Mostrando postagens com marcador catolicismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador catolicismo. Mostrar todas as postagens

13 novembro 2017

Gazeta do Povo: "Pós-verdades liberais contra o Positivismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo de 11.11.2017. O original pode ser lido aqui.


*   *   *

Pós-verdades liberais contra o Positivismo

Em tempos de “pós-verdade”, nada mais difícil de fazer que decidir o que é ou não verdade ou real. Isso se torna mais grave quando o autor de um texto afirma-se “historiador”, pois então a “pós-verdade” ganha ares de respeitabilidade, mesmo não tendo base factual. Nesse sentido, o artigo “Raízes autoritárias”, de Ney Carvalho, publicado na edição de 22 de outubro no jornal O Globo, é um monumento à pós-verdade.
A tradição liberal brasileira é extremamente particular. Ela abrange desde defensores do abolicionismo (Joaquim Nabuco) quanto de defensores da escravidão (José de Alencar, o romancista de O guarani), assim como figuras ambíguas como o legalista Rui Barbosa (que era e não era ateu, que queimou os registros da escravidão, que promoveu a primeira crise de hiperinflação do país e que assumia para si obras e ações de outros). O liberalismo brasileiro também abrange defensores do laissez-faire (Tavares Bastos, Eugênio Gudin), ex-comunistas (Carlos Lacerda) e ex-integralistas (Miguel Reale), passando por apoiadores do regime militar (Roberto Campos, Antônio Paim) e por intelectuais de qualidade como José Guilherme Merquior. Recentemente, entre as hostes liberais brasileiras podemos encontrar figuras tão – como dizer? – curiosas quanto Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre e o seu guru, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Assim, é como integrante dessa particularíssima tradição liberal brasileira que Ney Carvalho afirma em seu artigo que o autoritarismo nacional tem suas origens no Positivismo, isto é, na doutrina fundada por Augusto Comte e nas práticas dela oriundas. Para isso, o autor adota a conhecida prática de citar palavras e expressões sem os explicar adequadamente e de abusar de adjetivos e juízos de valor. Como o espaço aqui disponível é curto, vamos diretamente aos pontos.
Atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro
O autor afirma que o Positivismo por definição é autoritário, e que desde o início de sua difusão no Brasil, em meados do século 19, ele estimula o golpismo, especialmente militar. Exemplos disso seriam a ação do professor de Matemática, o coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, na Escola Militar; a Proclamação da República, em 1889; o projeto de constituição “ditatorial” da Igreja Positivista do Brasil e, por fim, a ação dos castilhistas no Rio Grande do Sul. Tudo isso o autor afirma, de maneira gratuita, tratar-se de antecedentes intelectuais e institucionais do golpismo sugerido recentemente pelo general Antônio Hamilton Mourão.
Por que essas afirmações são gratuitas? Porque são meras afirmações, sem quaisquer bases factuais. Aliás, pior que isso: são afirmações contrárias à verdade dos acontecimentos – de tal sorte que o conjunto dos comentários do “historiador” Ney Carvalho enquadra-se perfeitamente nas “desinformações” ou nas atuais “pós-verdades”. A isso se deve acrescentar o fato de que, embora tenha tido enorme importância social, política e intelectual entre o fim do Império e a Primeira República (ou seja, entre 1870 e 1930), atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro: nesses termos, basta assumir-se um ar doutoral e fazer afirmações bombásticas para que se crie a impressão de que é sabedor das coisas e possa-se dizer o que se quiser sobre temas menos conhecidos nos dias atuais, como é o caso do Positivismo.
Para perceber os erros e os problemas do que Ney Carvalho afirma, basta ler os artigos da Igreja Positivista do Brasil (situada no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória) ou, caso leia-se em francês, as obras de Augusto Comte. Como, de qualquer maneira, esses documentos são um pouco difíceis de achar atualmente, é possível procurar na internet em repositórios eletrônicos de textos, como o portal Archive.org ou a página do Senado Federal. Uma outra possibilidade é consultar o livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos, de minha autoria, em que apresento as características desses documentos e examino em profundidade diversos de seus argumentos.
De qualquer maneira, as publicações da Igreja Positivista e as obras de Augusto Comte são todas muito claras no sentido de que a ação política deve ser sempre pacífica, com amplas liberdades de pensamento e de expressão claramente garantidas e com as possibilidades permanentes de crítica pública ao governo e de sugestão às propostas governamentais, da parte de todos os cidadãos. Isso, aliás, é o que se chama atualmente de “república”, “democracia” e “Estado de Direito”. Os gaúchos seguidores de Júlio de Castilhos atuavam nesse mesmo sentido.
Embora afirme-se historiador, Ney Carvalho deixa de lado importantes pesquisas historiográficas que examinam precisamente as relações entre os positivistas e as escolas militares, em particular no caso de Benjamin Constant. O mineiro José Murilo de Carvalho há muito tempo indicou, no célebre artigo “O poder desestabilizador”, que os ensinamentos de Benjamin Constant para a juventude militar iam na direção da “civilização”, isto é, de tornar cada vez mais civil e menos militar o comportamento de seus alunos. Esse aspecto é central, pois foi justamente em reação explícita à orientação de Benjamin Constant que se constituíram os “jovens turcos” brasileiros. Esses militares, integrantes de uma geração posterior à formada por Benjamin Constant, a partir da década de 1910 procuraram adotar as doutrinas militares da França e da Alemanha e, com isso, mudaram os rumos do ensino militar, no sentido da “profissionalização” castrense. Essa “profissionalização” era politicamente ambígua: propunha que os militares deveriam ser apenas militares, mas ao mesmo tempo arrogava-se o papel institucional de fiscal do Estado, resultando em um ativismo político: o maior exemplo disso foi o general Góes Monteiro, inimigo declarado do Positivismo e da orientação de Benjamin Constant, além de justamente ter sido o articulador militar da Revolução de 1930. Aliás, Góes Monteiro também foi o inspirador de outro militar golpista, o general Olympio Mourão Filho, o realizador do golpe de 1964 – este, sim, o predecessor do atual general Antônio Hamilton Mourão.
A referência à proposta de constituição “ditatorial” exige comentários específicos. Como há muito tempo lembrava o social-liberal italiano Norberto Bobbio, ao contrário do que ocorre nos dias atuais, em que após a Revolução Russa e o nazismo a “ditadura” é sinônima de autoritarismo, no século 19 essa palavra era entendida com um sentido positivo, de modo geral como governo ativo. Dessa forma, seguindo em linhas gerais os hábitos linguísticos de sua época, Augusto Comte – o fundador do Positivismo, da sociologia e da história das ciências – adotava a palavra ditadura, com a particularidade de que a definia como sendo qualquer governo: nesses termos, Comte distingue ditaduras tirânicas, despóticas, retrógradas, conservadoras, assim como ditaduras liberais, progressistas, positivas. Uma longa comprovação disso está disponível na minha tese de doutorado, intitulada O momento comtiano, defendida em 2010.
A Igreja Positivista do Brasil e, de modo geral, os positivistas brasileiros, ao adotarem o linguajar proposto por Comte, adotavam também essas referências filosóficas; a constituição “ditatorial” por eles proposta consistia não em um regime autoritário, mas, bem ao contrário, em um regime de amplas liberdades, em que o governo limitar-se-ia a manter a ordem pública, consagrando a mais estrita separação entre igreja e Estado, sem se intrometer em questões morais, religiosas e “ideológicas”. Atribuir a esse projeto o caráter de autoritário com base em um problema semântico é, na melhor das hipóteses, desconhecer a história das ideias políticas; na pior das hipóteses, é profunda má-fé.
Mas, por outro lado, ao atribuir aos positivistas o autoritarismo nacional, Ney Carvalho obscurece o efetivo papel que outros grupos sociais, políticos e intelectuais desempenharam de fato para a constituição de uma tradição e de mentalidades liberticidas no país. Quais seriam esses grupos? Como é fácil de perceber a partir da década de 1930, os católicos, os marxistas e, também, os liberais. Durante toda a Primeira República, a Igreja Católica desejava retomar os privilégios de que gozava durante o Império; após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantiveram um regime de apoio mútuo que lembrava muito a estreita colaboração mantida, ao mesmo tempo, entre Mussolini e Pio XI: isso apenas se alterou (mas não muito) após 1966. Sobre o papel liberticida desempenhado pelos marxistas, não é preciso discorrer muito: basta pensar no golpismo estimulado por Luís Carlos Prestes, com o apoio de sua primeira esposa, a agente soviética de origem alemã Olga Benário Prestes. Por fim, embora tenha havido poucos liberais ao longo da Era Vargas, o fato é que houve muitos integralistas, muitos dos quais, após 1946, conveniente e rapidamente se transformaram em liberais.
Em suma, ao difundir “pós-verdades”, o liberal Ney Carvalho atribui ao Positivismo as origens e a estrutura da mentalidade autoritária brasileira; com isso, ele ao mesmo tempo contribui para manter em silêncio uma poderosa filosofia social de liberdade e para desviar a atenção das fontes reais do autoritarismo brasileiro. Talvez ele faça isso para tentar justificar a existência de alguns integrantes recentes, mas estranhos, do liberalismo nacional, como é Jair Bolsonaro: entretanto, como observamos, nesse caso, sua origem liga-se aos generais Mourão (Filho) e Góes Monteiro, não ao Positivismo e a Benjamin Constant.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

14 maio 2017

Ricardo Alves: "Fátima e a transformação do catolicismo português"

Reproduzo abaixo um texto pequeno mas extremamente informativo, escrito pelo republicano português Ricardo Alves, a propósito das supostas "aparições de Fátima", que completam um século neste ano. Embora escrito em 2008, a efeméride demonstra que o artigo abaixo é, infelizmente, atualíssimo.

Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.

O original pode ser lido aqui.

*   *   *

Fátima e a transformação do catolicismo português


As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.
Fátima I: a manifestação anti-republicana
No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.
No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].
Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.
Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.
Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.
Fátima II: o santuário do Estado Novo
Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».
Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.
O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».
Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia
Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.
Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.
Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.
Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.[9]
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 –  Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 – Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Ricardo Alves
Setembro de 2008

[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.
[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.
[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.
[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).
[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.
[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.
[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).
[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).

02 novembro 2015

Concepção positiva do Dia dos Mortos

Dia dos mortos, 2 de novembro


Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

Origem histórica da data

No dia 2 de novembro comemora-se o Dia de Finados. Essa data tem uma origem católica que recua no tempo até o século II, quando os cristãos primitivos rezavam pelos mortos; no século V a Igreja solicitava que um dia do ano fosse dedicado àqueles que não era possível identificar. Essa prática atravessou os séculos e, no século XIII, definiu-se o dia 2 de novembro para essa homenagem, logo após o Dia de Todos os Santos, que é em 1° de novembro.

A bem da verdade, as orações cristãs no dia 2 de novembro não consistiam em "homenagens", mas em intercessões em favor das "almas" dos mortos. Essas intercessões, claro está, eram bem intencionadas mas eram, ao mesmo tempo, mais ou menos inúteis, considerando as doutrinas da predestinação e onisciência divina. O culto católico aos santos, existente desde o início do cristianismo, assim como o culto à Virgem Maria, que surgiu ao longo da Idade Média, são duas formas de contornar a impossibilidade prévia de remissão das almas dos mortos.


Concepção positiva do dia dos mortos

A Sociologia e a Moral Positiva indicam que, apesar de as "almas" como emanações etéreas não existam, o respeito aos mortos é um ato profundamente sociológico e altruísta. É sociológico porque as sociedades que existem atualmente devem sua existência, seus valores, seus recursos tecnológicos e materiais, suas idéias a todos aqueles que vieram antes. Aliás, essa é uma outra forma de dizer que o ser humano é um ser histórico.

Por outro lado, a homenagem aos antepassados e, de modo mais amplo, a todos os seres humanos convergentes que nos antecederam é uma forma de reconhecimento de nossas enormes e crescentes dívidas para com eles; é uma forma de estimularmos a veneração e a humildade, de reconhecermos nossa fraqueza atual face ao conjunto do passado. Em suma, essa homenagem é um poderoso instrumento de desenvolvimento do altruísmo e de compressão do egoísmo.

Assim, embora as motivações teológicas de respeito aos mortos sejam pura e simplesmente equivocadas, o fato é que o ato em si de homenagear é correto e salutar. O duplo aspecto da homenagem aos mortos – sociológico e moral – foi resumido pelo profundo gênio de Augusto Comte na seguinte máxima:

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos.


Essa frase, não por acaso, está no portão da Igreja Positivista do Brasil, conforme pode-se ver na imagem abaixo.

Fonte: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2015/11/dia-dos-mortos-2-de-novembro-cartaz.html.

Governo subjetivo dos mortos, não objetivo

Não se deve encarar essa máxima como sendo "macabra". Algo é macabro quando faz o elogio da morte e do morrer, em detrimento da vida: como vimos, a frase de Augusto Comte celebra justamente a vida. Da mesma forma, convém ressaltar: o "governo" que os mortos realizam sobre os vivos é um governo subjetivo, não objetivo: isso quer dizer "apenas" que a sociedade de hoje é o resultado da ação das dezenas, centenas, milhares de gerações que nos precederam e que, nesse sentido, somos hoje o resultado da ação dos que vieram antes de nós[1]. Dessa forma, concretamente, o que ocorre é que, com base nos materiais morais, tecnológicos, teóricos provenientes do passado (legados pelos mortos), os vivos dão continuidade à vida coletiva e individual e governam seus assuntos.

Dia dos Mortos no Positivismo

Nos dois calendários positivistas, de caráter sociológico – o calendário abstrato e o calendário concreto –, o último dia do ano é dedicado à comemoração geral dos mortos, de acordo com os parâmetros indicados acima. No calendário júlio-gregoriano, esse dia corresponde a 31 de dezembro e, nos anos bissextos, a 30 de dezembro.

Dia de Finados como proposta positivista

Como vimos, há uma coincidência parcial entre o Dia de Finados católico e o Dia Geral dos Mortos positivista. No caso brasileiro, como no final do século XIX a maioria da população brasileira era católica, a Igreja Positivista do Brasil resolveu aproveitar essa coincidência e buscar a positivização de um hábito já difundido na população: por esse motivo, propôs que o dia 2 de novembro fosse feriado nacional, de caráter cívico.






[1] A concepção objetiva do governo dos mortos é a apresentada pelas várias teologias, segundo as quais os mortos não estariam de fato mortos, mas estariam vivos em um outro "plano", "além" deste em que vivemos. Claro que essa concepção, apesar de pretender-se objetiva, baseia-se apenas na mais pura crença subjetiva; além disso, não apresenta prova nenhuma de que ocorre; por fim, em última análise, nos dias atuais, é uma forma de consagrar a irresponsabilidade individual e coletiva, ao atribuir ao "além" a condução efetiva dos assuntos humanos.

01 julho 2012

Notícia sobre o projeto de lei impondo a oração nas escolas de Apucarana


O vínculo original da matéria está aqui.

*   *   *


Vereadores de Apucarana decidem se crianças serão obrigadas a rezar o Pai-Nosso antes da aula

01/07/2012 - 16h19
Fernando César Oliveira
Repórter da Agência Brasil
Curitiba – A Câmara Municipal de Apucarana (PR) analisa na sessão desta segunda-feira (2), em segunda votação, projeto de lei que pretende instituir a oração diária do Pai-Nosso em todas as escolas da rede municipal. "Nos horários de entrada das primeiras aulas de cada período, nos estabelecimentos oficiais de ensino da rede municipal, deverá ser realizada a oração universal do Pai-Nosso", diz o projeto, aprovado em primeira votação, por unanimidade, no último dia 25.
Autor da proposta, o vereador José Airton Araújo (PR), que ainda trabalha como vendedor ambulante e é conhecido como Deco do Cachorro-Quente, argumenta que a ideia reduziria os índices de violência e os casos de agressões de alunos contra professores. "Com uma oração, a criança já entra na sala de aula mais tranquila", justificou o parlamentar, em entrevista à Agência Brasil.
Localizada na região norte do Paraná, a 370 quilômetros de Curitiba, Apucarana tem 11 vereadores. O regimento do Legislativo municipal prevê três votações para um projeto ser aprovado. A reportagem daAgência Brasil apurou que, desde 2009, há uma lei sobre o mesmo tema em vigor na cidade. A legislação, porém, parece ser desconhecida pela maioria da população da cidade e não vem sendo cumprida.
Trata-se da Lei Municipal 217/2009, que obriga os professores da rede municipal a ministrar, em sala de aula, a leitura diária de um trecho da Bíblia, de livre escolha, seguida de uma oração. A lei também é de autoria do vereador José Airton. "Essa lei só existe no papel", diz Clotilde Corrêa Gomes, professora de inglês e português em Apucarana. Outras pessoas ouvidas pela reportagem também revelaram que sequer tinham conhecimento acerca da lei em vigor.
Questionado, o vereador Deco negou que a norma esteja sendo ignorada. Em defesa de seu novo projeto, o parlamentar, que é membro da igreja Assembleia de Deus, elogia o conteúdo da oração especificada em sua proposta. "A oração do Pai-Nosso é universal, não é só dos católicos e evangélicos", alega José Airton. "Ela é perfeita, um testemunho de vida em cada palavra."
A professora é contra a medida. "Acho um absurdo. Ao instituir uma oração estritamente cristã, o projeto tira o direito das crianças que vêm de famílias de outras crenças, como umbanda, candomblé, budismo, espiritismo, ou ainda das que não têm religião alguma", diz Clotilde. "É uma intimidação, uma forma de bullying."
Mãe de dois alunos que frequentam escolas de ensino fundamental em Apucarana, Alexandra Deretti concorda com a professora. "Eu sou católica, mas sou contra uma imposição desse tipo."
Apucarana tem cerca de 120 mil habitantes e pouco mais de 58,5 mil estudantes matriculados em escolas públicas e particulares. O Núcleo Regional da Secretaria de Estado da Educação já se pronunciou dizendo que as escolas não devem adotar propostas que contrariem a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação.
"A gente até entende as boas intenções do vereador, mas não cabe ao Estado impor valor religioso algum. A proposta tende a aumentar a intolerância", avalia Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo da Universidade Federal do Paraná. "Também é questionável estabelecer relação de causalidade entre religião e violência, já que a quantidade de pessoas presas e que são adeptas de alguma religião não é pequena."
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos informou que pretende denunciar o caso ao Ministério Público do Paraná. No último mês de abril, o Tribunal de Justiça da Bahia derrubou uma lei similar aprovada na cidade de Ilhéus, com o argumento de que se tratava de proselitismo religioso, o que é inconstitucional.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou procedente um pedido de retirada dos crucifixos dos prédios da Justiça gaúcha. "A laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé", diz trecho da decisão. "O Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos."
Edição: Lana Cristina

30 junho 2012

Aumento da diversidade religiosa

Sobre o texto "Revolução quase silenciosa"


Reproduzo abaixo o texto de Helio Schwartzman, de 30 de junho de 2012. O vínculo original do texto pode ser encontrado aqui.

Concordamos de modo geral com as observações de H. Schwartz. De fato, a mudança demográfico-religiosa no Brasil é bastante ampla e séria e sua tendência é pela "evangelização" do país, em detrimento do catolicismo. 

Essa mudança é de grandes proporções e feita sem sangue; todavia, convém notar que, a despeito do aumento da diversidade religiosa, ela também - e principalmente, talvez - é acompanhada do aumento da intolerância em geral e do fanatismo religioso. Assim, apesar de até agora não ter havido conflitos mais sérios, a tendência é que o aumento do número de evangélicos no país piore as condições das liberdades civis, políticas e sociais - ou seja, que crie "revoluções barulhentas" e mesmo violentas.

*   *   *

30/06/2012 - 03h00

Revolução quase silenciosa

DE SÃO PAULO

Dados do IBGE mostram que a proporção de católicos no Brasil continuou caindo entre 2000 e 2010 e que, pela primeira vez, verificou-se também uma redução em seu número absoluto. Isso tudo era mais ou menos esperado. A questão que intriga os especialistas é saber se há ou não um fundo do poço, um piso abaixo do qual os católicos não despencam.
E uma análise dos números de 2010 sugere que não. No ainda inédito artigo acadêmico "A dinâmica das filiações religiosas no Brasil entre 2000 e 2010", os demógrafos José Eustáquio Diniz Alves, Luiz Felipe Walter Barros e Suzana Cavenaghi mostram que a população evangélica tem proporcionalmente mais mulheres e jovens, e menos idosos. Isso significa que apenas pelo efeito da inércia demográfica, ou seja, mesmo que não houvesse novas conversões, o rebanho evangélico já cresceria mais do que o católico.
Mais interessante ainda, o texto mostra que o colar da região metropolitana do Rio de Janeiro, excluída a capital, funciona como uma espécie de "eu sou você amanhã" para o Brasil. O que ocorre nessa área em termos de religião acaba se repetindo no país 20 ou 30 anos depois.
E, olhado para esse conurbado, verificamos que os católicos são só 39%, enquanto os evangélicos já chegam a 34%. Mantidas as tendências atuais, no Brasil, até 2030, os católicos serão menos de 50% e, até 2040, deverá haver empate entre as filiações de católicos e evangélicos. Detalhe importante: os católicos caem com mais rapidez onde é maior a pluralidade de denominações. Ou seja, diversidade gera diversidade.
Ao que tudo indica, o Brasil caminha para um feito relativamente raro na história das nações, que é o de mudar sua religião hegemônica. E deve fazê-lo sem derramamento de sangue ou autos de fé. Só não será uma revolução silenciosa, brincam os autores, porque evangélicos não costumam respeitar a lei do silêncio.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site da .

23 fevereiro 2012

Carvalho Romano - católicos desmerecendo o Positivismo


Dois autores de origem católica que adotam os mesmos argumentos a respeito das relações entre igreja e Estado e – o que é mais curioso – a respeito das relações entre igreja e Estado propostas por Augusto Comte são Roberto Romano e Olavo de Carvalho, respectivamente nos livros Brasil: igreja contra Estado (ROMANO, 1979) e O jardim das aflições (CARVALHO, 1999)[1].

As origens de cada um dos autores são bastante diversas: enquanto Roberto Romano começou seminarista dominicano[2] próximo à chamada “igreja progressista”, isto é, ao amálgama de catolicismo e marxismo chamado de “teologia da libertação”, há muitos anos é professor de Ética na Universidade Estadual de Campinas e, curiosamente (ou, talvez, nem tanto), especialista no pensamento político, moral, filosófico e científico do Iluminismo francês (em particular o de Denis Diderot) – justamente um dos mais agressivamente anticlericais do movimento (talvez atrás apenas do barão d’Holbach). Ainda assim, esse livro, que corresponde à tese de doutorado de Romano, é por ele valorizado até hoje, como se pode constatar facilmente no seu currículo Lattes: na base Lattes cada pesquisador pode indicar até cinco obras que considera excepcionalmente relevantes ou representativas de sua carreira – e lá está sua tese de doutorado, redigida na França, entre 1976 e 1977, sob a orientação (que, face aos problemas que indicaremos, supomos bastante indulgente) de Claude Lefort. De qualquer maneira, seus textos são (alegadamente) eruditos e articulados.

Já Olavo de Carvalho é mais conspícuo. Politicamente, começou à esquerda, integrando os grupos comunistas que abundavam nos anos 1960 e 1970; filosoficamente, buscava na astrologia orientação prática, tendo escrito diversos manuais a respeito, chegando a usar a astrologia para “predizer” – mas após os fatos – o fim do comunismo, em 1989-1991. Entre os anos 1970 e 1980, pelos desvãos da vida, desiludiu-se com a esquerda e tornou-se um áspero crítico dela, passando, por oposição, a ser da “direita”; não lhe cabe propriamente esse título, pois, segundo os critérios definidos por Bobbio (1997) em seu Direita e esquerda, Carvalho não é a favor das “desigualdades”; ele seria mais um liberal. Não um liberal elegante e cuidadoso como Raymond Aron, mas um extremamente cão raivoso, a quem esqueceram de ministrar vacina. Suas manifestações públicas (em artigos, entrevistas ou nas “redes sociais”) evidenciam sempre grande violência verbal e pessoal, autoritarismo e mesmo vulgaridade escatológica, com o uso abundante de palavrões (em particular, “cu”)[3]. Por outro lado, se Olavo de Carvalho faz questão de alardear seu afastamento da esquerda e sua aproximação do liberalismo, seu afastamento da astrologia foi muito mais silencioso e mais ambíguo: aproximou-se do catolicismo, não falou muito mais de astrologia, embora refira-se de quando em quando à astrologia, à cabala, critique o catolicismo sem muita clareza ao mesmo tempo que o defende. Em todo caso, a impressão geral que se tem é que ele é um católico, embora não se saiba precisar de que tipo específico, do mesmo modo que, ao escrever, ele não seja um católico que fale em nome do clero e/ou da igreja; além disso, da mesma forma que no caso de Romano, (alegadamente) os textos de Carvalho são eruditos e escritos com maestria retórica.

Ora, nos dois livros indicados, ao tratarem das relações entre igreja e Estado e, em particular das propostas positivistas para essas relações, é surpreendente que os argumentos dos autores sejam em tudo semelhantes, à exceção de alguns detalhes: enquanto Romano apresenta algumas referências bibliográficas a título de citações de Augusto Comte e suas obras, mas não é preciso em suas indicações, Carvalho não cita nenhuma obra de Comte mas é espantosamente preciso em suas referências a ele (embora, nem por isso, seja mais correto no que afirma). As propaladas erudições e os tons “críticos” das obras – dirigidos, em um caso, aos católicos marxistas, no outro caso, aos católicos liberais (de “direita”) – são suficientes para convencer quem quer ser convencido dos argumentos expostos.

Em poucas palavras, argumentos os expostos são os seguintes. Para eles, a igreja é (sempre foi e sempre será) fonte de liberdades política, intelectual e espiritual, ao passo que o Estado, baseando-se na força física, é fonte de opressão; além disso, o Estado também teme permanentemente as forças intelectuais, por serem elas fonte de crítica às ações estatais e àquelas baseadas na força bruta[4]. De acordo com a narrativa de Romano e Carvalho, ao longo da história – bem entendido: ao longo da Idade Média e, de maneira mais específica, ao longo da alta Idade Média (séculos VI a X) –, enquanto o Estado subordinou-se à igreja, vigeu um regime de liberdades, mas à medida que o Estado combateu com sucesso essa influência eclesiástica, seja por meio da sujeição da igreja, seja por meio de elites intelectuais, políticas e sociais laicas, os meios de opressão aumentaram e, portanto, a tirania aumentou[5].

Todavia, para os autores em questão, o problema nas relações entre igreja e Estado é mais profundo. Por um lado, o Estado passou a pregar a capacidade de justificar-se a si próprio, independentemente de fundamentos “transcendentais” (a salvação das almas, o temor do inferno, o amor a deus) e/ou externos a si. Com isso, ele passaria a defender alguma coisa como uma “transcendência imanente”, ao mesmo tempo que negar as “transcendências transcendentais”: tudo o que ultrapassasse ao próprio Estado seria errado, ilegítimo, imoral.

Por outro lado, de acordo com Carvalho e Romano, a igreja é a intérprete e a representante da religião, ou melhor, da verdadeira religião, que necessariamente é a religião católica apostólica romana. O Estado é particular, restrito a territórios bem delimitados, ainda que nesses territórios circunscritos passe a afirmar-se como universal e ilimitado à medida que ele (Estado) neutraliza a igreja; a igreja (católica), por outro lado, é universal no tempo e no espaço, de modo que não conhece limites territoriais e é eterna, pois vincula-se com o próprio altíssimo e é dele que obtém e fornece sua legitimidade. As campanhas de laicização, portanto, em vez de proporem as condições de liberdade, visam ao autoritarismo e, no limite, ao totalitarismo. Trata-se, portanto, de uma suposta crítica ao totalitarismo, a partir da perspectiva eclesiástica; todavia, o papel político atribuído à igreja e, em particular, o papel desempenhado pela igreja em relação às liberdades de pensamento e expressão, ao controle social e à exigência de apoio estatal para tais práticas, é completamente silenciado, ainda que seja tomado como pressuposto. As possibilidades teóricas e os eventos históricos relativos a essas questões são soberbamente deixados de lado, como as exemplares atuações tirânicas dos frades dominicanos à frente da Inquisição em Portugal e Espanha ou o completo desregramento moral, político, intelectual e social do papado, do século XIII em diante[6]: a igreja é abstrata e etereamente tomada como exemplo e parâmetro de conduta, como se ela própria não tivesse uma longa história, cuja evolução foi marcada por ascensão, apogeu e declínio[7].

Esses são os argumentos gerais a respeito das relações entre igreja e Estado e, portanto, sobre a laicidade. No que se refere a Augusto Comte, eles dão um passo além, especialmente Romano, que dedica todo um capítulo “crítico” ao Positivismo. Claramente repetindo um conhecimento comum, ele “sabem” que Comte propôs uma “Religião da Humanidade” e que essa religião é laica; da mesma forma, Comte propôs uma “ditadura republicana” e, finalmente, Romano e Carvalho “sabem” que os militares brasileiros, em algum momento da história nacional, foram influenciados pelo Positivismo. A conclusão lógica dessa série de premissas soltas, descontextualizadas e baseadas no que há de pior no senso comum leigo e acadêmico é que Augusto Comte propôs uma religião de Estado, a ser implantada e mantida via ditadura militar, de que o Brasil ofereceu o melhor (e único) exemplo entre 1964 e 1985[8]. Não é coincidência que o único estudo comparativo que Romano use sobre a ditadura republicana no Brasil seja a pesquisa que Leopoldo Zea fez sobre o... México (de 1870 a 1910)!

Como Carvalho e Romano “provaram” anteriormente, a partir de suas premissas teológico-políticas, que a igreja é fonte de liberdade (devido aos seus vínculos com a divindade) e que o Estado, por oposição, é fonte de opressão, o Positivismo é apresentado como o caso-teste nacional de suas teses filosóficas. Em nenhum momento há um exame detido das idéias de Comte. Mas... que bobagem! O que estamos dizendo?! Em nenhum momento há sequer exposições, citações de Augusto Comte e/ou de seus discípulos, de modo a provar ou corroborar as afirmações anteriores: por mais espantoso e incrível que pareça, há simplesmente a justaposição das idéias de senso comum, apresentadas a título de premissas, seguidas das conclusões adequadas e dadas de antemão. As diferenças entre os dois autores são secundárias: Romano, como já indicamos, apresenta algumas referências bibliográficas a mais, embora em momento nenhum discuta seriamente os trechos indicados – em várias ocasiões, aliás, ele conclui exatamente o contrário do que as citações afirmam[9]! Já Carvalho não cita absolutamente nada, a despeito de suas afirmações peremptórias e de sua alegada erudição; em virtude disso, suas premissas são mais imaginativas, donde suas conclusões são mais despropositadas, ainda que seu estilo seja mais claro.

Não é possível dizer que a literatura sobre Augusto Comte seja propriamente pequena. É claro que, como diria Bourdieu, há os efeitos do campo acadêmico, que regem as modas intelectuais e que funcionam próximas dos ritmos políticos mais amplos; assim, as décadas de 1950 a 1980 caracterizaram-se pelas influências do marxismo, do comunismo, da contracultura, da Guerra Fria, do Círculo de Viena, das “guerras da ciência” e por aí vai. Assim, fazer análises “críticas” do Positivismo equivalia a falar mal dele (ao mesmo tempo em que análises “críticas” sobre o marxismo, por exemplo, eram sempre discursos laudatórios). Esse Zeitgeist valeu em particular no Brasil, durante o regime militar, quando, como comentamos, o senso comum com enorme facilidade associava Positivismo, ditadura republicana, militarismo e regime militar[10].

Todavia, não é aceitável que argumentos tão precários, sobre questões tão centrais para as vidas individuais e coletivas dos seres humanos, sejam apresentados e discutidos dessas formas tão rasteiras. No caso do livro de Romano, a conjuntura, embora não desculpe, pode até justificar: eram os anos 1970 e ele próprio era orientado por um filósofo preocupado com a centralidade da democracia para a esquerda, contra os totalitarismos. Isso, é claro, não desculpa: os problemas do seu livro são muito grandes e suas falhas não têm relação alguma com as preocupações de uma esquerda que acordava, enfim, para a importância das liberdades “formais”[11]. Já o livro de Carvalho foi escrito em meados dos anos 1990, quando o Brasil vivia um período de francas liberdades[12]; muito embora o seu alvo fosse a esquerda marxista, para atingi-la Carvalho deu uma volta enorme, a fim de “demonstrar” que a laicização é um processo daninho e que “fora da igreja não há salvação”[13].

Em termos acadêmicos, há várias obras brasileiras recentes de grande porte sobre o pensamento político de Augusto Comte – que, não por acaso, indicam o quanto os argumentos de Carvalho e Romano, mais que improcedentes, são sofísticos, como os livros de Lacerda Neto (2003) e Volkoff e Lacerda Neto (2004) e, ainda mais, os de Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018). Além desses dois livros, há uma série de artigos e textos acadêmicos e de polêmica que tratam dessas e de outras questões; é possível conferi-los aqui: http://www.filosofiasocialePositivismo.blogspot.com/.

*          *          *

EXCURSO SOBRE O LIVRO DE ROBERTO ROMANO

O raciocínio do livro de Romano é que a igreja não é um “aparelho ideológico do Estado”, como pregavam Althusser e Gramsci, mas, antes, uma instituição com autonomia organizacional e intelectual, com dinâmica própria e – palavras suas – “auto-reflexão”, capaz de compreender cada momento que vive e, com base nos elementos do passado, buscar situar-se no presente para projetar-se para o futuro. Desse modo, a perspectiva do autor centra-se na igreja, especialmente em contraposição a outras organizações e elites, ou melhor, em contraposição às elites laicizantes, secularizantes e anticlericais: em outras palavras, Romano com muita clareza e sem muita preocupação escorrega do centramento na igreja para a defesa da igreja.

Essa perspectiva é realçada pelo momento histórico em que o livro foi escrito (1976-1977), durante o regime militar brasileiro: de um lado, o Estado era opressivo; de outro, amplos setores da igreja católica apresentavam-se como “progressistas” e lutavam pela liberalização do regime. Desse modo, Romano pôde, conjunturalmente, argumentar que o Estado é autoritário e que a igreja é libertária, deixando de lado o fato de que a igreja apenas episodicamente foi libertária no Brasil[14].

Sua posição é clara: a igreja esteve sempre acuada pelo Estado e pelas elites laicas, que procuravam instrumentalizar uma estrutura eclesiástica – que, de outra maneira, seria “pura” e “liberal” – para dominar a população; daí, aliás, a preferência do Estado pelas elites católicas, deixando ao baixo clero o trabalho junto às massas.

Romano considera que houve na história do Brasil três momentos principais: (1) a igreja na Colônia e no Império, (2) depois na I República Velha contra o liberalismo e, por fim, (3) no Império e na I República especificamente contra o Positivismo[15]. No que se refere ao Império, o argumento é o exposto acima: as elites imperiais oprimiram a igreja, impedindo-a de manifestar-se, expandir-se, organizar-se e expressar-se, a todo momento procurando instrumentalizar a hierarquia a favor dos meios de dominação. É notável que ele deixe de lado o fato de que a liberdade de religião não existia até 1824 e que, entre esse ano e 1890, a igreja detinha o monopólio dos atos civis públicos (nascimentos, casamentos, óbitos, enterros); além disso, embora houvesse uma certa liberdade religiosa, apenas algumas outras religiões eram toleradas e vistas como excepcionais[16].

Ao tratar do liberalismo, Roberto Romano afirma que essa corrente foi um instrumento não propriamente do Estado, mas do capitalismo que se modernizava no país, com o avanço da cultura do café: ao ser necessário integrar novos braços para a lavoura cafeicultora, o liberalismo afirmou a laicidade a fim de permitir que imigrantes europeus fossem atraídos para o Brasil. Essa laicidade tinha vários resultados positivos: atraía mão de obra qualificada; atraía europeus e deixava de lado os “inferiores” negros e índios (além dos mulatos); reforçava o poder do Estado. Assim, em um raciocínio ao mesmo tempo católico e marxista – teologia da libertação, afinal de contas... –, a laicidade teria sido meramente uma ideologia, isto é, um instrumento hipócrita da exploração do capital, não uma forma de instaurar liberdades.

Convém lembrar que Romano insiste na idéia de que a Igreja não pode retirar-se para o foro íntimo dos fiéis; ela tem que ser fiel a si mesma, atuando no âmbito público e orientando as massas em termos espirituais da mesma forma que o Estado orienta em termos temporais. A impossibilidade de retraimento para o âmbito privado, para Romano, é um argumento contrário à laicidade e uma forma de indicar a falsidade, ou hipocrisia, do liberalismo do final do século XIX.

O argumento de Romano enfatiza que o liberalismo brasileiro, seguindo os passos do europeu (como o kantiano, seguido depois pelo hegeliano[17]), dessacralizava o poder, tornando o Estado um fim e um fundamento em si mesmo, ou seja, a imanência tornava-se sua própria transcendência, criando as condições para o abuso do poder que resultaria, depois e em outras condições, no totalitarismo (essa é uma evidente, e conveniente, influência de Claude Lefort). Mas convém notar que a crítica ao liberalismo como consagrando o Estado como fim em si mesmo está presente na reacionária encíclica Quanta Cura, de 1864, em que o Papa Pio IX reforçou o movimento ultramontano ao criticar a modernidade, o liberalismo, a laicidade, a liberdade de pensamento etc.[18]. Não é por acaso que Romano adota o fácil, quase demagógico, expediente de citar trechos de artigos do jornal O Estado de S. Paulo, em que se apresentam com clareza perspectivas ao mesmo tempo liberais e discriminadoras (racistas, eurocêntricas etc.): essas citações permitem a Romano validar a crítica ao liberalismo nacional e, daí, resguardar a igreja católica. Ao mesmo tempo, Romano (no que é seguido por O. Carvalho) deixa de lado o fato de que o papado apoiou ativamente o fascismo contra o liberalismo (e comunismo e os judeus), obtendo com isso a generosa mas aberrante transformação de um palácio medieval, desde há muito sede de uma religião, em um Estado nacional (o Vaticano). O posterior apoio de Pio XII a Hitler é igualmente deixado de lado, da mesma forma que os movimentos fortemente iliberais e antiliberais brasileiros, como a neocristandade de Sebastião Leme e Jackson de Figueiredo[19].

Não é por acaso, aliás, que Romano deixe de lado nesse momento o Positivismo em sua argumentação, mas que, em outro momento, dedique-lhe um capítulo inteiro, mesmo que individualmente maior que cada um dos dois capítulos anteriores: o Positivismo como doutrina e os positivistas como ativistas não cometiam nem cometeram os erros que o Estado brasileiro e os liberais (brasileiros e/ou alemães) cometeram. Em outras palavras, como indicamos em Lacerda (2016; 2018), os positivistas não procuraram instrumentalizar a igreja para reforçar o poder do Estado; não afirmaram que o Estado é fundamento e fim de si mesmo e que não carece de nenhuma transcendência; não relegaram a população humilde a segundo plano; não foram racistas ou discriminadores; não foram anticlericais. Não é à toa que ele tem que, retoricamente, falar em “astúcia” para (des)caracterizar os positivistas: afinal, somente lhes atribuindo uma implícita má-fé, um ultramaquiavelismo que teria oito décadas de antecedência (!) é possível tornar aceitável criticar o comportamento em todo sentido exemplar deles.

Roberto Romano mistura vários procedimentos para sua confusão. Antes de mais nada, algumas palavras a respeito de seu estilo. O texto é o de um filósofo que reflete, ou seja, que desenvolve argumentos; esse desenvolvimento, todavia, não segue uma ordem muito firme, nem em termos de exposição das idéias, nem em termos de demonstração dos raciocínios. Assim, as idéias são expostas de modo truncado, sobrepondo-se argumentos e linhas argumentativas, muitas das quais não têm relação direta com o tema imediatamente anterior; da mesma forma, as citações utilizadas para ilustrar as afirmações têm referências secundárias na melhor das hipóteses – isso, claro, quando o autor dá-se ao trabalho de apresentar citações[20].

No que se refere às idéias propriamente ditas, Romano não é contraditório – pois isso pressuporia um desejo de expor idéias e raciocínios e comprovar, via demonstração, alguma tese. Os vai-e-véns argumentativos não permitem considerar que se deseja provar alguma coisa, mas simplesmente expor algumas idéias gerais que devem, ao cabo da leitura, ficar associadas devido à justaposição de idéias. Quais seriam essas idéias? (1) O Positivismo é “autoritário” e prega uma “ditadura” religiosa e secular, mesmo quando defende a laicidade e mesmo que precise do apoio dos militares; (2) a exposição e defesa públicas de idéias pelos positivistas são estratégias de manipulação calculistas (“racionalidade calculadora”[21] – ou, quem sabe, “maquiavélicas”); (3) o regime militar vigente após 1964 teria tido fortes traços positivistas; (4) a igreja católica dividia-se em duas grandes partes: uma autoritária, ultramontana, própria ao clero, e outra popular, simpática ao povo, ao ativismo popular e contrária à exclusão político-econômica brasileira (e em particular a que ocorria desde 1964). Além disso, ele acusa (!!!) não somente os positivistas como também os liberais de pleitearem a laicização da política; para Romano, a laicidade do Estado é daninha para a igreja, ao impedi-la de manifestar-se publicamente de acordo com seus próprios critérios em termos universais e de propor uma transcendência para a realidade política. Implícita estão as idéias (1) de que a única religião, a única instituição que pode ter universalidade no tempo e no espaço e, portanto, que pode conferir transcendência é a igreja católica, e (2) de que a laicidade seria uma forma de censura contra a “religião”, em vez do próprio regime que permite e consagra as liberdades de consciência, expressão e associação.

É notável que o texto de Romano seja ao mesmo tempo erudito – ele cita Augusto Comte (não somente a Filosofia positiva e a Política positiva), como também Ivan Lins, Pereira Barreto, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, João Cruz Costa – e tão desinformado. Na verdade, parece que ele desenvolve uma estratégia de simulação: multiplica algumas referências, dando a impressão de ser erudito, para melhor criticar, ou melhor, para mais facilmente dar livres asas à sua imaginação. Mesmo a sua erudição não é profunda: bastar-lhe-ia consultar dois ou três livros brasileiros (digamos, os de Ivan Lins e de João Cruz Costa) para deles extrair algumas passagens que lhe parecessem mais adequadas. Em outras palavras, absolutamente nada garante que Romano tenha de fato lido os originais e realizado uma exegese profunda. Ora, lendo os livros de Ivan Lins (História do Positivismo no Brasil) e de Cruz Costa, encontramos todas as citações feitas por Romano, embora Romano não tenha apresentado nada além das citações presentes em Cruz Costa e, acima de tudo, no livro de Ivan Lins. Em outras palavras, para tratar do Positivismo em sua tese de doutorado, Roberto Romano limitou-se a ler apenas (alguns capítulos de) dois livros.

Comecemos pelos juízos que Romano emite sobre a igreja. Ele é extremamente ambíguo sobre ela. Como indicamos, para ele há uma duplicidade eclesiástica: os grandes prelados e a arraia miúda; os “poderosos” e os “identificados com o povo”. Essa duplicidade é criticada por Romano, especialmente quando implicitamente ele critica a época em que escreve (década de 1970) a partir da teologia da libertação: o baixo clero está do lado da verdade, pois está do lado dos fracos, dos pobres, da emancipação popular; já o alto clero... a respeito do alto clero da década de 1970 Romano não fala nada, mas fala do alto clero das décadas de 1930 em diante, que conseguiu associar-se novamente ao Estado e dar um apoio fundamental ao autoritarismo que ressurgiu em 1964. Entretanto, de modo geral, Romano considera que “a igreja” (tomada tout court, sem distinção de nível social) tem propriedades institucionais, morais e políticas importantes, a começar por sua plasticidade histórica, que lhe permite modificar-se, adaptar-se e, assim, renovar-se com o passar do tempo. Em outras palavras: feitas as contas, como a igreja é a igreja, ela é boa e deve permanecer exercendo sua influência sobre a sociedade (já o que se lhe opõe é ruim).

Mas é Romano quem critica a igreja, isto é, ele arroga-se a exclusividade do direito de poder criticar a igreja: em contraposição, as observações dos positivistas a respeito da igreja são sempre vistas como suspeitas, como se sempre tivessem sido escritas com “motivos ocultos”. Indicativo dessa reiterada e profunda suspeição que Romano nutre pelo Positivismo é o título do capítulo que lhe dedica: “A astúcia do Positivismo”. Quando os positivistas criticam a igreja, sugere Romano, seria para negar sua importância histórica, política e social; quando os positivistas afirmam a laicidade do Estado é para impedir a manifestação política da igreja, acabar com a transcendência do Estado mas, ao mesmo tempo, por meio da “ditadura republicana”, implantar uma “transcendência imanente” por via das armas com apoio dos militares; quando os positivistas têm propostas sociais iguais às da igreja, é para a opressão social (isto é, para manter melhor o domínio da burguesia, do Estado e, de modo geral, da situação de passividade do povo)[22]. Novamente: as citações reproduzidas aqui e ali por Romano, quando são reproduzidas, mal têm relação com o argumento – isso quando não o contradizem frontalmente.

O que espanta na exposição de Romano são seus argumentos implícitos, a cujo respeito vale perguntar com clareza: (1) por que seria necessária alguma forma de transcendência para o Estado? (2) Por que logo, e tão-somente, a igreja católica poderia conferir essa transcendência ao Estado? (3) Por que a laicidade seria um disfarce para uma “transcendência imanente”? (4) Por que, afinal de contas, a “transcendência imanente” conduziria ao totalitarismo?

O autor toma como pressupostas essas idéias; a virulência e a má-fé que ele manifesta em relação ao Positivismo, dessa forma, assumem um outro caráter: para Romano não se trata de analisar as relações da igreja católica com uma força política, social, intelectual – em uma palavra, moral – alternativa, mas com um rival perigoso, que deve ser vilipendiado ao máximo[23].

Convém insistir no reiterado movimento histórico, por assim dizer, que Romano realizou, em que expôs idéias dos positivistas das décadas de 1870 e 1890, ao mesmo tempo que afirmou haver conseqüências delas na década de 1930 e, ainda mais, afirmou haver outras conseqüências nas décadas de 1960 e 1970. Costuma-se dizer, na História, que o historiador escreve sobre o passado pensando no presente; mas isso, evidentemente, é um certo exagero, pois há que se respeitar a autonomia dos tempos idos: qual seria a relevância contemporânea, digamos, do sistema político do Egito Antigo? Da mesma forma, há que se compreender que cada contexto tem suas particularidades e, ainda mais, há que se respeitar o princípio científico básico de que cada afirmação factual tem que ser comprovada: ora, Romano nem comprova as afirmações, nem respeita os contextos históricos. Dessa forma, ele afirma sem comprovar e comete o grave erro teórico-metodológico do anacronismo[24].

É realmente espantoso que esse conjunto – fragílimo sob qualquer perspectiva, exceto sob o da militância ideológica – tenha sido aprovada como uma “tese de doutorado”. Em suma, termina-se a leitura do livro com grande dificuldade para não pôr em questão a validade filosófica, científica, histórica e política dos argumentos, dos raciocínios e dos valores do autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUDIFFRENT, Georges. 1925. Opúsculos sobre o catolicismo. Rio de Janeiro: J. R. Oliveira.

BOBBIO, Norberto. 1997. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP.

CARNEIRO, David. 1940. Civilização católico-feudal. São Paulo: Athena.

CARVALHO, José M. 2005. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar.

CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.

COMTE, Augusto. 1899. Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

COMTE, Augusto. 1929. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 4ème ed. 4 v. Paris: Larousse.

Cornwell, John. 2000. O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII. Rio de Janeiro: Imago.

CRUZ COSTA, João. 1956. Contribuição à História das Idéias no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olímpio.

DELLA CAVA, R. 1975. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916-64. Novos Estudos, São Paulo, n. 12, p. 5-52, abr.-jun.

HARRISON, Frederic. 1894. The Meaning of History and Other Historical Pieces. London: MacMillan.

Herculano, Alexandre. 2011. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Pradense.

HUACO, M. 2008. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto A. (org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

Kertzer, David I. 2017. O Papa e Mussolini. A conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa. Rio de Janeiro: Intrínseca.

LACERDA NETO, Arthur V. 2003. A república positivista. Teoria e ação no pensamento de Augusto Comte. 3ª ed. Curitiba: Juruá.

LACERDA, Gustavo B. 2010. O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte. Florianópolis. Tese (Doutorado em Sociologia Política). Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf. Acesso em: 30.nov.2018.

Lacerda, Gustavo B. 2013. Teoria política positivista: pensando com Augusto Comte. Marília: Poiesis.

Lacerda, Gustavo B. 2016. Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos. Curitiba: Appris.

Lacerda, Gustavo B. 2018. Comtianas brasileiras: Ciências Sociais, Brasil e cidadania. Curitiba: Appris.

LAFFITTE, Pierre. 1897. Les grands types de l’Humanité. Aprréciation systématique des principaux agents de l’évolution humaine. Le catholicisme. Paris: Société Positiviste.

LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. 2018. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.

LILLA, Mark. 2018. O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. São Paulo: Companhia das Letras.

LINS, Ivan. 2009. História do Positivismo no Brasil. 3ª ed. Brasília: Senado Federal.

MARIANO, Ricardo. 2002. Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso. Artigo apresentado no III Congreso Virtual de Antropología y Arqueología. Disponível em: http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/ricardo_mariano.htm. Acesso em: 14.nov.2011.

RODRIGUES, Cândido M. 2005. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Autêntica.

ROMANO, Roberto. 1979. Brasil: igreja contra Estado. São Paulo: Kairós.

ROMANO, Roberto. 1994. O pensamento conservador. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31.

SCAMPINI, José. 1978. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes.

VÉLEZ RODRÍGUES, Ricardo. 2011. O liberalismo francês. A tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Juiz de Fora: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro.

Volkoff, Vladimir & Lacerda Neto, Arthur Virmond. 2004. Pequena História da Desinformação & A desinformação antipositivista. Curitiba: Vila do Príncipe.

ZEA, Leopoldo. 1968. El Positivismo en México. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.






[1] Uma primeira versão destas anotações foi escrita e publicada em 23.2.2012; uma ampla reformulação ocorreu em 27.11.2018.
[2] Na “Introdução” ao seu livro Romano agradece à Ordem dos Pregadores (ou seja, aos dominicanos).
[3] Para o comum dos seres humanos – incluindo todos aqueles “cristãos conservadores” de quem Olavo de Carvalho apresenta-se como uma espécie de porta-voz autoproclamado –, essa vulgaridade é simplesmente chocante e desagradável. Todavia, o seu uso reiterado sugere que Olavo de Carvalho entende essa vulgaridade como uma forma de expressão “afirmativa”, “livre”, “sem censura” etc. Como Lilla (2018) indicou, aliás, a virada mais conservadora e fundamentalista do Partido Republicano nos Estados Unidos, entre os anos 1970 e 1980, foi justamente marcada pelo início do emprego de uma retórica violenta e “sem concessões”. Da mesma forma, como Levitsky e Ziblatt (2018) observam, a instalação de regimes autoritários (quando não fascistas) é precedida pela violência política, que começa exatamente com a violência retórica.
[4] Como se vê, esses dois autores adotam a concepção que opõe o poder Temporal ao Espiritual, de origem medieval (de S. João Crisóstomo). Nesse sentido, embora não por acaso não o reconheçam, eles acompanham A. Comte, da mesma forma que ignoram, ou fingem ignorar, que acompanham o fundador do Positivismo em algumas das conseqüências propostas para as relações entre os dois poderes. Sobre a filosofia política de Comte e sobre as relações entre os poderes, cf. Comte (1899; 1929) e Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018).
[5] Pode-se dizer que essa concepção é especificamente católica: além de ser exposta por O. Carvalho e Romano, ela também está claramente presente Scampini (1978) e, como indica Huaco (2008), ela integra o arsenal teórico e retórico do Vaticano em sua luta contra a laicidade do Estado.
[6] Sobre o declínio papal do século XIII em diante, cf. Harrison (1894); sobre a Inquisição, cf. Herculano (2011).
[7] É importante notar que, assim, a despeito de afirmarem-se defensores das liberdades, a idéia de que a única e verdadeira religião é a católica apostólica romana é um argumento implícito ao longo dos dois livros e em nenhum momento discutido. Com isso, a liberdade que defendem é a sua própria. Dessa forma, as reiteradas críticas, ou referências, ao totalitarismo tornam-se confusas, incoerentes ou ambígüas.
[8] Como discutimos longamente em Lacerda (2016; 2018), esse raciocínio é propriamente um sofisma baseado em pressupostos falsos, dados históricos incorretos e uma imaginação desenfreada, além de, pura e simplesmente, grande má vontade para com o Positivismo. Ainda assim, cumpre notar que Sérgio Buarque de Hollanda tem a primazia em tais defeitos.
[9] Convém notar que a quase totalidade das citações de Romano são de segunda mão, extraídas do livro de Ivan Lins (2009) mas, em sua maioria, sem indicação de que ele cita a citação. É possível determinar a origem das citações de Romano por meio do simples cotejo com o livro de Lins: Romano cita estritamente apenas o que Lins cita e nada mais.
[10] Esse gênero de associação ainda ocorre, embora investigações historiográficas e políticas mais recentes indiquem o quanto elas são improcedentes. Cf. José Murilo de Carvalho (2005) e Lacerda (2018).
[11] As anotações feitas no “Excurso”, abaixo, demonstram com clareza esses problemas.
[12] Na verdade, Carvalho considera que o Brasil vive uma “tirania comunista” (e “globalista”), disfarçada sob a máscara das liberdades públicas; essa verdadeira conspiração teria tido lugar especialmente durante as décadas de 2000 e 2010, ou seja, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Em virtude dessa tirania disfarçada, em 2005 ele autoexilou-se nos Estados Unidos, ainda que em 2018 ele tenha manifestado apoio ao candidato fascista Jair Bolsonaro, em nome do combate ao PT, ao “marxismo cultural”, ao comunismo e ao “globalismo” (!!!).
[13] Parece claro que nenhum dos dois autores, ao escrever, fala em nome da igreja, seja em nome do episcopado, seja em nome do laicato; mas, ainda assim, apresentam-se como representantes implícitos da igreja. Ora, essa era a missão de d. Sebastião Leme e de Jackson de Figueiredo, que desenvolveram a partir da década de 1910 o projeto de recatolicização das elites e do Estado por meio da “neocristandade” e que, afinal, “retomaram” o Estado após 1930 (embora nem Carvalho nem Romano assumam-no). Mas as críticas de Carvalho e de Romano à laicidade e ao liberalismo são semelhantes às de Sebastião Leme e de Figueiredo. Uma linha investigativa bastante interessante pode ser esta: até que ponto esses católicos “desgarrrados” dão continuidade à obra da militância católica antiliberal do início do século XX? Sobre esses intelectuais, cf. Rodrigues (2005).
[14] Esquecendo-se, por algum motivo, das justificativas para as escravidões indígena e negra, para a manutenção dos privilégios eclesiásticos, para a religião oficial de Estado, para o monopólio de nascimento, de casamento e de enterro; para o ensino oficial e obrigatório da religião católica etc. etc. Como vimos, nisso o esquerdista Romano é acompanhado de perto pelo direitista Carvalho.
[15] Romano trata de cada um desses temas respectivamente nos capítulos 4, 5 e 6 de seu livro (ROMANO, 1979).
[16] De modo específico: os protestantismos, que se limitavam a regiões muito definidas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, e, depois, o Positivismo. As religiões fetichistas de origem nativa e africana e o espiritismo eram duramente perseguidos e reprimidos (cf. MARIANO, 2002; LACERDA, 2016).
[17] Ao tratar dos liberalismos kantiano e hegeliano, Romano comete algumas das mais incríveis falácias possíveis. Em primeiro lugar, ele restringe o liberalismo às suas versões alemãs, deixando de lado as francesas e, em particular, as inglesas e as estadunidenses: por exemplo, cita apenas uma única vez John Locke – e apenas Locke, quando trata do mundo inglês. Isso é notável, na medida em que mesmo liberais conservadores, como Ricardo Vélez Rodríguez (2011), tratam do liberalismo francês e celebram-no. Por outro lado, ao caracterizar o ambiente sócio-econômico-cultural alemão em comparação com o brasileiro, ele afirma que na Alemanha do início do século XIX as idéias de Hegel não tiveram muita repercussão, pois não tinham muito contato com a realidade da época; isso, todavia, não era problemático, pois garantiu grande liberdade e originalidade ao pensador idealista, que, depois, teve inúmeros seguidores. Já no Brasil o pensamento liberal estabeleceu-se em um solo previamente ocupado, de modo que sua atividade foi servil e ideológica, mesmo que a favor da laicidade do Estado, da abolição da escravatura, da proclamação da República etc. Em outras palavras, deixando de lado a estranha retórica a respeito da “presença prévia de idéias no país” (algo que lembra bastante a equívoca argumentação das “idéias fora do lugar”, de Roberto Schwarcz), no Brasil Hegel teria sido ideológico e servil simplesmente porque foi contrário aos ideais defendidos por Romano.
[18] Como vimos antes, a mesma idéia – de que o Estado laico torna-se o fundamento de si mesmo e, daí, a base para o totalitarismo – é repetida por Olavo de Carvalho em seu O jardim das aflições e, por algum motivo, atribuída por ele ao Positivismo (cf. CARVALHO, 2000). A coincidência dessa perspectiva entre um esquerdista e um direitista sugere que, provavelmente, o motivo dessa imputação seja, pura e simplesmente, propagar desinformação em favor do catolicismo.
[19] Sobre o apoio do papado a Mussolini e a transformação do Vaticano de mera sede da igreja católica em Estado nacional, cf. Kertzer (2017); sobre as relações entre Pio XII e Hitler, cf. também Cornwell (2000); sobre a neocristandade, cf. Della Cava (1975) e Rodrigues (2005).
[20] É difícil não vir à mente a provinciana – mas, neste caso, bastante adequada – contraposição feita pelos ingleses desde o início do século XX entre a “filosofia analítica” e a “filosofia continental” – em que a primeira caracterizar-se-ia pela clareza analítica e pela busca da elucidação dos enunciados, justamente os traços opostos da “filosofia continental”. Sem dúvida que essa contraposição é falaciosa e virulenta, mas é impossível não considerar que o livro de Romano é um exemplo quase ideal-típico dessa “filosofia continental”.
[21] A expressão “racionalidade calculadora” tem um outro sentido, é claro: refere-se também à crítica, de caráter metafísico, feita pela Escola de Frankfurt à razão e à “racionalidade instrumental”; em contraposição a elas, os frankfurtianos defendem alguma coisa como “o espírito” ou o “mundo da vida”. Como, infelizmente, é mais fácil desdenhar da obra de Comte que a conhecer, as críticas de Romano e da Escola de Frankfurt parecem fazer sentido quando dirigidas para o Positivismo.
[22] Bastaria ler-se os originais da Igreja Positivista do Brasil para qualquer um convencer-se de que o que Romano argumenta é tolice, fruto de delírio ou de má-fé. Todavia, como esses originais são relativamente difíceis de serem encontrados atualmente – bem entendido: encontrados em suas versões originais, pois na internet é muito fácil encontrar versões digitalizadas –; bastaria ler-se o livro de Ivan Lins, ou mesmo o de João Cruz Costa, na medida em que ambos têm longas citações dos positivistas. Por fim, embora já o tenhamos indicado diversas vezes nestas anotações, convém reiterar: em Lacerda (2016; 2018) apresentamos longamente as concepções de Comte e dos positivistas brasileiros a respeito das relações do Estado com as igrejas, incluindo aí claras afirmações da importância histórica da igreja católica e do necessário respeito que se deve a qualquer igreja nos dias atuais. Entre dezenas mais, podemos citar ainda como outras fontes de consulta os livros de Laffitte (1897), Audiffrent (1925) e Carneiro (1940).
[23] Isso não é exagero: como vimos anteriormente, antes de ser repetidor de Filosofia, Roberto Romano era seminarista dominicano, ou seja, integrante de uma das mais ativas e agressivas ordens religiosas que atuaram no verdadeiro movimento repressivo que foi a Inquisição. A Igreja Positivista é, literalmente, uma rival da Igreja Católica, a ser devidamente combatida.
[24] Como não poderia deixar de ser, esse comportamento enviesado de Roberto Romano a propósito do Positivismo não se limitou à tese-de-doutorado-manifesto-político redigida sob orientação de Claude Lefort: em diversos outros textos, Romano insiste na idéia de que o Positivismo é “conservador”, com isso querendo dar a entender que a filosofia, a política e a religião criadas por Augusto Comte seriam opressivas, a favor da discriminação, da exploração etc. Isso está evidente, por exemplo, no artigo “O pensamento conservador” (ROMANO, 1994), em que Romano lembra a observação banal, feita pelo próprio Comte, de que o Positivismo teria uma dívida intelectual com o pensamento conservador francês (na figura de Louis-Grabriel de Bonald e, acima de tudo, de Joseph de Maistre), na conceituação da “ordem”. Ora, Roberto Romano enfatiza a dívida comtiana com De Maistre, mas silencia totalmente as reiteradas referências do fundador do Positivismo a respeito da sua dívida com Diderot e Condorcet, dois pensadores que na França definiram a idéia de “progresso”. Esse silenciamento feito por Romano a respeito da dívida comtiana para com os progressistas não é casual; não é um “esquecimento”, mas uma omissão proposital, que se evidencia quando se tem em mente que desde a década de 1980 Romano especializou-se no pensamento de... Diderot! Assim, ao mesmo tempo em que Romano silencia a respeito da sua própria origem conservadora (quase foi frade dominicano), ele critica o Positivismo porque o Positivismo é um rival da igreja católica e, bem vistas as coisas, Romano também critica o Positivismo e Comte porque deseja deter o monopólio dos comentários sobre Diderot.