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08 junho 2017

Um elogio à política, a partir de "O discurso do rei"

Um elogio à política,
ou reflexões didáticas a partir de O discurso do rei

Gustavo Biscaia de Lacerda

O filme O discurso do rei (2010) é um grande filme; a história é bem contada e os atores têm grandes desempenhos. Sem ser uma história muito densa, ela entra na categoria de “drama político” ou até “drama histórico”, em que as dificuldades pessoais de um herdeiro do trono inglês são mostradas como um problema, eventualmente um obstáculo, à sua atuação política; assim, a solução do drama pessoal é condição para solução (ou encaminhamento) do drama político. Mais uma vez: isso rende uma excelente história, que é muito bem contada; não foi à toa que ganhou os prêmios Oscar de melhores filme, direção e ator, entre outros, em 2011.

Há diversos aspectos políticos e sociológicos que valem a pena ser destacados a respeito do filme. Esses aspectos são bastante evidentes na história, compõem o seu pano de fundo e também a sua moldura e, portanto, integram o rol de elementos que tornam o filme tão interessante – aliás, interessante e instrutivo.

Sem procurar esgotar as possibilidades teóricas e históricas, vejamos alguns desses aspectos. Procurarei apresentar esses elementos com alguns exemplos, às vezes tirados da história da Inglaterra, às vezes da França, às vezes do Brasil; ainda assim, evitarei ao máximo referir-me aos problemas brasileiros atuais – não porque as reflexões abaixo não podem ser aplicadas ao nosso país (elas podem, sim!), mas para evitar a dispersão mental e polarizações político-intelectuais a respeito de um escrito que é para ser, antes de mais nada, didático. (Aliás, por esse mesmo motivo, não incluirei nenhuma nota de rodapé e reduzirei ao máximo as referências eruditas e a pensadores.)

  1. O respeito aos governantes como elemento integrante da vida política.

Antes de mais nada, é importante notar que sou republicano e que abomino as monarquias existentes neste século XXI; aliás, desde a Revolução Francesa (1789-1799) as monarquias já são relíquias históricas, a despeito de suas sobrevivências mundo afora e dos discursos laudatórios a seu favor. No caso da monarquia inglesa, ela sofreu uma importante solução de continuidade no século XVII, após a Guerra Civil, durante o Protetorado e o Commonwealth de Oliver Cromwell; além disso, até meados do século XVIII, a monarquia inglesa apresentou inúmeras mudanças dinásticas, com golpes orquestrados pela nobreza local e líderes escoceses, franceses, neerlandeses (“holandeses”) e até alemães assumindo o trono.

Dito isso, a noção de respeito aos governantes perpassa todo o filme. Evidentemente, como se trata de uma história centrada no relacionamento entre o Duque de Iorque (futuro Jorge VI) e o fonoaudiólogo Lionel Logue e a importância atribuída ao sucesso do tratamento do herdeiro, não se vê no filme outros atores políticos relevantes além do irmão mais velho do Duque, o futuro Eduardo VIII, bem como alguns primeiros-ministros, Winston Churchill e o arcebispo de Cantuária em papéis secundários. Dito de outra forma, não há verdadeiramente conflitos políticos no filme: não se vê situação e oposição, não se vê os trabalhadores etc. Ainda assim, está subjacente o respeito às tradições e aos governantes; na verdade, em alguns momentos do filme, esse respeito é tornado explícito, como quando o Duque de Iorque afirma que Logue está sugerindo traição.

Na Inglaterra, a monarquia é vista como esteio moral, social e político do país, precisamente por ser uma instituição antiga e tradicional; ela é vista como integrando a identidade do país. A função da monarquia, portanto, é simbólica, não “prática”. Nesses termos, poder-se-ia argumentar que é muito mais fácil respeitar os governantes em monarquias que em repúblicas e que, por outro lado, o que se chama de “política democrática” incentiva precisamente o desrespeito aos governantes.

Até certo ponto isso é verdade; instituições tradicionais, pelo mero fato de sua longevidade, inspiram um respeito “primordial”; da mesma forma, as disputas políticas das democracias estimulam as críticas sistemáticas aos governantes. Mas no caso inglês, o respeito à monarquia deve-se a outros dois aspectos: por um lado, o fato de que o rei (ou rainha) reina mas não governa, ou seja, como já indicamos, o fato de que a monarquia cumpre funções puramente simbólicas: a monarquia em si está afastada, e cada vez mais afastada, da vida política; as notícias mais importantes a seu respeito cabem cada vez mais nas páginas das chamadas “colunas sociais”, isto é, nas páginas de fofocas. Por outro lado, como é expressamente dito em um momento de conflito no filme, a legitimidade da monarquia reside, em última análise, na concepção do direito divino dos reis, que consiste em que os reis governariam por serem emissários dos deuses na Terra – algo feliz e evidentemente fora de propósito nos dias atuais.

Todavia, na república romana – e mesmo no império romano –, dizia-se com freqüência que só pode governar quem soube antes obedecer; em outras palavras, a obediência dos governados integra suas obrigações e permite aos governantes entender os ônus da própria obediência e as responsabilidades vinculadas ao mando, ao exercício do governo, da parte dos governantes. Uma outra forma de entender essa regra romana é que os governados não podem estimular a anarquia; o escrutínio público a que o governo deve ser continuamente submetido não pode equivaler a desprezar sem mais os governantes e, de modo mais direto, não pode equivaler a desrespeitar as instituições governativas. Nesse sentido, observava Pierre Laffitte, no final do século XIX, que uma das obrigações políticas básicas de qualquer cidadão – e, note-se: estamos tratando aí da cidadania, isto é, da participação ativa nos assuntos públicos e coletivos – é justamente respeitar os governantes.

Nesse aspecto, a idéia de democracia como “governo do povo” simplesmente não ajuda muito, na medida em que permite e mesmo estimula concepções como a de que o “povo” governará diretamente a sociedade, o que equivale a dizer que não haverá governo e que qualquer indivíduo, independentemente de sua formação, de sua experiência, de suas reflexões, é capaz de fazer quaisquer críticas que quiser, no tom e na forma que quiser, aos governantes. Nesse caso, a idéia de “república” – como conjunto de instituições e também de práticas voltadas para o bem comum – é muito superior à de “democracia”.

  1. O papel da noção dever na condução da vida.

Ao longo do filme, em diversos momentos o Duque de Iorque observa que suas ações vão no sentido de ajudar ao máximo o reinado de seu irmão mais velho, o rei Eduardo VIII, mesmo apesar da futilidade desse rei, em especial ao descuidar dos assuntos públicos em benefício de uma tola aventura amorosa. O respeito do Duque de Iorque às suas próprias obrigações fica evidente quando ele chama de “traição” a sugestão feita pelo fonoaudiólogo Logue no sentido de que o próprio Duque poderia, em breve, assumir o trono inglês.

O respeito escrupuloso às obrigações pauta-se em uma certa concepção de honra e, de maneira vinculada, à noção de dever. Se deixarmos as ilhas britânicas e passarmos ao arquipélago japonês, é fácil lembrarmos quantos filmes ambientados no Japão feudal tratam de honra: basta pensarmos no um tanto fabuloso 47 ronins (de 2013) e no mais estereotipado O último samurai (de 2003).

A “honra” que aparece nesses filmes é uma virtude ao mesmo tempo militar e pessoal; refere-se por um lado ao respeito que cada um deve às inúmeras obrigações sociais e, por outro lado, à reputação de cada qual. Os valores sociais são internalizados e orientam a conduta dos indivíduos; o desrespeito às regras coletivas é punido e a punição é aceita como correta e necessária pelos punidos. Não há dúvida nenhuma de que uma parte importante do apelo desses filmes do Japão feudal deve-se, precisamente, ao respeito prestado por indivíduos de personalidades fortíssimas às regras sociais, chegando ao limite da auto-imolação. Sem pretender chegar ao ponto do suicídio, o público que assiste a esses filmes com freqüência fica mais que impressionado com essas demonstrações de força de vontade; na verdade, o público reconhece um valor moral em tão possante obediência às regras. Mais que leis externas, a obediência interna impressiona e é valorizada: os deveres, de caráter social, são poderosos.

A dificuldade está no caráter marcial dessa noção de honra. Nos filmes ambientados no Japão feudal, a ordem social é imutável (47 ronins); quando não é mais imutável (O último samurai), a mudança é vista como algo ruim, como necessariamente decadência. Não apenas a ordem social é sacrossanta, como ela é profundamente militarista: como fica evidente de maneira caricata em O último samurai, enquanto o militarismo é visto como virtuoso, a indústria é vista como corrupta e corruptora. Ora, por definição a riqueza e o bem-estar são possíveis apenas com o trabalho, a indústria e o comércio; a guerra produz apenas destruição e dominação. Nesses filmes, a “honra” tem que ser, sempre, recuperada apenas por meio dos conflitos militares. Se sairmos do Japão feudal e voltarmos à Europa, é fácil reconhecermos essa mesma “honra” em ação nos duelos: os duelos eram uma forma privada, militar e feudal de resolver as disputas, entendidas sempre como “honra” ofendida. Não por acaso, no início do século XX a Alemanha militarista caracterizava-se pela prática ritual dos duelos. (Em contraposição, pelo menos desde o século XVII a França envidou sérios esforços para coibir, quando não proibir, os duelos.)

Retornando a O discurso do rei: o respeito do Duque de Iorque às suas obrigações não tem esse caráter militarista e feudal da honra, a despeito de a monarquia inglesa ser propriamente feudal. Como indicamos antes, esse respeito vincula-se muito mais à noção de dever, constituindo-se em obrigações auto-impostas e seguidas com bastante escrúpulo.

É interessante notar que esses deveres são assumidos com liberdade; embora o Duque de Iorque em diversos momentos lamente não poder escolher suas ações – ou seja, lamente não ter liberdade –, nem por isso ele deixa de respeitar suas obrigações. Sua própria vida e a comparação com a vida do irmão realçam esses aspectos: o Duque de Iorque era canhoto, tinha as pernas tortas e era maltratado por uma das babás; agüentou os mal-tratos, foi obrigado a tornar-se destro e a usar doloridos aparelhos corretivos nas pernas; aliás, sendo gago, enfrentava dificuldades quase intransponíveis no início para ler discursos: apesar disso tudo, aceitou suas responsabilidades, persistiu em suas metas, superou suas dificuldades. Seu irmão mais velho livremente escolheu renunciar ao trono para consumar sua aventura amorosa; após isso, o Duque de Iorque livremente aceitou coroar-se.

É certo que se pode argumentar que as obrigações assumidas pelo Duque do Iorque eram próprias à sociedade inglesa, ao ambiente real e ao início do século XX; nesse sentido, o quadro de deveres a serem assumidos pelo futuro Jorge VI estava estruturado com clareza e sua aceitação era mais ou menos “automática” e obrigatória. Todas essas afirmações são verdadeiras; a conseqüência desse fato é que pode parecer um pouco estranho, mesmo um pouco anacrônico, defender a validade dos deveres no início do século XXI, na sociedade civil do Brasil. Ainda assim, parece-me que o fascínio causado pelo respeito aos deveres em O discurso do rei e mesmo nos filmes sobre o Japão feudal vai além da mera admiração pelo exótico e fundamenta-se no reconhecimento de uma realidade humana mais profunda.

Desde o final da II Guerra Mundial o Ocidente passa cada vez mais por “liberações” e “revoluções” nos comportamentos; os movimentos Beat, Hippie, feminista e outros são ilustrações e agentes dessas mudanças. De modo geral, essas alterações consistiram em criticar e, de modo geral, rejeitar os padrões anteriores de comportamento: a expressão “conflito de gerações” era bastante literal e descritiva até há alguns anos. Ora, a crítica aos comportamentos, as “liberações” referiam-se aos padrões, aos hábitos e aos costumes anteriores: nesse caso, os “direitos” ganham espaço, na medida em que a noção dos direitos é basicamente destrutiva; por outro lado, os deveres perdem espaço, na medida em que eles pressupõem valores socialmente compartilhados, não apenas entre indivíduos da mesma geração, mas também de gerações distintas. Nesse sentido, é notável como o “politicamente correto” é uma tentativa bastante acadêmica, de caráter multiculturalista, de tentar converter essas “liberações” (que consistem na ausência de padrões) em novos padrões de relacionamento; em outras palavras, o “politicamente correto” é um esforço (malogrado) para tentar constituir deveres a partir de uma ética radicalmente contrária aos deveres.

A dificuldade em aceitar contemporaneamente os deveres reside, então, em aceitar livremente uma restrição no próprio comportamento em benefício dos demais. O problema está (1) na restrição e (2) no benefício aos demais. Os dois impedimentos consistem na consagração da individualidade, do individualismo, e ambos entendem a liberdade de maneira antissocial e anárquica. A liberdade, nesses termos, não é entendida como passível de fundar uma “ordem” social, pois seria contrária a qualquer ordem; a ação individual, de maneira correlata, é sempre entendida como impassível de ser orientada para os demais, pois essa orientação altruísta é entendida como negadora, como limitadora da própria individualidade. Assim, a rejeição contemporânea aos deveres baseia-se em concepções simplistas e extremas da vida social e dos próprios indivíduos.

Ora, os deveres são parte integrante da sociedade: é necessário, é imperativo que os indivíduos internalizem os valores coletivos, que compartilhem os valores, e que, com base nisso, ajam uns em benefício dos demais. A ação individual em benefício dos demais não impede nem evita o benefício individual; o que ocorre é que a ação individual pode ser orientada para melhorar as condições dos demais, para piorá-las; para satisfazer única e exclusivamente as próprias necessidades ou para satisfazer tanto as próprias necessidades quanto as alheias. Como Augusto Comte indicou faz mais de 150 anos, a harmonia social – e mesmo o progresso – é impossível tendo como base apenas a satisfação egoísta; ao contrário, a orientação altruísta dos egoísmos permite a coordenação das diversas atividades sociais.

Assim, os deveres permitem também a regulação de cada um dos indivíduos, permitindo a harmonia pessoal e evitando o isolamento individualista. Até o início do século XX entendia-se por “disciplina” a regulação das diversas forças disponíveis; a “autoridade” era a figura a ser respeitada e seguida. Não deixa de ser significativa o fato de que a disciplina signifique atualmente militarismo e/ou vigilância, assim como a autoridade seja sempre entendida como autoritarismo: nesses termos, a ordem é sempre entendida como despotismo, a liberdade é sempre anárquica e os deveres tornam-se impossíveis – o que está bem longe de ser o melhor projeto político-social.

  1. A importância da qualidade da liderança política.

O contraste entre os dois irmãos, os sucessivos reis Eduardo VIII e Jorge VI, ressalta um aspecto importante na vida política de qualquer lugar: a importância da qualidade da liderança política. É claro que no filme o comportamento de Eduardo VIII é um tanto caricato e, de qualquer maneira, o seu comportamento objetivo foi bastante insensato, de um romantismo infantil e mesmo idiota. Da mesma forma, é necessário termos clareza de que as lideranças políticas podem ter diferentes qualidades e que mesmo essas qualidades podem ser necessárias em diferentes doses ao longo do tempo: às vezes é necessária maior moderação, às vezes é necessária maior energia etc.

Isso já nos permite duas ordens de reflexões. Em primeiro lugar, há personalidades que não possuem a menor qualificação para ocuparem cargos públicos. Esse, aliás, é um dos grandes problemas práticos ligados às monarquias: se, por um lado, os problemas conexos da sucessão entre os governantes e da continuidade administrativa estão mais ou menos resolvidos previamente, por outro lado os líderes são “escolhidos” apenas porque tiveram a sorte, ou o azar, de nascerem em determinada família. Esse sério problema anda em conjunto com a concepção estamental da sociedade – em que as ocupações dos indivíduos são dadas pelo berço e não pelas qualificações e pelos interesses individuais – e com a legitimação sobrenatural do Estado – em que o governante governa por ordem divina e não como um servidor da sociedade –; o resultado é que as monarquias não são aceitáveis em sociedades livres e racionais.

Em segundo lugar, vale a pena insistirmos na idéia de que diferentes indivíduos possuem diferentes qualidades, que são requeridas em diferentes situações. Isso quer dizer que um político pode desenvolver uma atuação fundamental em um determinado momento, mas que em uma outra conjuntura suas habilidades já não serão úteis ou mesmo acabarão atrapalhando. Há situações que exigem determinadas qualidades para serem enfrentadas, mas nas quais não se apresentam líderes capazes de lidar com eles, isto é, não se apresentam políticos com as habilidades requeridas pelo momento.

É claro que, mesmo quando adequados ao momento, isto é, quando ocupam o poder e possuem as qualidades necessárias para lidar com os problemas que enfrentam, muitas vezes os líderes políticos podem ter idéias parciais sobre como lidar com os problemas e mesmo as soluções que implementarem podem ter implementadas de maneira parcial ou simplesmente não serem as soluções ideais. Isso tudo lembra-nos de que a política é um processo, ou seja, de que ela desenvolve-se ao longo do tempo; soluções parciais de hoje podem ser completadas amanhã; soluções parciais de hoje podem modificar as condições sociais de tal maneira que amanhã tenhamos outras dificuldades, completamente diferentes, para serem enfrentadas; problemas a serem enfrentados hoje podem tornar-se completamente irrelevantes amanhã.

Um exemplo histórico brasileiro. Em 1822, o Brasil enfrentava um sério dilema: após ser explorado economicamente e dominado politicamente ao longo do século XVIII, mesmo a despeito de várias revoltas (como a da Inconfidência Mineira), após a vinda da família real para o país em 1808 as coisas mudaram, para melhor; a antiga colônia subira de status para “reino unido” e a sua infra-estrutura econômica, política, cultural e educacional estava sendo desenvolvida com rapidez. Mas em 1821 o rei português voltou à Europa e eram grandes as chances de os avanços obtidos nos anos anteriores serem todos revertidos, com o Brasil voltando à posição de colônia. O governo do país estava entregue ao príncipe regente, um rapaz de boa vontade mas estouvado, mais preocupado com diversões e casos amorosos que com questões políticas. Nesse momento, surge José Bonifácio, um cientista brasileiro de renome internacional, que, começando uma atividade política como deputado provincial em São Paulo, em pouco tempo tornou-se conselheiro do príncipe regente. Nessa condição, José Bonifácio conseguiu que a independência nacional fosse feita pelo próprio herdeiro do trono – evitando, assim, um conflito armado que seria danoso tanto para o Brasil quanto para Portugal. Além disso, é interessante notar que José Bonifácio era a favor da república e contra a escravidão; mas, ao mesmo tempo, ele entendia ser importante manter a unidade nacional: a república permitiria um fim rápido na escravidão, mas daria azo à fragmentação política; já a monarquia manteria a unidade mas também a escravidão. Face a essas opções, José Bonifácio optou pela segunda melhor, mas que respondia mais prontamente às dificuldades do momento: a monarquia permitiria a independência nacional com integridade territorial e ainda aceitaria a escravidão (que, como se sabe, perdurou até o final do regime dinástico no país).

Um aspecto que ficou subentendido nos comentários acima é o relativo ao “conjunto da sociedade”. Como nos referimos aqui aos líderes políticos, aos indivíduos, pode parecer que eles agem no vácuo, no vazio, mas isso não ocorre; aliás, como são líderes políticos, por definição eles não agem no vácuo. Os líderes só podem liderar se agirem em meio aos vários grupos sociais que, por sua vez, podem facilitar ou dificultar as várias ações sociais. É certo que por vezes os líderes assumem posições proeminentes devido a atuações mais isoladas – foi o caso de Churchill, na Inglaterra –, mas de modo geral os líderes políticos destacam-se em grupos sociais específicos e é como líderes de tais grupos que ascendem ao poder (Um dos principais grupos que permite o acesso ao poder – mas, claro, não o único grupo que o permite – é o partido político.) A ascensão é apoiada ou recusada por outros grupos e outros políticos – e é essa dinâmica que constitui o dia-a-dia da política.

Procuramos insistir até agora nas qualidades dos políticos, isto é, nas suas boas qualidades, mas algumas palavras devem ser ditas sobre as más qualidades, ou seja, sobre os seus defeitos – dois, em particular. Observamos acima que um líder costuma surgir como representante de um grupo específico: ora, ao passar do grupo específico para um cargo de direção, esse líder não deixa de lado seus valores e preocupações anteriores, mas deve ampliá-los, considerando que trata de interesses de toda a sociedade e não mais grupos particulares. Uma frase do francês François Mitterrand ilustra maravilhosamente bem o ponto: eleito Presidente da França por uma coligação entre socialistas e comunistas em 1981, perguntaram-lhe se ele governaria para esses grupos; Mitterrand respondeu que era Presidente dos franceses, isto é, de todos os franceses e não apenas dos socialistas e dos comunistas.

Ora, não é incomum líderes políticos fazerem a transição de cargos ou de funções mas não fazerem a transição de perspectivas, assumindo posições de poder mas mantendo idéias e posturas particularistas. O resultado disso costuma ser desastroso, geralmente com a divisão da sociedade em grupos rivais gradativamente inconciliáveis – o que, em última análise, pode resultar em guerra civil.

O segundo defeito que queremos comentar é o da demagogia. Um dos principais traços dos políticos é sua capacidade retórica; de modo geral, um bom político é um bom orador (embora nem sempre). No filme O discurso do rei, o papel central da retórica fica bastante evidente – mas também fica evidente a crítica aos políticos e aos líderes que são apenas oradores, como no momento em que o rei Jorge V reclama ao Duque de Iorque que o rádio transformou o rei em um mero ator. Assim como indicamos vários e sérios defeitos da monarquia, é importante indicar que a república (mas a monarquia também!) pode ficar sujeita a demagogos, a puros retóricos, a políticos que se destacam por suas habilidades com as palavras mas que são somente faladores habilidosos, sem força de caráter, sem idéias gerais, sem preocupações com o bem comum etc. Nesse sentido, talvez uma das piores combinações é aquela em que um mero orador é fraco de caráter e/ou só entende a política em termos de divisões sociais.

  1. A importância da fala e dos discursos para a vida política.

O tema central do filme é o problema da fala do Duque de Iorque, futuro rei Jorge VI; esse problema é especificamente grave porque, mesmo sem desejar, ele ocupa uma posição social de destaque, podendo ocupar o trono (o que de fato ocorre). Assim, no filme a dificuldade da fala é acima de tudo uma dificuldade política.

No início do filme o idoso rei Jorge V observa, em tom de reclamação, que “até há pouco tempo” (ou seja, até o início do século XX) não fazia muita diferença se um líder não era ouvido pelas massas; conversas mais reservadas eram o comum da política. Mas com a invenção e a difusão do rádio, a palavra falada disseminou-se e tornou-se um elemento central na vida política dos povos. Em sentido semelhante, podemos também notar que até a década de 1950 – quando surgiu a televisão – a aparência física dos políticos também não tinha tanta relevância.

Essas constatações históricas são importantíssimas e realçam um traço da nossa vida contemporânea. Mas o filme também evidencia um outro aspecto, mais amplo e que merece ser comentado: a importância da palavra em geral, dos discursos, para a realização prática da política e para a vida em sociedade. Há pelo menos duas ocasiões em que isso se evidencia, ambas no final do filme: (1) ao ensaiar para o discurso que conclamará a Inglaterra (e, de modo mais amplo, o Império Britânico) para a II Guerra Mundial, Jorge VI reclama que, apesar de ser nominalmente rei, ele não tem poder nenhum: não institui nenhuma lei, não contrata nem demite ninguém, não forma gabinetes etc.; em suma, ele reina mas não governa. A despeito disso tudo, seu papel é o de representar, incorporar a nação – e de ser a sua voz, o que é um trágico problema para ele pessoalmente e para a nação em geral. (2) Em seguida, durante a leitura do discurso, a população inglesa está parada, ouvindo ao redor dos aparelhos de rádio e das torres de difusão: vê-se aí que a própria nação, ou pelo menos a sua unidade, é constituída por meio do discurso.

Vivemos em um mundo caracterizado pela internet; isso, como se sabe, significa muito mais que apenas uma tecnologia largamente utilizada; aliás, assim como nos casos anteriores do rádio e da televisão, a internet modificou profundamente as formas como as sociedades e os indivíduos relacionam-se e, a partir daí, como a política é entendida e praticada. Todavia, no caso específico da internet, há características todas particulares que a distinguem das demais tecnologias de telecomunicações (ou, talvez, que aprofundam bastante algumas tendências sugeridas ou já existentes nas tecnologias anteriores). Deixemos de lado a instantaneidade das informações, pois isso já ocorria desde o rádio: o ponto central aqui é a possibilidade de cada indivíduo ser produtor das próprias mensagens, a todo instante; essa é a diferença que faz absolutamente toda a diferença.

Com o rádio e a televisão, o comum das pessoas era apenas consumidor das mensagens; já houve inúmeros e acerbos debates sobre se esse consumo seria ativo ou passivo, isto é, se as pessoas mais ou menos entenderiam do jeito que quisessem as mensagens ou se as mensagens seriam recebidas prontas e acabadas pelas pessoas. Esse é um debate interessante e importante, mas o fato é que, com a internet e a respeito da internet, essa discussão torna-se um pouco obsoleta, na medida em que com a internet todos podem reagir às mensagens alheias, modificá-las, transmiti-las, aumentá-las, deturpá-las, corrigi-las etc.

É indiscutível que isso representa um passo importante na chamada "democratização do conhecimento", assim como facilita as trocas de informações e de idéias. Contudo, ao mesmo tempo, o imediatismo da produção das mensagens e das respostas virtualmente reduziu a zero o tempo de assimilação e reflexão sobre as mensagens: em outras palavras, as pessoas escrevem o que simplesmente lhes vem à cabeça e reagem imediatamente. Da mesma forma, embora corresponda a um avanço importante a possibilidade de todos expressarem-se a respeito do que lhes interessa – sejam os interesses particulares (como as músicas de que gosta ou desgosta), sejam os interesses públicos (no caso da política) –, essa expressão desimpedida e imediata recusa filtros de inteligibilidade, ou pelo menos reduz suas possibilidades de atuação. O que entendemos por "filtros de inteligibilidade"? Os indivíduos responsáveis pela elaboração de idéias, de valores e de concepções sobre o mundo, que de modo geral também são conhecidos por "intelectuais" e que em outras épocas eram sacerdotes. É certo que estou entendendo aqui que os "filtros de inteligibilidade" teriam o papel de elaborarem idéias e de, ao transmiti-las, apresentarem-nas evitando radicalismos, intolerâncias etc. Também é certo que, historicamente, à direita e à esquerda, muitos desses mesmos intelectuais foram (e são) os responsáveis pela elaboração e pela transmissão de concepções violentas, agressivas, intolerantes; não se deve pensar apenas nas formulações racistas, que são as mais simples de considerar e (com justiça) as mais facilmente criticáveis, mas temos que incluir também pensadores que se diziam (e dizem) "progressistas" e que, em nome de suas concepções de "progresso", incentiva(va)m a violência, a agressividade e por aí vai. Como em outros momentos destas reflexões, é necessário observarmos que, mesmo que haja casos contrários ao ideal que propomos, nem por isso esse ideal torna-se menos correto e menos necessário.

Enfim, a redução brutal da importância dos "filtros de inteligibilidade", dos intelectuais, tem duas conseqüências importantes para a presente discussão.

(1) Cada indivíduo que está postado em frente ao seu computador, ou ao seu tablet, ou ao seu smartphone, arroga-se capacidades intelectuais, morais, técnicas, científicas que o mais das vezes não possui, apenas porque possui os meios técnicos – o acesso à internet – para tal arrogância e porque há a concepção difusa e confusa segundo a qual a cidadania consiste em todos poderem palpitarem sobre tudo o tempo todo. O que está em questão aí é a qualidade moral, científica, técnica e mesmo política dos cidadãos, assim como a responsabilidade que todos deveriam ter ao manifestarem-se na vida política. Muitos pensadores políticos e muitos pensadores ligados à cultura (e mesmo à criação da internet) já alertaram para os sérios problemas políticos e sociais relacionados a tal tipo de comportamento. Sim, sem dúvida que a cidadania implica a participação; entretanto, para participar é necessário estar preparado para isso, além de considerar as conseqüências dos próprios atos: embora palpitar na internet possua custos financeiros baixíssimos, os resultados morais, sociais e políticos do palpitismo desenfreado não são baixos.

(2) De maneira estreitamente relacionada ao problema anterior está o caráter isolado das interações realizadas por meio da internet. A despeito da expressão "redes sociais", não há propriamente interação interpessoal e, daí, social entre os indivíduos na internet; como já se observou inúmeras vezes, o que há são indivíduos que, isolados em seus computadores, publicam mensagens e reagem a elas: o relacionamento pessoal, o tête-à-tête vai perdendo espaço. Em termos políticos, o problema com isso não é somente a perda das relações pessoais diretas, mas a perda dos limites que as interações pessoais impõem à emissão e à reação das mensagens políticas: por exemplo, é muito diferente xingar alguém que não se vê, cujo conhecimento é dado apenas por um abstrato "perfil" na internet, e xingar pessoalmente, face a face, essa mesma pessoa; a diferença em cada um dos casos está em que o tête-à-tête torna muito mais difícil esse gênero de comportamento. Ora, a assustadora facilidade com que se reage na internet tem, cada vez mais, extravasado do ambiente eletrônico para a vida real, de tal sorte que os indivíduos e os grupos tornam-se mais e mais agressivos e menos reflexivos. Um outro aspecto negativo do declínio das interações interpessoais é que a quantidade gigantesca de recursos e elementos presentes na comunicação não-verbal e mesmo variados os recursos da comunicação verbal, como as entonações, os olhares, a linguagem das mãos e do corpo etc., perdem-se na internet; essa perda empobrece a comunicação e facilita os mal-entendidos e os desentendimentos.

Vale notar que os dois pontos acima, conjugados, sugerem que a chamada "democracia digital" é, em larga medida, irrealizável: as propostas de plebiscitos, referendos e mesmo eleições realizadas diretamente dos computadores de cada um prescindem justamente do diálogo, dos debate, das interações interpessoais, além de estimular e basear-se no palpitismo.

Após essa longa e importante digressão, voltemos ao ponto que nos interessa neste momento: o valor dos discursos para a vida política. Já observamos em diversos momentos que a boa política é aquela orientada para o bem comum, para a realização da res publica; ora, para conseguir-se isso, é necessário que os vários indivíduos e grupos interajam entre si – e essa interação ocorre por meio das palavras, dos discursos. As conversas, as negociações, as discussões, os compromissos ocorrem todos por meio das palavras; como se diz popularmente no Brasil, "é conversando que a gente se entende".

O valor que podemos atribuir às palavras e aos discursos é tão grande que já houve autores que afirmaram que a "essência" da política são os discursos – e que, inversamente, quando os discursos cessam, quando as palavras calam-se, acaba-se também a política e entra-se no âmbito da violência. Em sentido um pouco próximo, alguns autores afirmaram que há ações que se realizam única e exclusivamente por meio das palavras: o juiz que declara casados os cônjuges realiza uma ação falando: nesses termos, podemos entender o meio da política como sendo o discurso.

Falamos antes que um dos defeitos que se pode identificar nos líderes políticos é a demagogia, entendida como o traço do político cujos discursos são vazios. É claro que podemos entender a demagogia de outras formas, como no caso do "populismo", isto é, da exploração política das paixões do povo; mas, para as reflexões que desenvolvemos aqui, entender a demagogia como a prática de discursos vazios é aceitável e útil.

As palavras ditas e os discursos pronunciados devem ser valorizadas. Quando, há pouco, notamos que a internet estimula o palpitismo, quisemos com isso preparar o terreno para indicar que nossa época caracteriza-se, tristemente, pelo desperdício das palavras, pela desvalorização dos discursos pronunciados. Há algumas patologias político-intelectuais ligadas às idéias de "discurso" e de "discurso político" e que se desenvolveram nas últimas décadas: por um lado, o pós-modernismo afirma que "tudo é discurso", chegando às vezes a afirmar que "não existe nada fora do discurso": com isso, a realidade concreta, aquela a que a política faz referência e sobre a qual produz seus efeitos, é negada e obscurecida; a vida, suas dificuldades e suas belezas são reduzidas a meros jogos de palavras. Por outro lado, o "politicamente correto" estipula censuras sistemáticas sobre as palavras e os discursos políticos, ou melhor, sobre quaisquer palavras e discursos, em nome da defesa da sensibilidade de minorias que se entendem como essencialmente frágeis e particularistas.

Essas duas patologias deturpam e prejudicam o entendimento do discurso político. Em contraposição a tais patologias, bem como em contraposição às palavras vazias e inflacionadas, à verborragia que caracteriza o demagogo, assistimos no filme a um belo e emocionante discurso, apresentado em sua inteireza como clímax e conclusão da trama: é o pronunciamento de Jorge VI no final de setembro de 1939, conclamando a união nacional da Inglaterra, alertando o povo sobre os terríveis sofrimentos e sacrifícios vindouros, mas afirmando também o apoio dos líderes políticos ao povo, a responsabilidade pelos destinos coletivos, o evitar até o último momento da guerra e defesa incessante dos interesses nacionais (entendidos aí como o combate a um inimigo agressivo). Dito de outra maneira, um grande discurso é aquele que condensa, expõe e orienta os valores, as idéias e os sentimentos coletivos em determinada direção, com isso inspirando a população: é o que vemos Jorge VI fazer de modo exemplar no final do filme.

Podemos pensar em outros exemplos; vêm-nos à mente três trechos de discursos, todos eles tirados da história dos Estados Unidos. Em 1942, quando esse país também ingressava na II Guerra Mundial, Franklin Roosevelt, após afirmar que não queria entrar no conflito e que sacrifícios avizinhavam-se, observou que a única coisa que deveriam temer era o próprio medo. Dando um salto no tempo, nos anos 1960 John Kennedy pronunciou dois discursos que se tornaram justamente lendários: em 1962, ao tratar do programa espacial estadunidense, que acabaria resultando na primeira alunissagem em 1969, Kennedy questionava-se porque se tinha decidido fazer algo tão complicado; sua resposta foi que a viagem à Lua deveria ocorrer não porque era fácil, mas, ao contrário, justamente porque era difícil. No ano seguinte, em 1963, em Berlim, logo após a construção do Muro de Berlim (que dividia a cidade em duas partes, uma controlada pela União Soviética e outra, isolada do resto do país, controlada pelos Estados Unidos), Kennedy disse que o apoio dos EUA à Berlim ocidental era tão grande e tão sério que ele mesmo via-se como um berlinense (é o seu famoso "Ich bin ein Berliner" – "eu sou um berlinense"). Nesses três exemplos, as frases-síntese que apresentamos são muito inspiradoras, ao mesmo tempo em que indicam a direção política a tomar; são discursos "densos", ricos, que honram a prática política.


25 agosto 2015

Poder Espiritual, intelectuais e a conjuntura atual


Sempre me interessei por política, ou melhor, por estudos sobre a sociedade e sobre a história, além de pela ciência; a aproximação com as Ciências Sociais e, até certo ponto, com a chamada política prática foi algo natural. Ao mesmo tempo, em inúmeras ocasiões considerei seriamente em filiar-me a partidos políticos, mas dois motivos – muito próximos entre si, embora distintos – sempre me impediram de que eu desse o passo final nessa direção; um desses motivos é de ordem teórico-filosófica, o outro é de ordem prática.

O motivo teórico consiste em que, como positivista, isto é, como adepto da filosofia e da religião fundadas por Augusto Comte, entendo-me como integrante do poder Espiritual, cuja ação deve dar-se por meio do aconselhamento, por meio do guiar os sentimentos, as idéias e os valores; conforme Comte repetia continuamente, quem aconselha não pode mandar, sob o risco de degradar o conselho e tornar hipócrita o mando.

O motivo prático consiste em que jamais quis abrir mão da minha capacidade de criticar as bobagens realizadas por políticos práticos, nem, por outro lado, quis aceitar subscrever, devido à necessária fidelidade partidária, as tolices ditas e feitas pelos políticos profissionais. Isso não significa que eu não tivesse ou não tenha minhas preferências ou minhas simpatias político-partidárias; da mesma forma, isso não significa que eu perfilhe-me entre a "oposição", ou seja, naquele grupo que se define como tendo que se opor sistematicamente ao governo, ou à "situação", em desrespeito sistemático aos interesses do país e da Humanidade. Minha preocupação, nesse sentido, sempre foi com manter a capacidade e a possibilidade de poder dizer, com um mínimo de independência, que aquelas políticas que considero incorretas são, de fato, incorretas, sem me ver obrigado por filiações partidárias a afirmar que tais políticas seriam corretas ou, por outro lado, ser acusado de partidarismo ao fazê-lo.

No fundo, bem vistas as coisas, a minha precaução prática constitui-se na condição para realizar o comportamento proposto do ponto de vista teórico.

Além disso, cumpre notar que o conceito positivista de "poder Espiritual" sempre me pareceu mais legítimo que todas as outras concepções rivais, como a "hegemonia" gramsciana ou a "ética da responsabilidade" weberiana.

A "hegemonia" defendida por Gramsci nada mais é que o esforço empreendido por um partido de classe em dominar intelectual e moralmente o conjunto da sociedade: trata-se, portanto, de um mero recurso da luta de classes, em que uma parte da sociedade lança mão de expedientes com o objetivo de dominar outras partes da sociedade. Nesse quadro, tanto o "domínio" quanto a "luta de classes" devem ser entendidos literalmente, ou seja, em termos de guerra civil, ainda que disfarçada. Isso não é exagero nem uma suposta distorção da proposta de Gramsci e, antes dele, das propostas de Marx e Engels: a orientação belicista da "luta de classes" e, por extensão, da "hegemonia da classe proletária" sempre foi explícita e assumida por todos esses pensadores; não é à toa que Marx e Engels (mas também Lênin) são considerados filósofos da guerra. Nesse sentido, as interpretações correntes da "hegemonia" – segundo as quais ela é um simples consenso social em favor de valores universalmente válidos, como a "democracia" ou o "Estado de Direito" – ou são versões ingenuamente edulcoradas e falseadoras do pensamento de Gramsci, ou são mistificações da intenção subjacente ao pensamento de Gramsci e, portanto, são formas de enganar o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a independência moral e intelectual e a possibilidade de crítica estão radicalmente afastadas; mesmo no caso da crítica à classe combatida não há independência, pois os "argumentos" utilizados são elaborados de maneira estratégica e tática, ou seja, subordinados à mais rasteira conveniência política; em outras palavras, as idéias são manipuladas ao sabor das alianças políticas, resultando em cinismo e em hipocrisia.

Assim, a idéia gramsciana de "hegemonia" é radicalmente contrária à proposta positivista de "poder Espiritual", seja porque une estreitamente o aconselhamento ao mando, seja porque subordina o aconselhamento ao mando, seja porque finge que o aconselhamento não está a serviço do mando.

A idéia weberiana da "ética da responsabilidade" é intelectualmente mais satisfatória, mas ainda assim é inferior à proposta positivista do "poder Espiritual". A "ética da responsabilidade" forma par com a "ética da convicção"; nessa dupla, a primeira "ética" refere-se ao comportamento adotado pelos políticos, cuja é com as conseqüências de seus atos, no sentido de que devem pesar o que acontecerá se determinadas ações forem tomadas; a "ética da responsabilidade" corresponde ao comportamento adotado por aqueles indivíduos motivados por suas convicções íntimas e para quem, nesse sentido, não importam as conseqüências de sua ação, mas apenas a fidelidade às suas crenças íntimas. Weber comentava que, em sua tipologia, a "responsabilidade" não abre mão, necessariamente, das "convicções", pois os políticos de modo geral precisam de orientações morais e intelectuais para sua conduta; inversamente, a "convicção" nem sempre deixa de lado a "responsabilidade", pois pode considerar os efeitos de seu comportamento na consecução dos valores pelos quais se guia.

Analiticamente, a oposição entre as éticas da "responsabilidade" e da "convicção" é interessante; todavia, ela nada mais é que "interessante". Essa oposição não distingue entre os indivíduos e os grupos que, por um lado, dedicam-se explicitamente à atividade política, isto é, à tomada de decisões e aqueles que, por outro lado, dedicam-se à formulação e à difusão de idéias e valores.

Da mesma forma, essa oposição não estabelece os critérios que devem pautar uma organização sócio-política correta e adequada; ao apenas afirmar que há indivíduos mais preocupados com as conseqüências de seus atos e indivíduos mais preocupados com a fidelidade íntima a si mesmos, essa oposição deixa sem qualquer tipo de orientação os problemas fundamentais que consistem em saber o que é uma boa sociedade, qual é o "bem comum", qual a relação que se deve manter entre o mando e o aconselhamento, qual é a relação que se deve manter entre as classes sociais etc. Poder-se-ia, talvez, argumentar que Weber explicitamente era contrário a que categorias analíticas servissem também como guias para a ação prática; com todas as letras, ele era favorável à famosa "separação entre fatos e valores". Entretanto, embora de fato seja necessário que se respeitem as características e as condições próprias à compreensão racional do mundo, por outro lado também é necessário ter clareza de que, sem orientação prática, essa compreensão racional é vazia e destituída de sentido. Como argumentava Augusto Comte, o valor da ciência (e, de modo mais amplo, o valor da inteligência) consiste em atuar como conselheira dos sentimentos: ora, a oposição entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", bem como, de modo mais amplo, toda a filosofia da ciência de Weber rejeitam a concepção de subordinação da ciência aos sentimentos, ao considerar ilegítima essa subordinação.

A mera oposição analítica entre as éticas da "convicção" e da "responsabilidade", portanto, é sugestiva para o estudo de alguns comportamentos e da "psicologia" de alguns indivíduos, mas ela esgota-se aí; para piorar, essa oposição é uma forma mais ou menos vazia, que pode aplicar-se a uma quantidade enorme de casos díspares e que, no fim, acaba tendo reduzido poder analítico. Por exemplo, é possível aplicar a idéia da "ética da convicção" tanto a Hitler, quanto a Stálin, quanto a Cromwell, quanto a Gandhi; ou a São Francisco de Assis e a Antônio Conselheiro; por outro lado, é possível aplicar o conceito de "ética da responsabilidade" tanto a Bismarck, quanto a Júlio César, quanto a Léon Gambetta, quanto a Fernando Henrique Cardoso: é até interessante pôr essas duas etiquetas em todos esses indivíduos, mas as perspectivas específicas e as condições sociais de todos eles são tão diferentes entre si que, de fato, pouco se aprende com as categorias "ética da responsabilidade" e "ética da convicção". Por fim, aplicar essas duas categorias a todos esses indivíduos diz pouco mais do que já se sabe a respeito de todos eles; na verdade, essas duas categorias apenas formalizam o que empiricamente, com base no mais elementar senso comum, já se sabe a respeito de todos eles.

Assim, a idéia de "ética da responsabilidade", embora seja analiticamente interessante, apresenta vários problemas teóricos e práticos: por um lado, é pouco explicativa e ainda menos descritiva; por outro lado, simplesmente não serve como guia prático.

Para resumirmos, podemos dizer que a idéia gramsciana de "hegemonia", embora baseie-se na união entre teoria e prática, estabelece um vínculo demasiadamente forte e estreito entre ambas as atividades, subordinando a teoria à prática e, portanto, degradando a teoria e tornando a prática profundamente cínica e hipócrita; além disso, a "hegemonia" baseia-se no estreito particularismo de uma classe, que busca dominar e eliminar outra classe, além de incentivar a beligerância. No caso do conceito weberiano de "ética da responsabilidade", embora ele distinga a teoria e a prática, ele leva muito longe essa distinção – na verdade, ele baseia-se na rejeição das imbricações entre teoria e prática –; assim, esse conceito é propositalmente inútil em termos práticos. Já em termos analíticos, isto é, teóricos, embora ele dê azo a algumas reflexões, no final das contas essas reflexões são bastante limitadas e rasas.

Por que faço essas reflexões todas? Porque a conjuntra atual do Brasil – que atravessa ao mesmo tempo intensas crises política e econômica, em que uma é causa e alimento da outra – tem suscitado as mais diferentes reações da parte dos chamados "intelectuais". É claro que o "público em geral" também tem reagido bastante a esses problemas: as inúmeras manifestações que têm ocorrido no Brasil nos últimos dois ou três anos e que se têm incrementado desde as eleições presidenciais de 2014 são a mais clara demonstração de um intenso ativismo social.

Mas a situação dos intelectuais é específica, pois a eles cabe ao mesmo tempo a análise intelectual dos problemas por que o Brasil passa e a indicação de caminhos para que essas crises sejam solucionadas – caminhos que devem ser indicados tanto para a sociedade civil quanto para o governo. Assim, os intelectuais têm um papel fundamental no atual cenário; na verdade, como deveria ser evidente para qualquer cientista social, os intelectuais são importantes em qualquer momento, mas nos períodos de crise essa importância aumenta, justamente devido às dificuldades próprias à legitimidade do governo. Além disso, convém notar que a grande maioria desses "intelectuais" é de professores universitários, que se valem dessa condição institucional para legitimarem-se perante a sociedade e perante o governo e que integram órgãos estatais e entidades civis para emitirem "opinões".

Ora, muitos desses intelectuais mantêm uma postura fortemente crítica contra o governo atual; a maior parte dessas críticas, para não dizer sua totalidade, é justa. Vários desses intelectuais não se preocupam nem com a estabilidade do país, nem, em conseqüência, com a sua governabilidade: em certo sentido, eles não são responsáveis, na medida em que, preocupados com sua críticas, não apontam rumos factíveis para o país superar seus sérios e profundos problemas.

Essa postura constitui o cerne da "oposição": ora, a idéia da "oposição" surgiu na Inglaterra, como sendo o conjunto minoritário de parlamentares, isto é, aqueles parlamentares que não dão apoio ao primeiro-ministro; a autoproclamada função desse grupo seria criticar sistematicamente o governo e elaborar propostas alternativas de políticas públicas, seja como forma de legitimar-se perante a opinião pública (com propostas que difeririam de qualquer maneira das políticas implementadas pelo governo, qualquer que seja a razoabilidade ou a viabilidade dessas propostas alternativas), seja como eventuais contribuições legítimas: em todo caso, a "oposição" basicamente serve para incomodar o governo. No Brasil, nas últimas três décadas, ou a "oposição" foi extremamente crítica, quando não reacionária, ou foi inerte e indistinguível do governo; em outras palavras, como "oposição" o PT sempre foi virulento e, ao tornar-se governo, teve a felicidade de lidar com rivais molengas, desarticulados e sem identidade.

Entretanto, desde as eleições presidenciais de 2014, o comportamento dessa oposição mudou bastante, principalmente devido à insatisfação social com o governo. Essa oposição deixou de ser apática e molenga e, mudando bastante o seu padrão de comportamento, assumiu uma postura cada vez mais radical, em que o que importa é criticar o governo e buscar obter o poder, independentemente de outras considerações. Nesse sentido, essa oposição passou a assumir as piores características que seus rivais mantinham antes de assumir o poder.

Essa oposição – é necessário dar nomes aos bois: o PSDB – é basicamente partidária, isto é, organizada em partido político. O importante a notar é que, embora haja diversos intelectuais vinculados oficialmente a essa oposição partidária, o grosso dos intelectuais que se opõe ao governo não é partidária, ou pelo menos não é vinculada ao principal partido da oposição. É bem verdade que vários desses intelectuais são vinculados a outros partidos políticos, alguns dos quais foram violentamente atacados pelo governo na última campanha presidencial, de sorte que têm mágoa e ressentimento – justificados – com o governo. Mas, ainda assim, muitos outros intelectuais são propriamente independentes, isto é, criticam o governo porque consideram que os atuais rumos e hábitos políticos do país são errados e conduzem a direções daninhas.

Nesse sentido, esses intelectuais "independentes" e, em menor medida, os intelectuais vinculados aos partidos que não o principal da oposição, levam a sério seu papel de "poder Espiritual", ainda que não conheçam e/ou não levem a sério a própria idéia do poder Espiritual; em outras palavras, seja empírica, seja sistematicamente, tais intelectuais que se mantêm críticos entendem que seu papel é formar e orientar a opinião pública.

Por outro lado, vários outros intelectuais buscam apoiar o governo como forma de legitimá-lo neste momento em que a crise de legitimidade também integra o rol de crises. Esse esforço de legitimação, todavia, não consiste em afirmar que várias políticas específicas e/ou que a orientação geral do governo são adequadas para a consecução de determinados fins socialmente necessários e/ou importantes; o que se vê é um esforço sistemático para afirmar a correção de todas as medidas governamentais e para desqualificar todos os que se opõem ao governo (geralmente por meio de sugestões viperinas, como, por exemplo, no sentido de que os críticos seriam quinta-colunas ou aristocratas ciumentos de seus privilégios); as críticas que porventura fazem ao governo vão na direção de que o governo deveria perseverar na direção que toma, independentemente de se tal direção é correta, adequada ou conforme o bem comum. Em outras palavras, são intelectuais simplesmente a serviço do governo: são uma forma cada vez mais desesperada de tentarem realizar a "hegemonia" gramsciana, mas, de qualquer maneira, submetem o aconselhamento ao mando e instrumentalizam o aconselhamento de acordo com as necessidades momentâneas do mando. Na medida em que são intelectuais, esses indivíduos degradam-se como seres humanos; como analistas das políticas públicas, esses indivíduos abrem mão de sua capacidade analítica e crítica; como cidadãos, esses indivíduos procuram apenas servir ao Estado.

Sendo bem franco: pessoalmente, considero assustador o comportamento dos intelectuais governistas, tal o grau de adesão que eles manifestam ao governo. Não se trata aqui de simplesmente apoiar o governo: afinal de contas, o governo existe para governar a sociedade e o normal é que ele seja, de fato, em geral apoiado. O problema aqui consiste em que os atuais intelectuais governistas sistematicamente ignoram problemas evidentes; afirmam que as críticas ao governo são motivadas por "falta de patriotismo" ou por mesquinharia de classe; apóiam propostas irracionais e criticam propostas que visam a racionalizar, a moralizar e a tornar mais eficiente o Estado e o serviço público. A isso se soma o fato de que esse comportamento é vinculado não ao Estado ou ao governo, mas ao partido político que atualmente exerce o governo. Assim, o assustador é que tais intelectuais, por vontade própria, deixam de ser intelectuais para tornarem-se apenas membros do partido político; embora tenham abandonado totalmente o poder Espiritual, valem-se de suas posições institucionais e de seus títulos acadêmicos para darem a impressão de que permanecem no poder Espiritual.

Sem negar os danos que o radicalismo, o extremismo, a exaltação de ambos os lados – do governo e da "oposição" – que a presente conjuntura acarretam e de que se alimenta, estou convencido de que essa verdadeira "traição dos clérigos" é o mais sério problema envolvendo intelectuais neste momento. Esse problema sem dúvida terá, como já está tendo, conseqüências nefastas e, infelizmente, duradouras.

10 agosto 2015

Mais república, menos primeira infância

Com certeza, esta postagem desagradará pessoas de um lado e de outro.

Sem dúvida alguma, a economia brasileira está uma baderna; da mesma forma, a corrupção no governo e nas empresas públicas é uma prática antiga, mas que nos governos do PT assumiu aspectos novos. Em suma, o PT é responsável pela reversão de tendências positivas anteriores e pelo incremento de tendências negativas igualmente anteriores. A isso os petistas respondem da pior maneira possível: "já era assim", "ninguém antes fez tanto pelos desvalidos".

Mas, por outro lado, a chamada "oposição" tem-se comportado da maneira mais irresponsável possível. Isso se dá pelo apoio a movimentos sociais plenamente subversivos - e somente os delirantes conseguem achar bonita a palavra "subversão". Além disso, a "oposição" apoia políticos sabidamente criminosos, que buscam desviar a atenção pública e/ou evitar as investigações contra si adotando a tática do "quanto pior, melhor". Assim, não apenas a "oposição" adota a mesma prática que antes condenava no PT, como também põe seriamente em risco a estabilidade político-econômico-institucional do país.

Parece que estamos sendo governados por crianças, por idiotas, por criminosos que pouco se importam com os destinos nacionais. A pirraça entre PT e PSDB, com apoio do PMDB e dos partidos menores, em definitivo, já foi longe demais.

Não há "república" em nada disso. Estamos próximos das características que os autores clássicos - isto é, os romanos, os gregos e até os renascentistas - caracterizavam como sendo os elementos negativos da "democracia": conflitos civis cada vez maiores e insolúveis, mas maiores e insolúveis apenas em virtude da vontade explícita dos políticos envolvidos.

Em suma, precisamos com urgência de mais república e de menos primeira infância.

09 maio 2015

De Flávio Heinz: "Intelectuais na política"

Reproduzo abaixo a divulgação de um livro organizado pelo pesquisador gaúcho Flávio Heinz, cujo primeiro capítulo é da autoria de Mary Pickering, a respeito de Augusto Comte. Os dados do livro são estes:


HEINZ, Flavio M. (Org.) Dos intelectuais na política à política dos intelectuais. Pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder. São Leopoldo: Oikos, 2015. ISBN: 978-85-7843-459-5

Esse livro faz parte dos esforços do Laboratório de História Comparada do Cone Sul (LabConeSul).

Aliás, como amostra do livro, precisamente o capítulo sobre Comte está disponível para ser baixado (aqui ou no próprio portal do livro):



"Este livro é o terceiro e último de uma série que, ao longo dos últimos anos, buscou situar ao público acadêmico a ambição que orienta os trabalhos do Laboratório de História Comparada do Cone Sul, a saber, a de produzir uma história social de elites, intelectuais e grupos profissionais que seja metodologicamente clara e cujos resultados sejam escrutináveis, ampliando a possibilidade de comparação dos casos em estudo com aqueles de outros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, e assegurando a abertura para a rotinização do diálogo e de práticas interdisciplinares concretas, notadamente com a Sociologia e a Ciência Política. Para fazê-lo, publicamos, em 2011, a obra coletiva “História Social de Elites”, reunindo bons exemplos da opção metodológica fundadora de nosso coletivo de pesquisa, a prosopografia; em 2012 foi a vez da coletânea “Poder, Instituições e Elites – 7 ensaios de comparação e história”, que retomou a importância da dimensão comparativa em nosso trabalho. Superado esse momento de ‘inscrição do perfil metodológico’ do nosso grupo no meio profissional, este último livro vem trazer à apreciação da área um tema de pesquisa caro aos nossos pesquisadores e colaboradores eventuais: a relação entre os intelectuais – nas suas mais variadas formas e modos de apreensão – com a política e o poder. Com este livro, concluímos, portanto, a presente série. A agenda de pesquisa do LabConeSul permanece nas suas linhas de força – a prosopografia, a comparação, o estudo das elites e das profissões – mas avança em direção ao estabelecimento de novos vínculos e parcerias institucionais, além de uma ampliação na sua rede nacional e internacional de pesquisadores". 

01 abril 2013

Richard Dawkins: "Se não acreditamos em Thor, por que crer no deus cristão?"

Observações importantes e, no caso brasileiro, cada vez mais urgentemente necessárias.

O vínculo original da matéria encontra-se aqui.

*   *   *


ENTREVISTA DA 2ª - RICHARD DAWKINS
Se não acreditamos em Thor, por que crer no Deus cristão?
Para biólogo conhecido por teoria do 'gene egoísta', não se deve respeitar crenças que vão contra consensos na comunidade científica
RONALDO RIBEIROCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA FILADÉLFIA (EUA)Fila dando volta no quarteirão. Parecia estreia de um filme de Hollywood.
Tudo para ver a palestra de Richard Dawkins, 72, talvez o ateu mais famoso do mundo, biólogo, tipo raro de intelectual híbrido que se comunica bem com o grande público e com os eruditos dos centros de pesquisa de ponta.
Dawkins alcançou notoriedade tanto nos círculos acadêmicos dos departamentos de biologia quanto no delicado debate público sobre o papel das religiões no mundo contemporâneo.
Após a publicação do livro "O Gene Egoísta", Dawkins ganhou evidência na academia ao deslocar o foco dos estudos em biologia evolutiva dos grupos e organismos para o estudo dos genes.
Segundo o biólogo, quanto mais parecidas duas espécies, maior a tendência de se comportarem de forma cooperativa -o que explicaria em parte tendências altruístas entre seres geneticamente semelhantes.
Ironicamente, tais pendores altruístas viriam do chamado "egoísmo dos genes", uma tendência biológica das espécies de quererem espalhar seus genes.
Dawkins atingiu o grande público ao atacar a noção de um criador do cosmos onisciente e onipotente.
No livro "O Relojoeiro Cego", Dawkins argumenta que a suposta perfeição da natureza e o aparente design que se observa no mundo podem ser explicados, ainda que parcialmente, por meio da biologia evolutiva.
Com "Deus, um Delírio", o cientista britânico nascido em Nairobi (Quênia) se tornou best-seller, ao ampliar suas críticas às religiões em geral e defender que não há necessidade de se conhecer o pensamento religioso ou ter qualquer conexão com entidades divinas para se viver uma vida moralmente digna e eticamente responsável.
Mais recentemente, o cientista tem-se dedicado a viajar o mundo para debater com autoridades religiosas. Boa parte do material gravado abastece os diversos documentários dos quais o cientista participou.
Figura polêmica, Dawkins tem provocado a admiração da comunidade leiga ao pregar o entusiasmo pelo pensamento livre e não dogmático; e também a ira de muitos líderes religiosos por sua crítica impiedosa ao criacionismo -tese que rejeita a evolução das espécies- e, ao mesmo tempo, sua apologia do ateísmo.
Apesar do pensamento sofisticado, agudo e ferino, Dawkins pareceu bastante áfavel, brincalhão e interessado nas ideias alheias.
Foi no dia seguinte à palestra de Dawkins para mais de 1.500 pessoas numa pequena sala sala da Universidade da Pensilvânia, no mês passado, que esse pop star do ateísmo no mundo concedeu à Folha a entrevista a seguir.
Folha - Deus existe?
Richard Dawkins - Nós não sabemos se fadas existem. Nós não levamos a sério a existência do deus nórdico Thor, ou de Zeus, ou de Dionísio ou de Shiva.
Até que tenhamos sérias evidências de que algum deles existiu ou exista, não perdemos tempo com isso. Por que deveria ser diferente com o Deus cristão ou com o judeu ou com o muçulmano?

Mesmo que alguém concorde com o que o sr. acaba de dizer, há milhares de fiéis pelo mundo. É possível explicar essa enorme propensão à fé?
Há experimentos em psicologia infantil que demonstram que crianças, quando indagadas sobre a existência de uma pedra pontiaguda em um ambiente, preferem a explicação que tenha causa e consequência claras.
Em outras palavras, preferem acreditar que a pedra é pontiaguda para que os animais daquele ambiente possam usá-la para se coçarem.
Não aceitam que a pedra pontiaguda se formou a partir de processos geológicos e da erosão através do vento e da água. Talvez muitos dos fiéis de hoje ainda retenham esta atitude infantil ao pensarem sobre o mundo.
Um outra hipótese é que a propensão à fé seja simplesmente um resquício do medo de se ficar só em um ambiente hostil. Nossos ancestrais viviam sob constante ameaça de serem atacados e mortos por animais selvagens.
Pode ser que nossa necessidade de criar fantasmas e divindades que vão nos punir esteja conectada com esse traço evolutivo presente em nossos primórdios.

O sr. diz que há uma tendência ao silêncio em relação às doutrinas religiosas dos outros, que as pessoas evitam debater sobre suas próprias crenças, e que esse fato é nocivo à sociedade. Não seria necessário simplesmente respeitar as diferentes crenças das pessoas?
Não devemos respeitar crenças que influenciam a vida de crianças e que vão contra conhecimento dado como consenso na comunidade científica.
Uma coisa é uma pessoa dizer que acredita em Papai Noel e manter esta crença dentro de sua família -ainda que eu considere uma pena para os filhos.
Quando algumas pessoas, contudo, começam a ensinar que a Terra tem apenas cerca de 10 mil anos, aí eu acho um absurdo e quero lutar contra isso.

Um novo papa acaba de ser eleito. Ele é argentino. É possível dizer que isso representa um avanço em termos políticos da fé no mundo em desenvolvimento?
Se pensarmos que haverá uma menor centralização política daqueles que determinam o futuro da Igreja Católica, sim, sem dúvida.

No Brasil, a Igreja Católica tem perdido fiéis para outras tradições protestantes. Alguns atribuem tal fenômeno à dinâmica dos rituais católicos, ainda bastante hierarquizados e tradicionais, se comparados às religiões protestantes.
Não conheço bem o contexto brasileiro, mas é possível imaginar que a não participação ativa dos fiéis nas missas católicas é um dos fatores que provavelmente têm contribuído para tal queda.
Explicando melhor, os rituais protestantes nos EUA são como shows, os participantes dançam, cantam, tocam instrumentos.
Suponho que no Brasil as missas ainda tenham um formato bastante tradicional e que provavelmente tenham pouco apelo social para conquistar seguidores jovens.

Em sua obra, o sr. dá ênfase à possibilidade de qualquer um rejeitar crenças religiosas ou vivências espirituais e ainda assim ter uma vida plena e ética. Sem as religiões, onde é que encontraríamos códigos morais?
Suspeito que não encontramos regras morais nos ensinamentos religiosos. Se fosse esse o caso, nossa conduta moral não se alteraria praticamente a cada década. Seria estanque.
Pense que até bem recentemente nós considerávamos a escravidão como algo normal e que também as mulheres não deveriam participar dos processos democráticos.

E quanto ao que não conseguimos explicar? Não vem daí uma das "necessidades" da religião e da crença no "sobrenatural"?
Essa talvez seja uma das explicações que mais me aborrecem para se crer em uma deidade.
Eu gostaria que as pessoas não fossem preguiçosas, covardes e derrotistas o suficiente para dizer: "Eu não consigo explicar, portanto isso deve ser algo sobrenatural". A resposta mais correta e corajosa seria a seguinte: "Eu não sei ainda, mas estou trabalhando para saber".

Acabam de ser divulgados os primeiros resultados das pesquisas sobre índices de felicidade idealizados pelo governo do primeiro-ministro britânico, David Cameron. O sr. já investigou a relação entre religiosidade e felicidade?
Não vi os resultados ainda. Quanto à relação entre religiosidade e felicidade, ainda que eu não tenha estudado o assunto, é possível prever que tal correlação é mais um mito do que um fato.
Os países que apresentam melhores índices de desenvolvimento humano e, em tese, uma melhor condição para a existência da felicidade, são países com o maior número de ateus do mundo.
Seus cidadãos encontram bem-estar, alegria e consolo nas possibilidades sociais, culturais e intelectuais concretamente disponíveis em seus países, não em entes divinos.

03 outubro 2010

Jean-Michel Muglioni: Crença em deus e cidadania: há relação?

Jean-Michel Muglioni comenta a afirmação do Papa de que é necessário acreditar em deus para alguém ser um bom ser humano e um bom cidadão. Evidentemente, isso é uma completa falácia, que o autor explica e critica. Vale a pena a leitura (em francês). O original está disponível aqui.

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La moralité dépend-elle de la croyance en Dieu ?

Réflexions théologico-politiques

par Jean-Michel Muglioni


En ligne le 3 octobre 2010

Benoît XVI est allé rappeler aux Anglais que sans la croyance en Dieu, l’humanité est vouée au totalitarisme. Il ne fait ainsi que reprendre les propos contre les Lumières de son prédécesseur. Jean-Michel Muglioni demande ici ce qu’il reste de l’exigence d’universalité du catholicisme si un homme ou même une société qui ne croient pas au Dieu de la religion romaine sont voués au mal. Comment la séparation de l’Église et de l’État peut-elle être admise par un croyant pour qui l’obéissance à la loi civile requiert l’accord de son Dieu ? Il suffit de formuler autrement la question pour avoir une autre réponse que celle des papes : est-il vrai que seule la croyance en Dieu peut éviter à un homme d’approuver Hitler ou Staline ?
Le refus des Lumières

Le Pape fait son métier : il veut des fidèles. Il craint de perdre sa clientèle. Et donc la rhétorique de Ratzinger, comme celle de son prédécesseur, ne recule devant rien, pas même devant la reductio ad Hitlerum et Stalinum : Wojtyla avait écrit que « si l’homme peut décider par lui-même, sans Dieu, de ce qui est bon et de ce qui est mauvais, il peut aussi disposer qu’un groupe d’hommes soit anéanti. Des décisions de ce genre furent prises sous le troisième Reich. ». Ainsi les horreurs du siècle passé seraient dues à l’athéisme.

Et d’où vient cet athéisme ? C’est la faute à Voltaire ! Comme on est cultivé au Vatican, on remonte plus loin : c’est la faute à Descartes, au cogito, à l’audace de se demander comme le fait Descartes si l’idée que nous avons de Dieu n’est pas aussi vide que celle d’une chimère, au lieu de se donner d’abord Dieu comme un être qui s’impose à nous avant tout examen et auquel il faut que nous soyons soumis. C’est aussi la faute à Kant, car il a pour thèse principale l’autonomie, c’est-à-dire la subordination de la croyance en Dieu à la moralité. Kant veut dire en effet que si nous nous conduisons bien parce que, croyant en Dieu, nous craignons son châtiment ou espérons ses récompenses, il n’y a aucune moralité dans notre conduite ; notre vie n’a de valeur morale que si elle a pour principe la libre reconnaissance du bien-fondé de l’honnêteté. Si, prolongée par la croyance en Dieu, notre conviction morale se renforce par une espérance en la réalisation de la justice, alors et alors seulement cette foi (qu’il appelle « pratique rationnelle » ou « raisonnable ») n’est plus une affaire de marchandage. Alors croire en un Dieu bon qui a créé un monde où le bien n’est pas irréalisable a un sens. Bref, Kant subordonne la théologie à la morale au lieu comme le Pape de faire dépendre la moralité de la croyance.


Le refus de la liberté de conscience

Ainsi, pour les papes, le pire n’est pas l’athéisme, puisque Descartes croyait en Dieu et même prouve en un certain sens l’existence de Dieu dans sa Métaphysique. Mais pour Wojtyla, affirmer l’existence de ce qu’il appelle, reprenant le mot de Pascal, « le Dieu des philosophes », c’est déjà de l’athéisme, puisque cette thèse métaphysique dépend du libre jugement qu’une conscience porte sur son savoir. Que Kant justifie la foi dans les limites de la simple raison est encore une manière de croire qui place au-dessus de la croyance la liberté du jugement. Ne pas croire comme le demande le Pape, c’est être un homme dangereux, sur la pente de l’hitlérisme et du stalinisme. L’Église a-t-elle donc réellement admis la liberté de conscience que l’histoire, c’est-à-dire les armes plus que les arguments, lui ont imposé de reconnaître ? Son chef ne se soucie pas tant de la croyance en Dieu que de son emprise sur les consciences : il faut qu’il puisse décider de ce qui est bien et de ce qui est mal. J’ai le sentiment que par bonheur mes amis catholiques ne partagent pas ces préjugés. [ Haut de la page ]


Transcendance d’un pouvoir ou transcendance de la raison

De là aussi les sornettes ressassées même en dehors de l’Église sur la transcendance, qui signifient qu’il faut un être tout puissant au-dessus de l’humanité, car, si elle oublie qu’il peut tout sur elle, elle deviendrait folle. Or cette transcendance théologique est le contraire de la transcendance cartésienne de la raison, qui veut dire qu’il y a une divinité de la pensée, de sorte que penser, pour l’homme, c’est pouvoir comprendre la vérité et non pas seulement se faire des idées, comme on dit. Dans un cas on parle de transcendance pour dire que l’homme doit se soumettre à une puissance supérieure, dans l’autre au contraire, il s’agit de rendre compte de l’honneur de penser : par la pensée l’homme participe de l’absolu et doit donc accéder à l’âge adulte de libre juge. Il arrive aux politiques de regretter eux aussi que les hommes ne soient pas tenus par la croyance en la première sorte de transcendance.


Les intégrismes

Comment s’en prendre aux intégristes musulmans, quand des sites catholiques (il suffit chercher sur le Net Mémoire et identité de Jean-Paul II) citent avec délectation cet ouvrage de Karol Wojtyla et rêvent de voir l’Église romaine imposer sa législation aux États ? Les propos des papes font douter que l’Église ait vraiment admis de ne plus régler la vie des hommes dans la cité : aurait-elle encore la nostalgie du temps où les plus ordinaires des pratiques humaines étaient subordonnées aux normes qu’elle imposait, comme la religion musulmane prétend encore le faire dans de nombreux pays ? La confusion délibérée de la religion et de la morale, puis de la moralité et des mœurs, caractérise tous les intégrismes. Dire que sans la croyance en Dieu, le totalitarisme nous guette, c’est leur donner raison, et c’est avoir une conception elle aussi totalitaire de la société et de la vie humaine en général.


Les régimes totalitaires se sont installés en pays chrétiens

Il y a en outre dans les propos du Vatican une naïveté admirable, car enfin le stalinisme a surtout pris dans des pays où il n’y avait guère d’athées. Je sais que l’Eglise orthodoxe a été très réellement persécutée par le régime communiste, mais est-il étonnant qu’elle ait retrouvé aujourd’hui toute son influence politique et que le pouvoir en place en Russie, dont on nous permettra de douter de la vertu républicaine et démocratique, s’appuie sur elle ? De la même façon, les historiens peuvent-ils nous dire que l’Allemagne des années 30 était composée essentiellement d’électeurs athées ? Que la France de Vichy était essentiellement faite de Français refusant le catholicisme ? La croyance en un même Dieu a-t-elle empêché protestants et catholiques de s’entretuer ? Est-elle pour beaucoup dans le règlement présent du problème irlandais ? Les guerres de religions sont-elles moins effroyables que d’autres, et les croisades ? Mais pour être vicaire de Dieu, on n’en écrit et on n’en dit pas moins n’importe quoi. Autre exemple. Il faut saluer la volonté du Vatican de mettre fin à des pratiques que les ministères de l’éducation ont partout couvertes jusqu’à une période récente, y compris dans l’école laïque, mais on ne voit pas que leur croyance ait mieux garanti de la pédophilie les serviteurs de Dieu que les autres hommes. Il n’est pas vrai que d’une manière générale la croyance en Dieu soit une preuve de moralité ou qu’elle éloigne du mal. [ Haut de la page ]


La reductio ad hitlerum n’a aucun sens

La question du rapport de l’athéisme et de la vertu morale et politique a été débattue par des philosophes, et tout au long du XVIII° siècle, à partir des Pensées sur la comète de Bayle ; ceux-là même qui voyaient là un vrai problème avaient d’autres arguments, et certains d’entre eux voulaient précisément fonder un ordre politique qui ne soit pas subordonné à une religion. Il y a donc une part de vérité dans les propos des papes, mais dans toute leur rhétorique, comme dans toute rhétorique politique ou théologico-politique, le pire est moins ce qu’elle fait dire de faux ou de mensonger, que son usage de la vérité. Par exemple, il est vrai, comme Wojtyla et Ratzinger le remarquent, qu’un peuple peut élire démocratiquement un despote, et ils peuvent prendre l’exemple de Hitler : mais ils n’ont pas le droit d’en conclure que les Lumières et Descartes, ayant appris aux peuples à disposer d’eux-mêmes et à se donner des lois, sont une cause de l’hitlérisme. Il est vrai que les lois démocratiquement votées peuvent être injustes, mais cet argument, et tous les exemples qu’on voudra, car ils sont nombreux, ne permettent pas de conclure que l’athéisme favorise l’injustice des lois. Cet argument n’a aucun sens : avant l’apparition chez nous de la démocratie et avant la séparation de l’Église et de l’État, les lois étaient-elles plus justes ? (Il est vrai que le but de la rhétorique romaine est aussi de s’en prendre à l’injustice prétendue des lois autorisant l’avortement dans certaines conditions). Osera-t-on prétendre que, pour savoir que la loi que les hommes se donnent peut être injuste, et pour avoir le courage de s’y opposer, il faut croire au Dieu des chrétiens ? Les Anciens le savaient et les théories du droit naturel, dont la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen est issue, sont nées d’un combat contre la doctrine de cette Église et contre l’idée que le droit devrait avoir un fondement dans la foi – un fondement théologique et surnaturel, mais non rationnel ou naturel. C’est un retour à ce qu’on appelait la philosophie « païenne » qui a permis la révolution des Lumières. Le prêtre envoyé pour que Montesquieu sur son lit de mort renie L’Esprit des lois ne s’y était pas trompé. Bref, comme toujours, la force de la rhétorique repose sur un pari, qui est l’ignorance de ceux auxquels elle s’adresse. Car on le voit, la plus élémentaire vérité historique est bafouée. [ Haut de la page ]


Subordonner le respect de l’homme à la croyance en Dieu est le préjugé commun d’un certain christianisme et du scientisme le plus réducteur

Subordonner la distinction du bien et du mal à la croyance en Dieu, prétendre que sans cette croyance un homme peut disposer des autres comme il l’entend et les anéantir, subordonner donc le respect de la personne humaine à cette croyance, tel a toujours été le principe des persécutions religieuses.
Mais d’un autre côté il est devenu courant de soutenir que toute limitation imposée par la loi aux manipulations génétiques, par exemple, bride la recherche scientifique au nom de préjugés chrétiens archaïques ; que même le respect accordé à la personne humaine, c’est-à-dire le refus de réduire l’homme à l’animal qu’il est aussi, est un préjugé chrétien ou judéo-chrétien, suprême injure. Ce serait une illusion anthropocentriste qu’affirmer la supériorité de l’homme sur la bête, la valeur absolue de la personne humaine. Si les papes ne changent pas de rhétorique, alors ces « thèses » scientistes ont un bel avenir, car il devient impossible de distinguer religion et superstition et de soutenir que le respect de la personne humaine n’est pas une croyance irrationnelle contraire à la biologie moléculaire ou à la neurologie, lesquelles en effet ne risquent pas de trouver dans leurs laboratoires ce qui distingue l’homme de l’animal.

Envisagée au point de vue politique, la subordination de la morale à la religion revient à abandonner par exemple les comités d’éthique à l’arbitraire, puisque cette croyance ne saurait servir de principe à une législation qui s’impose aussi aux non-croyants. Alors il suffira de considérer qu’il y a une grande diversité de religions et de croyances, qu’elles varient selon les lieux et les époques, et que la vérité scientifique seule est universelle. Le catholicisme a souvent une façon de prétendre à l’universalité (catholique, en grec, veut dire universel) qui ruine ce qui en fait la vérité, c’est-à-dire son affirmation de la valeur absolue de la personne humaine en tout homme quel qu’il soit. Si cette valeur dépend de la religion qu’on a ou qu’on n’a pas, alors c’en est fini de l’universalité. On pardonnera la banalité d’un tel propos, mais elle signifie seulement que l’anticléricalisme est un combat éternel, pour qui du moins ne se contente pas d’une fausse morale et d’une fausse spiritualité.
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© Jean-Michel Muglioni et Mezetulle, 2010