Mostrando postagens com marcador Responsabilidade social. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Responsabilidade social. Mostrar todas as postagens

04 janeiro 2007

Sobre a responsabilidade social

Sobre a responsabilidade social

“Os deveres sociais do capital podem reduzir-se a dois: produzir riqueza e sustentar os seres humanos”.
Luís Lagarrigue 

A vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República pôs na ordem do dia uma tendência que lentamente se formou no Brasil ao longo dos anos 1990: o valor da “responsabilidade social”.

Esse conceito tem sido aplicado por diversas empresas que – preocupadas com as condições de vida, não apenas de seus funcionários, mas de todos os cidadãos – desenvolvem programas de auxílio a necessitados, com a “adoção” de alunos carentes, doação de alimentos, reciclagem de lixo reutilizável, campanhas de “conscientização social” e assim por diante.

Ora, esses atos, por si sós, não constituem novidade alguma; com maior ou menor ênfase, há vários anos, talvez décadas, diferentes grupos têm-nos defendido. O mais notável nesse movimento são seus defensores: empresários, capitalistas, donos de empresa – justamente aqueles que, pela profissão ou mesmo pela mentalidade, seriam os menos propensos a tal tipo de conduta.

Ainda mais interessante é o fato de que o valor da responsabilidade social, ainda que possa ser comparado ao da “caridade”, não é igual a ela, pois não se trata de remediar a condição de vida de quem sofre, mas de evitar que quem sofre sofra, ou seja, é um comportamento preventivo, ao invés de paliativo.

Sem dúvida alguma é uma alteração profunda, absolutamente necessária para a sociedade, e que, se tem sido mais difundida (no Brasil) apenas nos últimos anos, a verdade é que é um valor, um conceito existente há mais de um século e meio.

Foi o filósofo francês Augusto Comte (1991), autor da frase que está em nossa bandeira nacional, Ordem e Progresso, quem pensou pela primeira vez os termos da responsabilidade social; são eles muito simples.

A idéia básica, fundamental, é que a sociedade é um todo e não uma coleção de indivíduos que, por acaso ou por necessidade, interagem. Essa totalidade caracteriza-se mais por sua existência ao longo do tempo, através das gerações sucessivas, que pelo mero tempo presente; além disso, nela cada um tem seus deveres para com os demais, a começar pelo respeito mútuo. A segunda idéia é que o trabalho, isto é, a atividade humana, não é apenas a econômica, pois envolve tudo o que fazemos: as idéias, os pensamentos, a política, a produção material, as obras artísticas e assim por diante. A terceira idéia é que o ser humano tem uma constituição tal que somos naturalmente altruístas, ou seja, somos venerantes, fraternos e bondosos, cumprindo apenas exercitar esses sentimentos e desenvolvê-los.

Essas percepções – que não são idéias abstratas, porém questões de fato – têm algumas conseqüências claras: quando trabalhamos, não o fazemos apenas ou principalmente para nós mesmos, para satisfazer nosso egoísmo presente. É claro que precisamos viver e, nesse sentido, não há como não ser egoísta: mas os frutos de nossa ação ultrapassam a mera satisfação de nossos próprios desejos ou necessidades, tanto “neste momento”, no presente, quanto ao longo do tempo; o que fazemos influencia a vida dos demais, incluindo-se aí as gerações posteriores, que serão as principais afetadas por nossos atos de hoje.

Além disso, as pessoas não iguais; cada um é diferente dos outros, e disso resulta que as habilidades e as competências são, também, diferentes. Da mesma forma como há indivíduos mais propensos e habilitados a serem filósofos, ou poetas, ou engenheiros, ou médicos, ou artesãos, ou políticos, há indivíduos hábeis na condução dos negócios econômicos, e são eles que devem cuidar desses assuntos, com a máxima liberdade possível. Mas essa “máxima liberdade possível” só se justifica porque são os empresários que sabem como lidar com os assuntos sob sua responsabilidade, assim como sabem quais são os problemas que enfrentam; nesse sentido, a liberdade, que deve ser garantida, exige, em contrapartida, a máxima responsabilidade na condução dos negócios. E, como dissemos antes, a sociedade não é uma coleção de indivíduos egoístas que interagem para satisfazer seus desejos...

Outra tendência que tem se acentuado no Brasil, desde os anos 1990, é a difusão dos cursos de Administração. Fora os aspectos técnicos dos diversos tipos de administração, é interessante notar que um “administrador” é alguém que gere o patrimônio alheio, tendo para isso muita liberdade – afinal, é ele que sabe quais são os problemas que enfrenta na gestão – mas, da mesma forma, tendo que prestar contas periodicamente aos donos da empresa ou ao corpo de acionistas; caso malverse os recursos à sua disposição, ou seja incompetente, é substituído por alguém mais capaz.

É exatamente essa mentalidade que deve generalizar-se pela sociedade; mas, ao invés de sermos “administradores de empresas”, seremos “funcionários sociais”, responsáveis pela gestão da sociedade naquilo que nos cabe; ao invés de buscarmos o lucro para a satisfação mesquinha de desejos egoístas de acumulação material e ostentação, buscaremos a melhoria das condições de vida e de existência do ser humano.

Da mesma forma, a concepção que temos da propriedade mudará, ou deverá mudar: não sendo nunca “coletiva”, como propõe o socialismo, ela será social; não teremos a “propriedade” dos bens, mas apenas a “posse” ou seu “usufruto”. Ao dispormos dos bens, temos liberdade para tanto, sujeitando-nos também à completa responsabilidade (social) implicada. Ou, como disse o filósofo Comte, “O capital é social em sua origem; deve ser também em sua destinação”.

Luta de classes e senso comum

Luta de classes e senso comum[1]

Quem ler qualquer revista ou jornal, ou livros acadêmicos, ou vir o vestibular (da usp, da UFPR, da Unicamp) não demorará muito até encontrar frases do tipo “a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas” ou “o capitalismo baseia-se na exploração de uns pelos outros”. Essas idéias, que infelizmente já se incorporaram ao senso comum, são, apesar disso, extremamente danosas.

Não é difícil vermos os conflitos de classe como integrantes da sociedade. A todo instante percebemos negociações entre patrões e empregados, vemos como a taxa de desemprego é alta, que muitos – demais, até – empresários não se preocupam com o corpo de empregados, visando apenas ao lucro etc. A partir daí aceitamos, quase como conseqüência natural, que não é possível a sociedade sem a “luta de classes”.

Essa perspectiva, contudo, é errada. É lógico que há esses problemas sociais, que são, de fato, problemas, e que quem está desempregado não vai trabalhar apenas por mudar de ponto de vista: mas não se trata disso. A questão é outra: de fato a sociedade baseia-se em um pequeno grupo de ricos explorando o trabalho de muitos outros? Essa visão é correta, isto é, a sociedade é efetivamente assim e nossa vida em comum torna-se melhor se a percebermos dessa forma? Mais precisamente: a descrição científica corresponde à realidade e os postulados éticos são corretos?

Na verdade, quem faz profissão de fé em que a luta de classes é básica e fundamental para a sociedade não entende o mínimo do ser humano, especialmente no que se refere à importância dos valores para nossa existência coletiva. Nenhum grupo mantém-se sem valores que regulem sua conduta, isto é, que evitem os excessos de uns e que protejam a fraqueza de outros. Enfatizo: nenhum grupo fica sem tais valores. Querer afirmar que a nossa sociedade, tachada de “capitalista”, é desregrada e que alguns podem explorar a grande massa a seu bel-prazer é adotar um cinismo suicida, tanto em termos econômicos quanto políticos. Além disso, tais concepções só são aceitáveis porque há grupos que os defendem – e não são os “capitalistas”.

O sociólogo alemão Max Weber argumentou com sucesso, em 1904, que o “capitalismo”, assim como o conhecemos, só é possível porque algumas seitas protestantes, nos séculos XVI e XVII, buscando realizar a vontade divina na terra, tornaram correto o individualismo econômico mais brutal, em que cada pessoa deve satisfações apenas a seu Deus, ao invés de preocupar-se com os demais. Weber afirmou que esse padrão de conduta teve um sucesso enorme – como é evidente – em virtude dos seus resultados econômicos, difundiu-se e tornou-se dominante. Ou seja: o capitalismo foi antes de tudo um valor moral praticado por certos grupos.

É simplesmente errado afirmar que “a classe dominante sempre busca explorar a classe dominada”. As coisas não são assim, tão simplistas e tolas. É lógico que, por exemplo, nos dias atuais, um capitalista busca o lucro, da mesma forma como é evidente que há capitalistas que adotam comportamentos predatórios (basta pensarmos no trabalho semi-escravo ainda existente no Brasil), assim como, inversamente, a incorporação do proletariado à sociedade é a tarefa social mais urgente, em nosso país e no mundo.

Onde está o erro? Está na generalização brutal e violenta, ao afirmar que “todos os que estão no poder (os capitalistas) querem a exploração”.

Essa forma de pensar é típica das teorias da conspiração: “há alguém querendo nos dominar”, “todos ‘eles’ são maus”, “os de cima não prestam”. Divide-se o mundo em dois campos, “nós” e “eles”, sendo que nós, a maioria, somos bons, sinceros e corretos, mas temos sido enganados até agora; eles são a minoria, má, hipócrita e desonesta, que manipula, engana e pensa apenas em si própria. O mundo será um lugar melhor apenas se eles deixarem o poder; mas como nós não os conhecemos, devemos “duvidar de tudo” e adotar uma atitude de “resistência”, mantendo uma “luta” sem cessar, uma “guerra sem trincheiras”, até o dia em que mostraremos ao mundo quem são eles e tomaremos o poder, “fazendo a revolução”; além disso, todo o discurso “de cima” é uma enganação que serve para “dominar”, isto é, é “ideologia”.

Esse esquema, que lembra a série de televisão Arquivo X, resume o programa político do marxismo e da esquerda em geral, apenas substituindo “eles” por “neoliberais”, “capitalistas” ou coisa que o valha.

Isso é senso comum e do pior tipo, pois é o mais daninho, o mais destrutivo, o mais cínico. Ele mina completamente a possibilidade de confiança de uns nos outros, além de proclamar que a revolta e a rebelião são o estado normal da sociedade. Dessa forma, sempre que alguma coisa nos desagradar, diremos que “é uma conspiração dos fortes (ou da burguesia) contra nós”, e poderemos agir como quisermos.

Por exemplo: com base no discurso acima, posso afirmar – como diversos “acadêmicos” de esquerda dizem – que a eleição de Luís Inácio Lula da Silva é boa para o capitalismo, pois a exploração aumentará e a massa de trabalhadores (transformada em boiada) aceitará melhor tudo. Como as coisas passam-se assim, não preciso respeitar nenhuma instituição, nem devo a mínima lealdade ao Presidente da República; aliás, como ele é o “traidor da classe”, pois vendeu-se para “eles” (para a burguesia), não há nada que me impeça de ir a Brasília cometer um atentado (desculpem-se: um ato de desagravo)...

Dirão alguns que isso é radicalismo. Não: é honestidade e coerência, admitindo as conseqüências lógicas da maneira de pensar da esquerda e de seu senso comum. A esquerda, que adora dizer que “devemos policiar nossas idéias, em virtude de suas conseqüências políticas”, deveria prestar maior atenção às tais “conseqüências políticas de suas idéias” (ou ser mais honesta e coerente).

Para concluir, duas observações. Em primeiro lugar, esse senso comum da luta de classes, apesar de parecer natural, é o resultado de um esforço consciente de diversos grupos, há décadas – de modo geral os partidos políticos de esquerda, cuja influência é enorme, refletindo-se nos meios de comunicação, nos currículos escolares, na produção artística, na direção do Estado (basta lermos os escritos do comunista italiano Antônio Gramsci – que, não por acaso, há tempos são algumas das principais leituras da esquerda).

Em segundo lugar, creio estar claro que não defendo a irresponsabilidade de inúmeros capitalistas, nem a farra financeira internacional, muito menos a hipocrisia de vários grupos que pregam a “caridade” para explorar melhor (ou mesmo escravizar) os trabalhadores – tudo isso é revoltante. A irresponsabilidade e a hipocrisia têm que ser condenadas e combatidas com energia, e temos todos que buscar vigorosamente soluções para esses problemas sociais. O que não se pode aceitar, de maneira alguma, é que a revolta moral contra injustiças sirva de justificativa para uma forma de pensar cínica, tão nociva à sociedade quanto os próprios abusos dos capitalistas.



[1] Artigo publicado no jornal O Estado do Paraná em 16 de fevereiro de 2003.