09 março 2011

O Positivismo e o conceito de "metafísica"

No livro intitulado "Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais" o texto abaixo foi publicado em uma versão revista. O livro foi publicado pela editora Poiesis e pode ser comprado na Amazon do Brasil, neste vínculo.


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Na postagem "Artigo: 'Vontades e leis naturais – liberdade e determinismo no positivismo comtiano'" (disponível aqui), está disponível um artigo que desenvolve alguns dos principais aspectos do conceito comtiano de "metafísica"  em particular, a respeito das várias possibilidades da noção de "vontade".

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As anotações abaixo constituem um esboço de investigações sistemáticas vindouras. Evidentemente, se apresento-as ao público é para suscitar comentários e reflexões; em todo caso, assumo à partida que há lacunas e algumas desproporções entre os temas tratados.



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Positivismo e O CONCEITO DE METAFÍSICA

Gustavo Biscaia de Lacerda

“Metafísica” integra o rol de palavras cujo sentido é confuso e que, ambivalente, mais serve para confundir que para esclarecer. Embora na obra de Augusto Comte a “metafísica” não ocupe um papel central, polar em relação a “conhecimento positivo” – esse papel cabe a “teologia” e, de maneira mais central, ele estabelece-se tomando como pólos “absoluto” e “relativo” –, o discurso moderno (isto é, do século XX) adotou como polares “metafísica” e “ciência”, o que exige alguns comentários.

Para Comte, a “metafísica” é uma etapa de transição entre a teologia e a positividade; é meio-caminho, que compartilha características de uma e de outra; já busca compreender a dinâmica natural, mas adota procedimentos próprios à teologia. Suas características mais marcantes talvez possam a seguintes: absoluta; faz uso das entidades abstratas, ou abstrações personificadas (ou ainda, em linguagem contemporânea, das abstrações reificadas); além disso, em virtude da incapacidade de desprender-se dos raciocínios teológicos, lança mão de jogos de palavras e de raciocínios circulares (“o éter faz dormir porque possui propriedades soporíferas”, “a Natureza tem horror ao vácuo”).

Convém notar que a metafísica é mera transição; a ela não se concede a dignidade de uma etapa estável e durável como são os casos da teologia e da positividade. Para Comte, a degradação da teologia sempre assume a forma da metafísica, ou seja, ela é teologia degradada. Ao longo da história isso facilitou as transições entre fases orgânicas, como entre o politeísmo e o monoteísmo, em que a filosofia grega – considerada metafísica por excelência – criou as condições intelectuais para a nova fase, seja como dissolvente da fase anterior, seja elaborando materiais preliminares. Aliás, é por esses motivos que a metafísica é crítica, no sentido de destruidora da ordem prévia: incapaz de construir sobre bases estáveis, destrói o que vê pela frente.

Nas transições anteriores, as condições sociais permitiam que a passagem ocorresse de uma fase orgânica para outra sem um interregno crítico muito demorado, pois o sistema social novo já tinha elementos formados e a transição era gradativa. Modernamente, todavia, a metafísica cumpriu seu papel dissolvente, mas os elementos do novo sistema não estão – ou melhor, não estavam – totalmente formados: somente em termos secundários a ciência constituiu-se, restando toda a tarefa de constituição central dos fundamentos do sistema positivo. É necessário notar-se, além disso, que a transição moderna é muito mais profunda que as anteriores: das civilizações absolutas, belicistas e particularistas[1], a modernidade deve caracterizar-se pela relatividade, pelo pacifismo e pelo universalismo[2].

A caracterização desse duplo movimento – de destruição da antiga ordem social, teológica e absoluta, e constituição de uma nova ordem, positiva e relativa – ocupa vários capítulos das obras de Comte e está na origem das suas reflexões sociológicas, como se vê nos vários artigos que compõem o seu Opúsculos de filosofia social, que são suas “obras de juventude”[3]; desse modo, não vem ao caso insistirmos nela.

O que importa reter, por outro lado, é que a metafísica é um conceito mais ou menos acessório para Comte[4]; que ele caracteriza-se pelo absolutismo filosófico, pela reificação das abstrações, pelo caráter dissolvente em termos intelectuais e, daí, sociais. Em outras palavras, no Positivismo comtiano não se confere a centralidade à metafísica que se atribui contemporaneamente (nem aquela que se afirma que Comte atribuía).

Embora de modo geral Anthony Giddens erre nas caracterizações que faz da obra de Comte – já o indicamos em várias ocasiões –, ao indicar a definição comtiana de metafísica ele mais ou menos acerta: para Giddens, a metafísica em Comte define-se em termos metodológicos[5]; na verdade, sendo mais precisos, poderíamos indicar: em termos teóricos, isto é, histórico-sociológicos.

Antecipando-nos ao argumento, vê-se que Augusto Comte não percebe a metafísica como sinônima de “filosofia”, “valores morais”, “especulação” ou “pressupostos teóricos e epistemológicos”.

Nesse sentido, aliás, valem algumas precisões: para Comte, a positividade e o pensamento positivo não equivalem a cientificidade e a pensamento científico. Conforme vê-se no Apelo aos conservadores, a palavra “positivo” define-se como sendo “real, útil, certa, precisa, relativa, orgânica e simpática”. Deixando de lado a explicação de cada um desses termos, para o que nos interessa cumpre notar que o espírito positivo tem uma visão global da realidade e é motivado pelo altruísmo; já a ciência é parcial e não se move necessariamente pelo altruísmo: nesses termos, o espírito positivo é superior à ciência[6]. Por outro lado, Comte procurou definir com clareza a sua epistemologia, que constituem em parte os seus “pressupostos”: é a “Filosofia Primeira” (que reproduzimos como “Anexo” a este texto).

Sem deixar de lado o que Augusto Comte escreveu, a importância contemporânea da “metafísica” liga-se, até certo ponto, à crítica que o Círculo de Viena fez dela. Caracterizando-a como impassível de verificação empírica, os vienenses afirmavam que ela é sem sentido e, portanto, como desprezível. O pólo conceitual oposto era a ciência, percebida como dotada de sentido; o sentido, por sua vez, era definido como a capacidade de vincular cada afirmação a uma observação empírica, em um processo de correspondência um-a-um. A teologia era percebida também como sem sentido, mas, como ela caracteriza-se facilmente pelo apelo às divindades, sua identificação era fácil e simples; além disso, como a ordem natural rejeita a ação das divindades, não faria sentido misturar ordinariamente teologia e ciência: por tais motivos, a teologia ocupa um lugar bastante marginal nos escritos do Círculo de Viena[7].

Como se sabe, o Círculo de Viena constituiu-se em parte com a preocupação de conferir rigor às elaborações científicas, em termos de suas fundamentações filosóficas; nesses termos, a distinção entre ciência e metafísica seria um importante problema. A partir disso, propuseram-se vários “critérios de demarcação”, como os de Carnap e de Popper[8] e que de modo geral separavam ciência e metafísica pela já indicada capacidade de vincular as afirmações teóricas a observações empíricas da ciência e a simétrica incapacidade da metafísica.

Além disso, o Círculo de Viena tinha uma exigência adicional para caracterizar a verdadeira ciência da metafísica: a elaboração de teorias explicativas apenas após o exame dos fatos; o exame da realidade munido de teorias prévias seria a formulação e a aplicação de metafísica à ciência.

Essas idéias do Círculo de Viena[9] até certo ponto resumem bem as concepções que se tem sobre a metafísica: valores prévios à pesquisa (bem entendido: valores morais e políticos que não se referem à prática científica), especulação teórica.

Talvez convenha precisar e desenvolver um aspecto, o da “especulação”. Como se sabe, a “filosofia” é uma atividade que apresenta as mais variadas definições, desde a análise dos termos das frases até a justificação das decisões teóricas e práticas; uma definição “clássica”, porém, considera que ela apresenta um caráter especulativo, em que, embora presumivelmente tenha que manter alguma relação com a realidade concreta, não precisa estar atrelada a ela; assim, a filosofia consistiria em uma reflexão geral sobre a realidade humana e cósmica. Nesse sentido, muitos vinculam a filosofia à metafísica definida epistemologicamente, isto é, a filosofia seria por definição a reflexão “meta-física”, isto é, “que vai além da física”.

Nesse sentido estrito, sem dúvida alguma que toda filosofia é metafísica. Se pensarmos que a teologia refere-se às divindades e que a ciência refere-se ao estudo analítico da realidade, caberia a essa “metafísica” a reflexão geral sobre o mundo, que poderia, quem sabe, passar da divindade à realidade empírica.

Essa definição, além de ser etimológica, corresponde a uma divisão do trabalho intelectual e estabelece uma tautologia: a filosofia é sempre metafísica; inversamente, a crítica à metafísica é a crítica à filosofia e ao filosofar. Tal concepção é bastante restrita, mas, curiosamente, é bastante difundida: mesmo o Círculo de Viena, que era tão rigoroso a respeito dos enunciados, adotou-a em larga medida. De qualquer forma, essa definição – tautológica – abarca as concepções que indicamos anteriormente: existência (ou afirmação) de teorias preliminares às investigações empíricas, atividade especulativa.

Cada um pode definir as coisas mais ou menos como bem entender. As definições relacionam-se à capacidade individual e coletiva de comunicação, em que uma definição específica deve ser compartilhada a fim de que várias pessoas possam entender-se a respeito de determinados assuntos; considerando essa imposição prática, as definições podem ser ajustadas às necessidades particulares de cada grupo ou, em determinados casos, de cada indivíduo. No caso da palavra “metafísica”, a definição-padrão, que é a etimológica e, como vimos, é tautológica, cria mais problemas que soluções; ela serve mais para confundir que para esclarecer – com o agravante de que em inúmeros casos o que se deseja é precisamente confundir.

Antes de mais nada: por que a definição etimológica confunde? Porque ela não esclarece os vários sentidos a que se referem os pensadores – em particular, para o que nos interessa, Augusto Comte. Ao tornar equivalente a atividade filosófica e a metafísica, não se esclarece qual o conteúdo específico da metafísica. Isso deixa de lado os modos e os conteúdos das obras de pensadores que quiseram ser especificamente “metafísicos”, ao mesmo tempo que elude que pensadores teológicos ou científicos são, também, cultores da filosofia, mas não da metafísica. Em outras palavras, afirma corretamente que toda laranja é fruta, mas finge que toda fruta é laranja, deixando de lado o fato central de que maçãs e peras também são frutas.

Essa confusão não é casual. É claro que pode ocorrer dificuldades conceituais; é claro que uma distinção adequada entre filosofia e metafísica – quando a metafísica criticava a teologia e afirmava como modalidade específica de filosofar e, depois, quando a prática científica criticou a metafísica – tornou-se durante um certo tempo difícil. Podemos pensar no passo decisivo para o ser humano o reconhecimento socrático de que existe uma realidade autônoma constituída pelo pensamento: antes disso, a conceituação do “real” e do “ideal” era altamente problemática[10].

Esse gênero específico de confusão, portanto, é histórico e, portanto, datado; quem incidia nele cometia um erro natural, involuntário e perfeitamente desculpável. O que não é desculpável é a reincidência nele, em particular a intencional.

De modo mais específico, a (re)afirmação da metafísica como filosofar o mais das vezes serve para diminuir a importância da racionalidade científica, isto é, para denunciar as limitações do pensamento científico. Ora, é evidente que o pensamento científico é limitado: na verdade, os próprios cientistas admitem-no e percebem-no, ao reconhecerem que o afirmado hoje poderá, e provavelmente será, negado amanhã. Além disso, a ciência é parcial, isto é, trata abstratamente de questões específicas e não de toda a realidade e, muito menos, de questões concretas. Por outro lado, essa visão parcial não basta para o ser humano compreender a realidade, isto é, para que ela faça sentido; além disso, a investigação científica requer teorias preliminares, assim como determinadas concepções gerais sobre a realidade (a realidade deve ser estudada em termos naturalísticos em vez de sobrenaturalísticos; deve-se evitar tanto o materialismo quanto o espiritualismo etc.).

Afirmar os limites da ciência e apontar seus pressupostos é uma necessidade; para conhecermos a realidade temos que conhecer com clareza os instrumentos de que dispomos e saber como operam e em quais condições. Todavia, determinar essas características é uma coisa; afirmá-las em termos de “metafísica” já se torna um recurso retórico cujo objetivo de diminuir o instrumento é bastante claro.

O famoso livro de Edwin Burtt, As bases metafísicas da ciência moderna, constitui um exemplo claro dessa intenção. Seu objetivo é esclarecer, isto é, pôr às claras os pressupostos filosóficos da ciência moderna, estabelecidos por ele nos séculos XVI e XVII, com Galileu e Newton. Em vez de dizer “bases metafísicas”, poderia perfeitamente dizer “bases filosóficas” ou, quem sabe, “bases epistemológicas”. O que sua opção sugere, todavia, é que a própria ciência é metafísica, ou pelo menos “contaminada” (indelevelmente) pela metafísica. Poder-se-ia argumentar que essa afirmação tenha sido feita de maneira polêmica, em contraposição às idéias mais “radicais”, isto é, mais “cientificistas” do Círculo de Viena ou de pensadores assemelhados: mesmo com um objetivo polêmico, o resultado é o de afirmação da validade da metafísica por meio da negação da ciência ou de sua equiparação à metafísica, isto é, aos pensadores que buscam o absoluto, que reificam as abstrações e assim por diante. Em outras palavras, entre (por exemplo) Einstein e Heidegger não haveria diferença profunda.

Mais: se entre metafísica e ciência não há diferença (pois ambas têm seus "pressupostos", que são sempre "pressupostos metafísicos"), as características específicas de tais pressupostos também são eludidas, por meio da sua equivalência artificiosa. Se os pressupostos da atividade científica são metafísicos, esses pressupostos compartilham as características da metafísica. Ora, evidentemente, essa forma de raciocinar é especiosa e visa a erodir a legitimidade da ciência e a afirmar alguma suposta validade da metafísica; o que não se esclarece são as características específicas da metafísica e da ciência.

Embora seja um tanto cansativo, importa lembrarmos mais uma vez as respectivas características: a metafísica é absoluta, reifica as abstrações, rejeita as mudanças históricas (ou reifica essas mesmas mudanças, ou sugere que tais mudanças obedecem às vontades das abstrações reificadas). Em contraposição, a ciência é relativa e crítica e está sempre aberta à revisão de seus procedimentos e resultados, alterando-se com o passar do tempo; a constituição da ciência não resultou de um fiat, mas de mudanças sociais, políticas, culturais ao longo do tempo, ou seja, a constituição da ciência e de seus fundamentos é histórica e modificável, não sendo de maneira alguma arbitrária ou absoluta. A conseqüência dessas características é que os próprios "pressupostos teóricos" da ciência são... "científicos", ao contrário da metafísica. Assim, em definitivo qualificar de "metafísicos" os "pressupostos" da ciência não é um ato descritivo ingênuo, mas uma ação deliberada de desvalorizar a ciência em favor da metafísica e de produzir confusão conceitual e intelectual.

Poderíamos multiplicar os exemplos, que iriam da Filosofia da Ciência à Teoria Política. Como, todavia, o que nos interessa aqui é o pensamento comtiano, a ele retornamos. São freqüentes as “acusações” de que a obra de Comte apresenta elementos “metafísicos” e, assim, ela seria incoerente e inválida. Deixando de lado o fato de que a incoerência não é um motivo sério para desconsiderar-se um pensador (Nietzsche é o mais gritante exemplo disso), as únicas formas, conexas, de afirmar-se que Augusto Comte era “metafísico” são 1) ignorar os vários elementos históricos, teóricos e epistemológicos que compõem sua definição de “metafísica” e 2) adotar a definição etimológica e tautológica de metafísica[11].

Para concluir estas anotações, reafirmamos duas idéias: em primeiro lugar, ainda que cada pensador defina os conceitos que usa como julgar mais adequado, não é aceitável definir a metafísica etimologicamente, pois gera confusão, o mais das vezes de maneira intencional; em segundo lugar, a definição comtiana de metafísica é útil, precisa e historicamente correta, fornecendo de maneira relacional (isto é, em contraposição à teologia e ao espírito positivo) critérios teóricos, históricos e epistemológicos para a caracterização da metafísica.

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Quadro das quinze leis de filosofia primeira, ou
Princípios universais sobre os quais assenta o dogma positivo[12]

Primeiro grupo, tanto objetivo como subjetivo

1ª Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar (I)

2ª Conceber como imutáveis as leis quaisquer que regem os seres pelos acontecimentos, posto que só a ordem abstrata permite apreciá-las (II)

3ª As modificações quaisquer da ordem universal limitam-se sempre à intensidade dos fenômenos, cujo arranjo permanece inalterável (III)

Segundo grupo, essencialmente subjetivo

1ª série: leis estáticas do entendimento

1ª Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibnitz, Kant) (IV)

2ª As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V)

3ª A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI)

2ª série: leis dinâmicas do entendimento

1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)

2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)

3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (VIII)

Terceiro grupo, sobretudo objetivo

1ª série: a mais objetiva da filosofia primeira

1ª Todo estado, estático ou dinâmico, tende a persistir espontaneamente sem nenhuma alteração, resistindo às perturbações exteriores (IX)

2ª Um sistema mantém sua constituição ativa ou passiva quando seus elementos experimentam mutações simultâneas, contanto que sejam exatamente comuns (X)

3ª Existe por toda parte uma equivalência necessária entre a ação e a reação, se a intensidade de ambas for medida conformemente à natureza de cada conflito (XII)

2ª série: mais subjetiva que a precedente

1ª Subordinar por toda parte a teoria do movimento à da existência, concebendo todo progresso como o desenvolvimento da ordem correspondente, cujas condições quaisquer regem as mutações que constituem a evolução (XIII)

2ª Todo classamento positivo procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva (XIV)

3ª Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera (XV).





[1] Uma transição anterior foi também de grande monta, ainda que de proporções relativamente menores em termos da natureza humana: a passagem da organização política clânica para a pólis constituiu-se em uma ruptura forte, em que as relações sociais mudaram bastante de aspecto.

[2] Essas três exigências são sentidas e proclamadas atualmente, ainda que de maneiras um tanto confusas. As previsões de Augusto Comte a respeito da natureza da nossa civilização, isto é, da civilização positiva confirma-se, a despeito das negativas dos apóstolos do absoluto, da beligerância e, claro, dos particularismos (nacionalistas ou “civilizacionais”).

[3] É fácil perceber, lendo esses artigos, que, como indicou Raymond Aron, a motivação política subjacente a eles é a compreensão sociológica da Revolução Francesa, isto é, de suas causas e de seus efeitos. Essa preocupação específica, somada à exigência teórico-metodológica de visão de conjunto, originou uma brilhante exposição sobre a história da Humanidade – é o volume III do Sistema de política positiva –, que incorpora desde os povos fetichistas até as sociedades mais modernas e permite o diálogo (teórico e prático) entre todas elas.

[4] Isso é comprovado pelos diversos enunciados da lei dos três estados: em todos eles a metafísica é apresentada secundariamente, após a caracterização da teologia e da positividade e sempre de maneira auxiliar a essas caracterizações prévias. Além disso, à medida que avançava suas reflexões sociológicas, mais e mais Comte incluía o fetichismo como uma etapa preliminar distinta da “teologia”, de maneira a permitir a fusão do positivismo final com o fetichismo inicial, no que alguns autores (Juliette Grange, Laurent Fedi) chamam de “neofetichismo”. Um relato cerrado sobre os vários enunciados da lei dos três estados pode ser lido no livrinho de Mike Gane, Comte.

[5] Ainda assim, Giddens não avança na compreensão da obra de Comte, preferindo o recurso fácil da redução de Comte ao Círculo de Viena.

[6] Essas observações resultam, por outro lado, em uma ácida crítica aos procedimentos de diversos cientistas e às universidades como um todo: para Comte, muito do que se entendia – e, bem vistas as coisas, ainda se entende – por ciência consistia em meras coleções de fatos isolados e, por si sós, inúteis, com o desprezo dos sentimentos e das preocupações sociais; além disso, tais práticas, em vez de subordinarem corretamente a imaginação à observação, simplesmente acabariam com a imaginação. Tais comentários estão espalhados em todas as obras de Comte, mas são especialmente claros no “Prefácio pessoal” do volume VI do Sistema de filosofia positiva, de 1842; já a afirmação do espírito positivo em relação à mera cientificidade está clara no Discurso sobre o espírito positivo, também de 1842.

[7] Aliás, não deixa de ser notável que alguns de seus membros, ou melhor, alguns dos pensadores preocupados com a diferença entre metafísica e ciência fossem teológicos: esse é o caso de Karl Popper – comumente percebido como “arquipositivista” (especialmente após a polêmica com o também teológico Adorno, da Escola de Frankfurt) – que reconhecia sua crença em deus. A coerência filosófica de Popper (e de Adorno, convém enfatizar) é, assim, bastante discutível.

[8] O caso de Popper é, em certo sentido, problemático, pois, participando dos debates promovidos pelo Círculo de Viena e preocupado com a justificação da ciência empírica, ele era crítico do Círculo de Viena. A dificuldade a seu respeito é a atribuição do qualificativo “positivista” para ele; mesmo restringindo esse adjetivo somente (ou principalmente) ao Círculo de Viena – o que, por si só, já é altamente problemático, pois descaracteriza o pensamento comtiano –, não apenas os membros do Círculo rejeitavam essa classificação como Popper afirmava não ser positivista, mas um filósofo “crítico”. A idéia de um Popper positivista foi difundida, em primeiro lugar, pela Escola de Frankfurt, com a famosa “disputa do Positivismo na Sociologia alemã”, que opôs Popper a um Adorno surdo aos argumentos contrários aos seus; depois, o chamado “pós-positivismo” criou um construto chamado “positivismo” a fim de opor-se a ele, incluindo nele Popper (e, por metonímia, Comte); a disputa de Popper com o primeiro dos “pós-positivistas” (Thomas Kuhn) certamente contribuiu para esse mito.

[9] Assumo com clareza a limitação desta exposição, que é de fato bastante sumária. Além das reduzidas proporções desses comentários, importa notar também que o Círculo de Viena não era homogêneo nem suas idéias constituíram uma “escola” propriamente dita. Na verdade, houve dois círculos, compostos por filósofos, cientistas naturais e matemáticos, reunidos pela preocupação com os fundamentos da ciência e com a demarcação relativamente à metafísica; embora procurassem o consenso, suas perspectivas não eram coincidentes e ocorria divergências marcadas entre eles. Assim, o mais das vezes, quando se fala em “Círculo de Viena”, faz-se uma generalização indevida; o principal, ou mais conhecido, pensador do Círculo era Rudolph Carnap; secundariamente, indica-se também Otto Neurath.

[10] O caso de Pitágoras é exemplar nesse sentido: sua escola entrou em crise quando, após afirmar a racionalidade do real e da Matemática, deu-se conta de que a diagonal de todo quadrado é um número irracional, múltiplo de √2.

[11] Uma variação desses procedimentos é adotar a, ou melhor, uma definição do Círculo de Viena para a metafísica e atribuí-la a Comte; o resultado desse sofisma é mostrar como Comte não seria suficientemente “positivista”. Além de misturar os conceitos e cometer o erro do anacronismo, esse procedimento, que é assaz comum, ignora as críticas que Comte faria ao cientificismo do Círculo de Viena, qualificando-o como pouco positivo e, portanto, metafísico.

[12] Fonte: Augusto Comte. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil, p. 479.

(Autorizada a livre reprodução, desde que citada a fonte.)

07 março 2011

A impossibilidade de "estudos comtianos" no Brasil

Na Europa, ou melhor, na França há o que se poderia chamar de “Estudos comtianos” ou até mesmo “Estudos positivistas”. Tais estudos consistem em investigações especializadas sobre diversos aspectos das idéias de Augusto Comte, bem como de seus vários discípulos teóricos e práticos em diversas partes do mundo (embora, evidentemente, concentrando-se na Europa e na França).

É interessante notar que tais estudos são qualquer coisa menos apologéticos, repetitivos ou “acríticos”. Basta passar-se os olhos por livros como Le kaléidoscope épistémologique d'Auguste Comte. Sentiments Images Signes, de Angèle Kremer-Marietti, ou Auguste Comte : Trajectoires Positivistes – 1798-1998, organizado por Annie Petit: são investigações especializadas relacionando o pensamento comtiano com questões tão diversas e interessantes como os projetos de unidade da ciência de Comte e de Otto Neurath (do Círculo de Viena); as relações entre o empirismo de Francis Bacon e de Augusto Comte; os estudos semióticos de Comte em relação às investigações do século XX; a influência que o Positivismo teve sobre o movimento operário britânico no século XIX; a influência do Positivismo na África – e por aí vai.

Evidentemente, tais pesquisas nutrem pelo menos uma simpatia pelo Positivismo. Para qualquer outra área de pesquisa, em particular as áreas inspiradas pelo pensamento de filósofos específicos (como, por exemplo, Marx, ou Husserl, ou Descartes, ou Rorty, ou Habermas, ou Hannah Arendt, ou qualquer outro, incluindo os nazistas Carl Schmitt e Martin Heidegger), essa observação seria desnecessária; todavia, no caso de Comte ela impõe-se. Não deixa de ser extremamente curioso, para não dizer esquisito, que a abordagem-padrão a respeito de Comte seja a “crítica”, entendendo-se por tal palavra o sentido negativo. Em outras palavras, enquanto uma atitude minimamente favorável para todos os demais pensadores é considerado recomendável, ou pelo menos aceitável, no caso do Positivismo isso já não é aceitável.

Evidentemente, essa exceção não é acidental. Ela consiste em uma gritante duplicidade de valores, que transforma Comte – e, de maneira mais ampla, um espantalho chamado “positivismo” – no “outro” de todos os pensadores e correntes estudados e defendidos. Ou melhor: elegendo-se o “positivismo” como o inimigo teórico preferencial a combater-se, por metonímia Comte é alçado à condição de arquiinimigo público número um, a quem se nega por definição e de maneira sub-reptícia os direitos de cidade, incluindo o mais mínimo respeito.

Dessa forma, os estudos sobre Comte, de modo geral, são bastante superficiais. É bastante fácil confirmá-lo vendo-se monografias de graduação, mas mesmo autores mais respeitados são exemplares a respeito: exemplo disso é Anthony Giddens, que no livro Política, Sociologia e Teoria Social força o argumento no sentido de reduzir Comte a um lunático que, na melhor das hipóteses, foi um prenunciador do Círculo de Viena, com um século de antecedência. Giddens adota a lei do mínimo esforço, preferindo repetir os preconceitos adquiridos em sua carreira de investigador e lançando mão de literatura de segunda mão[1] para “embasar” seus juízos.

O resultado, portanto, é a impossibilidade de estudar-se Comte; o seu estudo é visto como uma concessão – por definição, inaceitável – para o “outro” teórico[2]. Mas, afinal de contas, quais seriam os elementos específicos da obra comtiana que a tornam inaceitável? Temos algumas sugestões.

Em primeiro lugar, a rejeição comtiana da teologia e da metafísica. Essa rejeição, de fato, é inaceitável para a maior parte dos pensadores, mesmo que não o admitam: a crença no(s) deus(es) é muito forte, mesmo que inconfessável em uma época em que a intervenção divina na realidade já se mostrou implausível e imoral. Ao mesmo tempo, a irritação com a exigência metodológica de confirmar empiricamente as afirmações quaisquer não é aceitável para os cultores da metafísica, que desejam manter as práticas de reificação sistemática das abstrações e de especulação sem freios.

A crítica à teologia e à metafísica, sem dúvida, é um dos elementos que mais fortemente aproximam Comte do Círculo de Viena (é por essa trilha que anda Anthony Giddens, no artigo citado acima). Mas, ao mesmo tempo em que isso os aproxima, há outros elementos que os distinguem: como corretamente lembrou Kremer-Marietti, Comte é explícito nas idéias 1) de que o ser humano deve cultivar a especulação (ou seja, que ele não interdita, de maneira alguma e muito pelo contrário, a atividade filosófica) e 2) de que toda investigação empírica requer, previamente, uma teoria que guie a atenção.

Como se percebe com clareza, rejeitar a teologia e a metafísica é uma ação negativa, pois nega algo. Entretanto, é errado atribuir a Comte um projeto ou uma atividade negadora: sua obra não é destruidora (como, antes dele, a de Rousseau, ou depois dele, a de Nietzsche). Comte escreve considerando que a demolição intelectual e social já ocorreu, isto é, que os sistemas filosóficos teológicos e metafísicos já foram destruídos, bem como os sistemas sociais que se baseavam neles: a Revolução Francesa é o coroamento desses processos. Tais destruições, para Comte, não foram casuais nem errados; a passagem para o pensamento positivo é um avanço e cumpre delinear as características gerais do pensamento positivo – que não se confunde, de modo algum, com o pensamento científico – para daí determinar como é que a sociedade pode e deve organizar-se.

É nesse trabalho de afirmação primeiro intelectual e depois social que consiste a totalidade da obra de Comte. Convém notar que suas duas grandes obras consistem nisso: na avaliação das características intelectuais do pensamento positivo (Sistema de filosofia positiva) e, depois, nas conseqüências sociais e afetivas desse pensamento (Sistema de política positiva); o próximo passo seria a discussão da subjetividade positiva (Síntese subjetiva), mas a morte impediu-o de levar adiante esse projeto.

As características específicas do pensamento positivo constituem o segundo motivo por que Augusto Comte é visto como “inaceitável”. Ao mesmo tempo que defendendo o imperioso conhecimento da realidade, estabelecido por meio de parâmetros claros, Comte afirmava que esse conhecimento é relativo, isto é, que é limitado e variável, além de não-absoluto. Ora, afirmar a relatividade do conhecimento é dar um golpe de morte metodológico e epistemológico na teologia e na metafísica. A isso se junta a preocupação constante de estabelecer uma filosofia sintética e altruísta, que concebe cada forma de conhecimento em seus justos limites. Isso não é o mesmo que impor limites ao(s) conhecimento(s), mas é perceber que as várias formas de conhecimento são diferentes entre si devido a determinados motivos e que há, sim, hierarquias entre elas. Mas no que poderia ser uma afirmação de elitismo e eurocentrismo é, na verdade, uma afirmação de profundo respeito para com a Humanidade: por um lado, o conhecimento positivo é a sistematização do senso comum e, por outro lado, cada civilização tem uma sabedoria empírica e/ou sistemática que deve ser incorporada de maneira ativa ao conhecimento positivo. Os “justos limites” e a hierarquia do conhecimento, então, consistem em reconhecer que a ciência é analítica e racional, mas que o ser humano necessita antes de mais nada de sínteses afetivas que permitam a ação: nesse quadro, a ciência é uma parte essencial, mas que ocupa um papel por assim dizer instrumental na existência humana; o verdadeiro objetivo de todo conhecimento é sempre o ser humano, em particular o seu aperfeiçoamento moral, intelectual e físico, em termos sociais e individuais.

Assim, não apenas Comte deixa para trás teologia e metafísica esgotadas e incapazes de auxiliar realmente o ser humano, como desenvolve uma filosofia que realiza todos os atributos que são costumeiramente atribuídos à teologia e à metafísica. Trata-se, então, de ciúme dos decaídos, a que se soma a raiva das especialidades acadêmicas, que exigem a todo instante mais e mais especialização, mais e mais análise, mais e mais vistas parciais. As especialidades acadêmicas – denunciadas desde 1830 por Augusto Comte como anárquicas e mesquinhas – rejeitam em nome do conhecimento objetivo toda preocupação social e moral.

Um problema de conceito histórico é o terceiro motivo por que Augusto Comte é inaceitável. Vimos que o Positivismo é mais pela síntese que pela análise; a crítica às especializações é facilmente traduzível como crítica à ciência. Enquanto Augusto Comte foi um filósofo da ciência, examinando cada ramo científico, recebeu os elogios; quando afirmou que esses vários ramos da ciência têm que se subordinar a uma visão de conjunto e a preocupações sociais e morais (isto é, altruístas, universais e pacifistas)[3], foi criticado como “demente”. Que a afirmação das vistas gerais fosse, desde o início, o grande objetivo de Comte, é secundário e, para o senso comum acadêmico, desprezível. Assim, trata-se de um problema político e epistemológico, em que o Positivismo é dividido, a partir dos interesses acadêmicos, em duas partes: a primeira, “científica” e “válida”; a segunda, “religiosa”, “mística” e “inválida”.

Ora, esse procedimento ocorreu em meados do século XIX, resultando em um mito vigente até atualmente (mais uma vez: Giddens repete textualmente Stuart Mill, a esse respeito). Repitamos: segundo o raciocínio desenvolvido no século XIX, o Comte que presta é o científico e a parte “moralizante” não presta. Mas o século XIX foi, como se diz, “cientificista”, isto é, pelas análises, pelas especializações, pela subordinação da realidade humana às concepções oriundas das Ciências Naturais.

De acordo com o mito criado no século XIX, o Positivismo que presta é o científico; ao outro não se deve dar atenção. Mas no século XX a perspectiva “cientificista” perdeu força e, na verdade, tem sido fortemente criticada, resultando em uma certa inversão de perspectivas[4]: são as Ciências Humanas que devem orientar as C. Naturais e não o contrário[5]. Em meio a essa inversão valorativa, o mito do Positivismo cientificista permaneceu; o Comte que prestaria seria o científico – mesmo que atualmente essa cientificidade (supostamente, por definição “cientificista” e “naturalista”) não valha nada –, ao passo que a parte religiosa não teria o menor valor (pois resultado da “loucura”[6]). O humanismo seria exclusividade das perspectivas “interpretativas”, “compreensivas”, “qualitativas”, “críticas”, “pós-istas” e por aí vai.

Um quarto motivo para Comte ser inaceitável é uma forma de derivação do anterior: a ação dos modismos intelectuais e políticos. Era comum nos anos 1950 a 1970 os bem-pensantes dizerem ser preferível estarem errados com Jean-Paul Sartre a certos com Raymond Aron; mais ou menos na mesma época, os estruturalismos ganharam grande força. No Brasil dos anos 1970 e 1980, em virtude do combate ao regime militar, o marxismo foi uma corrente verdadeiramente hegemônica. Sartre foi substituído por Foucault e o estruturalismo, pelo pós-modernismo (ou pós-estruturalismo, como preferem alguns). Marx e o marxismo foram substituídos pela filosofia analítica, por Habermas, pela Escola dos Anais, pela teoria da escolha racional, pelo interpretativismo, pela fenomenologia e por aí vai. Nessa sucessão de modas, o princípio que vale é o mais cru evolucionismo darwinista: o que vem depois é sempre melhor, o que é deixado para trás é cadáver que deve apodrecer o mais brevemente possível. Ora, a vez do Positivismo e de Comte foi a segunda metade do século XIX, estendendo-se até as primeiras décadas do século XX; estudá-lo depois disso é exumar um cadáver que – como todos os outros – é insepulto e, portanto, fede. Poucos seriam os “intelectuais” que assumiriam isso, mas a realidade é simples e brutal: modas e modismos.

Um quinto motivo por que Augusto Comte é visto como inaceitável é de caráter antropológico. Comte levava a sério sua idéia de concepção totalizante do ser humano; em vez de perceber – como se faz no Ocidente – a sociedade como constituída em quantidades variáveis pela justaposição de indivíduos, cada qual entendido como uma mônada, ele a concebia como uma realidade histórica engloba cada ser humano. Esse englobamento não impede a ação individual nem nega a agência humana – que são “fatos” empiricamente observáveis e comprováveis cotidianamente –; o que o Positivismo faz é rejeitar as concepções, teológicas e metafísicas, que afirmam que o indivíduo é um fim em si mesmo, que é um absoluto, que a vida de relação é secundária e pode ser desprezada. A noção de totalidade, para ser coerente consigo própria no caso do ser humano, deve estender-se da concepção presentista para a concepção historicizante. O melhor modelo para compreender-se essa idéia foi formulado em meados dos anos 1970 por Louis Dumont: trata-se do englobamento de contrários, em que os vários grupos sociais, em que as diversas concepções são subsumidos em um princípio superior, que os ordena e torna-os possíveis; no caso de Comte, esse princípio superior é a própria Humanidade, definida pelo francês como o conjunto de seres convergentes, passados, futuros e presentes. Em outras palavras, todos os seres (humanos, animais e vegetais, além do próprio planeta Terra) que atuam de maneira a melhorar a vida de todos e de cada um criam uma realidade que transcende cada um mas que, ao mesmo tempo, está aberta à incorporação subjetiva post-mortem.

Esse esquema não é aceito pelo Ocidente, cujo individualismo – herança direta do cristianismo – assume as mais diferentes formas: anarquismo (de Bakunin ou de Marx), afirmação dos direitos (isto é, de privilégios individuais e unilaterais), apologia das revoluções etc.

Esses cinco motivos são bastante amplos e compreendem a maior parte dos motivos por que Augusto Comte é rejeitado in limine na academia brasileira. Nenhum deles é motivo de orgulho para quem o pratica e, no conjunto, são motivos de vergonha para quem faz da vida do espírito sua vocação.

Retornemos ao início deste artigo. Os motivos acima impedem, isoladamente ou em conjunto, que se estude de maneira aprofundada e sistemática Augusto Comte no Brasil. Na verdade, não apenas no Brasil, mas de modo geral nos outros países, exceção feita à França. O que torna chocante a comparação com a França, no fundo, é que os “estudos comtianos” franceses somente ocorrem porque há uma relativa aceitação, lá, da validade no estudo da obra comtiana, o que equivale a dizer que há uma relativa liberdade institucional. Assim, inversamente, no Brasil não há essa liberdade: podemos comprovar essa afirmação com dois exemplos.

Em primeiro lugar, são pouquíssimos os estudiosos realmente sérios da obra de Comte. Por “estudiosos realmente sérios” entendo aqueles pesquisadores que se detêm sobre o corpus comtiano e, com um mínimo de simpatia, lêem-no a fim de entender a sua lógica interna e, a partir daí, tirarem as diversas conseqüências, contrapondo-as à realidade ou ao pensamento de outros autores. Não considero aí os historiadores do Positivismo no Brasil, que tratam de Comte de maneira marginal e, por mais curioso que seja, instrumental; embora nesse grupo haja pesquisadores que entendam a obra de Comte, o mais das vezes a ignorância a seu respeito é a regra e, portanto, as interpretações dadas sobre a atuação dos positivistas locais é parcial e enviesada[7]. Evidentemente, também não considero aí os que não estudam Comte com o requisito de “mínimo de simpatia”: não se trata de desejo apologético, mas sim de exigência epistemológica. A animadversão preliminar no estudo de um tema impede a compreensão de sua lógica profunda, criando um obstáculo subjetivo que antolha o estudo: isso é o que diz atualmente Donald Davidson, é o que aliás dizia Augusto Comte.

Em segundo lugar, uma experiência pessoal. Em concurso público para o cargo de professor adjunto de Ciência Política em uma universidade federal, fui inquirido na fase (final) de entrevista sobre minha referência teórica comtiana: perguntaram-se de que maneira usava as idéias de Comte. Respondi que elas constituem o meu estofo moral e mental, mas que do ponto de vista teórico não o utilizo como parâmetro único e, do ponto de vista metodológico, advogo um pluralismo. Exemplo disso é meu interesse sobre a teoria republicana e a laicidade: evidentemente que Comte e o Positivismo são referências obrigatórias – para qualquer um deveriam ser, mas para mim com certeza –, mas há diversos outros autores que tratam dessas questões, com abordagens metodológicas particulares e conseqüências práticas específicas: tudo isso tem que ser devidamente considerado, o que não pode ocorrer por meio do decreto magister dixit. Além desses temas de Teoria Política, também me interessam questões epistemológicas – e, aí, as relações de Comte com o Círculo de Viena e destes com outras perspectivas são temas obrigatórios. Convém notar que são poucos os pesquisadores brasileiros que tratam desses temas, importantes em si e por suas conseqüências políticas; são ainda em menor quantidade aqueles que se preocupam em compreender a perspectiva de Comte (isto é, que não assumem as perspectivas contrárias a ele).

Os meus interesses intelectuais são legítimos e correspondem a várias áreas de pesquisa que mantêm estreitas relações entre si; tais interesses de pesquisa são corroborados pela participação em grupos de pesquisa, pela publicação de artigos em periódicos de alto nível, pela apresentação de artigos em congressos nacionais e internacionais, pela edição de periódicos especializados e, the last but not the least, pela docência. A eles a banca opôs uma viva e crescente resistência.

Na verdade, a “banca” resumiu-se a um membro, que foi apoiado pelo obsequioso silêncio dos demais. Tal membro gradativamente argumentou que a filiação teórica e moral a uma corrente tornava-me suspeito e que a preocupação com o relacionar essa corrente com as diversas outras era um perigo pedagógico; com isso, ele sugeria que a condição para minha aprovação consistia no abjurar meus valores e preocupações. Se esse membro da banca tinha suas próprias preocupações e filiações teóricas e morais, isso por certo que não estava em questão: entretanto, evidenciou-se que a mim era interdito adotar com liberdade a perspectiva que quisesse, ao mesmo tempo que dispondo-me com clareza ao debate científico. Essa argüição, que teve um nítido aspecto inquisitório, caracterizou-se pelo calor das observações: com ingenuidade acreditei que a defesa clara e franca seria percebida como uma qualidade intelectual de abertura ao diálogo e a argumentos contrários. Ledo engano; com indignação mas sem surpresa soube que não fora aprovado no concurso[8].

O episódio que narrei em traços altos constituiu-se em um ato de perseguição e discriminação política, filosófica e religiosa. Ele serve a um só tempo para ilustrar como a universidade não é o templo do diálogo ou, pelo menos, que está muito, muito distante de ser o espaço do convívio tolerante das diferenças; também serve para ilustrar como os interesses intelectuais podem perfeitamente dar origem a comportamentos facciosos. Por fim, para o que nos interessa, ele ilustra como é simplesmente vedada no Brasil qualquer investigação séria e sistemática, isto é, contínua sobre o pensamento comtiano. Estudos temáticos, sim: desde que sejam contrários a Augusto Comte. Comte é o “outro”, é o rejeitado preferencial: ele não pode, não deve ser estudado. Quem insistir nisso que sofra as brutais conseqüências.



[1] Giddens usa alguém tão respeitável quando John Stuart Mill; ainda assim, é literatura secundária e, portanto, repetição dos preconceitos alheios. Como qualquer estudante de graduação sabe (ou deveria saber), a boa regra é: sempre ler o original, especialmente quando se tratar de manuais didáticos.

[2] É necessário notar algumas exceções, que no final das contas servem apenas para confirmar o que argumentamos. Pierre Bourdieu, por exemplo, distinguia Comte do “positivismo” (se bem que um tanto raivosamente, pois insistia em colar em Comte o discutível epíteto de “positivista”, como se vê em O ofício de sociólogo). Cria-se aí um sério problema terminológico, em que não se pode chamar o sistema comtiano pelo nome que ele mesmo deu-lhe; a sombra do “outro” teórico impede o exame aprofundado da obra comtiana.

[3] Nesse exato sentido, Comte afirmava que as Ciências Humanas – notadamente a Sociologia e, depois, também o que ele chamava de Moral (ou Psicologia) – deveriam orientar todas as pesquisas científicas, chegando mesmo a reformular várias das teorias das ciências inferiores, isto é, das Ciências Naturais. Nada próximo, portanto, da imposição de critérios “naturalísticos” às Ciências Sociais, como se apregoa urbi et orbi a respeito de Comte.

[4] A crítica à ciência, ainda que tenha um certo elemento de verdade – como indicamos, não é possível subordinar as Ciências Sociais aos modelos e aos procedimentos estritos das Ciências Naturais, além de exigirem perspectivas de conjunto – tem também um fortíssimo elemento reacionário, em que os misticismos teológicos e metafísicos procuram, de alguma forma, dar o troco pelas derrotas teóricas e práticas anteriores. As filosofias da Nova Era, as várias teologias, as várias metafísicas e até filosofias ditas “críticas” e pós-modernas entram nesse movimento. Contra esse movimento reacionário, só se pode afirmar e reafirmar a validade teórica e política da ciência.

[5] A orientação das Ciências Naturais pelas C. Humanas corresponde a procedimentos metodológicos, a concepções epistemológicas e a preocupações políticas e morais: isso é muito diferente dos misticismos à la Nova Era, aos totalitarismos e aos devaneios pós-modernos.

[6] O argumento da loucura, por outro lado, revela mais uma das hipocrisias acadêmicas. Comte é “louco” e por isso sua obra não merece ser lida; mas, ao mesmo tempo, a loucura de (por exemplo) Nietzsche torna-o totalmente merecedor de leitura, comentário, imitação e continuação. Dois pesos, duas medidas.

[7] E, ainda assim, os estudos sobre o Positivismo no Brasil são fragmentários. Depois das pesquisas de João Cruz Costa e Ivan Lins, houve boas produções somente no Rio Grande do Sul (de modo geral sobre o castilhismo, embora também sobre Carlos Torres Gonçalves) e mais as de José Murilo de Carvalho e Ângela Alonso. Há algumas pesquisas de qualidade sobre Paulo Carneiro, Edgard de Roquette-Pinto e Augusto Trajano de Azevedo Antunes, mas todas pequenas. Fora essas, o comum dos estudos é enviesado de acordo com os parâmetros do liberalismo, do marxismo e/ou do catolicismo nacionais. Na área de História da Ciência a situação não é muito melhor, como o comprovam as investigações sobre a História da Matemática no Brasil.

[8] Os estranhos procedimentos dessa banca não pararam aí, pois havia duas vagas disponíveis e 12 candidatos: o “rigor” da banca não considerou nenhum deles “adequado” às vagas.

03 março 2011

Hélio Schwartzman: Religião nas escolas

Artigo do jornalista Hélio Schwartzman, publicado hoje (3.3.2011) na Folha de S. Paulo. Como TODOS os que se debruçam sobre o assunto alertaram, a disciplina de "Ensino Religioso" produz resultados apavorantes. (Texto originalmente disponível aqui: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/883388-religiao-na-escola.shtml.)

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Religião na escola

"O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta a professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!"
A cena, que teve lugar numa escola pública de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, abre a reportagem de Angela Pinho sobre o ensino religioso no Brasil, publicada no último domingo na Folha. É um retrato perfeito da encrenca em que essa disciplina, que vem crescendo e hoje abarca mais ou menos a metade das escolas do país, nos lança.

Se as historietas bíblicas são reais, como quer a professora, então nós temos vários problemas. Procedamos por ramos do saber, a começar da física. De acordo, com Josué 10:12, Deus parou o Sol para que os israelitas pudessem massacrar os amorreus. Mesmo que eu não duvidasse da onipotência do Senhor, pelo que sabemos hoje de mecânica, nada na Terra sobreviveria a uma súbita interrupção de seu movimento de rotação. Em quem o aluno deve acreditar, no professor de religião ou no de ciência?
A física não o comoveu? Que tal a geologia? Pela Bíblia, a Terra tem cerca de 6.000 anos --5.771, a confiar nas contas dos rabinos. Pela geologia, são 4,5 bilhões. É difícil, para não dizer impossível, conciliar a literalidade das Escrituras com a existência de fósseis com idades substancialmente maiores que os seis milênios. Do lado de qual professor o aluno deve perfilar-se?
Talvez o problema esteja nas ciências "duras". Passemos às humanidades. A Bíblia, como todo mundo sabe ou deveria saber, é a fonte da moral, e os ensinamentos que ela traz nessa área são incontestáveis. Será? Em várias passagens, o "bom livro" autoriza ou mesmo manda fazer coisas que hoje consideraríamos horríveis, como vender nossas filhas como escravas (Êxodo 21:7) e assassinar parentes que abracem outras religiões (Deuteronômio 13:7). Se julgamos que a ética se aprende através de exemplos livrescos, sugiro trocar as Escrituras pelo mais benigno Marquês de Sade.
OK. Alguém pode argumentar que essa professora é uma exceção. Afinal, ela parece estar sustentando a inerrância da Bíblia, conceito que, no Brasil, é defendido por poucas religiões, notadamente adventistas e testemunhas de Jeová. Para as demais, as Escrituras não precisam e nem podem ser tomadas ao pé da letra.
Admito que essa mudança de discurso nos livra de algumas das dificuldades mais vexatórias --já não precisamos conciliar o criacionismo da Terra jovem com as aulas de ciência--, mas nem de longe acaba com elas.
Como já expliquei numa coluna antiga, embora seja em teoria possível juntar uma teologia um bocadinho mais sofisticada com a seleção natural neodarwinista, essa conciliação acaba resultando num Deus menos atuante, que cria as leis do universo e se retira. Ocorre que esse é o Deus de Newton e de Leibniz, mas não o das pessoas que vão a cultos. Para elas, um Deus que não ouve preces e não interfere nos destinos dos humanos é inútil. E esse Deus que elas querem --e que os sacerdotes pretendem colocar nas aulas de religião-- é, pelo menos no plano psicológico, incompatível com a ciência contemporânea que deveria ser ensinada nas escolas.
Não estou evidentemente sugerindo que as pessoas devam rifar Deus para ficar com a ciência. Essa é a minha opção, mas não acho que deva impô-la a ninguém. O simples fato de uns 90% da humanidade manifestar preferências religiosas é um bom indício de que essa é uma característica da espécie, como a tendência a gostar de música ou aquela quedinha por substâncias psicoativas. A verdade é que o ser humano tem algo de esquizofrênico. Só conseguimos conchavar crenças religiosas, que de algum modo acabam apelando ao impossível ou improvável, com o rigor lógico exigido pelo método científico, porque nosso cérebro está dividido em módulos. "Grosso modo", quando a parte responsável pelo pensamento lógico está ativa, inibe a área da religião, e vice-versa. Com esse mecanismo, as contradições, quando não passam despercebidas, tornam-se digeríveis.
Até para facilitar esse processo, não convém que religião e ciência sejam ensinadas no mesmo espaço. Para que a criançada aprenda desde cedo a distinguir o discurso do "lógos" (científico) do do "mythos" (religioso), é melhor que a escola trate apenas da ciência e que a religião fique a cargo dos templos.
Cuidado, não estou afirmando que não seja possível estudar a religião com ferramentas científicas. Em princípio, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a neurociência estão aí para isso. Mas convém lembrar que estamos falando aqui de crianças de 6 a 15 anos, muitas das quais mal conseguem aprender português e as operações aritméticas básicas. Não me parece que a abordagem científica da religião deva ocupar um lugar muito alto na lista de prioridades. De resto, duvido que o lobby que advoga pelo ensino religioso esteja ansioso para ver a fé submetida a exame crítico.
Para além da cabeça da garotada, o ensino religioso na rede oficial também gera uma série de problemas institucionais. Como eu escrevi em texto que acompanhou a reportagem principal, a existência dessa disciplina em escolas públicas fere a separação entre Estado e igreja.
Pelo menos em teoria, o Brasil é um Estado laico. Não há religião oficial e o artigo 19 da Constituição proíbe expressamente o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. É claro que a teoria soçobra antes mesmo de chegarmos ao artigo 19. O próprio preâmbulo da Carta invoca a "proteção de Deus", e o artigo 210 prevê o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.
Vale aqui observar que a única Constituição verdadeiramente laica que tivemos foi a de 1891, que rompeu com a Igreja Católica e eliminou quase todos os seus privilégios. As que a sucederam reintroduziram o ensino religioso.
Embora doutrinadores gostem de dizer que não há contradição entre os artigos 19 e 210, é forçoso reconhecer que colocá-los lado a lado gera pelo menos um mal-estar. Não é o único. A diferença é que, ao contrário de outros estrépitos constitucionais, que conseguem passar relativamente despercebidos, esse está produzindo consequências.
Por considerar que o Estado não pode regular matéria religiosa sem romper sua neutralidade diante delas (que caracteriza o laicismo), o CNE (Conselho Nacional de Educação) optou por não fixar parâmetros curriculares nacionais para a disciplina. A decisão é institucionalmente correta (e constitui uma prova indireta do erro que foi colocar o ensino religioso na escola pública), mas gerou um deus nos acuda, onde cada Estado definiu ao sabor da conjuntura política local como a matéria seria ministrada.
As pesquisadoras Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, em "Laicidade e Ensino Religioso no Brasil", traçam um panorama desse pequeno caos.
Pelo que elas puderam levantar, Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro optaram por um sistema confessional, que não se distingue da educação religiosa oferecida em escolas ligadas a igrejas. Não é preciso PhD em Direito para constatar que esse tipo de ensino afronta o dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que veda o proselitismo no ensino religioso.
Os demais Estados menos São Paulo escolheram o modo interconfessional, no qual as religiões hegemônicas se unem contra as mais fracas e contra ateus e agnósticos para definir um núcleo de valores a ser ensinado aos alunos. Tampouco é um exemplo de defesa dos direitos das minorias.
Apenas São Paulo fez uma leitura um pouco mais crítica dos mandamentos constitucionais e se definiu pelo ensino não confessional. Pelo menos no papel, aqui as crianças têm aulas de história das religiões, no que é provavelmente a única forma de juntar sem produzir muitas fagulhas o ensino religioso com o princípio da separação entre Estado e religião.
Resta apenas responder porque a laicidade é assim tão importante. O problema com as religiões reveladas é que elas trazem absolutos morais. Se a lei foi baixada pelo Altíssimo, apenas querer discuti-la já representaria uma segunda ofensa contra o Criador. E utilizar absolutos na política --religiosos ou ideológicos-- é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos. O remédio contra isso, como já intuíram no século 18 os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, é a separação Estado-igreja. Ela facilita o advento da política como arte da negociação e, mais importante, favorece a noção de que minorias têm direitos que devem ser protegidos mesmo contra a maioria. Aqui, paradoxalmente, o laicismo se torna a principal força a proteger as religiões umas das outras.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

Observatório Internacional da Laicidade

Para os interessados na laicidade, conferir o Observatório Internacional da Laicidade contra as Derivas Comunitaristas, órgão político francês:

Mitos anti-republicanos, laicidade e comunitarismo

Mais um artigo da filósofa política francesa Catherine Kintzler, sobre a laicidade. Disponível originalmente em: http://www.mezetulle.net/article-mythes-antirepublicains-et-communautarisme-68013363.html.

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Mythes antirépublicains, laïcité et communautarisme
(Qu'est-ce que le communautarisme ?)
par Catherine Kintzler
En ligne le 24 février 2011

Le personnage du républicain « laïcard franchouillard » est un grand classique du roman antirépublicain. Ce mythe n'a aucun fondement conceptuel, mais il s'incarne dans une caricature et donne naissance à des fantasmes dont les effets sont bien réels. Le franchouillard et le multiculturaliste se confortent l'un l'autre en construisant de toutes pièces leur objet fantasmatique commun que les uns révèrent et que les autres abhorrent : « les musulmans », comme s'il s'agissait d'un bloc identitaire unifié. Ce faisant, tous deux confondent le communautaire et le communautarisme. Il importe de rappeler que la laïcité, qui s'oppose au communautarisme politique, n'a rien contre les communautés d'association, car toute communauté n'est pas communautariste. Il faut donc se demander ce qu'on entend au juste par communautarisme.(Intervention au colloque de l'Observatoire international de la laïcité contre les dérives communautaires « État de la laïcité et du communautarisme en Europe », 22 janvier 2011)

1 - Portrait-robot du républicain laïcard franchouillard

Je commencerai par dresser le portrait-robot du républicain laïcard franchouillard tel que le présente le roman anti-républicain.

1.Il considère que la France est la seule république au monde et pour définir la laïcité il se limite à la référence franco-française, plus particulièrement à la III République. Comme j'ai commencé mon livreQu'est-ce que la laïcité ? en montrant que c'est faux du fait que la référence à la pensée anglaise classique est nécessaire pour rendre intelligibile le concept de laïcité, je ne perdrai pas mon temps à démolir ce mythe (1).
2.Il se fait une notion rigide et antireligieuse de la laïcité, qui se réduit pour lui à l'opposition public / privé, opposition qu'il interprète de manière restrictive, la liberté religieuse étant à ses yeux cantonnée à l'espace intime. Tout le reste est pour lui soumis à un « nettoyage » sévère... mais il s'en prend presque exclusivement aux musulmans.
3.Il a en horreur toute particularité, il pourchasse la diversité, c'est un « équarrisseur » qui sous prétexte d'universalisme impose une culture uniformisée. Il considère comme suspecte et menaçante toute existence de communauté. Il fétichise la différence entre le civil et le politique, qu'il présente comme une opposition conflictuelle : son propos consiste à nier le civil au profit du seul politique. On ne peut pas à ses yeux être à la fois une personne membre de la société civile et un citoyen : il faut choisir.


2 - Une caricature et deux dérives symétriques

Cette caricature hélas existe, nous la connaissons sous une forme groupusculaire, à laquelle l'opération saucisson-pinard a permis d'effectuer sa jonction avec une récupération de plus grande ampleur qui fait grand bruit ces derniers temps. Il faut ajouter que l'opération ne serait pas aussi brillante si elle n'avait été alimentée de longue date par la naïveté de la bienpensance multiculturaliste adoptée par des politiques – tant de gauche que de droite – profondément ignorantes de la laïcité (je n'ose pas dire : profondément hostiles à la laïcité).

Ce mythe franchouillard n'a aucun fondement conceptuel, mais il donne naissance à des fantasmes dont les effets sont bien réels. Le franchouillard et le multiculturaliste se font face, se confortent l'un l'autre en construisant de toutes pièces leur objet fantasmatique commun que les uns révèrent et que les autres abhorrent : « les musulmans » comme s'il s'agissait d'un bloc identitaire unifié.

Il faut donc sans cesse rappeler que la laïcité ne se confond, ni avec un « nettoyage » des manifestations religieuses de tous les espaces, ni avec une acceptation de ces mêmes manifestations partout. On doit sans cesse dénoncer ces deux dérives symétriques et complices.

A cet effet il est nécessaire dissocier l’espace de constitution du droit et des libertés (domaine de la puissance et de l’autorité publiques rendant les droits possibles – il inclut notamment l'école publique) d’avec celui de leur exercice (espace civil ouvert au public et espace privé de l'intimité).
Sans cette distinction, la laïcité perd son sens : c’est précisément parce que la puissance publique et le domaine qui lui est associé s’astreignent à la réserve en matière de croyances et d’incroyances que les libertés d’expression, d’opinion, etc. peuvent, dans le respect du droit commun, se déployer dans la société civile sous le regard d’autrui (par exemple : la rue, le métro, une boutique, un hall de gare...) et dans l’espace de la vie privée à l’abri du regard d’autrui. Ce déploiement s'effectue conformément au droit commun qui certes protège les religions, qui les protège aussi les unes des autres, mais qui protège tout autant le fait de n'avoir aucune religion. Il faut que l'exercice de toutes ces libertés ne soit jamais contraire au droit d'autrui.

Autrement dit, le régime de laïcité articule le principe de laïcité avec le principe de tolérance ou de libre affichage.
La dérive multiculturaliste bienpensante (attention je n'ai pas dit « multiculturelle » car la société est multiculturelle, c'est un fait) consiste à abolir la laïcité du domaine de l'autorité publique, ce qui revient à « communautariser » l’ensemble de la société.
La dérive symétrique, une sorte d’extrémisme laïque, consiste à exiger que le principe d’abstention qui règne dans le domaine de la puissance publique s’applique aussi dans la société civile : on prive alors celle-ci tout simplement d’une de ses libertés fondamentales, la liberté d’expression.[ Haut de la page ]

3 - Pourquoi le mythe d'un républicain laïque allergique à la notion de communauté est-il si tenace ?

L'association républicaine laïque, suppose la non-appartenance : elle ne repose sur aucun lien préalable, qu'il soit religieux, social, ethnique, etc. C'est un minimalisme. Cela ne signifie pas qu'elle doive éliminer toute appartenance comme lui étant contraire. Cela signifie qu'elle n'a pas besoin de ces références pour se construire et pour se maintenir. La citoyenneté elle-même n'est pas pensée comme une appartenance. C'est cela qui fonde la distinction entre l'ethnique et le politique.

Seulement, ce que le roman antirépublicain oublie, c'est que tous les États de droit pratiquent cette distinction, à des degrés divers. Dans tout État de droit, l'association politique se forme de manière historique et réfléchie, elle n'est pas spontanée, elle n'est pas dictée par une norme qui lui serait extérieure. Aujourd'hui, et ce n'est pas la première fois dans notre histoire, on tente de nous imposer une conception ethnique de la nation. Il faut être très ferme sur la thèse de la formation politique, historique et critique de la nation. En recevant la nationalité française, mon grand-père immigré d'origine italienne n'a pas reçu sur la tête « nos ancêtres les Gaulois » : il a choisi d'avoir pour ancêtres spirituels les vainqueurs de la Bastille et les auteurs de la Déclaration de 1789. Cette filiation-là ne passe pas par le sang, ni par une assimilation fusionnelle : elle s'acquiert, et cela est vrai pour tous, immigrés ou non.

L'association politique laïque opère la distinction entre l'ethnique et le politique conformément au concept de laïcité, qui suppose que le corps politique ne repose sur aucun lien qui lui soit préalable ou extérieur.
Elle considère que le droit de l'individu est toujours fondamental, prioritaire sur tout droit collectif – et qu'un droit collectif n'a de sens que s'il accroît le droit de l'individu. On voit bien la conséquence sur la notion même de « droit des communautés ». On peut appartenir à une communauté, on peut s'en détacher sans craindre de représailles. On peut être « différent de sa différence »(2), échapper aux assignations différentialistes qui vous clouent à une identité que vous n'avez pas choisie ou dont vous rejetez certaines propriétés.

Une république laïque est ce que les logiciens appelleraient une classe paradoxale (3) : un ensemble d'éléments qui ne se rassemblent qu'en vertu de leur singularité, de ce qui les fait différer. Dans une telle association politique, le droit d'être comme ne sont pas les autres non seulement est assuré, mais il est au principe de l'association. Le seul but de l'association politique est l'existence, la préservation et l'extension des droits de chaque individu, pris singulièrement. Tout autre but est récusable.
Aussi devons-nous faire attention lorsque nous parlons du « vivre-ensemble » : c'est précisément parce que la république laïque assure d'abord le vivre-séparément qu'elle peut assurer mieux que toute autre le vivre-ensemble.[ Haut de la page ]

4 - Qu'est-ce que le communautarisme ?

Cela entre-t-il en conflit avec la notion de communauté ? Oui, si et seulement si une communauté bascule dans le communautarisme. Et le mythe antirépublicain fait comme s'il y avait coïncidence entre le communautaire et le communautarisme : au fond, le mythe antirépublicain, volontiers relayé par une gauche bienpensante, adopte ici une thèse familière à l'extrême-droite.

Il nous faut donc poser la question permettant de distinguer le communautaire et le communautarisme : toute communauté est-elle nécessairement communautariste ? La réponse est non. Cette réponse montre bien que la république laïque ne combat que le communautarisme, et qu'elle n'a rien contre les communautés.

Toute communauté n'est pas communautariste
S'assembler en vertu de ressemblances, d'affinités, d'origines, de goûts, de tout caractère commun, c'est former communauté. Il existe des associations culturelles, des associations cultuelles, des associations non-mixtes, des associations philosophiques, des associations de gens qui ont les cheveux roux ou qui mesurent plus de 1,75m... Cela est non seulement permis en république laïque, mais c'est encouragé, pourvu que rien ne contrarie le droit commun : les grandes lois sur les associations donnent un cadre juridique à ces communautés. On sait peu, par exemple, que le développement des langues régionales n'a jamais été aussi important que sous la III République, grâce à des petites académies qui ont profité de cette législation : le mythe antirépublicain n'aime pas qu'on lui rappelle cela.
A partir de quand peut-on parler de communautarisme ? (4)

Le communautarisme social
Une première forme de communautarisme repose sur l'exercice d'une pression sociale négatrice de la liberté des individus. Elle consiste à considérer qu'un groupe jouit d'une sorte de « chasse gardée » non seulement sur ses membres mais sur tous ceux qu'il estime devoir le rejoindre. Imaginons une association de roux qui considérerait que tous les roux n'adhérant pas à l'association, ou n'observant pas ses usages, sont des traîtres, des renégats et qui le leur ferait savoir par des brimades...

Transposée à d'autres domaines, on voit bien que ce qui accompagne cette forme de communautarisme social, c'est l'apostasie. Voilà comment, par exemple, Mohamed Sifaoui est menacé de mort par les intégristes islamistes. Voilà comment une jeune fille, dans certains secteurs, et pourvu qu'elle soit « étiquetée » par son apparence ou autre chose, aura des ennuis si elle ne porte pas une certaine tenue vestimentaire. Voilà comment la même jeune fille ou d'autres seront « invitées » à se marier sans qu'on tienne compte de leur souhait. Voilà comment on entend des gens déclarer qu'ils ne veulent pas être enterrés à côté de Juifs « et encore moins d'athées » (5).

Le communautarisme politique
A partir de là, et si on laisse ce type de communautarisme social exercer des représailles impunément – si on ne protège pas les individus, si on sacralise la vie en commun sans discernement, si on n'est pas ferme sur le droit fondamental à vivre séparé – se développe inévitablement la deuxième forme : le communautarisme politique.

Elle consiste à ériger un groupe en agent politique, à vouloir pour lui des droits et des devoirs distincts des droits et devoirs communs à tous. On peut donner comme exemple la revendication de « corsisation des emplois ». Autre exemple : les quotas, la revendication de « représentation » politique sur la base exclusive d'une particularité collective. Entendons-nous bien : des propositions communautaires peuvent alimenter le débat politique ou même inspirer un programme politique (par exemple celui d'un parti), mais elles ne peuvent pas, ce faisant, ériger une portion du corps politique en autorité séparée ni privilégier une portion des citoyens sur la base d'une particularité ; la loi est la même pour tous, les prérogatives ou distinctions qu'elle accorde à tel ou tel sont accessibles en droit à tous.

Le fondement des États de droit, c'est que le corps politique est formé uniquement par des individus. Leur pari, c'est qu'on peut et qu'on doit transcender la vision morcelée et tribale de la société : c'est qu'on peut et qu'on doit unifier par une loi commune reposant sur des principes universels cette mosaïque qui nécessairement tend vers un régime maffieux.

Le communautarisme politique c'est l'officialisation de la différence des droits : elle peut prendre le nomsoft d'équité (« chacun et surtout chacune à sa juste place »), elle peut prendre le nom soft de « discrimination positive » ou d' « accommodement raisonnable », mais il s'agit toujours d'établir des privilèges et corrélativement des handicaps. C'est la rupture de l'égalité des droits.[ Haut de la page ]

5 - Comment lutter contre le communautarisme politique ?

Parmi les États de droit, ceux qui s'en tiennent à un régime de tolérance (toleration) sont moins bien armés qu'une république laïque pour combattre cet émiettement politique qui inévitablement favorise l'affrontement entre communautés (quand il ne l'organise pas). Le problème de la République française ce n'est pas qu'elle est désarmée, c'est que les politiques ne se saisissent pas des armes et qu'ils manquent de volonté, parce que trop souvent ils s'inclinent devant les demandes communautaristes.

Ajoutons que les armes juridiques ne sont rien sans une politique résolue de maintien et de développement des services publics. Par exemple, si on abandonne la protection sociale publique, inévitablement on passe le relais à d'autres structures, parmi lesquelles les associations cultuelles. La marchandisation des services publics est une politique qui encourage la communautarisation. Là encore, les politiques ne sont pas assez vigilants – et ils sont même souvent les agents de ce démantèlement anti-laïque.

A nous de les réveiller. Je le ferai à ma manière en vous proposant un discours, une sorte de prosopopée. Voici ce que j'imagine que la République laïque dit à tous ceux qui sont tentés ou menacés par le communautarisme.

1° Si vous avez un culte ou une coutume, vous pouvez les pratiquer librement et les manifester, pourvu que cette pratique et cette manifestation ne nuisent à aucun autre droit. Vous pouvez même leur donner une forme juridique.
2° Si vous n'avez pas de culte ni de coutume ou si vous voulez vous défaire de ceux qui vous ont été imposés, la loi vous protège : « la République assure la liberté de conscience » éventuellement contre ceux qui tenteraient de vous contraindre à une appartenance particulière. Vous pouvez librement changer de religion, changer de communauté, vous pouvez librement vous détacher de toute communauté et vivre comme le promeneur solitaire de Jean-Jacques Rousseau.
3° En revanche, si vous tentez d'ériger une religion, une appartenance, en autorité politique (si vous essayez de faire en sorte qu'elles deviennent une loi), si vous considérez qu'une partie de la population est tenue d'adhérer à une appartenance, qu'elle est une « chasse gardée » pour vous et ceux que vous considérez être les « vôtres », alors vous trouverez la loi en face de vous : vous n’avez aucun droit à forcer une personne à appartenir à une communauté. Aucun dieu, aucune foi, aucune appartenance autre que la participation au corps politique – qui n'est pas une appartenance mais un consentement raisonné - ne peut dicter sa loi à la République française. C'est précisément à ce prix qu'elle garantit la liberté de conscience et la liberté de culte à toutes les personnes qui vivent sur son territoire.


6 - Se dépayser : le déraciné est le paradigme du citoyen

Ce modèle de « déracinement » est l'application même du principe de laïcité au citoyen, c'est une espèce d'alchimie qui élève l'homme vers le citoyen, car le déraciné est le paradigme du citoyen. Cela ne se fait pas tout seul. Et pour ceux qui ont la chance d’être encore très jeunes, il s'effectue dans un lieu particulièrement concerné par la laïcité : l'école de la République. L'école républicaine est elle-même un paradigme pour comprendre le processus qui conduit à la citoyenneté.

L'école est en effet un lieu où, pour apprendre, on se dépayse, où on se libère de son environnement ordinaire. C'est vrai pour l'enfant d'agriculteur, pour l'enfant d'ouvrier, pour l'enfant de chômeur, pour l'enfant de cadre supérieur. En devenant élève, chaque enfant vit une double vie. En effet, pour apprendre, il faut faire un pas à l'extérieur et en deçà des certitudes.

Exemple particulièrement intéressant en rapport avec notre sujet : la langue. Apprendre la langue française à l'école, c'est apprendre une langue étrangère. Ce n'est pas la langue qu'on parle à la maison, et cela devrait être la même chose pour les petits locuteurs Français eux-mêmes : la découverte et la ré-appropriation d'une langue qu'ils croient savoir. Voilà pourquoi il faut faire de la grammaire, et lire les poètes.

Ce qui est vrai de la langue française est vrai des langues dites régionales : vouloir les réserver à des « natifs » ou leur donner la priorité dans son enseignement, c'est du communautarisme. Jamais Frédéric Mistral n'a considéré que le provençal devait être la chasse gardée des Provençaux. Aussi a-t-il composé un magnifique Dictionnaire (6). Aussi a-t-il traduit sa Mireille dans une langue d'oïl superbe. Et j'en reviens donc à ma proposition, qui sera ma conclusion : il faut lire les poètes.
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© Catherine Kintzler, 2011


Notes [cliquer ici pour fermer la fenêtre et revenir à l'appel de note]
  1. Les lecteurs de Mezetulle trouveront un aperçu de cette analyse dans l'article Secularism and French politics.
  2. J'emprunte cette expression à Alain Finkielkraut.
  3. Concept développé par Jean-Claude Milner dans Les Noms indistincts, Lagrasse : Verdier, 2007 (2 édition), chap. 11.
  4. Sur la formation du communautarisme et ses effets, on lira avec profit l'ouvrage de Julien Landfried Contre le communautarisme, Paris : A. Colin, 2007. Recension sur Mezetulle.
  5. Le Parisien, 30 mai 2009, p. 9. Voir l'article sur Mezetulle.
  6. Frédéric Mistral Lou Tresor dóu Felibrige, Dictionnaire provençal-français embrassant les divers dialectes de la langue d'oc moderne (1878), en ligne sur Lexilogos.