Mostrando postagens com marcador Sociocracia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sociocracia. Mostrar todas as postagens

14 janeiro 2024

Manifesto: "Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista"

Igreja Positivista Virtual

 

O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim

Ordem e progresso – Viver às claras – Viver para outrem

 

Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista

 

1. Introdução

O presente documento foi redigido pela Igreja Positivista Virtual, no cumprimento de suas obrigações cívicas. Embora ele tenha sido escrito tendo em vista os atos de vandalismo terrorista perpetrados em 8 de Moisés de 169 (8 de janeiro de 2023), ele também pode, e deve, ser visto como um prolongamento e uma conseqüência natural do abaixo-assinado divulgado em 19 de Descartes de 168 (26 de outubro de 2022), intitulado “A bandeira nacional republicana não é fascista”[1].

2. A evolução política republicana do Brasil

A experiência histórica e a reflexão filosófica, com base no altruísmo e no relativismo, ensinam que as instituições não são eternas nem são imóveis. Ao contrário desses sonhos absolutos, em vez de buscarmos instituições “perfeitas”, temos que buscar instituições adequadas a cada fase histórica de cada sociedade e de cada povo. No caso das sociedades ocidentais, herdeiras da tríplice transição intelectual, prática e afetiva própria à Grécia, a Roma e à Idade Média, após a dupla transição moderna e a grande explosão da Revolução Francesa de 1789, as instituições mais adequadas são as sociocracias, ou seja, repúblicas sociais, caracterizadas pela separação entre os poderes temporal e espiritual, pelo ascendente da fraternidade universal e pela cooperação pacífica entre todos os servidores da Humanidade em busca do bem comum.

Esses ideais passaram a ser aplicados de maneira mais ou menos sistemática no Brasil desde os acontecimentos de 15 de novembro de 1889, quando se proclamou a República no país, seguidos da instituição da fórmula “Ordem e Progresso” na bandeira nacional, de um sistema cívico e universal de festas públicas e, acima de tudo, da separação entre igreja e Estado. Apesar de diversos problemas enfrentados pela república desde seu nascimento – entre os quais a lamentável, mas quase inevitável, participação dos militares na mudança do regime, além da participação da metafísica liberal na Constituição de 1891 –, graças à atuação de Benjamin Constant a partir de 1889 o Brasil retomou a trilha sonhada por Tiradentes e em seguida proposta por José Bonifácio.

O amadurecimento social, político e institucional iniciado em 1889 foi interrompido em 1930, que reverteu muitos dos avanços anteriores (a começar pela separação entre igreja e Estado) e permitiu o avanço de filosofias e movimentos estranhos aos valores sociocráticos, como o comunismo e, ainda mais, o fascismo. Desde então, os ideais sociocráticos conscientes foram feridos de morte, embora confusamente tenham sido retomados por outros movimentos. Em todo caso, a terrível oscilação própria ao Ocidente após a Revolução Francesa, entre os pólos opostos, contraditórios e complementares na oscilação, da anarquia e da revolução, verificou-se no Brasil. De maneira limitada, essa dinâmica só diminuiu após 1988, depois de várias décadas tumultuadas, quando uma nova constituição foi promulgada, estabelecendo alguns compromissos sociais amplos e criando instituições um pouco mais robustas.

3. A agitação retrógrada fascista no Brasil recente

Desde meados da década de 2010, muitos anos de agitação social, política e institucional tiveram por objetivo tão-somente a própria agitação por si só, resultando em um governo federal cujo mandato caracterizou-se pela contínua tentativa de destruir as instituições existentes. Entre os promotores dessa agitação encontravam-se indivíduos e grupos que sonhavam com uma destruição generalizada das instituições nacionais, de maneira supostamente “higiênica”; além disso, também havia indivíduos e grupos que desejavam criar confusão social, política e moral para usarem a anarquia resultante como desculpa e como instrumento para obterem o poder – sendo que o poder deveria ser obtido sem qualquer outro objetivo além da mera posse do poder, a ser usado como instrumento de ostentação, de enriquecimento pessoal e familiar e, acima de tudo, contra os adversários, transformados em inimigos a serem eliminados. Não por acaso, esses dois grupos caracterizam-se por um profundo clericalismo, o que já os dispõem ativamente contra qualquer concepção republicana, altruísta, pacifista e fraterna da política e a favor de concepções apocalípticas da política e das instituições. De diferentes origens sociais e morais, esses grupos encontraram-se no denominador comum do fascismo.

Após os anos de agitação social e moral e de destruição institucional, uma derrota eleitoral parcial mas decisiva em 2022 conduziu os grupos fascistas a realizarem uma última e enorme tentativa de implantar – necessariamente à força – o seu regime fascista no Brasil: daí os aviltantes atos de vandalismo terrorista que marcaram o domingo, dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, sob os olhares omissos e cúmplices de forças locais de segurança (incluindo das Forças Armadas) e os olhares atônitos do conjunto da nação. Felizmente o novo governo, então empossado havia apenas uma semana, retomou energicamente o controle da situação, por vias institucionais diversas das sonhadas pelos fascistas golpistas. É necessário termos clareza: esse perigo foi evitado na ocasião e diminuído ao longo de 2023 – mas não foi extinto.

Em face disso, é necessário dizermos com todas as letras: o fascismo deve ser combatido sem hesitações e sem tergiversações. Ele consiste em uma retrogradação violenta, clericalista, antifraterna, antialtruísta; em suma, o fascismo é antirrepublicano e antissociocrático. Da mesma forma, em momentos anteriores da vida nacional as anistias foram com freqüência instrumentos efetivos da reconciliação nacional; mas, no presente caso, a anistia ao vandalismo terrorista de 8 de janeiro de 2023 implicará necessariamente impunidade, cumplicidade e legitimação implícita do fascismo.

4. Os vícios da democracia e seus remédios empíricos no Brasil

Nós, positivistas, temos plena clareza de que a chamada “democracia” é intrinsecamente limitada e que representa mal a sociedade e os interesses coletivos. Por si só a democracia pode resultar em regimes autoritários e violentos, quando segue a confusa metafísica clericalista que combina os projetos de Rousseau com os de Montesquieu, que estimulam a corrupção com seu incoerente sistema eleitoral combinado com os “três poderes”.

Apesar desses problemas, é forçoso reconhecermos os seguintes aspectos próprios à vida política e social brasileira.

1)     Por um lado, a confusa proposta ativamente promovida por líderes políticos e sociais, civis e militares em meio à anarquia, como resultado necessário dessa anarquia, supostamente como solução da anarquia, é em todos os sentidos inferior à realidade social, política e institucional desenvolvida no Brasil ao longo dos últimos 35 anos, ou seja, desde 1988: conforme a experiência histórica internacional e nacional já demonstrou fartamente, o fascismo estimula e aumenta todos os defeitos e vícios da democracia, incluindo a corrupção política, social e moral, além de restringir as liberdades públicas e promover as retrogradações do clericalismo e da violência como instrumento de governo e de relacionamento social.

2)     Por outro lado, desde 1988 os limites morais e sociais próprios à democracia, na medida do possível, foram contornados e minorados pela sabedoria prática de muitos governantes ao longo do tempo, mesmo apesar das crenças pessoais desses governantes, que – contraditoriamente para si mesmos mas respeitando as exigências republicanas do país – promoveram a estabilização monetária como precondição para a estabilização institucional e para as seguintes, necessárias e urgentes ações de incorporação social do proletariado. Como se percebeu durante o triste quadriênio 2019-2022, o fascismo atuou ativamente para desestabilizar a moeda nacional, alienar o patrimônio nacional, corromper e destruir as instituições, dividir e opor violentamente entre si as metades do país, clericalizar a política, degradar o meio ambiente, estimular a violência internacional e reverter celeremente a incorporação social do proletariado.

3)     Em suma: desprezando a máxima republicana “só se destrói o que se substitui”, o fascismo basear-se-ia na anarquia por ele mesmo estimulada, aumentaria todos os vícios próprios à democracia e destruiria todas as conquistas republicanas.

5. Exortações finais

Em face dessas considerações todas, a Igreja Positivista Virtual vem por meio deste documento afirmar o repúdio ao vandalismo terrorista de 8 de janeiro de 2023 e a todos os seus perpetradores, que agiram como títeres de líderes civis e militares que desejam implantar no Brasil o fascismo – líderes que, um ano depois dessas ações execráveis, mantêm-se ainda livres, sem punição e apresentando todos os sofismas morais e políticos possíveis para justificar os atos que promoveram. Da mesma forma, a Igreja Positivista Virtual vem por meio deste documento associar-se às manifestações públicas que reafirmam a República brasileira e seu caráter sociocrático.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda

Sacerdote diretor da IPV

 

Curitiba, 8 de Moisés de 170 (8 de janeiro de 2024).





[1] O texto pode ser consultado aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2022/10/a-bandeira-nacional-republicana-nao-e.html. O abaixo-assinado pode ser assinado aqui: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657. 

26 setembro 2023

Sobre títulos e tratamentos

No dia 17 de Shakespeare de 169 (26.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, acima de tudo, Moral).

Em seguida, fizemos nosso sermão a respeito dos títulos e dos tratamentos pessoais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/cLT8S) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/KTD6m). O sermão começa em 46' 47".

*   *   *



Sobre títulos e tratamentos pessoais 

-        Em termos de relações pessoais e cívicas, a respeito dos pronomes de tratamento e do uso de títulos honoríficos, o Positivismo aplica alguns princípios muito claros e determinados e a regra é: não os usar

o   A base para tal procedimento é a fraternidade universal e a valorização do mérito individual, em um ambiente republicano

o   Em outras palavras, trata-se de realizar a sociocracia nas relações pessoais e cívicas

-        Em algum lugar – cito de memória, pois não consegui recuperar onde li essa bela passagem –, Augusto Comte observa que todos devemos tratar-nos por “senhor” (messieur, em francês), mas subentendendo nessa expressão o título de “cidadão” (citoyen, em francês)

o   A regra é usar “senhor” e também suas variações, como “senhora”, “senhorita”, “senhores” etc.

o   Adicionalmente ao uso de “senhor”, a prática positivista também indica a profissão de cada cidadão: “operário”, “professor”, “médico”, “apóstolo” etc.

-        Essas expressões (“senhor”, “cidadão”) têm uma vinculação inequívoca com a Revolução Francesa e com o seu duplo programa (a abolição da monarquia e do Antigo Regime; a constituição de novas sociedade e sociabilidade)

o   O emprego da expressão “senhor”, no século XIX, apesar de depurada pela Revolução Francesa, possuía ainda um certo elemento feudal, no sentido de que “messieur” referia-se antes aos nobres – daí a necessidade, de qualquer maneira justificada, de reforçar que o elemento “cidadão” deve estar subentendido

o   Na Revolução Francesa e no início da República no Brasil, era muito comum empregar-se o “cidadão” para referir-se aos vários indivíduos: “cidadão Teixeira Mendes”

-        Em todo caso, o que importa notar é que o emprego de “senhor” é uma forma respeitosa e simples de tratar os demais, sem reproduzir as fórmulas habituais: “vossa/sua excelência”, “vossa/sua alteza” etc. etc.

o   Evidentemente, ainda mais que os pronomes de tratamento, a regra sociocrática rejeita o uso dos títulos nobiliárquicos e das comendas: “barão”, “duque”, “marquês” etc.; “membro da ordem X”, “comendador da ordem Y” etc.

o   Isso estabelece uma grande proximidade – quase um igualitarismo – entre as pessoas, tanto afetiva quanto sociopolítica

§  Essa proximidade era uma realidade vivida na Igreja Positivista do Brasil, tanto na época de Miguel Lemos e Teixeira Mendes quanto depois (até os anos 1990)

-        A presente regra é uma orientação geral; mesmo Augusto Comte usava títulos honoríficos ao dirigir-se a outras pessoas, como a dois de seus executores testamenteiros, o espanhol Don José Flores e o alemão Barão Constant-Rebecque

o   É claro que, mesmo usando essas fórmulas tradicionais, Augusto Comte era muito comedido nesse emprego

o   Da mesma maneira, esse emprego de fórmulas tradicionais evidencia o uso de outra regra positivista: “inflexível quanto aos princípios, conciliante de fato”

-        O uso de outros pronomes de tratamento e de títulos honoríficos serve, tanto no Brasil quanto em outros países, para adular, dar carteirada e literalmente discriminar:

o   É extremamente comum vermos documentos oficiais dirigidos a “Sua Excelência o sr. prof. dr. Joãozinho da Silva”, com uma enorme profusão de títulos e pronomes de tratamentos

o   Essa profusão é particularmente notável nas áreas jurídicas, seja em escritórios de advocacia, seja na Ordem dos Advogados do Brasil, seja no Ministério Público, seja nos muitos tribunais

o   O Decreto n. 9.758/2019 estabeleceu que, no âmbito do poder Executivo federal (Art. 1º, § 2º), só se pode usar “senhor” (Art. 2º) – não por acaso, excetuando expressamente todo o pessoal jurídico (Art. 1º, § 3º, inc. II)

-        Uma observação pessoal: muitas pessoas tratam-me por “professor”

o   Embora, evidentemente, o uso de “professor” para dirigir-se a mim seja feito com total boa vontade, boa fé, respeito e reconhecimento de (alguma) capacidade, o fato é que essa palavra é problemática por pelo menos dois motivos:

§  Por um lado, ela não corresponde à minha profissão (eu sou servidor público, ocupando o cargo de sociólogo)

§  Por outro lado, em termos de atuação positivista, não apenas não corresponde à atuação como, pior, ela diminui: eu sou um apóstolo da Humanidade e um sacerdote

o   Vejamos cada um dos âmbitos de atuação:

§  O professor é alguém que domina um assunto e expõe para seus alunos; então, todo apóstolo e sacerdote tem que ser, necessariamente, um professor; mas um professor não é, necessariamente, nem apóstolo nem sacerdote

§  O apóstolo é quem se dedica à difusão sistemática de uma doutrina; sua preocupação é intelectual mas também, e acima de tudo, moral e social; então um apóstolo é um professor, mas cuja atuação é mais ampla

§  O sacerdote (que apresenta os três graus: noviciado, vicariado, sacerdote pleno) é quem divulga uma doutrina, interpreta-a nos diversos casos e atua como educador, conselheiro, avaliador e consagrador; assim, a função sacerdotal abrange necessariamente as atuações como professor e como apóstolo, mas é superior a elas

-        Uma última observação, que faço apenas para não deixar em silêncio o tema em uma prédica dedicada a tratamentos pessoais:

o   Pessoalmente, sou contrário à chamada “linguagem neutra”, que busca abolir a golpes de marretada os gêneros na língua portuguesa e impor um suposto “gênero neutro”, por meio do emprego da terminação “e” nos casos de palavras masculinas (e exclusivamente masculinas) e/ou pelo emprego de “x”, “@”, “#”[1] etc.

o   Sou contra o emprego desse linguajar porque ele é inócuo; porque desrespeita os falantes e os leitores da língua portuguesa; porque é radicalmente contrário ao caráter histórico (e sociológico) da língua; porque é a manifestação lingüística do ultraparticularismo político e moral do identitarismo



[1] Uma curiosidade: o símbolo # em português chama-se “cerquilha”.

19 setembro 2023

Sobre a expressão "funcionários públicos"

No dia 10 de Shakespeare de 169 (19.9.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência". O trecho comentado aborda em particular a constituição da ciência-arte da Moral.

Na seqüência, na parte do sermão, comentamos a bela expressão "funcionários públicos", utilizada por Augusto Comte para referir-se a como todos os cidadãos, servidores da Humanidade, devem encarar-se ao de fato servirem a Humanidade.

Devido a problemas técnicos com a transmissão via Youtube, fomos obrigados a cancelar a transmissão nesse canal, limitando-nos ao Facebook.

A prédica foi transmitida no canal Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/G8FE6) e também está disponível no canal Positivismo (aqui: https://ury1.com/lpDoU). O sermão inicia-se em 56' 50".

*   *   *


Sobre o conceito de “funcionalismo público” 

-        Uma das mais belas e instrutivas expressões de Augusto Comte por vezes é alvo de críticas e confusões, nem sempre originadas da boa-fé dos comentadores

o   Essa expressão é que regime normal, todos os servidores da Humanidade devem ser vistos como “funcionários públicos”

o   Alguns dos comentários deste sermão, especialmente no final, retomam considerações presentes na postagem “Dois erros sobre o Positivismo: ‘autoritarismo’, ‘funcionalismo público’” (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2017/03/dois-erros-sobre-o-positivismo.html) e esta, por sua vez, publicou o artigo de mesmo nome, que apareceu na Revista Espaço Acadêmico (Maringá, n. 87, agosto de 2008)

-        No Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Augusto Comte afirma que somos todos “funcionários públicos”; eis o trecho[1]:

Sob esses diversos aspectos, o princípio fundamental do comunismo é então necessariamente absorvido pelo positivismo. Ao fortalecê-lo bastante, a nova filosofia estende-o mais, pois que ela aplica-o a todos os modos quaisquer da existência humana, indistintamente votados ao serviço contínuo da comunidade, conforme o verdadeiro espírito republicano. Os sentimentos de individualismo como as vistas de detalhe tiveram que prevalecer durante a longa transição revolucionária que nos separa da Idade Média. Mas uns convêm ainda menos que os outros à ordem final da sociedade moderna. Em todo estado normal da Humanidade, cada cidadão qualquer constitui realmente um funcionário público, cujas atribuições mais ou menos definidas determinam por sua vez as obrigações e as pretensões. Esse princípio universal deve certamente se estender até a propriedade, em que o positivismo vê sobretudo uma indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais por meio dos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. Sabiamente concebida, essa apreciação normal enobrece sua possessão, sem restringir sua justa liberdade e mesmo a fazendo ser melhor respeitada.

-        O trecho acima – cuja parte que para nós importa destacamos com sublinhado – é bastante claro e autoexplicativo:

(1) Nas situações sociais normais cada cidadão deve ver-se como um funcionário público e

(2) É a partir dessa atuação pública que se deve estabelecer suas possibilidades de atuação e de exigências

o   Apesar da clareza estilística, convém esclarecermos o conceito de “estado normal” e, em seguida, explorarmos a concepção de “funcionário público”

-        Antes de comentar especificamente o trecho acima, é interessante indicar que ele é apresentado no âmbito da discussão sobre o “comunismo”, realizada no capítulo 3 do livro em questão (“Eficácia popular do Positivismo”)

o   Nesse capítulo, após indicar quais as relações entre o sacerdócio positivo e o povo e, em particular, após apresentar sua teoria da opinião pública, Augusto Comte passa a comentar o chamado “comunismo”

o   Essa reflexão está no âmbito do regime; mas no Discurso sobre o conjunto do Positivismo Augusto Comte adotou outro critério para organização dos capítulos (especificamente, os âmbitos de atuação do Positivismo: filosofia, política, povo, mulheres, artes, religião)

-        Passando ao conceito de “estado normal”:

o   Podemos dizer que o objetivo do Positivismo é regular as forças humanas, a fim de que atinjamos a harmonia individual e coletiva; para isso, uma série de aspectos devem ser levados em consideração, adotados e/ou respeitados

o   A situação de harmonia dinâmica antevista pelo Positivismo é chamada por Augusto Comte de “estado normal”

§  Dito de outra forma, podemos considerar o “estado normal” a realização da utopia positivista

§  A descrição cuidadosa do estado normal e dos passos a serem seguidos até lá corresponde ao v. IV do Sistema de política positiva

o   Mas, além da referência à utopia positivista, no trecho acima há a referência aos estados normais, isto é, a uma pluralidade de estados normais

o   Nesse caso, a concepção de estado normal refere-se aos períodos históricos orgânicos, em que há efetivamente concepções gerais sobre a realidade, sobre o ser humano coletivo e sobre o ser humano individual

§  Daí a referência à Idade Média e também ao período crítico que prevalece desde o século XIV

-        Quais são as características do período crítico que Augusto Comte considera aí?

o   Por um lado, de maneira explícita, “os sentimentos de individualismo” e “as vistas de detalhe”

o   Por outro lado, de maneira implícita, as concepções de que cada indivíduo vive para si mesmo, que somente as suas preocupações particulares e exclusivas realmente importam; que não há concepção de bem comum vigente, que a propriedade privada é gerida de maneira absoluta e com vistas apenas à satisfação pessoal (ou seja, ao enriquecimento contínuo às expensas dos trabalhadores)

o   Além disso, Augusto Comte observa que o individualismo e as vistas de detalhe – convergentes entre si, especialmente contra as vistas gerais que estabelecem o real bem comum – foram fatais e mesmo necessárias desde o fim da Idade Média, como meios para destruir a antiga ordem social

-        O que Augusto Comte afirma, então, no trecho acima, é que devemos ultrapassar a fase crítica e estabelecer os hábitos e os valores próprios ao estado normal, em particular ao estado normal positivo

-        Ora, em um estado normal existe de verdade uma noção de bem comum; essa noção de bem comum – que, aliás, é uma concepção geral e não particular – organiza efetivamente a sociedade e permite que cada indivíduo saiba quais são suas responsabilidades, seus deveres, os meios de ação necessários e também os justos reclamos de recompensa

o   Assim, a partir de uma real concepção de bem comum – que Augusto Comte relaciona à idéia de república –, como cada qual tem clareza de qual sua participação na vida pública, importa se trabalhamos para empresas privadas, para o Estado ou para organizações sem fins lucrativos; se nossas atividades são teóricas ou práticas; se atuamos na economia “pública” ou se atuamos em atividades domésticas: toda atuação tem um caráter público

§  É devido ao caráter público de toda atividade estado normal que Augusto Comte afirma que os servidores da Humanidade são cidadãos e que devem perceber-se como funcionários públicos, isto é, como participantes de um grande empreendimento público

-        Outro aspecto implícito nos comentários acima é a relativização da divisão entre público e privado:

o   Evidentemente, existe uma área da vida social que corresponde àquilo que é específico de cada um e de cada família: esse é o âmbito do que se chama de “privado” ou de “particular”

o   O que a noção normal de funcionário público afirma é que não há, nem pode haver, uma cisão entre o “público” e “privado”: claro que são âmbitos diferentes, mas essa diferença não se pauta pela duplicidade de critérios morais e intelectuais

o   Deve haver o respeito ao âmbito privado e às suas particularidades, mas os critérios gerais que orientam a conduta humana são os mesmos

§  A continuidade dos parâmetros fica evidente no “viver às claras”, especialmente no sentido de adotar comportamentos publicamente justificáveis

§  Além disso, o “viver para outrem” também evidencia a continuidade dos critérios de conduta

o   Enquanto o individualismo estabelece uma rígida separação entre o público e o privado; em que o público é mais ou menos o que sobra do privado e os parâmetros de conduta privadas são absolutos, todo estado normal estabelece que, mesmo quando atuam no âmbito privado, os indivíduos devem entender-se como cidadãos cujas atividades integram uma concepção geral de bem comum

§  No estado normal, portanto, as famílias preparam os indivíduos para serem cidadãos atuando na república

o   Dito de outra forma, no estado normal, mesmo as atividades privadas são claramente percebidas como contribuindo – e, mais do que isso, como devendo contribuir – para o bem comum

§  Assim, a ação de todos assume uma dupla característica: a atividade privada tem sempre um aspecto público

§  Ou melhor, sendo mais correto e mais preciso: a atividade privada é orientada pelo bem público e, filosoficamente, o particular é englobado no público

o   Todas essas concepções tornam-se ainda mais claras quando, algumas páginas adiante, Augusto Comte observa que “O verdadeiro princípio republicano consiste a fazerem sempre concorrer para o bem comum todas as forças quaisquer”[2]

§  É claro que o “bem público”, o “bem comum”, a “república” etc. não são concepções vagas: elas são concepções claramente definidas pelo Positivismo e aplicadas e atualizadas pelo sacerdócio positivo

§  A afirmação do bem comum e a subordinação das atividades privadas ao bem público é o que estabelece o caráter específico da república sociocrática (e, em particular, é o que permite identificar o que há de extremamente metafísico nas concepções usuais de “república democrática”)

-        Dissemos no início que a expressão “funcionários públicos” por vezes é mal interpretada e/ou produz confusão: de que maneira?

o   Tomar o “funcionário público” como “funcionário do Estado

o   Esse erro tem sua origem lógica em uma interpretação especificamente jurídica da palavra “público”, na medida em que, no Direito, o que se opõe ao “privado” é o “público” cuja representação empírica é apenas e tão-somente o Estado

o   Essa confusão empobrece o pensamento social ao pressupor que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida “pública”

§  Alfredo Bosi[3] cometeu esse erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal” seriam uma justificativa para o aumento do aparelho estatal

§  Além disso, Olavo de Carvalho[4] usou a concepção comtiana para afirmar que o Positivismo seria a favor de alguma coisa como uma “estatolatria” e/ou do “Estado total”

o   Vale notar que o Positivismo favorece um forte, com capacidade de intervenção na sociedade, seguindo esta recomendação geral: o Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar em demasia a sociedade

§  Mas um Estado que seja “o menor possível” não equivale a “Estado mínimo”, conforme defendido pelos liberais

-        Em suma:

o   O conceito de “funcionário público” no estado normal refere-se à concepção de todos devem orientar suas condutas, sejam públicas, sejam privadas, para o bem comum

o   Ao orientar suas condutas pelo bem comum na sociocracia, é totalmente natural que todos os cidadãos percebam-se como colaborando com o benefício coletivo e, dessa forma, que se percebam como funcionários públicos

         



[1] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 156, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/156/mode/2up.

Vale notar que esse livro foi publicado duas vezes: a primeira, em 1848, sob o título Discours sur l’ensemble du Positivisme; a segunda em 1851, como um prefácio geral ao Sistema de política positiva, sob o título indicado acima (Discours préliminaire...). A versão de 1851 contém algumas alterações em relação à de 1848, especialmente em termos de referências temporais e de acontecimentos correntes à época.

[2] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 163, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/162/mode/2up?view=theater.

[3] BOSI, Alfredo. 2007. A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias de longa duração. In: TRINDADE, Helgio. (org.). O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre: UFRS.

[4] CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.


25 janeiro 2023

Livros sobre o Positivismo

No dia 24 de Moisés de 169 (24.1.2023) fizemos a prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista; em particular, continuamos a quarta conferência, dedicada ao culto público e abordamos o culto sociolátrico (resumido e sistematizado no que é conhecido como calendário positivista abstrato).

Antes da leitura comentada, lembramos a transformação de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, ocorrida em 22.1.1891. Benjamin Constant foi o positivista que proclamou a República no Brasil, em 15.11.1889, propondo o belo, pacifista e cívico ideal de sociocracia - ideal que foi abandonado e desprezado pelas elites intelectuais e políticas brasileiras em seguida (elites liberais, católicas e/ou marxistas).


Após a leitura comentada, modestamente apresentamos os livros de nossa autoria que foram publicados nos últimos anos e que tratam do Positivismo.

Como de hábito, a prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Benjamin-e-livros) e Positivismo (https://www.youtube.com/watch?v=c6TuAooPb7w). A apresentação dos livros pode ser vista a partir de 1h 00' no vídeo do Apostolado Positivista.

*   *   *

Os livros que apresentei são os seguintes; todos eles estão disponíveis em livrarias físicas e virtuais, como a Amazon e também a Estante Virtual. Todos eles têm versões impressas; os livros publicados com a Poiesis têm também versões eletrônicas.
















- Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais (Marília: Poiesis)












- O léxico de Augusto Comte: criptografia e filosofia (Marília: Poiesis)

(O livro é de Ângelo Torres; a mim coube a organização, a revisão do texto e o prefácio)