27 janeiro 2009

"Coro invisível" - oração positivista, de George Eliot

Publico abaixo duas versões do "Coro invisível", da poetisa inglesa George Eliot. A tradução é modestamente minha; se alguém desejar sugerir aperfeiçoamentos, agradecerei bastante.

“O May I Join the Choir Invisible”[1]


Prière positiviste


Longum illud tempus, quum non ero, magis me movet, quam hoc exiguum.—CICERO, ad Att., xii, 18.


O MAY I join the choir invisible

Of those immortal dead who live again

In minds made better by their presence: live

In pulses stirred to generosity,

In deeds of daring rectitude, in scorn

For miserable aims that end with self,

In thoughts sublime that pierce the night like stars,

And with their mild persistence urge men's search

To vaster issues.


So to live is heaven:

To make undying music in the world,

Breathing as beauteous order that controls

With growing sway the growing life of man.

So we inherit that sweet purity

For which we struggled, failed, and agonised

With widening retrospect that bred despair.

Rebellious flesh that would not be subdued,

A vicious parent shaming still its child,

Poor anxious penitence, is quick dissolved;

Its discords, quenched by meeting harmonies,

Die in the large and charitable air,

And all our rarer, better, truer self,

That sobbed religiously in yearning song,

That watched to ease the burthen of the world,

Laboriously tracing what must be,

And what may yet be better—saw within

A worthier image for the sanctuary,

And shaped it forth before the multitude

Divinely human, raising worship so

To higher reverence more mixed with love—

That better self shall live till human Time

Shall fold its eyelids, and the human sky

Be gathered like a scroll within the tomb

Unread for ever.


This is life to come,

Which martyred men have made more glorious

For us who strive to follow. May I reach

That purest heaven, be to other souls

The cup of strength in some great agony,

Enkindle generous ardour, feed pure love,

Beget the smiles that have no cruelty,

Be the sweet presence of a good diffused,

And in diffusion ever more intense.

So shall I join the choir invisible

Whose music is the gladness of the world.


1867.


George Eliot, The Legend of Jubal, and Other Poems, Old and New (1874)
Voir le poème utilisé dans la liturgie positiviste anglaise de la fin du XIXe/See the poem used in Victorian English positivist liturgy


Ó, que eu possa juntar-me ao coro invisível


Oração positivista

George Eliot, 1867


Longum illud tempus, quum non ero, magis me movet, quam hoc exiguum.—CICERO, ad Att., xii, 18.


Ó, que eu possa juntar-me ao coro invisível

Desses imortais mortos que vivem novamente

Em mentes feitas por suas presenças: vivem

Em pulsos agitados pela generosidade

Em feitos de desafiadora retidão – que desprezam

Os objetivos mesquinhos que se encerram em si mesmos – ,

Em sublimes pensamentos que perfuram a noite como estrelas

E com sua meiga persistência persuadem os homens a buscarem

Temas mais vastos


Assim, o paraíso é viver:

Para fazer música imorredoura no mundo,

Respirando como a bela ordem que controla

Com crescente balanço a crescente vida do homem.

Assim, nós herdamos essa doce pureza

Pela qual lutamos, falhamos e agonizamos

Com retrospecto que se amplia aquele desespero criado.

Carne rebelde que não seria subjugada,

Um genitor vicioso ainda infamando sua criança,

Pobre e ansiosa penitência, é rapidamente dissolvida;

Suas discórdias, extintas por harmonias reunidas,

Morrem no amplo e caritativo ar

E todos os nossos mais raros, mais verdadeiros e melhores âmagos,

Que choraram religiosamente em canção ansiosa,

Que vigiou para minorar o fardo do mundo,

Laboriosamente traçando o que deve ser,

E o que deve ainda ser melhor – viram dentro

Uma imagem mais valorosa para o santuário,

E moldaram-no adiante, antes da multitude

Divinamente humana, elevando a adoração

Para tão mais alta reverência, mais misturada com o amor –

Que melhor âmago viverá até que o Tempo humano

Dobre suas pálpebras e o céu humano

Seja unido como um rolo no seio da tumba

Não lida para sempre.


Essa é a vida que virá,

Que homens martirizados tornaram mais gloriosa

Para nós que nos esforçamos para seguir. Possa eu alcançar

Esse paraíso mais puro, ser para outras almas

A taça de força em alguma grande agonia,

Acender o ardor generoso, alimentar o puro amor,

Procriar os sorrisos que não têm crueldade,

Ser a doce presença de um difundido bem

E que se difunde sempre mais intensamente.

Assim, que eu junte-me ao invisível coro

Cuja música é a alegria do mundo.

Relevância contemporânea de Augusto Comte


(Observações de 5.10.2014: 
(1) A revista Insight Inteligência publicou um artigo intitulado "O Positivismo ontem como hoje", que retoma vários dos aspectos relacionados abaixo; ele pode ser consultado aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2014/10/insight-inteligencia-o-positivismo.html.
(2) Uma versão inicial, maior, do artigo da revista Insight Inteligência pode ser lido aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2014/10/relevancia-contemporanea-do-positivismo.html.)

*   *   *

Sem pretender esgotar o assunto, relaciono alguns elementos que justificam a importância atual de Augusto Comte:
  1. “Reencantamento do mundo”: o conhecimento da realidade é condição necessária e inextirpável da vida humana, mas não é suficiente, pois ele refere-se apenas à inteligência; mais do que isso, as necessidades afetivas, morais e práticas do ser humano têm que ser atendidas e, para isso, Comte propunha todo um sistema de comemorações e representações – toda uma elaboração simbólica –, além da recuperação do fetichismo como elemento simbólico da vida humana
  2. Afirmação da autonomia da sociedade civil frente ao Estado e fiscal do Estado: Comte afirmava que o principal avanço político realizado na Idade Média foi a separação entre os dois poderes – Temporal e Espiritual –; tal separação, na verdade, foi esboçada na Idade Média mas deve realizar-se no mundo atual, em caráter permanente. Essa divisão consagra a existência do que se denomina atualmente de “sociedade civil”, percebida no Positivismo como fiscalizadora e legitimadora do Estado; por outro lado, o Estado tem que ser laico, ou seja, não pode professar doutrinas, sob risco de tirania e/ou doutrinação
  3. Afirmação da visão de conjunto na sociedade e para o ser humano: história, sociedade, Sociologia (ou Ciências Sociais): afirma-se repetidas vezes que um dos grandes problemas da sociedade atual é a fragmentação do conhecimento e da visão de mundo que cada um tem. Comte já percebera isso e indicara que é necessário constituir não apenas uma nova moralidade capaz de reinstituir essa visão de conjunto, como a própria ciência (social e moral, em particular) deve basear-se radicalmente nessa concepção
  4. Conhecimento científico da realidade: o relativismo pós-moderno afirma que as formas de conhecimento de todos os grupos e sociedades devem ser respeitados, derivando daí a conseqüência – falsa e enganadora – de que todos eles são iguais e que têm o mesmo valor epistemológico. O conhecimento científico da realidade (social, em particular) não é algo secundário ou desimportante; conhecer como a sociedade é e funciona é condição fundamental para melhorá-la e, assim, para o ser humano alcançar a felicidade
  5. Crítica ao individualismo em suas várias formas: ético, metodológico. Da mesma forma que se critica a fragmentação do conhecimento, o individualismo também é objeto de críticas correntes. Comte igualmente já tratara dessa questão, ao afirmar que não é aceitável falar-se em indivíduos como fundadores morais e teóricos da sociedade ou da Humanidade, mas apenas como integrantes de sociedades e que devem ser úteis; assim, o conceito de “direitos” – isto é, privilégios unilaterais exigidos por um contra outros – é substituído pelo de “deveres”, que são obrigações mútuas e necessariamente relacionais entre as pessoas, consagrando a dependência e a solidariedade mútuas. Essa crítica ao “indivíduo” não equivale à negação das identidades pessoais, do esforço (moral, intelectual, profissional etc.) que cada pessoa deve fazer sobre si mesma para desenvolver-se
  6. Epistemologia: a teoria do conhecimento de Comte afirma claramente a relatividade do conhecimento ao longo das épocas e nos diversos lugares, ao mesmo tempo que deixa claro que o conhecimento é sempre passível de modificações, de acordo com as teorias e com os dados disponíveis. Além disso, sempre que possível concepções estéticas devem auxiliar na elaboração e na difusão do conhecimento, bem como considerações morais e sociais mais amplas devem regrar a busca do conhecimento: o positivo não é apenas o que é real, mas também o que é útil
  7. Humanismo completo e radical, relativista e transdisciplinar: um dos objetivos, se não o objetivo fundamental de Augusto Comte era criar uma ética humana e humanista que afirmasse as possibilidades (mas, também, os limites) da ação humana no mundo e na própria sociedade; essa ética afirma o ser humano e, respeitando o papel histórico desempenhado pela teologia e pela metafísica para o desenvolvimento da Humanidade, retira de todas as concepções e instituições humanas os seus traços teológicos e metafísicos, ao mesmo tempo em que desenvolve todas as conseqüências lógicas e sociais da afirmação do ser humano; essas conseqüências são necessariamente transdisciplinares, baseadas em uma forte e sistemática visão de conjunto
  8. Importância das idéias e dos valores na vida social: uma das primeiras afirmações teóricas da carreira de Comte e um dos pilares do Positivismo é a afirmação sem subterfúgios da importância das idéias e dos valores para o ser humano e para a sociedade – e, assim, também para a Sociologia e para as ciências de modo geral –; idéias e valores para o Positivismo são importantes, são fundantes da sociedade e não meras decorações
  9. Perspectiva que conjuga o universal ao particular: como a Humanidade é um todo, em que cada indivíduo integra uma totalidade que o transcende historicamente, o Positivismo afirma os vínculos que unem o particular ao universal, cada indivíduo, família, cidade e pátria à própria Humanidade; além disso, a concepção que o Positivismo tem da Humanidade não inclui apenas os seres humanos, mas engloba os animais e os vegetais – a “natureza” – e mesmo o planeta Terra e o sistema solar
  10. Proposta de justiça social: uma proposta de ética humana tem que afirmar o que é justo e injusto, correto e incorreto, bom e mau, belo e feio; assim, há a clara definição de justiça social, em que os trabalhadores são respeitados e as condições sociais de vidas dignas são afirmadas; aliás, não apenas os trabalhadores individualmente, mas, de modo mais preciso, as famílias são respeitadas e amparadas
  11. Ultrapassagem das oposições ordem-progresso, materialismo-idealismo, agente-estrutura: o pensamento humano tende a operar com base em oposições binárias, tanto do ponto de vista lógico quanto também social, mas é importante perceber que os dualismos são importantes apenas para facilitar a compreensão que temos do mundo e da sociedade; assim, não se pode reduzir o mundo a esses dualismos nem permitir que eles dominem a ação humana: é exatamente com essa preocupação que o Positivismo respeita as posições dos dualismos mas ultrapassa-os resolutamente partir do humanismo, do conhecimento da realidade e da perspectiva de conjunto, conjugando aquilo que eles têm de compatível e deixando de lado o que é incompatível; entre as várias oposições que o Positivismo supera, podemos citar as que ocorrem entre ordem e progresso, materialismo e idealismo, agente e estrutura
  12. Utopia social: o Positivismo afirma claramente a importância dos ideais na conduta humana, como guias e modelos que conduzem as ações e os projetos políticos, sociais e individuais; para tanto, afirma uma sociedade mais justa e mais fraterna, em que as disputas são apenas diferenças de perspectivas e solúveis por meio do diálogo fraterno e racional
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

20 outubro 2008

Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná


(Uma versão bastante resumida deste artigo foi publicada na Gazeta do Povo em 28.10.2008; cf. aqui.)




Para iniciar este artigo, convido o leitor a considerar as seguintes situações:
  1. Em um final de semana em Curitiba, vou a um supermercado e sou abordado por servidores de uma universidade paranaense pedindo doações para o hospital universitário; ao fazer minhas compras, procuro colaborar com a campanha e separo feijão e leite mas, ao entregar as doações, sou saudado com um “deus lhe pague”.
  2. Cotidianamente os servidores dessa mesma universidade usam o serviço institucional de correio eletrônico para fazerem propaganda religiosa ou tendo versículos bíblicos com assinatura institucional.
  3. Comissões internas de caráter técnico-administrativo iniciam ou terminam seus relatórios rogando a deus seus favores.
  4. Tendo que usar os serviços do hospital universitário, ao sair fui presenteado por servidores dessa universidade com alguns folhetos explicativos, entre os quais se encontrava um papel com alguns versículos bíblicos, explicando como deus é bom.
  5. Na biblioteca dos cursos das Ciências Naturais e das Engenharias, logo na entrada, em uma mesa em destaque e decorada com uma toalha de renda e um ramo de trigo, há uma grande bíblia, aberta em um “capítulo edificante”.
  6. Na biblioteca dos cursos de Ciências Humanas, sozinho em uma parede e com grande destaque, há um crucifixo com cerca de um metro de comprimento, belamente entalhado.
  7. Nos corredores do prédio que abriga os cursos de Ciências Humanas há vários cartazes em que se lê: “Missa”, “Culto”, “Encontre Jesus”.
  8. Para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a Reitoria da universidade encomendou uma missa e deu grande destaque a esse evento.
  9. Ao perguntarmos se essas situações são corretas, as respostas que ouvimos são no sentido de que isso é correto, ou que “sempre foi assim”, ou recebemos um raivoso descaso.
O leitor deve pensar que se trata ou de uma universidade católica ou de alguma outra instituição confessional de ensino superior. No entanto, todas as situações descritas acima são verídicas e ocorrem na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso, todas elas são absolutamente corriqueiras, ou seja, estão longe de serem exceções ou de serem fatos isolados. Aliás: elas são corriqueiras em inúmeras outras universidades e outras instituições públicas do Brasil, de tal sorte que a UFPR é apenas um exemplo de uma situação generalizada no Estado brasileiro.

E daí que essas situações ocorrem na UFPR? Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a Universidade não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para “reflexão pública” nas bibliotecas ou em qualquer outro recinto; também significa que a Universidade não pode encomendar missas ou cultos religiosos para o que quer que seja; também significa que os servidores da Universidade não podem referir-se a deus ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na Universidade ou estiverem representando-a. As universidades particulares ou as confessionais têm total liberdade para exprimirem as crenças que lhes aprouverem, das maneiras que considerarem corretas: essa é uma possibilidade que as universidades públicas, entretanto, não possuem. Por que não?

Porque as universidades públicas integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem crença nenhuma. Há quem afirme, com bastante maldade, que o Estado laico é um “Estado ateu”, mas isso é falso. O Estado laico estaria mais para “Estado agnóstico”: afinal, o ateísmo consiste em negar deus, o que equivale a assumir uma posição religiosa, ao passo que o “Estado agnóstico” seria aquele que não decide a respeito das crenças individuais e, portanto, nesse sentido, não assume nenhuma perspectiva.

O princípio da laicidade do Estado é tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos, em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar nenhuma fé.

A crença religiosa dos cidadãos brasileiros é matéria de foro íntimo, não de foro público. Isso tem uma conseqüência muito clara e direta para o que se refere ao Estado: nem os servidores públicos nem os ocupantes de cargos públicos podem referir-se às suas crenças íntimas enquanto estiverem no exercício de suas funções. Afinal de contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos membros de suas próprias igrejas[1].

Embora a laicidade baseie-se em uma negação – a proibição de o Estado professar qualquer crença –, os benefícios que ela traz são enormes; na verdade, o Estado laico é o garantidor das liberdades que podemos chamar, sem margem para dúvidas, de liberdades verdadeiramente fundamentais, que são as de pensamento e de expressão: sem elas, ou seja, sem que seja possível a cada indivíduo pensar por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação, nenhuma outra liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.

O Estado laico não é uma instituição gratuita. Isso quer dizer que ele não é nem fruto do acaso nem que não ele não tem valor – nem, além disso, que ocorra sem custos.

Ele começou a ser praticado e teorizado quanto as guerras motivadas pelas religiões cessaram na Europa, no século XVII. Até então, ser cidadão de um país equivalia a professar uma crença específica; a partir de então, que cada cidadão devia ao seu governo obediência às leis, mas não necessariamente devia seguir a mesma religião que seu governante. Foi mais ou menos nessa época que as religiões tornaram-se tema de foro íntimo, ficando no foro público os temas propriamente políticos[2]. Ainda assim, apenas no transcurso das revoluções Americana e Francesa, no final do século XVIII, é que surgiram os primeiros estados completamente laicos, em que o Estado não obriga os cidadãos a seguir nenhuma religião porque o próprio Estado não professa nenhuma religião.

No Brasil, o Estado laico foi instituído em 1890, com a proclamação da República, contra o privilégio que a Igreja Católica possuía como religião oficial. Com Benjamin Constant à frente, os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com desenvolvimento e justiça social. Nos Estados Unidos, a separação entre a Igreja e o Estado foi uma solução de compromisso, pois não se determinou nenhuma religião como oficial porque não houve acordo a respeito de qual seria a melhor: aqui, ao contrário, consagrou-se desde o início como princípio norteador do Estado republicano que a garantia fundamental para as liberdades seria o Estado não possuir nenhuma religião.

Os fundadores da UFPR tinham exatamente os mesmos valores: há quase um século, ao criarem em 1912 a então Universidade do Paraná, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos materiais, intelectuais e morais por meio dos estudos de nível superior. Juntamente com esses valores fundamentais, tinham clareza de que a separação entre a Igreja e o Estado é uma condição fundamental para que qualquer sociedade progrida. Não seria exagero dizer que eles tinham horror à idéia de um Estado que patrocinasse ou permitisse em seu interior práticas religiosas – mas, detalhe: práticas religiosas no e pelo Estado, mas não na sociedade.

Como dissemos, a laicidade não ocorre sem custos. Qual o seu custo? É este: cada indivíduo e cada igreja deve limitar suas ações no que se refere ao Estado, no sentido de respeitar a laicidade: não impor sua crença ao Estado nem usar o Estado para impor sua crença. No que se refere às igrejas, como há um aspecto institucional, é mais simples de perceber quando ocorre a sua interferência, mas no que se refere aos indivíduos a fiscalização da sociedade é bem mais difícil. Ainda assim, é necessário formular sem rodeios como deve ocorrer a autolimitação da parte dos indivíduos.

De maneira bastante direta: os indivíduos que atuam no Estado têm que ter claro que, como servidores ou agentes públicos, não podem professar nenhuma religião: não podem falar em deus, não podem distribuir panfletos de caráter religioso, não podem exibir símbolos religiosos em seus ambientes de trabalho. Isso pode parecer um esforço muito grande, mas não é – e por dois motivos.

Em primeiro lugar, quando um cidadão comum vai a uma repartição pública e vê um servidor público falando em deus, portando símbolos religiosos ou distribuindo panfletos com esse teor, o que o cidadão percebe não é um outro cidadão manifestando sua fé particular, mas o Estado como um todo, representado pelo servidor, demonstrando sua adesão a determinados princípios religiosos. Em outras palavras, o cidadão comum verá que as autoridades beneficiam uma crença e, portanto, afirmam que essa crença é a “correta” para ser seguida. Não há dúvidas de que essa é uma forma de constrangimento, de imposição de crenças, de opressão.

O segundo motivo porque a autocontenção de servidores e agentes públicos não exige um grande esforço ou não é muito pesada é o seguinte. Imagine-se um trabalhador no mercado de trabalho: ao ingressar em qualquer emprego, ele submete-se a uma disciplina específica – a um código de conduta. São regras escritas e não-escritas que devem ser seguidas para o bom desempenho das atividades, com procedimentos a realizar e ações a evitar. Eis alguns exemplos simples mas que ilustram com clareza a idéia: não se pode falar palavrões, não se pode ir mal-vestido (ou, por outra: em vários casos é necessário usar determinados tipos de roupas), não se pode ir trabalhar alcoolizado e assim por diante. Todos esses exemplos são proibições que os trabalhadores aceitam como corretas para o bom desempenho de suas funções. Essas proibições ocorrem para o ambiente do trabalho, não para o espaço doméstico: em suas casas, no foro íntimo, os indivíduos têm liberdade para fazer mais ou menos tudo o que desejam.

Ora, se é aceitável que os indivíduos adaptem suas condutas para o trabalho em geral, deixando de agir de determinadas maneiras e agindo de outras formas em relação a como procedem em suas famílias, é ainda mais aceitável que os servidores públicos tenham um comportamento claro para realizarem suas atividades: afinal de contas, de modo geral é possível aos cidadãos escolherem uma empresa ou outra, mas os serviços públicos são universais. A bem da verdade, no âmbito do serviço público federal, existe uma lei que estipula precisamente esses comportamentos aceitáveis e inaceitáveis: trata-se do Decreto n. 1 171/94, o Código de Ética do Servidor Público Civil Federal. No caso da religião, se mesmo em empresas privadas é consensual que não se deve conversar esse assunto, o que se dirá no âmbito do Estado!

Apesar de todos esses motivos para a laicidade do Estado, há dois argumentos especialmente daninhos que se utiliza para tentar justificar o uso de símbolos e a prática de cultos religiosos no âmbito público: digo “argumentos”, mas são mais sofismas políticos. O primeiro diz respeito às crenças da população em geral; o segundo baseia-se em uma certo tradicionalismo.

Comecemos pelo segundo sofisma. Para justificar a celebração pelo Estado de determinada crença religiosa, muitos afirmam que se tratam de práticas há muito tempo praticadas e que já se tornaram tradicionais. Exemplos: a transmissão em emissoras públicas (isto é, estatais) de missas e cultos e a presença de crucifixos em bibliotecas públicas, tribunais, parlamentos e espaços públicos de modo geral. O problema aqui é que essa “tradição” baseia-se no desrespeito a um dos princípios fundamentais da República brasileira: é como querer justificar o coronelismo ou a corrupção ou a miséria no país afirmando que eles são “tradicionais”; é querer justificar algo errado porque esse errado existe faz tempo e é mais ou menos comum. Além disso, essas “tradições” são vistas como imutáveis e, literalmente, sacrossantas, isto é, intocáveis: é o raciocínio que se utiliza para justificar, por exemplo, o uso da violência física no trote aos calouros das universidades; ou para que bares, lanchonetes e restaurantes sofram enormes calotes por estudantes de Direito no dia 11 de agosto (o “dia do pindura”); ou que mulheres sejam espancadas por maridos supostamente traídos; ou que, em países que aceitam a xaria – a lei tradicional do islã – ladrões tenham as mãos decepadas e mulheres consideradas adúlteras sejam apedrejadas até a morte.

O argumento que se refere à religião da população brasileira é mais especioso, mas não é menos falso. O fato de a maioria da população brasileira ter uma determinada crença é freqüentemente invocado como justificativa para que o Estado adote práticas derivadas diretamente dessa crença; em outras palavras, a “vontade da maioria da população” é uma justificativa para que a (vontade da) minoria seja desconsiderada. “Maioria” e “minoria”, aqui, podem variar, é claro: no caso específico do Brasil podemos considerar a “maioria católica” – cerca de 73% da população – ou a “maioria cristã” – cerca de 90% da população –; assim, apenas em casos específicos é possível falar simplesmente em “maioria”, de tal sorte que na prática há apenas maiorias, no plural. Mas a questão é que tanto faz quem é maioria ou quem é minoria: o que importa é que as minorias devem ser respeitadas como cidadãs, ou seja, em seus valores e, portanto, a maioria não pode usar sua força numérica para impor suas crenças à minoria.

A relação entre maioria e minoria remete a uma diferença entre “democracia” e “república”. Enquanto a democracia é o governo da maioria, a república é o governo baseado na lei e que respeita as minorias. Sem dúvida que essa definição que apresentei de democracia é sujeita a polêmicas, mas a verdade é que não existe uma democracia tout court, exceto se considerarmos a experiência da Atenas antiga, que foi celebrizada durante a magistratura de Péricles, no século V a. c.; por outro lado, se pensarmos nos grandes teóricos republicanos, especialmente os das revoluções Francesa e Americana, eles sempre objetaram à democracia a possibilidade de tirania das maiorias que ela pode criar.

Para evitar mal-entendidos, quero deixar claro que de maneira alguma considero que a democracia, como ela é percebida nos dias atuais, seja simplesmente a imposição das vontades da maioria sobre a minoria oprimida. Entretanto, a verdade é que o argumento que justifica ser legítimo, no Brasil, o Estado assumir ares cristãos baseia-se exatamente nessa concepção de democracia, ignorando os elementos republicanos de respeito às diferenças e de Estado de Direito. Essa concepção de democracia, claro, é bastante conveniente, pois beneficia quem pode mais e manda às favas quem pode menos, desconsiderando a idéia de cidadania, isto é, o respeito universal aos membros de uma coletividade política.

Essa idéia de democracia religiosa majoritária já foi utilizada no Brasil: durante a Guerra Fria, governos progressistas, como o de Juscelino Kubitschek, e governos autoritários, como os dos militares, fizeram apelo constante ao caráter supostamente cristão do país. O problema que surge é o seguinte: se tivermos que escolher – e não há dúvidas de que se trata aqui, precisamente, dessa escolha – como definiremos o Brasil, como um país republicano ou um país cristão? O que nos define como comunidade política é uma crença compartilhada pela população ou é o respeito universal a leis universais?

Cada uma dessas definições tem conseqüências claras e muito diversas entre si. Se o Brasil é definido pelo respeito às leis, para ser brasileiro basta respeitar as leis brasileiras e cumprir as obrigações cívicas definidas por essas leis: esse é o conceito de cidadania definido durante a Revolução Francesa. De acordo com essa perspectiva, a partir de 1792 – ano da proclamação da I República francesa – para ser francês não importava mais se cada indivíduo era judeu, católico, huguenote (protestante) ou se nascera na Alemanha, na Inglaterra, na China ou no Zaire: bastava aceitar e seguir as leis e os usos franceses (além de falar francês).

Por outro lado, se o que define o brasileiro é a adesão à religião cristão, a conseqüência direta é que os não-cristãos não são brasileiros, ou melhor, não são “verdadeiros” brasileiros; discordar de ou criticar alguma das religiões cristãs é alta traição, é crime de lesa-pátria. No contexto da Guerra Fria, era comum denunciar os crimes que os soviéticos praticavam contra quem discordava dos dogmas comunistas – afinal de contas, o comunismo era a doutrina oficial do Estado –, incluindo aí todos os que confessavam crenças religiosas; mas muitas das pessoas que denunciavam esses distantes crimes do comunismo praticavam as mesmas ações em casa, ou seja, para o que nos interessa, o Brasil: os não-cristãos eram sujeitos a suspeitas a que os cristãos não estavam.

Outros exemplos semelhantes são as perseguições que religiosos nos Estados Unidos promovem contra quem discorda deles ou simplesmente não é da mesma religião que eles (nos dias atuais, em particular os muçulmanos): não é o que a candidata a vice-Presidente na chapa de John McCain, Sara Palin, tem feito a respeito de Barack Obama, ao sugerir que “ele não é como nós [cristãos]”? Ou, ainda, os atos de profunda intolerância praticados pelos talibãs no Afeganistão ou pelo regime dos aiatolás no Irã[3]?

A verdade é que os governantes brasileiros não estão muito atrás desses exemplos e dão péssimo exemplo à população, rejeitando de maneira demagógica a laicidade do Estado: sejam os presidentes da República que inscreveram nas cédulas “Deus seja louvado” e, depois, deixaram essa frase em negrito; sejam os autores da Constituição Federal de 1988 que inseriram um agradecimento a deus no “Preâmbulo” da Carta Magna; sejam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores que afirmam governar com base na vontade divina; seja o Presidente da República que a todo instante fala em deus; sejam os ministros de Estado que usam verbas públicas para viajarem a encontros religiosos ou para patrocinar encontros de suas seitas; seja o governador do Paraná que em 2003 resumiu as comemorações dos 150 anos do estado a uma missa pública e a palavras de ódio contra empresas transnacionais de soja transgênica.

Mais do que isso. Nas recentes eleições para vereadores municipais, os analistas políticos indicaram uma série de fatores interessantes: as conseqüências eleitorais dos mecanismos de votação; as “vontades populares” expressas pelas novas bancadas de vereadores e assim por diante. Entretanto, um elemento central foi completamente ignorado ou desprezado: a quantidade assustadora de candidatos que fizeram suas campanhas apelando diretamente para os valores religiosos. “Acredita em deus e valoriza o ser humano”, “Evangelizando na política”, “Com deus, por você” foram alguns dos motes das campanhas não apenas em Curitiba, mas, pelo que se pôde perceber pelas matérias jornalísticas divulgadas nos meios de comunicação, no país inteiro. Considerando que os parlamentares devem representar interesses, a pergunta que não quer calar-se é a seguinte: quais os interesses que os candidatos religiosos representam? Quaisquer que sejam, certamente que a laicidade do Estado não está entre eles[4].

À parte algumas importantes iniciativas da sociedade civil – como as organizações não-governamentais Brasil para Todos e Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos e o Observatório da Laicidade do Estado, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a única iniciativa política de que temos conhecimento e que visasa a combater esse gênero de desvio institucional é da autoria da ex-Deputada Federal e ex-Juíza Denise Frossard, que propôs o Projeto de Lei Complementar n. 216/2004, vedando aos sacerdotes o exercício de funções eletivas. Não por acaso, Denise Frossard é da cidade e do estado do Rio de Janeiro, onde, como se sabe, há teocracias em germe faz tempo. É forçoso reconhecer que, também não por acaso, o seu projeto de lei foi rejeitado no Congresso Nacional, onde há crescentes bancadas especificamente religiosas.

Começamos este artigo fazendo referência à UFPR; é importante concluí-lo voltando a ela. Há algum tempo a Universidade comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda a favor do “papel que desempenha na sociedade paranaense”, não houve uma única menção aos seus fundadores; na verdade, exceto os historiadores e alguns especialistas em história do Paraná, o fato é que a comunidade universitária ignora completamente quem foram esses fundadores e quais os ideais que os moveram ao criar a então Universidade do Paraná. Pois bem: face à missa que a Reitoria da UFPR mandou rezar e face a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na Universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional Federal do Paraná.





[1] Isso tem uma outra conseqüência: as religiões não são temas políticos, ou seja, não é possível e não é aceitável, nesse sentido, que se faça campanhas políticas fazendo apelo às crenças individuais de cada um.

[2] Conforme indicou meu amigo Valter Duarte, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na verdade o processo de laicização como é conhecido atualmente começou no final da Idade Média – mais precisamente na Inglaterra –, quando, por motivos políticos e filosóficos, passou-se a buscar fundamentações não-religiosas para a autoridade política. As obras de John Locke sobre a tolerância, sobre a organização política e sobre o entendimento humano foram importância capital nesse sentido.

[3] Convém notar: esse mesmo raciocínio de comunidade política fundada em valores religiosos – com as conseqüências indicadas acima – foi recentemente utilizado pelo Presidente da República da França e pelo Papa para proibir o ingresso da Turquia na União Européia. Ora, o que Nicolas Sarkozy e Bento XVI pressupõem é que a Europa é essencialmente cristã, deixando de lado 1) o profundo e crescente secularismo das sociedades européias; 2) o caráter principalmente republicano das democracias européias; 3) a importância capital que tiveram os muçulmanos para o desenvolvimento da Europa e mesmo do catolicismo – afinal, sem os árabes não existiria São Tomás de Aquino –; 4) o longo e multimilenar relacionamento político, econômico e cultural entre os europeus e os muçulmanos (particularmente turcos) e 5) o fato de que o único país muçulmano que assumiu convictamente os valores (ocidentais) da secularização e da democratização foi a Turquia. Em suma: essa proibição é uma pérola da intolerância religiosa convertida em argumento político, a serviço do “choque de civilizações”. Não por acaso, por outro lado, Sarkozy e Bento XVI têm defendido o conceito de “laicidade positiva”, segundo o qual é lícito ao Estado professar alguma religião – o que, em outras palavras, é a própria negação da laicidade.

[4] É tão grande a quantidade de infrações ao princípio da laicidade do Estado que seria verdadeiramente cansativo tentar citá-las todas. Por isso, para encerrar aqui essa lista, citamos apenas mais dois exemplos: 1) a existência de capelães concursados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, claro, nas Forças Armadas; 2) as reiteradas propostas de “Ensino Religioso” obrigatório no Ensino Fundamental (e, se duvidar, também no Ensino Médio), a ser ministrado, sem dúvida, por sacerdotes.