- 22 junho 2015
Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
21 dezembro 2021
Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"
06 agosto 2021
Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis
É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?
Não somente é
possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à
reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar
e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem
como que todos sejam filósofos.
Enfim, se o comum
das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que
são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por
outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre
“conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado
estadunidense Lei e Ordem – SVU
procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a
respeito das séries produzidas por Dick Wolf).
Pois bem: há alguns
dias assisti ao seriado Wanda Visão,
do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse
seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)
Em termos de
qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito,
elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a
primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria
séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma
década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).
Até aí, tudo bem.
Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os
problemas, em número de pelo menos dois:
(1)
por um lado, uma agência
governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de
3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que
seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que
libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador
na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como
inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da
série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam
a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em
concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a
agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a
criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental
é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são
deixadas ilesas.
(2)
Por outro lado, e em concordância com
os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz
lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína
problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para
o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os
seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as
personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a
criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa
criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou
melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus
poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro
e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois,
afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).
Qual o problema de
fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?
Os “super-heróis”
são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades
extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física
descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc.
etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de
proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou
é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que
está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou,
no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa
possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso
haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os
próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas
(como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação
de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são
responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem
maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais
vítimas que criminosos).
Os super-heróis são
uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”:
só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade,
sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras,
a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense:
super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica),
autocentrada.
O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas”.
Os heróis gregos – por
exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis”
não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque
realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem
dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos,
mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus
vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas
que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são
problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se
vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.
Mais: o caráter
heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em
que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas.
Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules,
nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime
(pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa
e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo
menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder
casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e
familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de
Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e
valorizados.
Os heróis gregos
eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que,
embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O
seu valor é dado, na Ilíada, pelos
serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia
o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira
inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a
amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e
pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem,
claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas
Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.
Coroando o caráter
social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas
as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem
suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes
fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As
responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das
vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias
aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras
que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro
exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei)
e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão
Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona).
Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de
antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e
prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de
seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)
Enfim, retornemos a
Wanda Visão: a sua moralidade
extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um
defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a
alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica
acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica
avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.
É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.
15 fevereiro 2021
Raimundo Teixeira Mendes: citações diversas
Apresentamos abaixo diversas citações de Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927, vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana), extraídas de um belo opúsculo publicado em 1899, mas reunindo publicações feitas originalmente em um jornal diário em 1881. Esse opúsculo intitula-se “Calendário positivista – precedido de indicações sumárias sobre a teoria positiva do calendário”.
Mundo e homem, objetivo e subjetivo, cientificidade e
moralidade
Seja qual for o problema que solicite a nossa atenção,
podemos dispor em duas categorias o conjunto dos dados imprescindíveis à sua
completa solução: de um lado, a série de considerações fornecidas pelo mundo;
de outro lado, a soma de exigências resultantes dos interesses humanos. É isto
que se exprime em linguagem filosófica, dizendo que todo problema tem condições
objetivas, – referentes ao mundo,
– e condições subjetivas – referentes ao homem. Por
exemplo, quando se projeta uma estrada de ferro, não basta examinar as
condições do terreno, os lucros pecuniários etc.; cumpre saber sobretudo se a
sua realização não importa a ruína da população a cujo cargo estava antes o
transporte das mercadorias. E, ao formular a solução, é imprescindível indicar
os meios de prevenir semelhante cataclismo, sob pena de ser uma solução
incompleta, cientificamente, e iníqua sob o ponto de vista social e moral.
p. 5-6
Subjetividade e moralidade da existência humana
É para o homem que o homem trabalha; e para o homem devem
convergir todos os esforços humanos; fora deste círculo, tudo é imoralidade e anarquia,
seja qual for o pretexto e o título com que o decorem.
Ora, o predomínio do ponto da vista humano significa a
satisfação dos interesses coletivos, o bem estar de todos, e não as
conveniências de um individuo, de uma cidade ou de uma nação. Toda a concepção
da ordem social que não se mostrar compatível com a felicidade de todos os
homens, seja qual for a sua condição e o seu grau de civilização, é um sistema
imperfeito, incapaz de satisfazer ás inteligências e aos corações bem formados.
p. 6-7
Unidade e síntese humanas
possíveis apenas com o amor e o altruísmo
Ora, é claro que os órgãos do egoísmo não podem ser
escolhidos como devendo dominar para se alcançar que todos os homens tenham o
mesmo sentimento; se cada um cuida de si, é forçoso que haja desunião e
contenda. Só resta escolher para sentimento dominante o altruísmo, isto é, os órgãos
menos intensos, para conseguir que os atos convirjam. Somos assim conduzidos a
esta conclusão fatal: a vida social é impossível sem o predomínio do amor,
isto é, da dedicação. E será isso possível? Seguramente que sim: – tal foi o
resultado de toda a grandiosa
elaboração de Augusto Comte. Com efeito, a satisfação dos instintos altruístas
não exige o aniquilamento dos instintos egoístas; pelo contrario, a eficácia
social dos sentimentos humanos se altera igualmente quando eles se tornam demasiado
subtis ou demasiado grosseiros, na frase do nobre Pensador. A expansão
altruísta é impossível sem uma certa dose de egoísmo: para amar é preciso
viver. Somente, de acordo
com uma profunda observação do fervoroso S. Paulo, o destino superior dos órgãos
inferiores os enobrece e exalta. O ascetismo é condenado pela Religião da
Humanidade, por tornar-nos incapazes de servir a outrem, isto é, de amar;
porque melhor ama quem, melhor serve.
Tomemos um exemplo que esclareça o que porventura houver de
obscuro nas considerações precedentes. Examinemos um operário em hora de
trabalho. A
vida social exige dele uma série de operações que constituem
o sou ofício, e de cujo produto não tem o menor quinhão: trabalha realmente
para outrem. No entanto, ó fácil de ver nele em jogo todos os instintos. O instinto
conservador tem a justa satisfação, visto como a vida lhe é assegurada pelo salário,
e demais ele tem de velar incessantemente para não ser vítima dos perigos que
salteiam a pratica industrial. Os instintos construtor e destruidor funcionam
simultaneamente, porque é da natureza da industria separar e reunir materiais.
O orgulho encontra uma válvula no domínio da matéria bruta, pelo menos. A vaidade
compraz-se na apreciação de seus companheiros. Isto pelo que respeita aos órgãos
egoístas; vejamos os altruístas. A veneração se desenvolve na consideração de
seus chefes e na lembrança dos grandes inventores. A bondade expande-se no
trato dos aprendizes, na recordação dos filhos por quem trabalha, e na
contemplação da posteridade, que virá a gozar dos seus labores e sacrifícios. O
apego finalmente se exercita no culto de seus companheiros e até de seus
instrumentos de oficina. Tome-se qualquer função social, e encontrar-se-ão todos
os órgãos cerebrais em jogo.
Este exemplo basta para mostrar como é possível conciliar a
satisfação de todos os instintos egoístas, com o imprescindível domínio dos órgãos
altruístas; e portanto evidencia a possível solução do grande problema humano.
Para assegurá-la basta fazer intervir uma lei biológica, conhecida de todo o
mundo, e vem a ser que o exercício desenvolve a função e o órgão, e a falta de
exercício os atropina. Não ha quem ignore que o meio de fazer qualquer cousa
bem, é exercitar-se em fazê-la sempre que possível for.
p. 8-10
Sem o altruísmo e a moralidade não há solução dos problemas
enfrentados pelo ser humano
Todo
problema, portanto, em que se desprezar o aspecto moral; toda solução que não
puder ser considerada como um meio de subordinar o egoísmo ao altruísmo, é um
problema não resolvido, é uma solução inútil e até prejudicial. Porque não há meio
termo: ou o egoísmo fica subordinado ou subordina.
p. 11
Noção positiva de
progresso I
Hoje liga-se à palavra progresso a
ideia de qualquer
mudança no que existe; e por outro lado é geral a crença de que
tudo quanto atualmente encontramos na
sociedade, pode-se vir a mudar com o correr dos anos.
Esta concepção da instabilidade das instituições humanas e de sua variabilidade
indefinida constitui a mais seria ameaça à ordem publica, e está em flagrante
contradicção com as indicações do método positivo nas ciências inferiores.
p. 12
Noção positiva de progresso
II
Para ele [Augusto Comte] tudo quanto se tinha passado até então, se dera em virtude
de leis naturais; e para descobri-las só havia
um caminho a seguir: – ver como se tinham passados
os fatos registrados pela história. Feito isto, o
conhecimento das leis sociais e morais poderiam
dirigir a intervenção humana no governo do homem,
assim como as leis matemáticas, físicas e químicas a dirigem na construção de
qualquer máquina.
Com estas disposições metódicas, que aprendera no cultivo das
ciências conhecidas até si, desde a matemática até a biologia, Augusto Comte empreendeu o
descobrimento das leis que regem a sociedade e o homem.
Foi então que reconheceu que de fato as
sociedades variavam com o tempo, o que já outros haviam
também reparado antes dele; mas o que ninguém
tinha feito e ele fez foi dizer como é que se
opera semelhante variação. Foi assim que ele construiu a sociologia,
demonstrando que o progresso consiste sempre:
1.° Sob o aspecto intelectual,
em fazer a razão
humana passar por três fases: teológica, metafísica e positiva.
2.° Sob o aspecto
pratico, em fazer a atividade passar pelas três fases de ataque, defesa, e industria ou paz.
3.° Sob o aspecto
moral, em fazer o sentimento passar elas três fases; Família, Pátria e Humanidade.
Em virtude da primeira lei, o homem tende cada vez a tornar-se
mais sintético; em virtude da
segunda
a tornar-se mais sinérgico; em virtude da
terceira
a tornar-se mais simpático. E tudo isso
se
resume neste aforismo único: O homem torna-se
cada
vez mais religioso.
Assim, o positivista crê que a sociedade muda, mas não crê que mude ad
libitum do primeiro que chega; o progresso para
ele tem uma significação precisa.
p. 13-14
Noção positiva de ciência
Vejamos agora a importância que se deve atribuir à ciência,
isto é, qual deve ser a posição da
inteligência no conjunto da vida humana.
Em primeiro lugar observemos que o ascendente científico não
exige que cada homem seja
um
sábio; se assim fosse, o positivismo não passava de
quimera. Existe uma fé científica, como
existem uma fé teológica e
uma fé metafísica: crê-se por
confiança e sem demonstração. Para evidenciá-lo basta
reparar que a maioria do Ocidente acredita
no
movimento da Terra; e no entanto bem pequeno é
o numero dos que estão nos casos de formular hoje
semelhante teoria. Crê-se porque pessoas que se
julgam competentes assim o afirmam.
Isto posto, é fácil de mostrar o caráter anárquico e corruptor
da inteligência isolada. Basta reparar que a construção
de qualquer máquina de guerra exige em nossos
dias talvez maiores esforços intelectuais do que os
instrumentos industriais. No ponto de vista objetivo
o monitor Solimões é mais
apto para revelar a força prodigiosa da ciência moderna do que as faluas que
cruzam a nossa baía. Mas decida cada um por si em qual dos casos
a inteligência teve melhor destino: se construindo um monstro de destruição
numa época que deve aspirar à paz; se construindo um aparelho insignificante
consagrado a estreitar as relações sociais.
A ciência isolada é até prejudicial; como todos os aspectos de nossa existência,
ela tem de subordinar-se ao amor universal que nos impele a servir
à
Família, à Pátria, e à Humanidade.
p. 15-16
23 fevereiro 2016
Gazeta do Povo: "Tributação contra a imoralidade"
* * *
Tributação contra a imoralidade
- Gustavo Biscaia de Lacerda
A justificativa político-moral da isenção tributária perde intensidade face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira
26 junho 2015
"Grandes poderes trazem grandes responsabilidades": Homem-Aranha positivista?!
De fato, a frase "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades" é familiar aos aficcionados por gibis e, em particular, pelo Homem-Aranha; essa frase era dita pelo tio Ben, que era tio de Peter Parker (o alter ego do Homem-Aranha).
O que deve ser notado, todavia, é que essa frase não é do "tio Ben" - nem, por extensão, do criador do Homem-Aranha, Stan Lee -; na verdade, ela é do fundador do Positivismo, Augusto Comte, que nos quatro volumes do seu monumental Sistema de política positiva (1851-1854) repete-a inúmeras vezes.
Qual o sentido da frase de Comte? Ela estipula que os poderosos - isto é, aqueles que têm poder e riqueza - devem agir de maneira a beneficiar a sociedade e não a usufruir egoisticamente seus recursos. Em associação a esse raciocínio, está a observação de Comte de que a riqueza é socialmente produzida e, portanto, deve ser revertida em benefício da sociedade.
A afirmação da responsabilidade social dos ricos e dos poderosos acompanha, implícita e explicitamente, o reconhecimento de que a riqueza e o poder político concentram-se em alguns grupos sociais - o que, bem vistas as coisas, não é uma observação chocante em si mesma, sendo o mais puro senso comum político e sociológico. O problema, claro, surge quando se afirma que a riqueza e o poder político devem ser distribuídos por toda a sociedade, de modo igual para todos, deixando de lado qualquer consideração sobre as possibilidades de geração e aumento da riqueza, por um lado, e sobre em que consiste exatamente o poder político, por outro lado.
Em suma, esse tipo de raciocínio só pode ser formulado por aqueles que não perdem tempo e recursos preciosos sendo contra o capital e o Estado, mas que se preocupam com o emprego socialmente responsável dessas instituições.
Em todo caso, não deixa de ser curioso como, ao repetir essa frase, o Homem-Aranha revela-se positivista!
A publicação original da matéria pode ser consultada aqui.
* * *
Suprema Corte dos EUA cita Homem Aranha ao proferir decisão
10 dezembro 2014
18 março 2014
Bill Maher comenta o filme "Noé" e a moralidade teológico-monoteísta
03 fevereiro 2013
Aumenta descrença em deus na Europa
“Os ateus também podem desenvolver valores sagrados”
O número de não crentes aumenta, assim como aqueles que duvidam da existência de Deus. Quantos são os ateus? Eles também podem ter valores absolutos e uma espiritualidade? As respostas de Philippe Portier, diretor de estudos na Escola Prática de Altos Estudos e diretor do Grupo Sociedades, Religiões, Laicidades.
A entrevista é de Henrik Lindell e está publicada no sítio da revista francesa La Vie, 31-01-2013. A tradução é doCepat.
Eis a entrevista.
Podemos afirmar que o número de ateus está aumentando?
Sim. De modo geral, o número dos sem religião aumenta, tanto na França como em outros lugares da Europa. É uma certeza. Por sem religião entendo pessoas que se declaram sem afiliação. No interior desse grupo, a parte daqueles que se dizem sem Deus também está aumentando. No total, assistimos, portanto, a um distanciamento com a crença em Deus.
Quanto são eles?
Os números variam em função de questões específicas. Na França, 28% a 30% da população se diz sem Deus. Entre os jovens, entre 18 e 30 anos, a fração sobe para 35%.
E o número de agnósticos também está aumentando?
Sim, mas melhor que falar de agnosticismo, um termo que remete à filosofia do Iluminismo e a uma postura de dúvida do religioso, prefiro os termos possibilismo ou probabilismo. Para essas pessoas, probabilistas, Deus talvez exista. E esta zona cinzenta se desenvolve. É, talvez, a população mais importante. Eles são em torno de 35-40% da população.
E os crentes?
Haverá 25% a 30% que estão certos de que Deus existe. Mas para esses crentes, Deus não é sempre o mesmo. Não obedece necessariamente às regras da religião instituída.
Os ateus sempre têm o mesmo tipo de descrença?
Não. Entre aqueles que dizem “eu não creio em Deus” e aqueles que dizem não ter nenhuma crença espiritual, há uma brecha considerável. Ora, entre os europeus há muitas vezes um espiritualismo difuso, que não se identifica com o materialismo tradicional que está na origem do ateísmo. E nas pesquisas qualitativas feitas com ateus, encontramos muitas vezes a ideia de que o homem estaria dotado de um espírito. O que remete a uma possível ideia de um espírito que ultrapassaria os nossos próprios corpos.
Esse ponto, que é muito importante, permite distinguir dois grupos. Um primeiro, que se encontra do lado do materialismo e que é fortemente militante, por exemplo, na Livre Pensamento. Há também um ateísmo mais popular que desconfia das Igrejas, mas que não quer abraçar todos os pensamentos do ateísmo militante.
Os ateus também produzem crenças?
A questão é saber se o fato de se dizer ateu levará necessariamente a uma visão desprovida de qualquer significação religiosa. Na sociologia das religiões, há teses que se opõem. Segundo uma dessas teses, defendida por pesquisadores italianos, os ateus produzem significações religiosas. Mais precisamente, eles sacralizariam normas de existência que fazem duvidar da possibilidade de uma crítica. Assim, haveria uma religião civil e mesmo uma religião política para qualificar alguns valores que são promovidos pelos ateus fora de qualquer crença em Deus. Também podemos falar de um “monoteísmo de valores” a propósito das populações que erigem em valores sagrados o princípio da autonomia do sujeito, o que permite fundar sua própria existência.
Eles não são, portanto, relativistas o tempo todo?
Nota-se que entre os ateus alguns valores não são negociáveis. O que significa que não nos encontramos mais no relativismo absoluto. A título de exemplo, os direitos da consciência são absolutizados. Assim como os direitos da criança e da mulher. Esses valores não remetem a elementos sobrenaturais. Mas elas aparecem como valores sagrados não negociáveis para pessoas que recusam a crença em Deus.
É possível falar de uma religião laica?
A noção de “religião laica” remete a uma concepção muito particular da existência política. Nem todos os ateus a compartilham necessariamente. Mas tipicamente, os militantes de organizações como a União dos Ateus, a UniãoRacionalista ou a Federação Nacional do Livre Pensamento defendem um modelo de religião laica. Trata-se de um Estado que fixa normas de existência com uma escola que é exclusivamente laica. Esta religião pode desenvolver uma moral laica, difundida pela escola. Ela engloba, portanto, a sociedade em seu conjunto. Nesse sistema de religião laica não se procura necessariamente suprimir autoritariamente o fenômeno religioso. Ao contrário, quer-se privatizá-la de maneira rigorosa: a religião é expulsa para a esfera privada.
Mas nem todos os ateus compartilham esta visão restritiva da religião?
Muitos ateus comuns não somente não compartilham esta visão, como a ignoram! Eles simplesmente se afastam das instituições religiosas que lhes parecem representar um Deus autoritário. Ou seja, esses ateus também podem desenvolver valores sagrados fundados na autonomia do sujeito: os direitos da criança, a possibilidade de as mulheres escolherem sua própria existência, etc., sem que haja nisso necessariamente uma referência a um modelo de tipo laico. Pois alguns ateus são favoráveis a uma ética republicana pura. Os outros aderem antes a uma ética liberal extrema, em oposição à republicana.
Para os ateus, o indivíduo constrói sua própria existência, de maneira autônoma?
Sim e é por esta razão que eles são favoráveis às reformas sociais. Eles defenderam a contracepção e o aborto nos anos 1960 e 1970, depois a procriação assistida nos anos 1980. Hoje, eles são favoráveis à eutanásia e ao casamento gay. A questão de fundo é que defendem o fato de que o indivíduo deve poder construir sua própria existência de maneira autônoma.
Entre os crentes, o princípio da organização da vida não é o mesmo. Eles encontram uma referência em normas superiores. Eles cultivam a ideia de uma transcendência e de uma moralidade que foge à liberdade do sujeito. O que acaba por fundar uma visão que desconfia da evolução não controlada.
Os católicos têm a fama de serem majoritariamente de direita. Os ateus são mais de esquerda?
Quanto mais longe se estiver do polo religioso, mais se é ateu, mais se vota na esquerda. Quanto mais afastado da crença em Deus, mais se é favorável à evolução das legislações sociais. Outra correlação: quanto mais jovem for, mais se é aberto a reformas sociais. Ao contrário, quanto mais perto se estiver do polo religioso, portanto crente e membro de uma religião institucionalizada, mais se vota na direita.
Mas, atenção! Eu insisto novamente no desenvolvimento de zonas cinzentas, marcadas pela incerteza, que está em sintonia com a ultramodernidade. Nossa sociedade não é mais tão dividida que em outros tempos entre ateus militantes e católicos da certeza.
No entanto, há uma clivagem muito clara entre crentes e ateus em relação a temas sociais. Sim, sempre há uma militância ateia em oposição a uma militância religiosa. E nesse momento, dois campos dão o tom nos debates públicos. Eu vou usar o termo “guerra de culturas”. Mais precisamente, de um lado nós temos a cultura da autonomia do sujeito. Do outro, uma cultura da normatividade. E entre essas duas culturas, há diferenças muito importantes sobre a maneira de conduzir uma sociedade.
Qual polo predomina?
Predomina mais o polo ateu. A tendência dominante é a do relativismo e do afastamento das populações das normas religiosas. Isso não é necessariamente uma hostilidade para com as Igrejas, mas considera-se cada vez mais que os indivíduos podem levar sua existência como bem lhes aprouver. Esta secularização dos comportamentos e a autonomização das consciências é hoje mais importante que o outro polo, que, entretanto, resiste bem. Tem-se também a impressão de que o governo está se afastando cada vez mais do polo religioso. Eu diria que o atual governo pende para o lado do polo da não-crença e para o lado do princípio da autonomia, que é dominante.
Mas esse fato remete a processos de socialização diferentes. O primeiro, bem entendido, que os socialistas romperam, há muito tempo, qualquer relação com o polo religioso. E as classes médias bem formadas e bem representadas dos socialistas continuam a afastar esse governo do polo religioso e, portanto, de uma visão moral da lei.
O que muda com esse governo é que ele vai mais longe que em outros tempos na afirmação do princípio da autonomia. Eu recordo que as principais reformas sociais, até agora, foram votadas pela direita: a contracepção em 1967, o aborto em 1975, a bioética em 1994, a eutanásia em 2005. Agora o governo socialista propõe uma espécie de ruptura – a ponto de falar de “mudança de civilização” – em relação a questões como a filiação e a morte. É preciso levar em conta essas mudanças.
E as Igrejas? Elas reagem mais fortemente que antes?
Sim, é o outro elemento desta evolução. A Igreja católica intervém de maneira mais militante que no passado. Por quê? O corpo episcopal e os sacerdotes mudaram. Eles se tornaram mais identitários e estão mais apegados aos seus princípios morais. Eles sentem também que a sociedade, especialmente entre os probabilistas, não está segura da necessidade de desordenar a tal ponto as regras tradicionais da sociedade.