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19 agosto 2011

Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

Evidentemente, os pais que reclamam estão corretos. A direção da escola está impondo suas crenças aos alunos, sob a desculpa de que é um ato de socialização e transmite bons sentimentos. Mas a "socialização" que os pregadores aceitam é somente aquela que eles fornecem, para forçar as próprias crenças (não nos esqueçamos de que Hitler também "socializava") e a "ira divina" e o "medo do inferno" estão muito longes de serem "bons sentimentos".

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Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

19/08/2011 - 9h34

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Uma “guerra santa” foi travada entre os pais das 180 crianças de 4 e 5 anos que estudam no Jardim de Infância da 404 Norte, na região central de Brasília. Uma oração feita pelos alunos diariamente, antes do início das aulas, é o principal motivo da discórdia. De um lado está um grupo de pais que pede a exclusão de referências religiosas das atividades escolares. Do outro, os que apoiam o ritual diário e consideram que a direção da escola está sendo perseguida.

A discussão teve início quando uma denúncia sobre o assunto foi encaminhada à Ouvidoria da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Todos os dias antes das aulas os alunos se reúnem no pátio da escola para o momento chamado de acolhida. Nessa hora, são estimulados a fazer uma “oração espontânea”, como define a diretora Rosimara Albuquerque. A cada dia, crianças de uma turma ficam responsáveis por fazer os agradecimentos a Deus ou ao “Papai do Céu”. “Pode agradecer pelo parquinho, pelos colegas. Mas houve um questionamento por parte dos pais para que fosse um momento de acolhida um pouco mais amplo já que algumas famílias não comungam dessa religião, que seria basicamente cristã”, conta Rosimara, que está à frente da escola há seis anos.

Para a radialista Eliane Carvalho, integrante da Associação de Pais e Mestres do colégio, a escola está ultrapassando os limites permitidos pela legislação. Ela e outros pais que protestam contra essas atividades se apoiam no princípio constitucional da laicidade para pedir que práticas de cunho religioso fiquem de fora do ambiente escolar. Além do momento da acolhida, ela conta que notou outros sinais de violação, a partir de informações que o filho de 4 anos levava para casa.

“Não posso dizer que existem dentro da sala de aula práticas religiosas. Mas meu filho não aprendeu em casa a orar em nome de Jesus. Um dia ele me disse que o telefone para falar com Jesus era dobrar o joelho no chão”, relata Eliane.

Em resposta à denúncia, um grupo maior de pais organizou um abaixo-assinado a favor da escola e da oração no início das aulas. Alguns alegam que a diretora está sendo perseguida por ser católica e atuante em grupos religiosos. “A forma como eles [professores e direção] estão atuando não é nada abusiva ou direcionada a uma crença específica. Eles colocam a palavra de Deus, como entidade superior, e agradecem à família. São só coisas boas, frutos bons. Quem está incomodado é uma minoria”, defende Thiago Meirelles, que é católico e pai de um aluno.

Para Carolina Castro, mãe de outro estudante, a intenção da escola é positiva e busca a socialização. “Não acho que eles estejam tratando de religião em si, mas passando uma noção de agradecimento do que é precioso na vida. Não acho que isso seja ensino religioso”, diz.

Eliane Carvalho lamenta que a discussão tenha ficado polarizada. “Não é uma discussão pessoal, mas de currículo. O grupo que fez o abaixo-assinado passou a nos ver como perseguidores de cristãos, hoje somos vistos como pessoas absurdas que não querem a palavra de Deus na escola. Todos têm o direito de fazer suas orações, mas eu questiono o fato de a escola aceitar uma prática que, para mim, se configura em arrebanhar fiéis”, diz.

O momento da acolhida é feito há 40 anos, desde que a escola foi fundada, e é comum também em outros colégios da rede. Na última semana a reza foi substituída por cantigas de roda e outras atividades. “Aí, sim, parecia uma escola, antes parecia uma igreja. Como pai que tem a obrigação de dar uma orientação religiosa à filha, não posso permitir que haja divergência. O mais triste é que, apesar de essas pessoas dizerem que estão pregando o amor e o respeito, elas não têm respeito nenhum pela minha liberdade de que não haja essa interferência [religiosa]”, diz Mafá Nogueira, pai de uma aluna.

Para resolver o problema, a escola vai convocar reuniões com pais, professores, funcionários e representantes da Secretaria de Educação. “Vamos discutir como a gente pode abordar a pluralidade e a diversidade sem agredir ninguém e que todos possam sair satisfeitos. Mas essa polêmica é salutar porque, na medida em que a gente ouve questionamentos de pais que pensam diferente, isso é saudável para o crescimento. Podemos adotar uma postura diferente, estruturada no que a comunidade pensa”, avalia a diretora Rosimara, que usava no pescoço um cordão com um crucifixo enquanto conversava com a reportagem da Agência Brasil.

A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que desconhece problemas semelhantes em outras escolas da rede e reiterou que orienta as unidades a seguir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que veda qualquer prática proselitista no ambiente escolar.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

03 março 2011

Hélio Schwartzman: Religião nas escolas

Artigo do jornalista Hélio Schwartzman, publicado hoje (3.3.2011) na Folha de S. Paulo. Como TODOS os que se debruçam sobre o assunto alertaram, a disciplina de "Ensino Religioso" produz resultados apavorantes. (Texto originalmente disponível aqui: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/883388-religiao-na-escola.shtml.)

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Religião na escola

"O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta a professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!"
A cena, que teve lugar numa escola pública de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, abre a reportagem de Angela Pinho sobre o ensino religioso no Brasil, publicada no último domingo na Folha. É um retrato perfeito da encrenca em que essa disciplina, que vem crescendo e hoje abarca mais ou menos a metade das escolas do país, nos lança.

Se as historietas bíblicas são reais, como quer a professora, então nós temos vários problemas. Procedamos por ramos do saber, a começar da física. De acordo, com Josué 10:12, Deus parou o Sol para que os israelitas pudessem massacrar os amorreus. Mesmo que eu não duvidasse da onipotência do Senhor, pelo que sabemos hoje de mecânica, nada na Terra sobreviveria a uma súbita interrupção de seu movimento de rotação. Em quem o aluno deve acreditar, no professor de religião ou no de ciência?
A física não o comoveu? Que tal a geologia? Pela Bíblia, a Terra tem cerca de 6.000 anos --5.771, a confiar nas contas dos rabinos. Pela geologia, são 4,5 bilhões. É difícil, para não dizer impossível, conciliar a literalidade das Escrituras com a existência de fósseis com idades substancialmente maiores que os seis milênios. Do lado de qual professor o aluno deve perfilar-se?
Talvez o problema esteja nas ciências "duras". Passemos às humanidades. A Bíblia, como todo mundo sabe ou deveria saber, é a fonte da moral, e os ensinamentos que ela traz nessa área são incontestáveis. Será? Em várias passagens, o "bom livro" autoriza ou mesmo manda fazer coisas que hoje consideraríamos horríveis, como vender nossas filhas como escravas (Êxodo 21:7) e assassinar parentes que abracem outras religiões (Deuteronômio 13:7). Se julgamos que a ética se aprende através de exemplos livrescos, sugiro trocar as Escrituras pelo mais benigno Marquês de Sade.
OK. Alguém pode argumentar que essa professora é uma exceção. Afinal, ela parece estar sustentando a inerrância da Bíblia, conceito que, no Brasil, é defendido por poucas religiões, notadamente adventistas e testemunhas de Jeová. Para as demais, as Escrituras não precisam e nem podem ser tomadas ao pé da letra.
Admito que essa mudança de discurso nos livra de algumas das dificuldades mais vexatórias --já não precisamos conciliar o criacionismo da Terra jovem com as aulas de ciência--, mas nem de longe acaba com elas.
Como já expliquei numa coluna antiga, embora seja em teoria possível juntar uma teologia um bocadinho mais sofisticada com a seleção natural neodarwinista, essa conciliação acaba resultando num Deus menos atuante, que cria as leis do universo e se retira. Ocorre que esse é o Deus de Newton e de Leibniz, mas não o das pessoas que vão a cultos. Para elas, um Deus que não ouve preces e não interfere nos destinos dos humanos é inútil. E esse Deus que elas querem --e que os sacerdotes pretendem colocar nas aulas de religião-- é, pelo menos no plano psicológico, incompatível com a ciência contemporânea que deveria ser ensinada nas escolas.
Não estou evidentemente sugerindo que as pessoas devam rifar Deus para ficar com a ciência. Essa é a minha opção, mas não acho que deva impô-la a ninguém. O simples fato de uns 90% da humanidade manifestar preferências religiosas é um bom indício de que essa é uma característica da espécie, como a tendência a gostar de música ou aquela quedinha por substâncias psicoativas. A verdade é que o ser humano tem algo de esquizofrênico. Só conseguimos conchavar crenças religiosas, que de algum modo acabam apelando ao impossível ou improvável, com o rigor lógico exigido pelo método científico, porque nosso cérebro está dividido em módulos. "Grosso modo", quando a parte responsável pelo pensamento lógico está ativa, inibe a área da religião, e vice-versa. Com esse mecanismo, as contradições, quando não passam despercebidas, tornam-se digeríveis.
Até para facilitar esse processo, não convém que religião e ciência sejam ensinadas no mesmo espaço. Para que a criançada aprenda desde cedo a distinguir o discurso do "lógos" (científico) do do "mythos" (religioso), é melhor que a escola trate apenas da ciência e que a religião fique a cargo dos templos.
Cuidado, não estou afirmando que não seja possível estudar a religião com ferramentas científicas. Em princípio, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a neurociência estão aí para isso. Mas convém lembrar que estamos falando aqui de crianças de 6 a 15 anos, muitas das quais mal conseguem aprender português e as operações aritméticas básicas. Não me parece que a abordagem científica da religião deva ocupar um lugar muito alto na lista de prioridades. De resto, duvido que o lobby que advoga pelo ensino religioso esteja ansioso para ver a fé submetida a exame crítico.
Para além da cabeça da garotada, o ensino religioso na rede oficial também gera uma série de problemas institucionais. Como eu escrevi em texto que acompanhou a reportagem principal, a existência dessa disciplina em escolas públicas fere a separação entre Estado e igreja.
Pelo menos em teoria, o Brasil é um Estado laico. Não há religião oficial e o artigo 19 da Constituição proíbe expressamente o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. É claro que a teoria soçobra antes mesmo de chegarmos ao artigo 19. O próprio preâmbulo da Carta invoca a "proteção de Deus", e o artigo 210 prevê o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.
Vale aqui observar que a única Constituição verdadeiramente laica que tivemos foi a de 1891, que rompeu com a Igreja Católica e eliminou quase todos os seus privilégios. As que a sucederam reintroduziram o ensino religioso.
Embora doutrinadores gostem de dizer que não há contradição entre os artigos 19 e 210, é forçoso reconhecer que colocá-los lado a lado gera pelo menos um mal-estar. Não é o único. A diferença é que, ao contrário de outros estrépitos constitucionais, que conseguem passar relativamente despercebidos, esse está produzindo consequências.
Por considerar que o Estado não pode regular matéria religiosa sem romper sua neutralidade diante delas (que caracteriza o laicismo), o CNE (Conselho Nacional de Educação) optou por não fixar parâmetros curriculares nacionais para a disciplina. A decisão é institucionalmente correta (e constitui uma prova indireta do erro que foi colocar o ensino religioso na escola pública), mas gerou um deus nos acuda, onde cada Estado definiu ao sabor da conjuntura política local como a matéria seria ministrada.
As pesquisadoras Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, em "Laicidade e Ensino Religioso no Brasil", traçam um panorama desse pequeno caos.
Pelo que elas puderam levantar, Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro optaram por um sistema confessional, que não se distingue da educação religiosa oferecida em escolas ligadas a igrejas. Não é preciso PhD em Direito para constatar que esse tipo de ensino afronta o dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que veda o proselitismo no ensino religioso.
Os demais Estados menos São Paulo escolheram o modo interconfessional, no qual as religiões hegemônicas se unem contra as mais fracas e contra ateus e agnósticos para definir um núcleo de valores a ser ensinado aos alunos. Tampouco é um exemplo de defesa dos direitos das minorias.
Apenas São Paulo fez uma leitura um pouco mais crítica dos mandamentos constitucionais e se definiu pelo ensino não confessional. Pelo menos no papel, aqui as crianças têm aulas de história das religiões, no que é provavelmente a única forma de juntar sem produzir muitas fagulhas o ensino religioso com o princípio da separação entre Estado e religião.
Resta apenas responder porque a laicidade é assim tão importante. O problema com as religiões reveladas é que elas trazem absolutos morais. Se a lei foi baixada pelo Altíssimo, apenas querer discuti-la já representaria uma segunda ofensa contra o Criador. E utilizar absolutos na política --religiosos ou ideológicos-- é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos. O remédio contra isso, como já intuíram no século 18 os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, é a separação Estado-igreja. Ela facilita o advento da política como arte da negociação e, mais importante, favorece a noção de que minorias têm direitos que devem ser protegidos mesmo contra a maioria. Aqui, paradoxalmente, o laicismo se torna a principal força a proteger as religiões umas das outras.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

31 agosto 2009

Carta aberta dos ateus ao presidente Lula

Carta aberta dos ateus ao Presidente Lula

Reproduzo aqui a "Carta" disponível no portal da ATEA e redigida por Daniel Sottomaior. Embora eu não seja ateu (sou agnóstico, por ser positivista), esse documento merece minhas subscrição e divulgação.

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Caro presidente

o senhor chegou ao poder carregado pela bandeira de uma sociedade mais justa e mais inclusiva. O uso da palavra "excluídos" no vocabulário das políticas públicas tem o mérito de nos lembrar que as conquistas de nossa sociedade devem ser estendidas a todos, sem exceção. Sim, devemos incluir os negros, incluir as mulheres, incluir os miseráveis, incluir os homossexuais. Mas, presidente, também é preciso incluir ateus e agnósticos, e todos os demais indivíduos que não têm religião.

Infelizmente, diversas declarações pessoais suas, assim como políticas do seu governo, têm deposto em contrário. Ontem mesmo o senhor afirmou que há "muitos" ateus que falam sobre a divindade da mitologia cristã quando estão em perigo. Ora, quando alguém diz "viche", é difícil imaginar que esteja pensando em uma mulher palestina que se alega ter concebido há mais de dois mil anos sem pai biológico. Com o tempo, algumas expressões se cristalizam na língua e perdem toda a referência ao seu significado estrito. Esse é o caso das interjeições que são religiosas em sua raiz, mas há muito estão secularizadas. Se valesse apenas a etimologia, não poderíamos nem falar "caramba" sem tirar as crianças da sala.

Sua afirmação é a de quem vê “muitos” ateus como hipócritas ou autocontraditórios, pessoas sem força de convicção que no íntimo não são descrentes. Nós, membros da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, não temos conhecimento desses ateus, e consideramos que essa referência a tantos de nós é ofensiva e preconceituosa. Todos os credos e convicções têm sua generosa parcela de canalhas e incoerentes; utilizar os ateus como exemplo particular dessas características negativas, como se fôssemos mais canalhas e mais incoerentes, é uma acusação grave que afronta a nossa dignidade. E os ateus, presidente, também têm dignidade.

Duas semanas atrás, o senhor afirmou que a religião pode manter os jovens longe da violência e delinqüência e que “com mais religião, o mundo seria menos violento e com muito mais paz”. Mas dizer que as pessoas religiosas são menos violentas e conduzem mais à paz é exatamente o mesmo que dizer que as pessoas menos religiosas são mais violentas e conduzem mais à guerra. Então, presidente, segundo o senhor, além de incoerentes e hipócritas, os ateus são criminosos e violentos? Não lhe parece estranho que tantos países tão violentos estejam tão cheios de religião, e tantos países com frações tão altas de ateus tenham baixíssimos índices de criminalidade? Não é curioso que as cadeias brasileiras estejam repletas de cristãos, assim como as páginas dos escândalos políticos? Algumas das pessoas com convicções religiosas mais fortes de que se tem notícia morreram ao lançar aviões contra arranha-céus e se comprazeram ao negar o direito mais básico do divórcio a centenas de milhões de pessoas. Durante séculos.

O mundo realmente tinha mais paz e menos violência quando havia mais religião? O despotismo dos soberanos católicos na Europa medieval e a crueldade dos feitores e senhores de escravos no Brasil-colônia vieram de pessoas religiosas em um mundo amplamente religioso que violentava povos e mentes em nome da religião. O mundo não tinha mais paz nem menos violência naquela época, como o sabem muito bem os negros e índios.
Não eram católicos os generais da ditadura contra a qual o senhor lutou, e o seu exército de torturadores? Não haveria um crucifixo nas paredes do DOPS onde o senhor foi preso? A base dos direitos individuais invioláveis pela qual o senhor tanto lutou são as democracias modernas, seculares e laicas, e não os regimes religiosos. Tanto a geografia como a história dão exemplos claros de que mais religião não traz mais paz nem menos violência.
A prática de diminuir, ofender, desumanizar, descaracterizar e humilhar grupos sociais é antiga e foi utilizada desde sempre para justificar guerras, perseguição e, em uma palavra, exclusão. Presidente, por que é que o senhor exclui a nós, ateus, do rol de indivíduos com moralidade, integridade e valores democráticos?

No Brasil, os ateus não têm sequer o direito de saberem quantos são. O Estado do qual eles são cidadãos plenos designa recenseadores para ir até suas casas e lhes perguntar qual é sua religião. Mas se dizem que são ateus ou agnósticos, seus números específicos lhes são negados. Presidente, através de pesquisas particulares sabemos que há milhões de ateus no país, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que publica os números de grupos religiosos que têm apenas algumas dezenas de membros, não nos concede essa mesma deferência. Onde está a inclusão se nos é negado até o direito de auto-conhecimento? Esse profundo desrespeito é um fruto evidente da noção, que o senhor vem pormenorizando com todas as letras, de que os ateus não merecem ser cidadãos plenos.

Presidente, queremos aqui dizer para todos: somos cidadãos, e temos direitos. Incluindo o de não sermos vilipendiados em praça pública pelo chefe do nosso Estado, eleito com o voto, também, de muitos ateus, que agora se sentem traídos.

Presidente, não podemos deixar de apontar que somente um estado verdadeiramente laico pode trazer liberdade religiosa verdadeira, através da igualdade plena entre religiosos de todos os matizes, assim como entre religiosos e não-religiosos de todos os tipos, incluindo ateus e agnósticos. Infelizmente, seu governo não apenas tem sido leniente com violações históricas da laicidade do Estado brasileiro, como agora espontaneamente introduziu o maior retrocesso imaginável nessa área que foi a assinatura do acordo com a Sé de Roma, escorado na chamada lei geral das religiões.

Ambos os documentos constituem atentado flagrante ao art. 19 da Constituição Federal, que veda “relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. E acordos, tanto na linguagem comum como no jargão jurídico, são precisamente isso: relações de aliança. Laicidade, senhor presidente, não é ecumenismo. O acordo com Roma já era grave; estender suas benesses indevidas a outros grupos não diminui a desigualdade, apenas a aumenta. Nós não queremos privilégios: queremos igualdade e o cumprimento estrito da lei, e muitos setores da sociedade, religiosos e laicos, têm exatamente esse mesmo entendimento.

Além de violar nossa lei maior, a própria idéia da lei geral das religiões reforça a política estatal de preterir os ateus sempre e em tudo que lhes diz respeito como ateus. Com que direito o Estado que também é nosso pode ser seqüestrado para promover qualquer religião em particular, ou mesmo as religiões em geral? Com que direito os religiosos se apossam do dinheiro dos nossos impostos e do Estado que também é nosso para promover suas crenças particulares? Religião não é, e não pode jamais ser política pública: é opção privada.

O Estado pertence a todos os cidadãos, sem distinção de raça, cor, idade, sexo, ideologia ou credo. Nenhum grupo social pode ser discriminado ou privilegiado. Esse é um princípio fundamental da democracia. Isso é um reflexo das leis mais elementares de administração pública, como o princípio da impessoalidade. Caso aquelas leis venham de fato integrar-se ao nosso ordenamento jurídico, os ateus se juntarão a tantos outros grupos que irão ao judiciário para que nossa realidade não volte ao que era antes do século retrasado.

Presidente, por tudo isso será que os ateus não merecem inclusão sequer em um pedido de desculpas?