09 agosto 2008

Sobre a corrupção


A corrupção não é um problema menor da prática política[1]. Embora ela atinja basicamente os meios e não os fins e, dessa forma, pareça que ela não trata de política substantiva, é importante notar que ela não é apenas uma questão de apropriação privada de recursos públicos, mas também – e talvez principalmente – ela consiste em um desvirtuamento do civismo, isto é, das preocupações com o bem público. Dessa forma, a corrupção abrange também os fins da política, na medida em que a atividade política deixa de visar à coletividade mas aos interesses particulares.
Dessa forma, há algumas considerações a fazer. A primeira é que, a partir da exposição acima, podemos dizer que (idealmente, ao menos) há graus de corrupção: o primeiro consiste nos desvios de verbas pelos agentes públicos[2], na exigência de comissões pelos agentes públicos para liberação de projetos e nos orçamentos superfaturados para enriquecimento ilícito tanto dos agentes públicos quanto dos agentes privados.
O segundo grau consiste na perda de referências para a formulação de políticas públicas. Não é fácil formular com clareza este nível, mas podemos sugerir os seus contornos: os responsáveis pela condução da política perdem a preocupação em elaborar projetos efetivos para o país, os “projetos de nação”. Nesse nível, há uma desmoralização generalizada da atividade política e falar em “civismo” ou em “patriotismo” é sinônimo de tolice ou ingenuidade. Apesar disso, não é exagerado afirmar que a falta de rumo ou os rumos desvirtuados podem resultar, entre outras coisas, no fim das liberdades públicas[3].
Isso nos leva, incidentalmente, a algumas áreas de pesquisa (e de “engenharia institucional e política”): cultura política, estudos das instituições, mecanismos internos e externos de controle do Estado; teoria política. É claro que o problema da corrupção é tanto societal quanto estatal: os agentes públicos podem corromper-se “endogenamente” (a partir da locupletação ilícita oriunda de instituições, práticas e valores próprios aos agentes públicos) ou “exogenamente” (isto é, pelas ofertas de corrupção vindas da sociedade); além disso, a corrupção ocorre porque é tolerada pelo Estado mas, principalmente, pela sociedade; por fim, a ocorrência ou a ausência de manifestações sociais de repúdio à corrupção e a existência ou inexistência de mecanismos institucionais de controle da corrupção. Há discussões específicas sobre cada um desses aspectos nas subdisciplinas específicas da Ciência Política e da Sociologia Política, mas é possível considerá-las como integrantes da teoria republicana, no âmbito da Teoria Política.
Embora, como sugerimos, a corrupção atinja a formulação das políticas públicas, ou seja, os fins, basicamente ela visa aos meios; por outro lado, ela consiste no desvio das funções públicas, que deixam de servir à coletividade e passam a servir a particulares. Ela pode institucionalizar-se em práticas correntes, mas é sempre fora ou contrária à lei (seja na forma, seja no espírito do ordenamento jurídico). Como os meios são, em certa medida, secundários em relação aos fins e como o desvio das funções públicas tem um elemento “valorativo”, isto é, envolve os valores dos agentes públicos corruptos (ou corruptores), é fácil afirmar que tratar da corrupção é discutir algo menor em termos políticos e que resvala no “moralismo” – ou seja: é fácil afirmar que o discurso anticorrupção é mero diversionismo ou hipocrisia.
Sem dúvida, é fácil usar o discurso da corrupção contra um governante ou contra um agente público a que se opõe: a posição de poder de quem ocupa cargos e funções permite, sempre, que ocorram desvios de recursos ou práticas de corrupção; dessa forma, nunca se pode afastar a possibilidade improbidade administrativa.
Também é certo que, na falta de propostas concretas, de capacidade de discussão ou de articulação política ou de alguma coisa como “credibilidade política”, afirmar que a corrupção grassa no governo ou no Estado é sempre uma estratégia possível, na medida em que ela apela para um senso de responsabilidade e de correção da “opinião pública”. Em última análise, é sempre mais fácil apelar para as emoções fáceis[4] que para o difícil exercício da racionalidade política e sociológica.
Finalmente, um político incompetente ou corrupto pode desviar a atenção pública de si mesmo para outros problemas arvorando-se em defensor da ética, da moral e dos bons costumes.
Tudo isso é verdade. Entrementes, não se pode nem minimizar a importância do problema da corrupção nem afirmar que toda denúncia contra ela ou que o tema da corrupção, por si só, é diversionismo, hipocrisia ou moralismo. Além do que vimos anteriormente – que a corrupção pode passar do nível um para o nível dois, ultrapassando os meios para afetar de maneira central os fins – , há casos em que a corrupção é utilizada como um recurso para obtenção do poder político, por meio da desestabilização de um regime político[5].
Comentamos anteriormente que, no âmbito da Teoria Política, é o republicanismo o que trata mais diretamente do tema da corrupção. A teoria republicana, contudo, não é unitária, ou seja, há diversas tradições republicanas, cada qual com suas particularidades, embora mantenham um certo parentesco entre si.
Conforme comentou Quentin Skinner (em A lberdade antes do liberalismo), podemos simplificadamente afirmar que há duas grandes tradições de teoria republicana, a neo-ateniense e a neo-romana. A primeira afirma a importância da participação popular no processo deliberativo e, de maneira mais específica, realça as virtudes cívicas dos cidadãos: interesse pelo bem comum, honestidade, abnegação, dedicação. Esse é o que alguns autores, como Hannah Arendt e o brasileiro Newton Bignotto, chamam de “republicanismo cívico”, que foi teorizado no Renascimento italiano por Maquiavel. De acordo com essa corrente, a fim de evitar a corrupção os cidadãos – aí incluídos, sem dúvida, os governantes – devem ser virtuosos.
Em sentido semelhante, Augusto Comte afirmava que o aspecto positivo da república é a subordinação da política à moral. Nos termos comtianos, a “moral” equivale a “bem público”, a “bem comum”, mas não há dúvida de que o combate à corrupção (nos dois níveis identificados) entra nesse conceito.
Na verdade, a proposta republicana comtiana permite transitarmos das idéias neo-atenienses para as neo-romanas. Assim, há uma outra vertente teórica que surge dos escritos maquiavelianos; embora não seja propriamente republicana, não é totalmente descabido incluí-la na família dos republicanismos: é a linha que surge (ou continua) com John McCormick. Inspirado nos livros históricos de Maquiavel, McCormick afirma que uma das melhores e mais eficazes – se não a melhor e mais eficaz – formas de controlar a corrupção é por meio do contínuo escrutínio público dos “grandes” (ou seja, dos governantes e dos ricos) pelos “pequenos” (os governados e as classes médias e baixas). Esse escrutínio não é apenas uma questão de fiscalização, mas um controle permanente das ações governamentais, para evitar tanto a corrupção quanto a tirania; o conflito político e social não está, de modo algum, ausente dessa perspectiva.
Esse é um exemplo bastante ilustrativo de um dos traços mais importantes do republicanismo neo-romano: o controle permanente dos governantes pelos governados é uma idéia compartilhada por Augusto Comte, por McCormick e pelo principal teórico atual do republicanismo, P. Pettit.
McCormick acentua mais o caráter de confronto do controle do governo pelos “de baixo”; Comte dá maior ênfase à fiscalização e à legitimidade do governo; Pettit poderia ser posto em uma posição intermediária, ao afirmar a fiscalização constante por meio dos mais variados institutos políticos e sociais (tribunais, Ministério Público (no caso brasileiro), ouvidorias, manifestações públicas etc.).
Não queremos com esses comentários sugerir que o republicanismo, em suas várias modalidades e vertentes, resume-se a uma teoria ou a uma engenharia anticorrupção, pois sua(s) proposta(s) é (são) maior(es), abrangendo configurações sociais, princípios de legitimação e arquiteturas institucionais específicas; além disso, como os republicanismos propõem definições do que seja o “bem comum”, há também neles propostas que visam aos fins, não se limitando aos meios. Entretanto, não deixa de ser verdade que, entre as teorias políticas normativas, é o republicanismo o que mais diretamente trata da corrupção.
Há ainda uma questão de fundo que exige análise e que permeia tudo o que se comentou até agora[6]. Poderíamos chamar essa questão de “problema da natureza humana” (embora a expressão “natureza humana” seja um tanto ambígua e esteja sujeita a várias contestações): afinal de contas, é possível eliminar a corrupção? De modo mais profundo, o ser humano é bom ou mal, é corrupto (ou corruptível) por natureza?
Entre as concepções que Hobbes, Locke e Rousseau tinham do ser humano, ficamos com a de Augusto Comte: em vez de um homem por natureza mal ou bom, o ser humano possui pendores, ou “instintos”, egoístas e altruístas, ou seja, voltados para o próprio indivíduo (ou grupo) ou para os demais; além disso, há a coragem, a firmeza e a prudência. Em cada meio social os indivíduos são educados e socializados de acordo com alguns princípios e em algumas práticas; alguns meios são mais propícios à corrupção e outros menos; alguns indivíduos têm maior firmeza para evitar ou resistir à corrupção e outros, menos. Dessa forma – reforçamos –, a corrupção é um problema tanto moral quanto institucional e societal. Ainda assim, é forçoso reconhecermos: sempre haverá quem deseje obter alguns resultados específicos por fora ou acima da lei. Uma sociedade completamente virtuosa não é possível, ainda que seja desejável: a corrupção é inextinguível. Ainda assim, isso não equivale a afirmar que ela é um mal necessário ou que devamos aceitá-la ou conviver com ela: ela deve ser combatida e evitada, mas sem a ilusão de que o ser humano deixará de ser, algum dia, humano[7].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁCICAS
BIGNOTTO, N. 2001. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: UFMG.
COMTE, A. 1957. A General View of Positivism. New York: R. Speller.
MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: M. Fontes.
MCCORMICK, J. P. 2003. Machiavelli against Republicanism: On the Cambridge School’s “Guicciardinian Moments”. Political Theory, London, v. 31, n. 5, p. 615-643, Oct.
PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University.
SKINNER, Q. 1997. A liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP.



[1] Embora este texto seja de minha inteira e exclusiva responsabilidade, ele não seria possível sem as discussões que o Núcleo de Estudos em Pensamento Político da Universidade Federal de Santa Catarina (NEPP-UFSC) realiza; também não seria possível sem a bolsa de estudos concedida pelo CNPq.
[2] Concentramo-nos aí na corrupção que atinge o Estado, mas é importante notar que ela não existe ou ocorre apenas no âmbito estatal. Não apenas a corrupção tem uma dimensão societal como também é possível determinarmos processos de corrupção estritamente societais. No que se refere ao Brasil, não é descabido perceber no “jeitinho” uma forma de corrupção.
[3] É claro que os dois níveis que sugerirmos e as várias práticas que identificamos (ainda que de modo sumário) permitem considerar a constituição de uma tipologia da corrupção.
[4] Entram nessa categoria não apenas o moralismo anticorrupção como também os discursos que apelam para políticas de tolerância zero em questões de segurança.
[5] Basta pensarmos nas propostas de Lênin para desestabilizar os “regimes burgueses” e cimentar o caminho para as revoluções bolcheviques – cujas influências chegaram ao Brasil (de que Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e vários esquerdistas, desde a década de 1930, são exemplos).
[6] Agradeço ao amigo Tiago Losso pela proposição desse tema, tão central aqui.
[7] Talvez a melhor forma de ilustrar o combate à corrupção seja por meio de uma curva assintótica: à medida que o combate à corrupção aumenta e avança, ela diminui; ainda assim, por mais que a curva (da corrupção) aproxime-se do zero, ela nunca alcança o valor nulo, sempre restando algum resíduo.

05 agosto 2008

Dois erros sobre a doutrina política comtiana: “autoritarismo” e “funcionalismo público”

Vejam o artigo de minha autoria, intitulado "Dois erros sobre a doutrina política comtiana:  'autoritarismo' e 'funcionalismo público'" e publicado na Revista Espaço Acadêmico (Maringá) de agosto de 2008, neste vínculo:

http://www.espacoacademico.com.br/087/87lacerda.htm.

15 junho 2008

Sobre a “crítica” de Mauro Santayana à razão positiva

SOBRE A “CRÍTICA” DE MAURO SANTAYANA À RAZÃO POSITIVA

Quais são os critérios que fazem de alguém um jornalista respeitável? Ou melhor, quais os critérios que adotamos para considerar que alguém é um “jornalista respeitável” e “digno de crédito”? Confesso que até hoje nunca li muita coisa de Mauro Santayana. Ele é mineiro e escreve para um jornal fluminense (Jornal do Brasil), ao passo que eu sou curitibano e leio um jornal paulista (Folha de S. Paulo); assim, para mim, o nome de Mauro Santayana correspondia apenas ao de um “ilustre desconhecido” – uma dessas pessoas de quem ouvimos falar, mas nunca sabemos direito quem são ou o que fazem.
Pois bem: por indicação de alguns amigos meus, li o artigo que Santayana publicou no Jornal do Brasil no dia 17 de fevereiro último, “A oposição e a razão positiva” (cf. aqui). Li o texto e fiquei espantado em como alguém consegue torcer idéias, conceitos e acontecimentos para provar o que quiser – independentemente de se sua argumentação faz algum sentido ou é correta.
No artigo em questão, Santayana pretende demonstrar que a origem dos males da oposição que sofre o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva radica no Positivismo de Augusto Comte. Para isso, consulta uma única e pequena obra de Comte (Discurso sobre o espírito positivo), dando preferência à interpretação que o prefaciador do livro (Julián Marías) faz dela. A partir disso, descamba para uma série de xingamentos e qualificações negativas – tiradas do fundo de sua cabeça – para afirmar que Comte “não escrevia bem” e que, tanto no que se refere à forma quanto no que diz respeito ao conteúdo, o hegeliano Marx era-lhe superior. Santayana vai além, ao afirmar que os militares que tomaram o poder em 1964 eram positivistas, seguidores da obra de Comte. É tanta bobagem e preconceito por centímetro quadrado que não consigo acreditar que alguém que escreva tudo isso seja considerado “respeitável”.
Em primeiro lugar, ninguém que pretenda fazer uma exegese mínima do pensamento de um autor pode basear-se na leitura de apenas uma única obra, pequena, por mais que o prefaciador dessa obra diga ser possível. Na verdade, Santayana adota a tradução espanhola do Discurso, deixando de lado a tradução brasileira. Pois bem: o prefaciador Julián Marías, que “autorizou” a olimpiana exegese de Santayana, é um conhecido liberal de origem católica, que, além de fazer renhida oposição ao Positivismo comtiano, foi professor e orientador de todos os intelectuais liberais de origem católica que deram seu apoio ao regime militar. Em outras palavras, Santayana – que foi exilado pelo regime de 1964 – consegue praticar a proeza de basear-se nos seus próprios inimigos para criticar seus desafetos do momento. Mais valeria Santayana ter lido a tradução brasileira, prefaciada pelo sociólogo francês Paulo Arbousse-Bastide, profundo conhecedor de Comte e autor de um prefácio efetivamente esclarecedor (cf. Augusto Comte, Discurso sobre o espírito positivo, Martins Fontes, 1990).
Na verdade, não apenas Santayana estabelece uma vergonhosa aliança com seus inimigos da véspera (amigos atuais, talvez?), como simplesmente ignora a formação ideológica dos militares que deram o golpe em 1964. Conviria Santayana ler um pouco mais de história do Brasil; sugiro-lhe o livro de José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar, 2005). Nessa obra, Carvalho reúne uma série de artigos acadêmicos e de polêmica que escreveu nos últimos vários anos; para o que nos interessa, no longo capítulo 1, o autor indica com clareza que a influência do Positivismo entre os militares da Proclamação da República foi na direção da “civilização” dos militares, isto é, de ao mesmo tempo afastar esses militares qua militares da vida política e de torná-los mais civis, mais paisanos, que guerreiros. Carvalho segue na análise e indica que foi a geração dos “jovens turcos”, educada no ambiente militar alemão nos anos 1920, que resultou nas diversas levas de militares golpistas das décadas seguintes.
Além disso, Santayana deveria ler outras duas obras. Uma, de seu colega jornalista Elio Gaspari, o volume 4 da sua coleção sobre a ditadura (A ditadura encurralada, Companhia das Letras, 2004); o outro livro foi organizado por Renato Lemos e chama-se Justiça fardada (Bom Texto, 2004). Ambos – mas principalmente o segundo – apresentam a atuação do General Peri Bevilácqua à frente do Superior Tribunal Militar, entre 1965 e 1969. O Gal. Peri era positivista e neto do igualmente positivista Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães – o mesmo que fundou a República no Brasil e que orientava a formação de seus alunos militares no sentido da já comentada “civilização”. Pois bem: o Gal. Peri bateu-se no STM contra os abusos civis e militares praticados pelo regime militar – e, note-se, durante alguns dos mais duros e violentos momentos do período.
Santayana afirma que o Positivismo não é “democrático”. À primeira vista, pensamos que isso equivale a dizer que o Positivismo é autoritário e que apoiou, ou teria apoiado, todos os regimes autoritários do Brasil. Ele também sugere que o Positivismo é “de direita” – afinal, as propostas sociais do Positivismo consistiriam em oferecer casa e esmolas ao proletariado, mandando-o, em troca, manter-se longe da política, calar a boca e submeter-se às explorações feitas pela burguesia. Mas será isso mesmo?
A “democracia” não é um conceito unívoco, ou seja, há inúmeras formas de interpretá-la. Podemos considerar a democracia como um regime político em que as pessoas tenham liberdades políticas, sociais, civis; ou um regime em que as pessoas possam participar do governo e intervir nas políticas públicas; ou participar dos debates públicos, para opinar sobre o governo e apoiá-lo e criticá-lo quando julgarem adequado; ou exigir que os governos sejam legítimos e que só existam na medida em que forem legítimos. Mas também é possível considerar como democracia aquela sociedade em que, baseada no individualismo, todos, o tempo inteiro, estão governando diretamente a sociedade, além de exigirem a igualdade de todos e rejeitando as diferenças e as dissensões. São várias formas de considerar a “democracia” e não se pode considerar nenhuma mais “correta” que as outras. Se alguém preferir a sua própria versão de democracia, de modo que exclua outras possibilidades, será necessariamente “antidemocrático”, pois opõe-se a traços das outras “democracias” – e foi esse salto que Santayana deu para “demonstrar” o caráter antidemocrático do Positivismo. Antes de prosseguirmos, é importante dizer com clareza e com todas as letras: esse procedimento adotado por Santayana, do ponto de vista lógico, é um sofisma, cujo objetivo é enganar as pessoas.
Ora, se entendermos que o Positivismo é radicalmente a favor da atuação política do proletariado no espaço público; é radicalmente a favor da melhoria das condições de vida do proletariado (isso é o “progresso”, que se baseia na “ordem”); é radicalmente a favor das liberdades civis, políticas e sociais; é radicalmente a favor da sociedade pacífica que distribui os frutos de sua produção econômica, moral, artística, cultural e intelectual a todos os membros da sociedade; é radicalmente a favor da estabilidade institucional e “republicana”; é radicalmente a favor dos regimes legítimos; é radicalmente a favor da separação entre a Igreja e o Estado; é radicalmente a favor do respeito às culturas tradicionais (indígenas, quilombolas etc.); é radicalmente a favor da autodeterminação nacional e contrário às formas de colonialismo e intervencionismo; se entendermos que o Positivismo, em termos políticos, é tudo isso, não será possível afirmar que ele é “antidemocrático”.
Por outro lado, o Positivismo é contrário às formas políticas que afirmar sem possível que o “povo” governe tudo o tempo todo ou que não haja elites políticas; também é contrário à afirmação de que o objetivo básico das sociedades é a igualdade; também é contrário à afirmação de que a sociedade baseia-se em indivíduos; também é contrário às fórmulas políticas que reduzem a sociedade a um único grupo social. Para o Positivismo, essas características da “democracia” conduzem diretamente a regimes tirânicos, autoritários, liberticidas, em um argumento que foi depois repetido por Alexis de Tocqueville: assim, Augusto Comte era contra Rousseau – cujas idéias foram aplicadas por Maximilien Robespierre, durante a Revolução Francesa – e seria contrário a inúmeros aspectos da obra de Marx – cujas idéias foram aplicadas na Rússia soviética e em todos os países comunistas ou socialistas. Ora, não se pode duvidar das credenciais democráticas de Rousseau e Marx, Robespierre e Lênin – mas eu não gostaria de viver em tais democracias. Em suma: Santayana lê livros pequenos para apenas repetir e assumir preconceitos. Brilhante!
Santayana afirma a superioridade de Marx em relação a Comte, em particular em termos estilísticos. Isso parece intriguinha, futilidade – e é isso mesmo. Comte escrevia “longos parágrafos”, era “confuso” e suas idéias “decaíram” no que se refere à sua influência política e social. E daí? Jamais consegui ler os livros de Marx, pois seus parágrafos eram “longos”, “tortuosos” e extremamente “confusos” – eram “dialéticos”! (Minto: as obras jornalísticas de Marx são mais legíveis – mas ele tinha que conseguir vender pelo menos alguns de seus escritos, afinal de contas.) Claro que a prática política de Marx nunca foi “democrática”, em qualquer sentido que se possa tomar essa palavra: Santayana deveria ler Escritos contra Marx, de Bakunin (Imaginário, São Paulo, 2001).
As idéias de Comte “decaíram”? Mas o que isso significa? Que elas não tiveram influência no mundo? Ora, somente um ignorante e/ou preconceituoso poderia dizer uma tolice dessas: Inglaterra, Estados Unidos, França, a América Latina inteira, Índia, China, Japão, Turquia... a amplitude geográfica e civilizacional com que as idéias comtianas (políticas, sociais, religiosas, científicas) espraiaram-se é qualquer coisa menos uma “decadência”.
Mas, afinal de contas, o fundador do Positivismo não viu a decadência de suas idéias – o que quer que isso signifique – e o mero fato de elas terem “decaído” não prova que elas “não prestam”. Isso faz sentido, de alguma forma? Faz, se quem afirma essa pérola adota algum tipo de “darwinismo intelectual”. Por outro lado, as idéias de Marx também decaíram (e – oh, vida! – Marx não viu sua decadência!). O que isso significa? Não sei, mas, a julgar pelos seus próprios critérios, suponho que o filomarxista Santayana esteja quase 20 anos atrasado. Para terminarmos essas picuinhas: Marx seria superior a Comte, além de tudo, por ser hegeliano. Pois bem: Hegel foi um dos mais obscuros autores que já escreveu no mundo; além disso, Hegel fez o elogio dos estados autoritários (de orientação napoleônica) ou absolutista (de orientação prussiana), considerando-os a forma mais evoluída de Estado, ao afirmar a identidade do “Espírito” (entidade metafísica, por certo) com a própria instituição estatal e a sociedade civil e subsumir a sociedade civil no Estado. Não é difícil de perceber que nessa mistificação estão algumas das origens do totalitarismo do século XX. Enfatizo: em Hegel, não em Comte.
Seria possível continuar muito mais, mas é necessário concluir. Assim, duas observações gerais.
Em primeiro lugar, de súbito um jornalista resolve comentar a política do momento e “descobre” na origem de suas mazelas o Positivismo. Isso parece coisa de quem não tem o que fazer, mais ou menos com a seguinte linha de raciocínios: “quero criticar meus adversários políticos; como posso fazê-lo? Já sei: atribuirei a origem última de meus inimigos a alguma corrente política ou filosófica que não tem muitos aderentes hoje (e, portanto, não podem responder) e que recebe críticas. Hum... o Positivismo enquadra-se nisso. Oba!”. Afinal, por que, de repente, falar em Positivismo? Apenas um raciocínio disparatado justificaria atribuir os erros da oposição política que sofre o Presidente Lula ao Positivismo. Afinal de contas, em seu texto, Santayna apenas falou mal de Augusto Comte e do Positivismo, para em seguida – sem nenhuma relação lógica – afirmar que o Positivismo é o ancestral intelectual da oposição a Lula. Dá para acreditar?!
(Cá entre nós: seria mais sensato e correto atribuir a origem intelectual da oposição a Lula a outras correntes políticas, algumas bem distantes do Positivismo: catolicismo, marxismo, liberalismo católico e por aí vai. Eu gostaria que Santayana indicasse um político ou teórico de partido – tanto faz se de situação ou de oposição – que tenha relevo nacional, que conheça Comte e que seja capaz de usá-lo em suas reflexões. Se houver, serei o primeiro a fazer seu escrutínio político e filosófico.)
Essa atitude de Santayana não é nova no jornalismo brasileiro; possivelmente, deve ser comum em todos os países do mundo. O curioso é que o esquerdista Santayana recupera os mesmíssimos argumentos que o direitista Diogo Mainardi usou anos atrás (cf. aqui), na famigerada revista Veja: a diferença entre ambos é que um atribuiu ao Positivismo a origem da esquerda (de Lula, no caso) e outro, da direita (quem, não se sabe).
A segunda observação geral retoma as perguntas iniciais deste artigo. Afinal de contas, o que faz de alguém um jornalista “respeitável” e “digno de crédito”? Eu suponho que seja a originalidade do pensamento, a coragem de dizer o que pensa, a moralidade (em sentido amplo) do que pensa, a coerência de suas idéias e, claro, a correção (fática e teórica) do que escreve. Esses cinco elementos, possivelmente não exaustivos, estipulei-os agora, mas parece que são adequados para definirmos a “respeitabilidade” de um jornalista. A questão é que, se cada um, isoladamente, é condição necessária, não é suficiente: há que se ter todos os cinco juntos. Como vimos, Mauro Santayana não corresponde a nenhum deles. É isso o “jornalismo respeitável” do Brasil?

03 abril 2008

Família real e república

Família real e república1

Gustavo Biscaia de Lacerda

I. INTRODUÇÃO

O bicentenário da transferência da família real portuguesa e de sua corte ao Brasil sugerem algumas reflexões para um observador que se considere “republicano” ou que leve em consideração os valores da “República”.

II. MONARQUIA E REPÚBLICA EM TERMOS CONCEITUAIS

II.1. Conceito de monarquia

O Brasil passou, ao longo de sua história, de uma colônia para um reino unido, em seguida para um “Império” e, finalmente, para uma república. Embora a historiografia e a Ciência Política nacionais já tenham indicado faz tempo, numerosas análises e pesquisas apresentadas nos últimos meses realçam o fato de que a mudança do estatuto colonial para o de reino unido entre 1808 e 1810 foi um passo importante na consolidação do Brasil como um país – alguns talvez exijam maior precisão: “como um Estado-nação” – e para a subseqüente independência, ocorrida pouco mais de uma década depois, pelo próprio herdeiro da família real portuguesa2. Como na época o Brasil era propriedade da família real, não se distinguia essa família da política nacional e as virtudes dessa família (ou sua falta) eram as virtudes do país e do sistema político (ou sua falta). Essa confusão, de origem medieval, tinha as curiosas mas naturais conseqüências de que não havia cidadãos, mas súditos; a crítica à família real era o mesmo que criticar o país (ou, mais precisamente, o Estado), o que corresponderia aos crimes correlatos e iguais de lesa-majestade e lesa-pátria: alta traição! Além disso, um costume também de origem medieval (mas da Baixa Idade Média) atrelava a Igreja ao Estado: ser um súdito era o mesmo que professar obrigatoriamente uma determinada fé.

Modernamente, distinguimos a figura do governante da do Estado: quem governa o país não é seu proprietário, mas o “primeiro funcionário do Estado”, estando a serviço da nação. Consideramos que a impessoalidade do cargo, ainda que formal, é um requisito necessário para o bom funcionamento da estrutura governativa, separando o patrimônio pessoal do governante do patrimônio público e do patrimônio dos cidadãos; separando a crítica ao governante da crítica ao Estado; separando a crítica ao governante e ao Estado da alta traição; separando a Igreja do Estado; separando a fé do governante das fés dos cidadãos.

Embora essas duas situações sócio-políticas sejam teorizadas há séculos, no Brasil elas passaram a valer a partir de 1889, com a proclamação da República. Assim, a República no Brasil não inaugurou apenas um novo regime, com uma nova legalidade e toda uma nova forma de sociabilidade (ainda que em projeto), mas constituiu-se na afirmação de um novo princípio de legitimidade, especificamente moderno, racional, aberto às discussões, em contraposição ao princípio antigo, de origem medieval, absoluto, indiscutível e potencialmente intolerante.

Pode parecer ingenuidade, mas convém definirmos do princípio alguns conceitos. A comemoração da transferência da família real portuguesa para o Brasil exige sua contextualização. Mas “contextualizar” uma discussão histórica pode significar duas coisas: 1) inserir a discussão que se faz no período em que ela é feita ou 2) inserir os temas da discussão no contexto de que esses temas faziam parte. Pois bem: ao comemorarmos a transferência da família real portuguesa ao Brasil devemos contextualizar esse fato no segundo sentido, mas devemos contextualizar a própria comemoração no primeiro sentido. Em outras palavras, a transferência da família real integrou o seu próprio momento histórico, assim como a comemoração atual integra o nosso atual momento histórico.

Por que é importante distinguir os dois conceitos de “contextualização”? Porque há alguns autores, editoras e movimentos sociais que, propositalmente ou não, confundem-nos, fazendo da comemoração de uma importante efeméride a afirmação para os dias atuais dos valores políticos e sociais prevalecentes à época da efeméride. Em outras palavras: querendo aplicar para os dias de hoje os valores daquela época, sem maiores considerações – e essa aplicação automática, mecânica, dos valores e das questões de uma época mais ou menos remota para outra, mais ou menos recente (ou atual), é que se chama de “anacronismo”.

Assim, vê-se com notável facilidade, no bojo das comemorações, a afirmação de que a monarquia, na forma de um reino ou de um império brasileiro, é superior à república no que se refere às virtudes políticas e sociais: estabilidade do regime, liberdades públicas, tratamento e solução das diversas questões sociais, desenvolvimento econômico e assim por diante. A questão é que, tanto no que se refere aos projetos de “monarquia” e de “república” quanto no que diz respeito à história política do Brasil independente, a monarquia não é superior à república.

II.2. Conceitos de república

Como vimos anteriormente, em termos conceituais a monarquia é um projeto de origem medieval que subordina o público ao particular do rei, que é o ungido por deus para governar os homens. Todos são sua propriedade e a fé do rei é a fé de seus súditos; sua verdade é única e indiscutível verdade, seja no que se refere às consciências individuais, seja no que se refere aos assuntos públicos; mesmo que o poder do rei seja limitado (pelos costumes e/ou pelas leis), seus súditos continuam sendo “súditos” e sujeitos à vontade mais ou menos arbitrária do rei3. A república é um projeto moderno, que dissocia abstratamente a figura concreta do governante da sua função governativa; separam-se a Igreja e o Estado, a crítica à política em suas diversas facetas da alta traição, e, acima de tudo, vige o Estado de Direito.

A palavra “república”, na verdade, não é unívoca: é possível determinar diversos sentidos para ela. Um primeiro sentido é o imediato, dado pela etimologia: “república” vem do latim “res publica”, que é a “coisa pública”. Adotar um comportamento republicano, assim, é o mesmo que respeitar as instituições, preocupar-se com o desenvolvimento de um país e assim por diante. Esse sentido é fraco, pois não confere identidade própria à república, sendo possível com ele viver-se republicanamente em monarquias: é o que afirmavam Jean Bodin e o barão de Montesquieu (mas ambos esses autores, vivendo antes da Revolução Francesa, a despeito de outras contribuições seminais para a Teoria Política, são pré-modernos no que se refere aos regimes políticos e sociais).

Um sentido forte da “república” começa com os políticos latinos e avança para teóricos dos séculos XVIII, XIX e XX. A primeira república surgiu em meados século V a. c.4, quando os patrícios romanos cansaram-se da dominação estrangeira (etrusca, no caso) e acabaram com a monarquia alienígena. Para nomear o novo regime político, eles não encontraram nenhuma palavra, exceto aquela que designava suas aspirações: queriam um regime do bem comum (ROULAND, 1997). Dessa forma, a república surgiu em contraposição à monarquia. Saltemos na história mais de dois milênios, avançando rumo à modernidade: as repúblicas estadunidense (de 1776) e francesa (de 1792) – inspiradoras de todas as repúblicas modernas – foram proclamadas também pela rejeição às monarquias e aos seus já indicados fundamentos medievais (NICOLET, 1994). Aliás, os mecanismos previstos pelos autores republicanos visavam a evitar que a república virasse um regime despótico ou tirânico5:

  • no século XVIII os estadunidenses de O federalista previram na república o Estado de Direito e o mecanismo de checks and balances (“pesos e contrapesos”) (cf. LIMONGI, 2006);

  • no século XIX, o francês Augusto Comte teorizou a república como o regime sócio-político da afirmação das preocupações sociais, humanas e laicas, com amplas liberdades civis e políticas (COMTE, 1890; 1899);

  • no final do século XX e início deste século XXI, o irlandês naturalizado australiano e radicado nos Estados Unidos Phillip Pettit afirma que o característico da república é sua capacidade de assegurar a liberdade como ausência de arbitrariedade do governo na vida dos cidadãos e seu caráter contestatório, isto é, a possibilidade de todos os cidadãos criticarem no governo suas ações e opiniões consideradas erradas ou lesivas às liberdades públicas (PETTIT, 1997)6.

Em termos teóricos, a república é o regime político moderno por excelência (e não se pode aceitar as relativizações pós-modernas para desvalorizar esse fato). Mais que isso: há que se recuperar as filosofias da história que afirmavam que a república não é apenas mais um regime político, um regime “entre outros possíveis”, entre os quais está a monarquia: a república vem histórica e logicamente depois da monarquia e é melhor que ela. Da monarquia à república há um avanço, um progresso: os teóricos dos séculos XVIII e XIX, tanto europeus quanto estadunidenses (e brasileiros, convém notar), sabiam disso, pois viviam essa realidade. Urge recuperá-la.

III. MONARQUIA E REPÚBLICA NO BRASIL

Passemos agora à história do Brasil e às comemorações da transferência da família real portuguesa para a América.

Após a corte atravessar o Atlântico, lançaram-se as sementes do Estado moderno no Brasil, da autonomia econômica nacional e da vida artística e intelectual propriamente brasileira. Não há dúvida de que a passagem da condição de Reino Unido para Império Brasileiro em 1822, por ato de d. Pedro I e organização e inspiração de José Bonifácio, permitiram a transição pacífica de um estatuto para o outro, o que não pode nunca ser desvalorizado. Entretanto, embora d. Pedro fosse, naturalmente, pelo poder do Imperador e pelo absolutismo, José Bonifácio aceitou a solução monárquica como a possibilidade que o momento oferecia para a independência do país; da mesma forma, José Bonifácio previa uma ambiciosa agenda de modernização do Brasil, que incluía a criação de diversas escolas superiores, o fim da escravidão e a industrialização. As suas dificuldades políticas, em que se incluía um elemento autoritário, puseram um fim a essas propostas (cf. CARNEIRO, 1977; ANDRADA E SILVA, 2000).

A monarquia brasileira, criada como um “império” de orientação absolutista, logo se viu frente a inúmeros desafios, a começar pela rejeição dos princípios absolutistas e da falta de liberdades civis e políticas. O I Reinado em grande consistiu, assim, nos enfrentamentos dos grupos favoráveis e contrários ao poder imperial – bem entendido, poder absoluto – e encerrou-se quando Pedro I cansou-se desses embates e renunciou ao poder7 em benefício de seu filho, abrindo caminho para o interregno regencial (curiosamente, uma experiência republicana de facto). O período da Regência caracterizou-se igualmente pela instabilidade política em torno do nome do regente e das regras que regeriam a regência, agravada pelas disputas entre o poder central e os poderes locais (ou seja, em torno do federalismo). As turbulências cessaram quando a regência trina tornou-se una, com a afirmação do poder central sobre o local, por obra do padre Feijó.

Com o golpe político da maioridade, Pedro II assumiu a coroa, mas incapaz de reinar, devido à sua pouca idade (15 anos). Pouco mais que uma criança, por um bom tempo ele foi um joguete nas mãos de seus áulicos. O II Reinado também se caracterizou pelas rebeliões provinciais, por uma violenta e demorada guerra no Cone Sul8 e pelo imobilismo político geral. Alguns historiadores destacaram a sabedoria política de Pedro II, em particular a respeito de seu “liberalismo”, de seu “amor pela ciência e pelas artes”, do tratamento das questões sociais e da manutenção da unidade nacional. Pois bem: enquanto é verdade que ele tolerava críticas a si e a seu regime e que soube manter a integridade nacional, não deixa de ser verdade que:

  • a tolerância às críticas era uma generosidade pessoal do imperador, não um traço constitutivo do regime;

  • as questões sociais não foram de modo algum resolvidas, mas adiadas para sempre mais tarde – o maior e mais importante exemplo é o da abolição da escravatura – ;

  • nem o regime nem o Imperador nunca estimularam nem a indústria (pense-se no seu desdém pelas iniciativas do Visconde de Mauá), nem o comércio, nem a agricultura nacionais;

  • nem o regime nem o Imperador cuidaram da educação nacional, nem criaram um sistema de escolas primárias, secundárias ou superiores no Brasil, mas apenas algumas poucas (escolas de Direito de São Paulo e do Recife, da escola de Medicina do Rio de Janeiro e das escolas de minas em Minas Gerais), ainda por cima restritas às elites aristocráticas;

  • mantinha, ainda que precariamente e de modo algo caricato, a divisão social própria ao Ancien Regime medieval, separando a nobreza, o clero e o “povo” (sem dúvida: era a esse sistema arcaico que ele devia seu poder);

  • mantinha os privilégios pedagógicos e de consciência da Igreja Católica, instituído o catolicismo como religião oficial do Estado;

  • era indiferente ao mérito dos servidores públicos, ao mesmo tempo que favorecia a corrupção e o clientelismo (como no caso emblemático do fundador da República, Benjamin Constant, que obteve sucessivos primeiros lugares em diversos concursos públicos para professor mas foi preterido em todos eles em benefício dos clientes da nobreza; a título de compensação, Pedro II ofereceu um emprego clientelístico para Benjamin Constant, que este rejeitou como degradante para a moral pública e humilhante pessoalmente).

Em outras palavras, a sabedoria de Pedro II resumiu-se tão-somente à manutenção da unidade nacional, tão bem analisada por José Murilo de Carvalho (2003).

O leitor talvez se pergunte, a esta altura do artigo, qual o objetivo em fazer esse balanço político e social do Império Brasileiro. A resposta é muito simples: porque os defensores da monarquia no Brasil idealizam esse período como tendo sido de avanço político, social e cultural, tendo à frente um príncipe ilustrado e liberal. Esses mesmos monarquistas habituaram-se a criticar o regime republicano iniciado em 1889 e todas as suas fases subseqüentes (1930, 1946, 1964, 1985) tendo por base essa visão idealizada – esquecendo, ignorando ou desprezando os fatos de que, por um lado, o Império não foi em momento algum um período calmo e tranqüilo nem de progresso social e de que, por outro lado, a república herdou todos os problemas do Império, que a solução desses problemas estiveram nos programas de todos os republicanos e que o Brasil tornou-se um país moderno apenas na e com a república, enfrentando todos os problemas e desafios tanto de sua modernização quanto de sua época.

Voltamos agora ao início do texto. As comemorações do bicentenário da transferência da família real portuguesa para o Brasil têm sido utilizadas por alguns grupos e movimentos sociais para denegrir a república (tanto no que se refere ao seu conceito quanto no que se refere à história republicana do Brasil) e exaltar a monarquia, chegando mesmo a propor uma reacionária9, ultra-romântica e anacrônica volta do regime monarquista ao país como solução para os problemas nacionais. Ora, como se viu, tanto o conceito de república é superior ao de monarquia quanto a monarquia no Brasil não teve uma boa história. Os defensores desse projeto alucinado são os descendentes de Pedro II, que afirmam ser os “herdeiros da casa real brasileira” – como se, na inverossímil hipótese de o Brasil retornar 120 anos em sua história, devessem ser eles os escolhidos para reinar no país10.

Uma outra manifestação de apologia à monarquia e de desrespeito às instituições republicanas foi a reportagem, com chamada de capa, que a revista Veja publicou em sua edição n. 2.034, precisamente na véspera da comemoração da Proclamação da República, em 14 de novembro de 2007 (Gryzinski, 2007). Há bem mais de uma década essa revista lidera uma campanha de oposição jornalística à esquerda em geral e ao Partido dos Trabalhadores em particular – campanha que se acentuou a partir de 2002, com a eleição e, depois, a reeleição como Presidente da República de Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, a capa apresentava uma montagem de Pedro II portando a faixa presidencial, símbolo do Presidente da República, com uma chamada no sentido que o segundo imperador do Brasil fora um governante superior a qualquer um dos presidentes da República e mais republicano que eles. A reportagem, escrita por Vânia Gryzinski, era cheia de lugares-comuns e afirmações inócuas a respeito de Pedro II, mais interessantes como anedotas e curiosidades pessoais. Sua importância, todavia, consistia no ataque indireto ao Presidente Lula, a partir da afirmação disparatada e inverídica de Pedro II teria sido mais republicano que os republicanos: com essa afirmação, a revista procurava sugerir que Lula é um mal Presidente e que descura do caráter republicano de seu governo. Todavia, enquanto o alvo procurado era indireto e consistia no Presidente Lula, o atingido direta e claramente foi a própria República, que teve toda a sua história desqualificada com um único golpe de caneta. Como vimos, nem Pedro II nem a monarquia tiveram outros méritos além da fundação eventual de algumas escolas superiores, da manutenção da unidade nacional, de uma guerra violentíssima no Cone Sul, na manutenção ativa da escravidão e na manutenção ativa do atraso e do subdesenvolvimento brasileiro; como a monarquia é um governo pessoal, a responsabilidade do Imperador por todas essas falhas foi pessoal: ele foi o culpado por elas.

A República no Brasil não foi e não é um regime perfeito; mantêm-se vários problemas sociais, políticos e econômicos e sua história não é propriamente um exemplo de estabilidade: mas isso está longe de igualá-la ou torná-la inferior ao Império. Na verdade, é possível indicarmos uma série de presidentes da República que foram superiores a Pedro II: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Afonso Pena, Juscelino Kubitschek, o segundo Getúlio Vargas (1951-1954)... sob certos aspectos, poderíamos incluir aí também José Sarney, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

O alvo da revista Veja era o Presidente Lula, mas o atingido foi a República. Talvez o periódico tenha querido causar impacto e, quem sabe, provocar alguma reflexão a partir do choque que uma comparação inusitada – mas inverídica do ponto de vista histórico e enganosa em termos conceituais – produz.

Essas são interpretações generosas que concedem o benefício da dúvida à revista – uma revista que, diga-se de passagem, não costuma ser nem generosa nem conceder esse tipo de benefício. Ao contrário: as matérias relativas às chamadas de capa da revista são tudo, menos sutis; suas afirmações são taxativas e devem ser entendidas literalmente. Dessa forma, o que a revista Veja acintosamente fez foi homenagear um monarca na Semana da República; valorizou a monarquia, desqualificou ou desprezou a experiência histórica republicana do Brasil e ignorou as particularidades conceituais e políticas da República. Em suma, estou chocado: não sabia que Veja é monarquista!

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IV. SAUDADES ROMÂNTICAS DA MONARQUIA

A monarquia é objeto de sentimentos nostálgicos, devidos por um lado à mistificação da realidade histórica e, por outro lado, devido ao apelo romântico que a idéia de “rei” traz ao imaginário popular. Como já comentamos as distorções da história nacional, é importante comentar o efeito da palavra “rei” no imaginário popular.

IV.1. Das ficções à realidade

Em primeiro lugar, ao falarmos em rei pensamos em épocas áureas da história da humanidade, com cavaleiros lutando em batalhas longínquas em nome de ideais elevados, por vezes a fé católica, por vezes o amor de uma donzela, por vezes a integridade nacional. Além disso, o título nobiliárquico de “rei” (e todos os demais: príncipe, duque, marquês, barão, conde, visconde, cavalheiro) indica uma posição social diferenciada, superior, por direito de sangue. Todo esse imaginário integra as narrativas dos contos de fada, dos livros e filmes de capa-e-espada; por definição, são a-históricos, no sentido de que só se pode pensar neles se se abstrair da realidade presente, qualquer que ela seja. Mas assim como essas histórias são válidas como ficcionais, também o são as histórias de terror, de detetives, as histórias fantásticas, as narrativas mitológicas e assim por diante. Assim, a valorização da monarquia – ou, sendo mais precisos: dos títulos nobiliárquicos – corresponde a um traço característico das obras ficcionais, isto é, sua a-historicidade.

Esse caráter a-histórico torna-se anti-histórico e simplesmente confuso quando se mistura a ficção do conto de fadas ou da história de cavalaria com as realidades social e política atuais. O romantismo é o mesmo, mas a aplicação de valores a esferas radicalmente distintas é de um pernicioso anacronismo: o seu melhor exemplo são as revistas que tratam das “personalidades” e as “colunas sociais”, em que se esmiúçam as futilidades do dia-a-dia das pessoas que vivem sob holofotes. Esse anacronismo é pernicioso, mas tem uma origem romântica – na medida em que idealiza para as camadas baixas da sociedade a existência das camadas “superiores” da sociedade (superiores em termos de renda e de poder político e “superiores” como moralmente melhores): esse romantismo é sua desculpa e sua justificativa.

Uma forma de anacronismo anti-histórico que não possui desculpa alguma e que, por isso mesmo, é mais pernicioso, é o hábito que jornalistas e redatores de revistas têm de usar os títulos nobiliárquicos para referirem-se aos descendentes da antiga nobreza, em particular dos de Pedro II. Lê-se em jornais de “centro” e de “direita” referências a “sua alteza, o Príncipe fulano de tal”, ou a “sua alteza, a herdeira do trono imperial do Brasil, beltrana de tal” – e por aí vai. Os jornais e revistas periódicos têm a pretensão de serem informativos; ao usarem esses títulos supostamente descrevem a realidade. O problema é que essa não é a realidade: como o Brasil é uma república, não há títulos nobiliárquicos, nem eles implicam nenhum direito social, político ou civil como implicavam até a madrugada de 15 de novembro de 1889. Os jornalistas e editorialistas que adotam essas expressões rendem-se abjetamente ao romantismo da Idade Média, negando na prática o conceito de cidadania – exclusivamente republicano – da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Nesse caso, poder-se-ia objetar que os títulos nobiliárquicos são “apenas palavras”. O problema aqui é que as palavras exprimem idéias e conceitos e, mais importante, como argumentaram com propriedade Augusto Comte e os filósofos analíticos, as palavras que utilizamos influenciam em nossa percepção da realidade, sendo parcialmente responsáveis pela “constituição do real”. Dessa forma, os jornalistas e editorialistas que usam os títulos nobiliárquicos, com um único golpe, negam os conceitos correlatos de república e de cidadania e “constroem” uma realidade monarquista no Brasil. Se lembrarmos o chavão segundo o qual a imprensa é o “quarto poder”, perceberemos que essas alterações semânticas não são pouca coisa.

IV.2. Superioridade moral dos “valores nobiliárquicos”

A segunda forma que legitima a palavra “rei” no imaginário popular é a que afirma que a monarquia, ou melhor, a nobreza é possuidora de valores superiores aos da burguesia; por extensão, afirma-se que o feudalismo é superior ao que se chama capitalismo. Embora alguns teóricos revelem ou sugiram essa percepção – o caso paradigmático é, talvez, o do francês oitocentista Alexis de Tocqueville –, as telas do cinema apresentaram nos últimos anos uma versão acabada desse tipo de crítica, no filme O último samurai (The Last Samurai), protagonizado pelo astro Tom Cruise. A história do filme é a seguinte: um coronel do exército estadunidense é convicto da correção dos valores militares de honra e abnegação, mas após presenciar e perpetrar horrores durante a Guerra da Secessão, desilude-se com sua carreira e entrega-se a exibições circenses de suas habilidades bélicas e marciais. Eis que surge a oportunidade de treinar um novo e moderno exército imperial para o Japão. Quem organiza esse novo exército – cuja lógica baseia-se na racionalidade, na eficiência, na hierarquia – são capitalistas, que desejam industrializar o país, explorar as massas camponesas proletarizadas e fazer a guerra no exterior para aumentar seus lucros, a massa de trabalhadores explorados e os mercados consumidores. É claro que esses capitalistas japoneses são como quaisquer outros capitalistas: sedentos de lucro, vis e sem honra, embora polidos, bem trajados, gordos e risonhos. Opõem-se à modernidade sem honra e capitalista os samurais remanescentes do Japão feudal, que lutam pela honra e pelo estilo de vida japonês tradicional. (O filme narra a lenta recuperação do sentido de honra pelo coronel estadunidense e sua adesão aos “verdadeiros” valores, que são os da nobreza japonesa. O filme termina de maneira trágica, com o massacre de todos os samurais – exceto um (daí o título da obra), evidentemente o estadunidense – e a vitória militar, política e social da burguesia.)

Esse tipo de raciocínio é mais virulento contra o que se chama de capitalismo que contra a república em si, mas a facilidade (e a banalidade) das críticas ao capitalismo respingam na república. Vários autores dos séculos XVIII e XIX indicaram que as sociedades antigas (Grécia, Roma, Idade Média) eram sociedades de guerreiros, que viviam (e morriam) pela honra; as sociedades modernas buscam a paz e o conforto material, em civilizações que se baseiam na produção industrial secundada pelo conhecimento científico: essas são as opiniões que vão de Robert Fergusson a Augusto Comte, Tocqueville e Durkheim, passando pelo barão de Montesquieu. Ora, não é difícil passar das “sociedades industriais” para o “capitalismo”, nem do “conforto pacífico” para a vida desalmada, vil e sem honra. A crítica ao capitalismo encontra aí o elogio à e a saudade da Idade Média11: nada mais enganoso, nada mais perigoso.

Enganoso porque, mais uma vez, há uma idealização da Idade Média, sem que haja a percepção de que se trata de algo idealizado e não da realidade histórica. O que se vê no filme e nesse gênero de críticas é a afirmação, explícita ou sugerida, de que a vida pela honra é mais harmoniosa e completa que a vida que não seja pela honra; além disso, afirma-se ou sugere-se que as “sociedades da honra” são mais justas e estáveis que as sociedades do conforto e da indústria. Ora, como é possível que uma vida pautada pela guerra seja propriamente harmoniosa, completa, justa ou estável? Com a possível exceção de sua completude por assim dizer vital, as sociedades guerreiras não costumam ser nem harmoniosas, nem justas, nem estáveis, pelo simples motivo de que estão em constante movimento contra outras sociedades, de caracteres semelhantes ou não. Embora as virtudes cavalheirescas de moderação e autocontrole sejam possíveis, igualmente é possível – na verdade, é mais possível ainda – que vijam as virtudes guerreiras da força e da beligerância. O cavalheirismo, diga-se de passagem, só se torna um valor difundido se ocorre a ação temperante de um poder Espiritual, que subordina a violência guerreira a objetivos outros que não a conquista e a morte de outros e a honra de grupos particulares.

Se pensarmos na constituição da Idade Média européia, essas sociedades da honra constituíram-se a partir do momento em que uma civilização que começou da honra mas que passou a do conforto desagregou-se e deixou de existir: em outras palavras, a honra medieval só foi possível porque os grupos “bárbaros” ajudaram a demolir o Império romano – e, mesmo assim, renderam homenagens à civilização romana.

Por outro lado, a sociedade da honra medieval constituiu-se após longos séculos de desordem civil e moral na Idade Média. Até que se estabilizassem, essas sociedades da honra não seriam eventualmente tomadas como exemplares, como dignas de respeito, admiração e imitação, mas, ao contrário, como exemplos a serem repudiados, rejeitados, evitados e, se possível, destruídos (pela sua morte, pela sua conversão ou pela sua incorporação aos hábitos “civilizados”). Se se concedem, ainda que sub-repticiamente, generosidade secular às sociedades da honra, por que não se concede a mesma generosidade às sociedades do conforto? Por que umas puderam ter séculos de selvageria antes de tornarem-se modelares e as outras não gozam da mesma indulgência?

V. COMENTÁRIOS FINAIS

Como vimos ao longo deste texto, podemos fazer uma série de considerações a respeito do bicentenário da transferência da família real portuguesa para o Brasil. A comemoração em si não implica negação da república ou afirmação dos valores sociais e políticos próprios seja à monarquia, seja à Idade Média. Todavia, não apenas é fácil e simples deslizar da comemoração para as críticas e os elogios anti-republicanos, como devemos aproveitar a efeméride para, além de pensarmos na importância histórica que teve o evento, lembrarmo-nos, refletirmos e reafirmarmos o conceito de república no Brasil. Caso contrário, essa comemoração será destituída de sentido ou poderá mesmo ser daninha para a república, isto é, para a cidadania.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SANDEL, M. 1982. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: University of Cambridge.


1 Gostaria de agradecer ao amigo Tiago Losso pelo incentivo na redação deste artigo.

2 Essa continuidade entre o “antigo regime”, colonial ou de reino unido, e o “novo regime”, de país independente, integra uma das mais ásperas polêmicas que se tem visto na historiografia brasileira. De um lado estão os historiadores das regiões Norte-Nordeste favoráveis à descontinuidade ou aos possíveis benefícios que a descontinuidade política traria então ao Brasil, a começar pela república e pelo pluralismo político e “ideológico”: o pernambucano Evaldo Cabral de Mello é o melhor representante dessa corrente. Por outro lado, estão autores do Sudeste e do Sul, mais próximos ao Rio de Janeiro e que valorizam a unidade nacional e o lançamento dos fundamentos do Estado nacional brasileiro: o mais famoso autor dessa corrente é o mineiro radicado no Rio de Janeiro, José Murilo de Carvalho (cf. COLOMBO, 2007a; 2007b).

3 A língua inglesa permite um interessante esclarecimento do estatuto jurídico dos súditos. A palavra “subject” significa ao mesmo tempo “súdito” e “sujeito” (no sentido de “subordinado”), revelando uma coincidência não fortuita entre as idéias de “ser súdito” e “estar sujeito” à vontade real.

4 A coincidência de datas é reveladora de diferenças substantivas: ao mesmo tempo que Roma iniciava sua república, Atenas vivia o esplendor de sua democracia. Mas, face ao seu valor contemporâneo, convém não idealizarmos favoravelmente demais a democracia ateniense em detrimento da república romana: afinal de contas, Atenas, como a Grécia antiga de modo geral, era uma cidade profundamente xenófoba e com preconceitos de sangue (“étnicos”, poderíamos dizer), em que participavam da vida política apenas os homens, excluindo aí os estrangeiros, as mulheres e, claro, a gigantesca massa de escravos (considerados bárbaros e inumanos). Essas características jamais mudaram ao longo da história grega (e, em particular, ateniense). Roma, ao contrário, ampliou gradativamente a franquia política, incluindo os cidadãos das classes baixas, os estrangeiros e os escravos libertos; além disso, enquanto de Atenas não se houve falar das mulheres dos políticos, a respeito de Roma são numerosas as referências a filhas, esposas, mães etc. dos políticos que tinham importância política (ainda que a titularidade política fosse exclusiva do gênero masculino). Finalmente: o Estado de Direito e o due rule of law, embora não existissem com esses nomes nem fossem teorizados como se faz hoje em dia, foram invenções romanas, a que se contrapõe a onipotente, ilimitada e “desvairada” democracia ateniense (CROUZET, 1995, cap. 5; NEMO, 2005, cap. 2).

5 A bem do rigor histórico, houve repúblicas antes das provenientes da “época das revoluções”: pensamos nas repúblicas italianas, elogiadas por Maquiavel. Essas experiências deram origem, nos dias atuais, a uma tradição teórica que enfatiza a participação virtuosa dos cidadãos na vida política: é o chamado “humanismo cívico” (MAQUIAVEL, 2005), a que se associa a teorização das virtudes políticas do apego às comunidades locais, o “comunitarismo” (cf. SANDEL, 1982). São tradições sérias e respeitáveis, que, sem negar os postulados teóricos que apresentamos aqui, também não concorrem exatamente para apoiá-los – daí não os tratarmos no corpo do texto.

6 A obra de Pettit, a despeito de seus grandes méritos na teorização da política, padece de certo formalismo, ao aceitar o sentido fraco do conceito de república para poder aplicar a sua própria definição aos mais variados países. Assim, para ele, não existe um “regime republicano”, mas apenas “liberdades e práticas republicanas” (cf. PETTIT, 2007).

7 Foi uma ironia histórica o fato de que Pedro I renunciou ao poder absoluto no Brasil para disputar o poder em Portugal (como Pedro IV), não em nome do absolutismo, mas contra ele e seu irmão Miguel: de perseguidor dos liberais brasileiros, Pedro de Alcântara passou a campeão dos liberais lusos.

8 Não deixa de ser sintomático que essa guerra criou um ambiente político e intelectual cujos resultados incluíram a criação do Partido Republicano e na proclamação da República, décadas depois.

9 Talvez alguns considerem o adjetivo “reacionário” um exagero, mas não é. À parte o fato de que o retorno à monarquia seria, em si, reacionário, alguns dos descendentes de Pedro II são porta-vozes de uma das alas mais conservadoras e antimodernas da medieval Igreja Católica – a organização chamada Tradição, Família e Propriedade, a famigerada TFP.

10 Essa idéia deriva-se do conceito de “legitimidade”. Mas, de fato, por que essa família e não outra qualquer deveria assumir esse trono? Afirmar que eles constituiriam uma dinastia diz pouco, na medida em que as dinastias reais e imperiais, ao longo da história, sucederam-se ao sabor das conjunturas e dos momentos. Mesmo na pátria do conceito de “legitimidade real”, por exemplo, isso ocorreu: na França de 1871 havia nada menos que três “casas reais” disputando o trono em um eventual retorno à monarquia. A subordinação da legitimidade real aos sabores dos momentos ocorre da mesmíssima forma em monarquias atualmente existentes e consideradas “sólidas”, como a inglesa, a espanhola, a monegasca e a holandesa.

11 A despeito de suas críticas ao capitalismo, Marx era favorável à modernidade e não fez coro aos elogios saudosistas da Idade Média, característicos de algumas formas de socialismo, como se pode ver em O manifesto do Partido Comunista (MARX & ENGELS, s/d).