03 maio 2009

Contra o Ensino Médio fragmentário: por um Ensino Médio positivista



O ensino médio fragmentário, de disciplinas desconexas e que se pautam pela coleção de fatos, não é apenas um erro ao mesmo tempo pedagógico, filosófico e científico: acima de tudo, é um projeto político que visa a tornar o ensino irracional e ilógico, esvaziando a sua importância política.

O ensino que chamamos hoje de “médio” visa, ou deve visar, a fornecer elementos científicos aos estudantes. Esses “elementos científicos” não podem, não devem corresponder à acumulação de “fatos”, “dados”, fórmulas e informações, apresentadas apenas para serem decoradas. O problema não é apenas o decorar (embora, como alguns pensadores têm comentado, o simples decorar é inescapável) e o “empirismo” vulgar e vulgarmente associado a ele: o problema é que a fragmentação do conhecimento, via fragmentação do ensino, mina radicalmente a importância filosófica – e, portanto, política – que o ensino médio deve ter.

Qual essa importância filosófica? Em primeiro lugar, uma visão de conjunto sobre a realidade humana (cósmica e social). Em segundo lugar, a percepção de que o conhecimento humano é 1) relativo, 2) social, 3) histórico e 4) que somente pode existir na medida em que for assim (pois é dessa forma que ele é constituído). Em terceiro lugar, a percepção de que o conhecimento – especificamente científico – não se constitui pela acumulação de “fatos”, “dados” e fórmulas, mas pelas leis que ligam os fenômenos – sendo que tais leis são relações lógicas que os seres humanos criam.

A importância filosófica do ensino médio é, em si mesma, uma forma de utilidade. O conhecimento científico da realidade, por outro lado, oferece elementos para a ação prática; dessa forma, esse programa não é “literário”, no sentido de oferecer apenas elementos “teóricos”, sugerindo com isso que o único conhecimento digno é o da “vida do espírito”; mas também não considera que o único parâmetro válido de utilidade é o do mais grosseiro utilitarismo, em que o conhecimento somente seria válido a partir de sua aplicação prática imediata, na forma de algum tipo de tecnologia oriunda das ciências naturais.

Esse projeto de ensino, filosófico em sua essência e filosoficamente orientado, evita a fragmentação entre, por um lado, as chamadas “humanidades” e as Ciências Humanas e, por outro lado, as Ciências Naturais. O ser humano – ou melhor, a Humanidade – é o sujeito do conhecimento e o objetivo desse conhecimento: o ensino médio deve oferecer uma visão de conjunto disso, incluindo, além da realidade cósmica (Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia), a realidade propriamente humana (Sociologia, línguas, Filosofia e questões de cidadania). Esse programa, longe de ser inexeqüível, é na verdade o ideal a que mais ou menos se almeja atualmente; esse programa é positivista, de Augusto Comte, proposto pelo fundador do Positivismo desde o início de sua carreira madura, em 1830, quando se iniciou a redação do Curso de filosofia positiva – e, na verdade, foi das idéias-mestras de toda a elaboração positivista.

Um programa universalista, que enfatiza o ensino filosófico das ciências conjugado com o conhecimento de realidades humanas e sociais, deixa clara sua preocupação ao mesmo tempo psicológica (ao buscar a harmonia mental do ser humano) e política (ao defender o conhecimento científico da realidade e, portanto, a afirmação de que a ciência é uma forma mais adequada para o conhecimento da realidade e para a intervenção nessa mesma realidade). De passagem, convém indicar que esse programa, laico, é fortemente inspirado pelo Iluminismo e pela Enciclopédia, agregando-se a ele o caráter histórico do ser humano (e, portanto, da razão).

A fragmentação desse ensino, ou melhor, a não realização do projeto acima indicado, não é algo fortuito, bem como não é fortuita a reiterada afirmação de que justamente o ensino fragmentário é “positivista”. Não sendo fortuitos esses acontecimentos, importa saber a quais interesses atendem.

O que parece mais decisivo é a busca da neutralização política do conhecimento positivo, no sentido amplo e integrado indicado acima. A variável importante aqui é religiosa: sendo inescapável o conhecimento racional e humano da realidade, a melhor forma de neutralizá-lo é combater a sua apresentação articulada e coerente, propondo, em seu lugar, uma coleção de fatos e idéias fragmentárias, marcadas por uma racionalidade instrumental bastante rasteira. Essa forma de ensino é mais ou menos independente do “grande capital” e dos “grandes poderes”: tanto em um caso como em outro, o que importa é manter a acumulação de capital ou a dominação, mas eles acontecem em qualquer regime; por outro lado, são auxiliados poderosamente por um ensino (e, daí, por uma visão de mundo) incoerente e que não aponta para lugar algum. Ainda assim, o capital e o poder em si não têm nada a dizer a respeito do ensino, pois o que está em questão são idéias; dessa forma, os “interesses” filosóficos ou “ideológicos” mais atingidos pela visão de mundo científica são aqueles que opinam sobre questões de ensino e, dessa forma, podem combater a visão integrada do ser humano baseada no conhecimento da realidade social e cósmica. Considerando esses elementos, não é difícil perceber que são as forças religiosas, ou melhor, as teológicas aquelas que mais têm a lucrar com a fragmentação do ensino (atuando, secundariamente, como se sabe, como linhas de força favoráveis a interesses econômicos e políticos).

Em termos mais concretos, não é difícil perceber que as igrejas teológicas exercem de fato uma atividade desse tipo no Brasil republicano: desde pelo menos a Revolução de 1930, a Igreja Católica e, nas últimas décadas, também as igrejas evangélicas pentecostais têm exercido uma pressão crescente sobre o Estado brasileiro, tanto a favor de privilégios religiosos oficiais (especialmente no caso da Igreja Católica), quanto a favor seja do “ensino religioso” oficial e obrigatório nos currículos, seja de uma visão de mundo teológica nos currículos. Isso é perceptível pela presença maciça de representantes das igrejas nas mais variadas instâncias decisórias da educação de membros das várias igrejas cristãs presentes no Brasil.

A realidade desses fatos é mascarada nas discussões acadêmicas e políticas sobre ensino no Brasil por duas séries de motivos, que não poucas vezes unem-se em uma terceira série. A primeira e mais evidente é que, sendo muitos dos operadores e dos “analistas” de questões educacionais no Brasil vinculados (passiva ou ativamente, implícita ou explicitamente) a essas igrejas, o favorecimento a elas fica obscurecido ou escamoteado. Em segundo lugar, há no Brasil também uma tradição analítica que enfatiza os elementos “materiais” (políticos e, acima de tudo, econômicos) na compreensão da realidade social, de tal sorte que as questões especificamente intelectuais e morais – educacionais, em outras palavras – são “contraditoriamente” postas em segundo plano, pois consideradas como variáveis dependentes. (Essa visão de mundo, claro, é basicamente marxista, mas há uma série de derivações filosóficas que se informam nela mas sem serem propriamente marxistas: Habermas entraria nessa categoria, assim como, até certo ponto, Lyotard e vários pós-modernos.) A terceira série de motivos é a fusão das duas séries anteriores, em que há cristãos ocultando ou disfarçando suas motivações profundas a partir de perspectivas “críticas” (“contra o capitalismo e a exploração”): não é difícil perceber esses gêneros de discurso e de prática nas universidades e nos conselhos de educação.

Essas atuações político-pedagógicas são visíveis de uma perspectiva que enfatiza as instituições, mas o fato é que não podemos deixar de lado as simples modas acadêmicas e intelectuais que a cada momento desempenham seu papel. Nesse sentido, uma das modas intelectuais atuais é o pós-modernismo, com seu elogio da fragmentação intelectual e política como virtudes sociais e lógicas – e, daí, com o irracionalismo, com uma posição contrária à ciência e com o seu conservadorismo. O pós-modernismo tornou-se aliado da teologia, ao associar a ela o multiculturalismo como afirmação ultrarrelativista de que todos os conhecimentos têm epistemologicamente o mesmo valor e que, portanto, suas validades teóricas e políticas são idênticas para a sociedade. Isso é diferente do respeito devido às diferentes culturas, sejam elas próprias à nossa sociedade, sejam elas de culturas estrangeiras: é a afirmação social, política e científica de que a ciência não tem maior valor que outras formas de “conhecimento” e, não raras vezes, que a ciência é “irracional”. Bem percebidas as coisas, isso tudo equivale a que o obscurantismo deve ser cientificamente validado.

Há um outro aspecto das filosofias pós-modernas que se baseia nesse irracionalismo e que produz conseqüências diretas para os currículos, em particular no sentido que vimos discutindo e criticando até aqui: a idéia de que tudo é luta e apenas luta (pelo poder), não havendo espaço para a discussão racional e para uma visão racional, coerente e positiva da realidade; na verdade, essa perspectiva considera que a visão racional e generosa é apenas mais um instrumento na disputa pelo poder de uns grupos sobre outros. Se a lei da jungle é o que regula a sociedade, não há porque pretender que os currículos caracterizem-se por qualquer tipo de coerência ou racionalidade; no final das contas, eles serão refletirão apenas e tão-somente os resultados instáveis das lutas pelo poder, representando as visões de mundo dos dominadores de plantão.

Tornando-se fragmentário e sem sentido, o ensino médio torna-se mais vulnerável a ser modificado em função do vestibular. Evidentemente, o vestibular tem que se basear nos conhecimentos adquiridos pelos candidatos a vagas nas universidades durante o ensino médio; por outro lado, como os estudantes universitários devem estar minimamente preparados em termos teóricos e metodológicos para ingressar no ensino superior, é claro que o ensino médio não pode ignorar as exigências do ingresso na universidade. Todavia, uma coisa é reconhecer essas relações entre ensino superior e ensino médio; outra coisa, muito distinta, é orientar o ensino médio para a realização do vestibular. Ora, o ensino médio tem uma função filosófica (pedagógica e cívica) toda própria, que deve ser respeitada; além disso, nem todos os estudantes secundaristas querem seguir estudos de nível superior. Dessa forma, não há justificativa para modelar um complexo programa de estudos em função de uma prova seletiva a que apenas alguns estudantes desejam submeter-se: bem ao contrário, é o vestibular que, a partir das habilidades requeridas para o acesso ao nível superior, tem que se adequar aos conhecimentos do ensino médio[1].





[1] Um exemplo de perspectivas que vão em parte na direção oposto ao que esboçamos acima é a recente decisão do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais a favor da criação de duas linhas para o ensino médio mineiro – uma voltada para as humanidades, outra para as ciências naturais –, em função dos cursos superiores a que os secundaristas podem, talvez, concorrer. Essa decisão fragmenta da pior maneira possível o ensino médio, ao opor duas séries de conhecimentos que têm validade intrínseca e que devem ser ensinados em conjunto, além de independentemente do vestibular.

30 março 2009

A pedantocracia ataca A. Comte (de novo)

A carta abaixo foi escrita para J.-B. Enthoven, que comentou e anotou uma edição de 1975 do Système de philosophie positive (mais conhecido como Cours de philosophie positive), de Augusto Comte. Os comentários do Prof° Enthoven foram todos (isso mesmo: todos) negativos e depreciadores de Comte, o que, além de uma falta de respeito para com o pensador que se comenta, também é um indício de mau-caratismo, de carreirismo, em que se utiliza um pensador como trampolim para a própria carreira (acadêmica, no caso); em outras palavras, é uma realização do que A. Comte chamava de "pedantocracia".

Mesmo tendo sido feitos há mais de 30 anos, esses comentários são odiosos e representam, como afirmei, o que há de pior nas universidades e em vários círculos intelectuais. É por esses motivos que escrevi a carta abaixo e que a reproduzo aqui.

* * *



Dear professor Enthoven:

My name is Gustavo Biscaia de Lacerda and I am a Brazilian researcher of Comtean thought. I was reading the two-volume edition of Comte’s Système de philosophie positive. Actually, I read the second volume, which has been commented by you.

The very initiative of republishing such a work is, of course, full of merits and, albeit it has happened more than 30 year ago, it must be celebrated.

However, as my reading goes on, I became more and more astonished with the commentaries by you: besides those which are simply biographical, your “substantive” comments (political and philosophical ones) were all negative and in order to depreciate Comte.

Not only you and your associates committed two basic errors in the name of both volumes – naming the first as “Philosophie première” and the second as “Physique Sociale”, which don’t correspond to Comte’s ideas and clearly indicate how (little) careful were you in the preparation of the volumes –, but every note of you was destructive and, so, generally unfair. A single example: somewhere you’ve said Comte had no political theory (i. e., theory of the State) at all. However, not only disciples of Comte (from Brazil, France, England, USA, Argentina, Chile, Turkey and many other countries) have noticed, developed and applied such a theory, but also researchers not committed to Positivism in a personal level have done that too. Moreover, not only right-wing politicians applied Comte’s ideas: it is astonishing that you quoted Ch. Maurras, but strangely “forgot” Léon Gambetta, Jules Ferry and many important progressive leaders of the French III Republic. I quote only these examples because presently I am researching Comte’s political thought and I’ve found not only a theory of the State, but a complete theory of Political Sociology, which owes nothing to Marx, Weber or Tocqueville (to name only some political thinkers of the XIXth Century). Actually, all over the books anyone can read misunderstandings and interpretations burdened with the worst intellectual prejudices.

During the reading of the volumes and of your commentaries, an impression has developed slowly, until the point when the simple impression became a certainty: you and your colleagues used Comte just as a jumping board to your academic careers. Such an enterprise you may call “an exercise of ‘criticism’”, but, indeed, the words of Comte are completely adequate: it is a demonstration of “pedantocratie” and the “criticism” as a synonym of “destruction”. (By the way: thank you very much for being a contemporary illustration of Comte’s idea of “pedantocratie”!)

Sincerely yours,

Gustavo Biscaia de Lacerda

http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/

deus prefere os ateus

Fonte: http://talktohimselfshow.zip.net/

11 março 2009

Contra os pós-modernos

Escrevi há algumas semanas algumas anotações contra os pós-modernos, no duplo esforço de identificar os principais ramos dessas formas aberrantes de pensamento e suas sociogêneses (como dizia o Norbert Elias). Essas anotações não são finais, mas como tiveram uma certa extensão e não estão totalmente desarticuladas, submeto-as à apreciação pública.

* * *

As críticas feitas à modernidade reúnem uma série de preconceitos, idéias e valores que são extremamente particulares, a despeito das afirmações – literalmente metafísicas – de sua universalidade; além disso, os procedimentos pós-modernos são “revolucionários” conforme entendido por Augusto Comte, isto é, meramente destruidores, incapazes de propor qualquer idéia nova e construtora – e, como se sabe, rejeitando qualquer pretensão a isso. São duas grandes correntes, duas “famílias” intelectuais: ou, sendo mais preciso, são dois grandes ramos da mesma família, toda ela herdeira da filosofia alemã do final do século XIX, com as características intelectuais desse período: romantismo exacerbado, mal-estar fin-de-siècle, irracionalismo, idealismo.

Os dois ramos são: de um lado, a tradição antimoderna alemã, que teve seu grande iniciador em Nietzsche; do outro lado, os pós-modernos e os ultra-relativistas, em particular os franceses, mas também os norte-americanos.

No que se refere ao primeiro ramo, o problema é que atribui à humanidade como um todo os males específicos de seu próprio país, de sua própria civilização em um momento específico: a Alemanha nas décadas imediatamente seguintes à unificação bismarckiana. As enormes e profundas mudanças por que passava a sociedade alemã nesse período influenciaram a intelectualidade, refletindo-se em um mal-estar intelectual e social. Minha hipótese é a seguinte: a Alemanha teve que se modernizar às pressas, no que chamam de “via prussiana”; mas essa modernização foi principalmente material, isto é, econômica, com a industrialização acentuada e as mudanças sociais decorrentes, em particular o arrojado crescimento do proletariado urbano-industrial, do sindicalismo e das formas de pensamento associadas a eles; secundariamente, a modernização material consistiu na criação de um Estado nacional alemão.

Entretanto, do ponto de vista intelectual e social, a Alemanha não saíra da Idade Média e do feudalismo: aliás, a “via prussiana” foi um meio de forçar a evolução alemã para além do feudalismo, no que se refere à economia e à política. Do ponto de vista intelectual, permanecia o forte idealismo alemão, com sua rígida separação entre Kultur (“cultura”, isto é, aquilo do “espírito”) e Zivilitation (“civilização”, isto é, o “material”, o que inclui a tecnologia[1]), a que se somava o romantismo saudosista da Idade Média e dos cavaleiros teutões. Ao contrário do que ocorrera, por exemplo, na França, em que o romantismo medievalista levou a um esforço para atualizar a Idade Média (na verdade, foram esforços para atualizar a Antigüidade Clássica e, até certo ponto, o Antigo Regime), na Alemanha ocorria uma nostalgia retrógrada, que literalmente queria voltar à Idade Média. Esse romantismo, além disso, ao identificar as filosofias “modernas” com as Luzes (isto é, com o Iluminismo) e com o racionalismo negador da Kultur e da “verdadeira alma alemã”, assumia um forte caráter irracionalista.

Do ponto de vista social, ocorriam tensões equivalentes aos problemas intelectuais. À modernização econômico-política não correspondeu a modernização social, conservando-se os antigos hábitos e valores feudais da honra e do orgulho nacional[2]; mas, ao mesmo tempo, a disputa econômico-política entre os países acontecia (basta pensar na partilha da África, em 1885, no Congresso de... Berlim) e a luta de classes fazia-se presente. As antigas classes dominantes alemãs (incluindo aí as classes médias) mantinham seus valores e suas formas de pensar, mas percebiam que novos valores, novas formas de pensar e de agir eram mais adequados aos novos tempos – e não conseguiam lidar com a própria obsolescência.

O resultado disso foi o surgimento do mal-estar fin-de-siècle, em que várias idéias negadoras do Iluminismo, não necessariamente coerentes entre si, desenvolveram-se: a “decadência da cultura”, o ultra-idealismo, o primado da força e da vontade, o irracionalismo puro e simples. Toda uma geração alemã ou de língua alemã padeceu desses males: não apenas Nietzsche (que foi um dos seus grandes promotores, na verdade), mas também Max Weber, G. Luckács, Franz Kafka[3] e até mesmo Robert Musil[4].

Essas características já foram indicadas por vários autores a propósito de outras questões: Norbert Elias, sobre o processo civilizador; Hannah Arendt, sobre o surgimento do nazismo. Entretanto, convém notar que esses elementos mantiveram-se como uma espécie de lastro da filosofia alemã, que se manteve não apenas na primeira metade do século XX – e de que um dos seus principais resultados foi o nazismo – mas ultrapassou 1945, por meio do pensamento de Heidegger, da Escola de Frankfurt (em particular Adorno e Horkheimer) e mesmo de Hannah Arendt e Leo Strauss. O caso de Heidegger é fácil de perceber: sua metafísica do “ser” e do “esquecimento do ser” é uma forma rebuscada de colocar-se contra a modernização; aliás, a partir de uma referência marxista, Adorno e Horkheimer expressaram a mesma revolta contra a modernidade, ao criticarem não apenas as insuficiências como também os “embustes” (“dialéticos”) da Razão iluminista[5]. Por fim, Hannah Arendt e Leo Strauss criaram notabilizaram-se no campo da Teoria Política, entre outros motivos, por terem defendido a existência de uma “tradição” do pensamento ocidental que se degenerou ao longo dos séculos e, em particular, na época do Iluminismo.

Os autores que teorizam a “modernidade” adotam como referências intelectuais esse conjunto de pensadores alemães do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O diagnóstico que apresentam para a modernidade é o mesmo que o de seus inspiradores: irracionalismo, mal-estar social e intelectual (e também moral ou “espiritual”), crise de valores; acima de tudo, há a desconfiança radical a respeito da racionalidade humana (mesmo que parcial, “localizada”) e dos resultados da aplicação técnica dos conhecimentos humanos sobre a realidade[6].

Essa forma de pensar é altamente equivocada. Pode-se argumentar que ela oferece a interessante perspectiva de duvidar da ciência, de modo a buscar controlá-la, humanizá-la e cuidar com cuidado e atenção da aplicação prática de seus princípios, seja em termos tecnológicos, seja em termos estritamente políticos. De fato, essas são posições intelectuais e políticas importantes, mas o fato é que a crítica à modernidade visa a negar a modernidade e qualquer papel positivo que ela porventura tenha. Assim, mais que a controlar a ciência, a crítica à modernidade visa a negar e a combater a ciência – propondo em seu lugar, como vimos, seja uma rebuscada metafísica do “ser”, seja o claro retorno à teologia, seja, ainda, o voluntarismo beligerante da “vontade do poder”. Também se mantém, mesmo que de maneira subterrânea, a oposição antinômica entre Kultur e Zivilitation, de tal sorte que não é possível nenhuma síntese em que a civilização incorpore em si os desenvolvimentos do espírito. O resultado disso é uma negatividade permanente e profundamente daninha para o ser humano, que se vê condenado a uma divisão moral e espiritual eterna.

O contraste das Alemanhas guilhermina, de Weimer e nazista com a França da III República é altamente instrutivo. Em primeiro lugar, o conceito francês de civilisation engloba tanto aspectos “espirituais” quanto “materiais”; os antropólogos poderiam perfeitamente afirmar que um sinônimo para ele é “cultura”. O desenvolvimento da civilisation engloba tanto questões materiais (econômicas e políticas) quanto intelectuais e morais (filosóficas, artísticas e científicas). Assim, embora possa haver descompassos entre os seus vários elementos, não há uma verdadeira e profunda oposição entre eles.

Enquanto os antimodernistas alemães exercitavam retóricas pessimistas, racistas, beligerantes[7], a França procurava realizar uma República laica e propícia à cidadania, com desenvolvimento econômico e social. Em particular, em 1885 a França instituiu o ensino primário laico obrigatório e, em 1905, realizou a completa separação entre Igreja e Estado. Após as comoções da Comuna de Paris, em 1871, o período mais conturbado politicamente da III República foi o do affaire Dreyfus, entre 1895 e 1905, que opôs a intelectualidade ao Exército, tendo como causa específica de disputa o nacionalismo xenófobo (antigermânico) e o anti-semitismo – exatamente os elementos que, cerca de 30 anos depois, alimentariam na Alemanha o nazismo. Todavia, ao contrário do fim da República de Weimar, de golpes de Estado à direita e à esquerda e da eclosão de uma guerra total mundial, o resultado na França foi o da republicanização do Exército, o que equivale ao fortalecimento da República. É importante insistir: a República na França era considerada um projeto a um só tempo político, econômico e social – mas também, e sobretudo, intelectual e moral. Em outras palavras, não é adequado atribuir à modernidade francesa a mesma negatividade radical que se atribui à modernidade alemã – e, portanto, não é adequado atribuir essa negatividade radical à modernidade tout court. Como, entretanto, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Horkheimer, Leo Strauss e Hannah Arendt (bem como seus êmulos) compartilham dessa negatividade, o resultado é que eles não são autores adequados a uma avaliação responsável da “modernidade”[8].

O segundo ramo antimoderno é antimoderno afirmando ser posterior à modernidade: são os “pós-modernos”. Evidentemente, há sérios problemas a respeito da caracterização teórica e mesmo empírica desse caráter posterior à modernidade, mas isso não interessa tanto agora, importando mais a forma como os pós-modernos negam a “modernidade”. Embora sua caracterização inicial da modernidade seja devida aos antimodernos alemães, essa corrente não assume um negativismo radical, preferindo rir a deprimir-se. Por quê “rir”? Porque o procedimento-padrão (preconizado ou realizado) é a ironia, é o deboche. A isso se somam o irracionalismo e o hiper-relativismo; o relativismo, em particular, é assumido não como um procedimento metodológico para permitir comparações entre sociedades ou traços culturais e generalizações, mas como um valor substantivo, em que qualquer graduação de sociedades ou de traços culturais é recusada. Nesse ramo há duas vertentes: a francesa e a norte-americana.

A vertente francesa busca a “desconstrução” das “categorias modernas”: em vez de propor novas categorias analíticas ou sintéticas; em vez de propor novas teorias capazes de refinar a compreensão das realidades cósmica e humana, o que se busca é a fragmentação cada vez maior, cada vez mais acentuada das descrições, que são permitidas a partir de perspectivas cada vez mais díspares (e “descentradas”, isto é, dando voz e vez aos não-ocidentais, aos não-homens, aos não-brancos e assim por diante – e nominalmente aos “não-científicos”). Ao mesmo tempo, as descrições habituais são substituídas por outras, em que sobressai, por saltar aos olhos, a característica da verborragia e do abuso das metáforas com ou do linguajar das Ciências Naturais. Derrida, Deleuze e Lacan são exemplos acabados dessa vertente.

A vertente norte-americana é menos irônica e muito mais sisuda; aceita vigorosamente o hiper-relativismo; recusa o eurocentrismo branco, macho, burguês e cientificista afirma a hiperpolitização da realidade e percebe apenas “interpretações” “interessadas” – o que dá azo à afirmação de que as realidades cósmica e social são “textos” a serem lidos. Entram nessa vertente todos os Cultural Studies, que aproximam fortemente a Sociologia, a Antropologia, a História, a Filosofia da Literatura – sem que se saiba o que é uma e o que é outra, sem que sejam nem Sociologia, nem Antropologia, nem História, nem Filosofia nem Literatura. Como disse Marshal Sahlins, os estudos feministas, identitários, da hegemonia e assim por diante entram nessa categoria. O que importa neles é afirmar o caráter dominador (“hegemônico”) das perspectivas totalizantes – necessariamente eurocêntricas, brancas, “machas”, burguesas e, claro, cientificistas – e, por outro lado, afirmar também a validade política, epistemológica e teórica das perspectivas fragmentárias, contra-hegemônicas e locais, que dão voz aos subalternos e dominados (e que não se caracterizam pelas características das perspectivas hegemônicas)[9].

Os resultados de ambos os ramos pós-modernos são variados. Poderíamos citar, todavia, os seguintes: anti-racionalismo; hiperpolitização da realidade (afinal, tudo é o conflito entre a hegemonia e a contra-hegemonia); fragmentação radical da realidade. Em particular, convém notar sérios problemas intelectuais e morais decorrentes da negação dos “discursos totalizantes”: quando menos para viver em sociedade, o ser humano carece de uma descrição do conjunto das realidades cósmica e social; a partir disso, é possível ter a coerência individual para cada um identificar-se como uma pessoa. Entretanto, “discursos totalizantes” são sintéticas, generalizantes e abstratas: os discursos pós-modernos aceitam apenas descrições altamente fragmentárias, localizadas e, por definição, empíricas; cada vez menos há “(todos) nós” e cada vez mais há “eu” e “nosso grupo específico”. Cada vez menos há concordância e ação conjunta, que vise a (alguma) harmonia social e cada vez mais há disputas e conflitos entre grupos e indivíduos hegemônicos e contra-hegemônicos; cada vez menos há confiança e respeito e cada vez mais há “denúncias” e enfrentamentos.

Faltou tratar da “sociogenêse” desse ramo antimoderno. Um problema evidente é que ele é relativamente jovem: possui no máximo 40 anos, por ter-se originado em meados dos anos 1960, o que dificulta a determinação de suas raízes. Mas, por outro lado, a literatura crítica a ele também é diminuta e de modo geral concentra-se em criticar as suas posições intelectuais (cf. SOKAL & BRICMONT, 2001; SAHLINS, 2004), sem aplicar a ele mesmo a Sociologia do Conhecimento que tão vorazmente aplicam aos demais, “modernos”.

No que se refere aos franceses – Deleuze e Derrida; até certo ponto, também Foucault – o irracionalismo parece-me ter a ver com um certo esgotamento intelectual do estruturalismo dos anos 1950 e 1960, a que se soma pura e simplesmente o fim do sentimento de urgência social das elaborações intelectuais. Mas, além disso, as revoltas de 1968 parece terem criado raízes intelectuais; as críticas que tais movimentos dirigiam aos “poderes constituídos” foram encaradas como devendo ser contra o racionalismo e a racionalidade; a crítica social que então se fazia passou para a Filosofia (e, daí, para as Ciências Humanas), sem outras preocupações além de serem “críticas” (o que, incidentalmente, revela com clareza o seu caráter metafísico, isto é, destruidor, no sentido comtiano)[10]. Mas é muito provável que nos próximos anos outros elementos surjam para explicar essas formas de pensamento (embora o respeito quase sagrado que 1968 tenha para grande parte da intelectualidade dificulte sobremaneira essa tarefa).

No que se refere à vertente norte-americana, talvez a explicação seja um pouco mais simples e mais rasteira. Em primeiro lugar, os norte-americanos são reconhecidamente “empíricos”, isto é, avessos às grandes generalizações e às grandes abstrações (como os franceses ou os alemães). Esse empirismo até meados do século XX foi canalizado pelo racionalismo, em que se buscavam explicações para a realidade social: a obra de Franz Boas é um bom exemplo disso. Entretanto, a partir da década de 1950 um mal-estar social e moral começou a difundir-se pelos Estados Unidos, desenvolvendo-se nos anos 1960 e resultando em fortes conflitos políticos, sociais e morais no final dessa década e no início da seguinte. Assim como na França – e até mesmo mais que lá –, a contracultura norte-americana também buscava pôr-se contra os “poderes estabelecidos”; mas enquanto na França isso se devia a um mal-estar difuso, a um radicalismo de esquerda no meio universitário e a anseios por mudanças no sistema de Ensino Superior francês, nos Estados Unidos a pauta política era mais específica, inobstante a idêntica presença de um mal-estar difuso entre a juventude: a Guerra do Vietnã, a campanha pelos direitos civis e contra a segregação racial, a evolução do movimento beatnik em movimento hippie.

Além disso, no caso específico dos Estados Unidos, houve dois outros fatores. Em primeiro lugar, nos anos 1950 a 1970 ocorreu o processo de descolonização da Ásia e da África: embora essas antigas colônias não fossem norte-americanas mas européias, a afirmação das perspectivas “pós-coloniais” foram rapidamente absorvidas pela academia estadunidense, especialmente devido ao caráter de refúgio dessa academia e também porque os Estados Unidos eram – como ainda são – a principal potência mundial. (Em si mesmas, as demandas pelas vozes pós-coloniais não negam a racionalidade e a “modernidade”, mas elas forneceram um elemento a mais na crítica ao “modo ocidental” de pensar.) Em segundo lugar, a geração baby boomer não compartilhava dos compromissos morais e políticos de seus pais e avós, o que equivale a dizer que os jovens dos anos 1960 e 1970 não aceitavam – pelo menos não com tanta facilidade – o compromisso de levar adiante a Guerra Fria e, mais especificamente, não estavam dispostos a arcar com os custos materiais e morais de tal compromisso[11].

O racionalismo e a “modernidade”, bem como a ciência de um modo geral, foram vistos como integrantes do “sistema” e como tais deveriam ser combatidos. Ao racionalismo, opor-se-ia o irracionalismo; ao autocontrole intelectual, um laxismo teórico e também moral; à ciência, as diversas formas “alternativas” de conhecimento; ao “sistema”[12], os discursos e as práticas “contra-hegemônicas”; às “narrativas totalizantes”, os “discursos fragmentários e locais”. O resultado foi que as análises sociais anteriores foram substituídas por “discursos” eminentemente “críticos”, que visam à “libertação” dos “povos e dos grupos oprimidos”, ao afirmarem que em caráter eterno há apenas lutas e disputas. Novamente, assim como no antimodernismo alemão, os resultados foram a fragmentação radical do discurso, a ininteligibilidade cósmica e social, a negação da simples racionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARON, R. 1999. As etapas do pensamento sociológico. Lisboa: Dom Quixote.

BREDIN, J.-D. 1995. O caso Dreyfus. São Paulo: Scritta.

BRUSEKE, F. J. 2001. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: UFSC.

DOMINGUES, J. M. 2002. Reinterpretando a modernidade. Imaginário e instituições. Rio de Janeiro: FGV.

ELIAS, N. 1994. O processo civilizador. V. I. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SAHLINS, M. 2004. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify.

SANTNER, E. L. 1997. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SOKAL, A. & BRICMONT, J. 2001. Imposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Record.



[1] A ciência teria um papel ambíguo, aí: as “Ciências do Espírito” (Sociologia, História, Letras, Filosofia, Direito etc.) entrariam na Kultur e as “Ciências Naturais” (Matemática, Física, Química, Biologia), na Zivilitation; como a tecnologia é mais facilmente desenvolvida a partir das Ciências Naturais, ela entraria na Zivilitation. As tentativas de desenvolver-se tecnologias a partir das “Ciências do Espírito” seriam, assim, degradações da sua idealidade e de sua nobreza.

[2] Claro que, nesse caso, na medida em que podia ser “nacional”, identificando-se com a Kultur em oposição à Zivilitation à la francesa ou às culturas “inferiores” dos povos da Europa Centro-Oriental, como os poloneses.

[3] Uma questão sociológica que merece investigação é a seguinte: Kafka era tcheco (na verdade, austríaco, naquela época) e não alemão. Como o seu mal-estar é muito semelhante ao dos autores alemães, seria interessante investigar até que ponto a “civilização germanófona” no seu conjunto atravessava uma crise. A mesma coisa pode ser dita de Musil, que era vienense.

[4] Esses são pensadores “respeitáveis”, mas se analisarmos com um pouco de atenção as biografias de Adolf Hitler, de Joseph Goebbels e de vários outros líderes nazistas, perceberemos os mesmos traços intelectuais e morais (alguns diriam “espirituais”): receberam com grande júbilo guerreiro e “vital” a I Guerra Mundial (vista como forma de fazer valer a “força da cultura alemã” no exterior), sofreram grandes abalos morais com a derrota no conflito e ficaram vagando por diversos anos, de emprego em emprego, à busca de satisfação para seus problemas existenciais e de solução – via bodes expiatórios – para os problemas econômico-sociais da Alemanha.

[5] Aliás, Adorno é ainda mais exemplar desse irracionalismo antimoderno, pois no final da vida deixou de lado a metafísica de origem marxista para assumir uma clara teologia (de inspiração provavelmente protestante).

[6] Em outras palavras, é a velha desconfiança em relação à Zivilitation.

[7] É bom insistir: retóricas cujas desastrosas conseqüências entre 1914 e 1945 são por todos conhecidos.

[8] Aliás, o caráter especificamente alemão dessa negatividade antimoderna é confirmado por toda a literatura que trata da “modernidade” e de seus “males”. Não apenas os principais de seus autores, como vimos, foram alemães, como também toda a literatura crítica da “modernidade” nessa tradição negativista refere-se à Alemanha, ao pensamento alemão e ao mundo alemão (cf., por exemplo, SANTNER, 1997; BRUSEKE, 2001; DOMINGUES, 2002) – mas sem se referir, por exemplo, à França ou à Inglaterra no mesmo período, embora estendam a avaliação crítica a esses países, cujas características sociais e morais eram profundamente diversas. Nessa litania antimoderna e negativista, o mais espantoso é que não tenha havido comentários contrários a ela no sentido indicado aqui: assim, a discussão de modo geral concorda com o “diagnóstico” da “modernidade” proposto por diversos daqueles que prenunciaram e até mesmo colaboraram especificamente com os horrores dessa modernidade – o que, por si só, já é revelador de que há alguma coisa errada nos diagnósticos sociológicos e exige, por sua vez, análise específica.

[9] Embora eu não tenha citado explicitamente nesse grupo – que, por óbvio, inclui feministas, estudiosos das identidades, das “tradições” etc. ­–, é importante incluir aí Richard Rorty e todos os seus pragmatistas, “antifundacionalistas” e que-tais.

[10] Sahlins, de um modo um tanto sarcástico, afirma que um dos motivos para o surgimento e o desenvolvimento dessas correntes nos Estados Unidos – mas a que poderíamos muito bem ajuntar na França – é simplesmente o tédio intelectual, isto é, pura e simplesmente o modismo.

[11] É claro que é outra questão saber se esses custos eram de fato aceitáveis: como se sabe, a Guerra do Vietnã ultrapassou largamente as expectativas iniciais de mortes e seu resultado foi bastante diverso do inicialmente esperado. Ainda assim, o contraste entre as perspectivas da juventude norte-americana face à II Guerra Mundial e à Guerra da Coréia, por um lado, e à Guerra do Vietnã, por outro lado, é revelador da mudança de sensibilidade política e intelectual que estamos sublinhando.

[12] A expressão é literal e, por mais espantoso que pareça, fez grande fortuna: Lyotard usou a palavra “sistema” como uma categoria sociológica e Habermas, ao defender o “mundo da vida”, faz pouco mais que isso.