos primeiros a legitimidade na apresentação de objeções ou reparos à ação dos segundos. Relacionada a essa acepção mas dela distinta, há outra, que se vincula à falta de liberdade: aquele que nega a liberdade de ação e, principalmente, de expressão a outrem é tachado de autoritário.

Nesses termos básicos, a doutrina política de Augusto Comte não é autoritária: embora afirme a validade do princípio da autoridade, fá-lo para contrapor-se aos anarquistas, àqueles que negam a validade de qualquer autoridade, de qualquer governo. Ora, para um anarquista, qualquer governo é, por definição, autoritário; por essa mesma senda seguiram os “libertários” dos anos 1960 e 1970, que, revoltando-se contra “o que está aí”, afirmavam que todo governo, qua governo, é opressivo: a obra política de Michel Foucault é um bom exemplo disso. Mas esses casos são extremos e, de modo geral, a Teoria Política não considera que a mera autoridade dos governos seja fator de autoritarismo; para comprovar essa idéia, basta pensar a contrario: um governo sem autoridade é percebido como um governo fraco e incapaz de ação – portanto, um governo inútil.

Entretanto, é necessário complementar essas observações com o elemento de liberdade que se deve associar à autoridade. Um governo que não aceite, nem de facto nem de jure, as diversas liberdades, é considerado autoritário. Quais são as “diversas liberdades”? Basicamente, as chamadas civis e políticas, ou seja, as relativas às capacidades dos cidadãos de professarem as idéias e as fés que desejarem, expressarem-se conforme considerarem correto e adequado, de irem e virem; também as relativas às possibilidades de associarem-se, realizarem manifestações públicas e “ações coletivas”. (Deixamos de lado as liberdades econômicas pois consideramos que, de um lado, elas estão subsumidas nas civis e políticas e, por outro lado, os governos chamados de autoritários somente o são em termos econômicos quando a burguesia não mais aceita a ação econômica do Estado.) No que se refere a essas liberdades, Comte era explícito e enfático: não há que se as limitar.

Uma análise bastante refinada do conceito de liberdade foi elaborado em meados do século XX por Isaiah Berlin, retomando em termos estritamente políticos uma distinção sociopolítica elaborada quase um século e meio antes pelo primeiro Benjamin Constant; Berlin separava a liberdade positiva e a negativa. Enquanto a primeira consiste em ser livre no Estado, a outro consiste em ser livre do Estado. O sentido da “liberdade” que apresentamos no parágrafo acima é o da liberdade negativa: os cidadãos não são impedidos pelo Estado de agirem como considerarem correto ou, mais diretamente, de simplesmente agirem. A liberdade positiva consiste em os cidadãos exercerem e realizarem sua autonomia decisória por meio de sua participação direta na formulação das políticas de Estado. Embora não haja, do ponto de vista lógico, uma verdadeira oposição entre uma e outra, o fato é que elas correspondem a tipos diferentes de sociedades e arranjos políticos – nisso consistindo a exposição de B. Constant: a liberdade negativa é característica das sociedades modernas, de caráter industrial e dedicadas à produção de bens, com grandes contingentes de trabalhadores livres organizados em fábricas; a liberdade positiva era característica das sociedades antigas – Grécia e Roma –, de pequena extensão territorial, voltadas para a conquista militar e em que o número de cidadãos (isto é, de indivíduos livres e capacitados pela leis a integrar a vida política) era pequeno e, portanto, era fácil e simples reunir o corpo político[4].

Mais recentemente, a Teoria Política formulou um terceiro tipo de liberdade, a “republicana”. Fruto da lucubrações de Phillip Pettit, a “liberdade republicana” prevê que um cidadão somente é livre no quadro de uma república, isto é, de um governo que não o domine, não interfira em sua vida de maneira arbitrária. Na liberdade republicana, ao contrário dos defensores da liberdade negativa – como o próprio Berlin –, o problema não consiste na interferência do Estado na vida dos cidadão, pois ela fatalmente ocorre e é mesmo necessária; a grande questão é que essa interferência não seja arbitrária. A fim de garantir a não-arbitrariedade, uma república prevê e exige a participação dos cidadãos no sentido de fiscalizar o Estado, tendo para isso os canais necessários: esse é o próprio conceito de accountability. Não sendo uma liberdade negativa, a liberdade republicana também não é positiva, pois afasta a participação direta e contínua dos cidadãos na formulação das políticas de Estado.

Retornando ao tema do autoritarismo: deixando de lado a idéia de que todo governo, por definição, é autoritário, é necessário perceber o autoritarismo como uma limitação da liberdade. Já vimos que Augusto Comte no mínimo aceitava em termos gerais a liberdade negativa: mas e quanto às outras duas liberdades, a positiva e a republicana?

Comte rejeitava a participação direta da massa de cidadãos – por ele equiparada, em termos numéricos, ao proletariado – no governo, embora aceitasse e mesmo propugnasse a condução do governo por proletários tomados individualmente. Por outro lado, afirmava que o governo deveria ser fiscalizado por órgãos da sociedade; essa fiscalização, além do ato de verificar os projetos governamentais no dia-a-dia (sugerindo mesmo alterações ou supressões de projetos), subentende um elemento de legitimação: um governo que não passe no teste contínuo do escrutínio público perderá sua legitimidade, com as conseqüências naturais disso. Detalhe: esse escrutínio deve ser feito pela sociedade, não pelo Estado, ou seja, deve ser feito por um órgão externo ao governo[5]. Isso significa duas coisas: em primeiro lugar, a fiscalização do governo deve realizar-se pela opinião pública, organizada pelo que Augusto Comte chamava de “sacerdócio” e secundada pelos proletários e pelas mulheres; em termos atuais, para Comte a fiscalização do Estado deveria realizar-se por uma sociedade civil organizada e forte[6] – é um dos sentidos profundos da “separação entre os poderes Temporal e Espiritual”. Em segundo lugar, Comte rejeitava a utilidade dos parlamentos como órgãos de representação, de fiscalização e de formulação de políticas públicas; em outras palavras, os parlamentos deveriam ser apenas câmaras orçamentárias[7], não governamentais em sentido estrito.

Em suma: à exceção do fim dos parlamentos, a proposta de Comte é a própria liberdade republicana, que é tão “liberdade” quanto qualquer outra “liberdade” tomada no sentido comum. Dessa forma, não há autoritarismo no projeto político de Comte.

Mesmo assim, é necessário determinar a origem da acusação de um Comte autoritário: em que consistiria o autoritarismo comtiano? Por um lado, já vimos que isso se deve à afirmação de Comte de que o Estado deve ser forte. Embora essa mesma postulação seja também feita pelos regimes que correntemente chamamos de “autoritários”, essa afirmação em si não implica nada: regimes democráticos – isto é, aqueles que, como o proposto por Augusto Comte, celebram e realizam as diversas liberdades – também exigem “estados fortes”. No fim das contas, não é necessário despender muito tempo comentando como essa afirmação é, na melhor das hipóteses, simplesmente gratuita.

Mas o grosso do argumento a favor do suposto autoritarismo comtiano reside em uma confusão teórica e histórica relativa ao papel dos parlamentos nas chamadas democracias contemporâneas[8]. Comte era muito claro a respeito: ele rejeitava os parlamentos, afirmando que eles são instituições próprias ao conflito entre as monarquias e as aristocracias, em particular a inglesa: afinal, na Inglaterra o parlamento foi o instrumento utilizado para submeter – e, ao final, neutralizar – o rei em benefício da aristocracia, com o apoio da burguesia. O parlamento, dessa forma, representa a manutenção do sistema de castas – que dá origem à aristocracia – e a mistura de duas formas opostas de pensar, a teológica (com a monarquia, que é de direito divino) e a metafísica (com a idéia de soberania popular). Para Comte, embora afirme-se correntemente que foi a instituição do parlamento como órgão governativo que permitiu as liberdades civis e políticas, isso não passa de um sofisma do ponto de vista sociológico e teórico: o que realmente garantiu as liberdades na Inglaterra foi o escrutínio público, realizado pela opinião pública – a partir do fim da Idade Média inglesa consubstanciado temporariamente na aristocracia –, que as garantiu.

A questão é saber se a existência do parlamento é garantia real das liberdades públicas. A pesquisa histórica, todavia, não aponta correlação positiva entre parlamento e liberdades públicas: parlamentos podem coexistir com a inocorrência das liberdades públicas, com a coibição dessas liberdades e – o que é a regra, em se tratando de parlamentos – podem também ser fonte de corrupção política, econômica e social, além de serem geralmente órgãos simplesmente inúteis[9].

Disso tudo resulta que o famoso autoritarismo comtiano na verdade é um sofisma, um mito, ou melhor, uma difamação demagógica de quem considera os parlamentos ou a atuação direta do “povo” no governo são as únicas e, principalmente, as mais eficazes formas de garantir as liberdades públicas.

III

Talvez algumas palavras a respeito da obra comtiana sejam interessantes.

Comte observava os movimentos opostos, profundamente daninhos ao conjunto da sociedade, dos retrógrados – que, de extração católica, enfatizavam a importância da ordem social –, e dos revolucionários – que, de extração rousseauniana, negavam as instituições sociais em nome da liberdade e da igualdade. Para criar uma síntese original, respeitando o “conjunto do passado”, isto é, reconhecendo a legitimidade das reivindicações de cada um desses grupos, ao mesmo tempo que as ultrapassando, afirmou a necessidade e a possibilidade de realizar um regime sociopolítico de “Ordem e Progresso”. Essa síntese é marcada por uma dupla originalidade, que consiste, por um lado, na originalidade que todo pensador possui, a par de sua agência humana (cf. BEVIR, 2002); por outro lado, ao contrário do que afirmou Habermas (1982, p. 93-94), a obra de Comte não é uma colcha de retalhos, uma espécie de ecletismo teórica e metodologicamente incoerente como o de Victor Cousin: a obra de Comte de fato integra as perspectivas opostas, reconhecendo-lhe os méritos e as deficiências e criando uma nova teoria, que ultrapassa as anteriores.

Pois bem: essa síntese original, ao unir elementos da “direita” e da “esquerda”, sujeita-se ao ataque de ambos os lados, seja porque ela não representa “adequadamente” as opiniões de cada um dos pólos, seja porque representa para um pólo as opiniões do pólo oposto.

Mas há um problema extra. Temos procurado indicar (LACERDA, 2007; 2008) de que maneira a lógica profunda do pensamento comtiano não segue a do senso comum, na medida em que este é igualitário e individualista e a de Comte é englobante (conforme as definições de Louis Dumont (1992; 1995)). Dessa forma, abordar os textos do fundador do Positivismo sem maiores cuidados metodológicos – ou mesmo animado por um espírito de animadversão a seu respeito – tem por resultado erros como os indicados aqui.

Além disso, o estilo de escrita comtiano – sintético e denso – era marcado por idiossincrasias, que Ângelo Torres (1997) chamou de “criptografias”. Some-se a lógica englobante ao estilo “criptográfico” e teremos facilmente interpretações – como se viu, errôneas, mas mais ou menos bem-intencionadas – que tomam no senso comum o que deve ser percebido dentro do específico espírito da obra de Comte.

Jeffrey Alexander (1996) definiu como “clássico” o autor capaz de apresentar às sucessivas gerações de pensadores e pesquisadores um conjunto de modelos e sugestões teóricos e metodológicos, intuições, valores e interpretações; é claro que, para fornecer essa riqueza intelectual e moral é necessário que o clássico seja no mínimo lido.

Por seu turno, Mark Bevir (1994) estabeleceu que as interpretações das obras dos autores e o desenvolvimento de hipóteses e teorias têm que ser “progressistas”, ou seja, têm que ter, entre várias outras características, a abertura, a “afirmatividade” e a “compreensibilidade”, ou seja, têm que estar abertas à crítica e ao aperfeiçoamento, têm que mais afirmar que refutar afirmações diversas e, por fim, têm que ampliar cada vez mais o escopo de fatos explicados e interpretados.

No que se refere a Comte, o uso de sua obra como um “clássico” em uma pesquisa “progressista” foi recentemente feita por Steiner (2008). Apesar disso, o fundador do Positivismo não é de modo geral lido e sua serventia consiste muito mais em ser um espantalho para linchamento em praça pública que em uma referência intelectual efetiva. Está mais do que na hora de tornar Augusto Comte um “clássico” no sentido verdadeiro e profundo da expressão – em um sentido... “progressista”.

Referências

ALEXANDER, J. 1996. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, A. & TURNER, J. (orgs.). Teoria Social hoje. São Paulo: UNESP.

BENOIT, L. O. 1999. Sociologia comtiana. Gênese e devir. São Paulo: Discurso.

BEVIR, M. 1994. Objectivity in History. History and Theory, Middletown, v. 33, n. 3, p. 328-344, Oct.

_____. 2002. The Logic of the History of Ideas. Cambridge: Cambridge University.

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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (gblacerda@ufpr.br) é doutorando em Sociologia Política na Universidade Federal de Santa Catarina, sociólogo da Universidade Federal do Paraná, editor da Revista de Sociologia e Política e de Política & Sociedade e bolsista do CNPq.

[2] Ora, essa é precisamente a mesma posição de teóricos (e práticos) atuais da “reforma do Estado”: cf. Bresser Pereira (2005); Bresser Pereira e Pacheco (2005)e Nóbrega (2005).

[3]Pode-se encontrar um desprezo semelhante, mas a partir de uma perspectiva marxista, em Benoit (1999).

[4] Uma particularidade: embora a teoria política grega – bem entendido: ateniense, no período clássico, de Péricles – previsse e realizasse a plena igualdade dos cidadãos na magistratura por meio do sorteio, para os assuntos que realmente importavam, ou seja, a realização das guerras não havia “democracia”, não havia “liberdade positiva”, mas a ação de generais reconhecidos e respeitados como capazes e competentes.

[5] O Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, possui um órgão estatal estritamente dedicado à fiscalização pública, que é o Ministério Público e cuja atuação é por todos reconhecida como importante, “republicana” e “democrática”. Evidentemente, seria um anacronismo caso condenássemos Comte por não pensar em uma instituição desse tipo, mas, considerando suas idéias e suas opiniões, é lícito supor que a aplaudisse.

[6] Embora utilizemos aqui a expressão “sociedade civil organizada e forte”, também poderíamos usar outra: a habermasiana “esfera pública”, que foi objeto de detida análise por Pickering (2007).

[7] Para os ciosos da importância política dos parlamentos, a sua atuação como câmaras orçamentárias não deve ser diminuído, devido ao caráter absolutamente estratégico, em termos políticos, que tem a peça orçamentária para qualquer governo. Nesse sentido, aliás, manifestou-se Delfim Netto (2007). Por fim: a proposta de “orçamento participativo”, do Partido dos Trabalhadores, não é estrangeira às preocupações de Comte (cf. SOUZA, 2001).

[8] Um claro exemplo disso pode ser visto em Franco (2007).

[9] Isso é o que se percebe na atuação generalizada dos parlamentares dos três níveis de governo (no caso brasileiro) que apresentam projetos sem sentido apenas para terem “produção legislativa”; no que se refere às câmaras de vereadores e às assembléias legislativas, a regra é a apresentação de projetos de homenagem a personalidades e instituições variadas. Nada disso parece propriamente útil, defensor das liberdades públicas ou função do governo.