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28 abril 2021

"Green Book" - um belo filme, que dá o que pensar

Há alguns dias revi o belo filme Green Book - o guia, estrelado por Mahershala Ali e Viggo Mortensen.

Esse é um filme curioso. A história é simples, ou melhor, é esquemática e as personagens principais são, de maneira corresponte, meio simplistas, até estereotipadas. Há um negro, homossexual escondido, brilhante pianista de formação clássica, poliglota, com três doutorados e formação em música na Rússia - mas alienado de suas origens. Por outro lado, há o motorista e guarda-costas italiano, meio turrão, meio machão, grosseiro e "do povo".

Ao longo do filme, esses estereótipos mais ou menos se revelam como simples estereótipos: o motorista revela-se sem preconceitos contra o chefe, sejam de raça, sejam de orientação sexual, e, talvez mais importante, ele dá seguidas demonstrações de uma tocante lealdade pessoal e profissional para com o chefe, além de estar aberto à influência refinada do seu chefe (tornando-se menos grosseiro e mais civilizado) e sabendo apreciar o talento do pianista.

Por seu turno, o pianista negro exibe uma forte e constante atitude de dignidade, rejeitando sistematicamente o emprego da violência contra o racismo imposto pelos protestantes brancos contra os negros fetichistas nos Estados Unidos. Mas, além disso, sabe reconhecer a lealdade do seu motorista/guarda-costas e valoriza-a cada vez mais; o contato contínuo entre ambos também leva o pianista a reconectar-se um pouco com suas origens humildes e com o comum do povo, naquilo que há de melhor nisso. E, principalmente, vemos que a dignidade e o talento do pianista negro aliam-se a uma grande coragem pessoal, na medida em que ele escolheu apresentar-se no "Sul profundo" dos Estados Unidos, ou seja, justamente naqueles estados e naquelas regiões em que o racismo era, e é, mais entranhado e mais degradante.

Como comentei antes, tudo isso é bem esquemático, mas ainda assim funciona bem e emociona; mesmo roteiros em geral simplistas podem funcionar bastante bem.

Há uma questão adicional que fica mais ou menos sem solução; essa questão, na verdade, aplica-se tanto ao caso do pianista negro com formação clássica quanto, mutatis mutandis, para o Brasil, para a América Latina, para países que foram colônias européias e para o mundo em geral: como conjugar a grande cultura clássica, que em termos mundiais é ocidental e que, no Ocidente, tem origem européia e está ligada aos antigos dominadores, com as culturas locais e/ou populares. No caso do Brasil, essa oposição tem sido traduzida (há várias décadas, talvez há mais de um século) na forma de ocidentalismo versus terceiro-mundismo, ou europeísmo versus nativismo, ou outras oposições similares.

Embora sem se aprofundar, o filme Green Book dá a entender que essa oposição é falsa; sem deixar de ser propriamente uma fonte de tensão, a cultura clássica e a cultura popular podem e devem coexistir, respeitar-se e estimular-se simultaneamente. Ou, no caso do Brasil: somos, sim, por formação e aspiração, plenamente ocidentais, ao mesmo tempo que integramos a "periferia" (ou, quem sabe, a semiperiferia). Essa é a nossa força; devemos aproveitá-la e utilizá-la para benefício de todos.



14 julho 2020

Insight Inteligência: "Brasil vive crise moral"

A revista Insight Inteligência - que se dedica a (in)formar a opinião pública por meio de artigos com debates políticos mais profundos que o habitual dos jornais diários, mas sem os formalismos acadêmicos - publicou em seu número 89 um artigo de nossa autoria sobre a crise política e moral que vive o nosso país há alguns anos.

O texto pode ser lido aqui. Já a versão completa da revista, com o nosso texto diagramado em formato PDF, pode ser lido aqui.

A versão original do texto, com algumas pequenas diferenças de estilo em relação ao publicado na revista, está reproduzida abaixo. 


*   *   *


Mais que crise política, o Brasil vive uma crise moral[i]

 

A sã política é filha da moral e da razão
(José Bonifácio)

Agir por afeição e pensar para agir
O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim
(Augusto Comte)


Fonte: https://insightinteligencia.com.br/mais-que-crise-politica-o-brasil-vive-uma-crise-moral/

O Brasil atravessa uma crise político-moral

 

Já virou um triste mas correto senso comum dizer que o Brasil atravessa desde há vários anos uma crise política; essa crise, como facilmente se percebe, é também moral, no sentido de que a própria atividade política encontra-se profundamente desmoralizada. Essa desmoralização, por sua vez, também se deve a motivos de caráter moral, em particular a percepção, certa ou errada mas com certeza generalizada, de que os políticos profissionais costumeiramente não falam a verdade; de que eles não buscam o bem comum em suas atividades cotidianas; de que são corruptos e corruptores: assim, a percepção é que os políticos são mentirosos, mesquinhos e corruptos. Por extensão, os partidos políticos e as instituições republicanas (aí incluídos os membros do poder Judiciário) são vistas não como a serviço dos cidadãos e do país, mas dos próprios políticos. Tudo isso conduz a uma forte crise de legitimidade, ou seja, da adesão subjetiva dos cidadãos à ordem política vigente[ii].

Realismo ou moralismo?

 

Muitas das críticas político-morais feitas contra o nosso sistema político são mais ou menos ingênuas e por vezes equivocadas, ao passo que outras são bastante densas e certeiras. Muitos analistas políticos costumam chamar pejorativamente as críticas morais de “moralistas”, com isso querendo reduzi-las todas a concepções ingênuas, altamente abstratas e desvinculadas da realidade; o moralismo, nesse sentido, seria uma visão “idealista”, que despreza as negociações e as disputas de interesses e que pretende que todos os políticos sejam como que vestais[iii]. Os analistas que denunciam o moralismo adotariam, por sua vez, uma concepção “realista”, que aceita que a política é uma constante disputa entre grupos de interesses e indivíduos que desejam repartir entre si o mando, as riquezas e o status resultante do poder político.

Deveria ser claro que não se pode nem desprezar as críticas de caráter moral como sendo simples moralismo, nem querer que a prática política seja a atividade de indivíduos sempre modelares. Os autoproclamados “realistas” não raro são cínicos que reduzem a política ao enfrentamento de grupos opostos; no limite, para eles a política é uma forma disfarçada de guerra[iv]. Já os apodados de “idealistas” muitas vezes rejeitam de maneira efetivamente ingênua e tola as necessárias negociações e transações (inclusive os processos de convencimento) que devem sempre ocorrer para que os assuntos públicos sejam levados a cabo.

Para o ser humano agir, a realidade sempre tem que ser idealizada: isso quer dizer que temos que ter noções gerais mais ou menos ideais guiando-nos em nossas condutas, indicando o que é certo e o que é errado, da mesma forma que o que pode e o que não pode ser feito, assim como quais os principais grupos sociais que atuam e porquê. Nesses termos, idealidade e realidade andam de mãos dadas, em que por um lado reconhece-se a legitimidade das negociações e da atividade própria aos políticos e, por outro lado, proclamam-se com clareza os princípios e os valores que estruturam, limitam e norteiam a ordem política. Como dizia o grande fundador da pátria brasileira, José Bonifácio: “a sã política é filha da moral e da razão”.

Aprofundando o entendimento da “moral”

 

As observações acima são apenas uma introdução para discutirmos a profundidade da crise moral que atravessamos. Na verdade, após superarmos a tola dicotomia entre realismo e moralismo, temos que aprofundar o entendimento do que seria a “moral”. O melhor caminho para isso – e não por acaso, diga-se de passagem – é o indicado pelo Positivismo, ou seja, pelas longas elaborações de Augusto Comte.

Para Comte, a Moral é a ciência suprema, aquela que resume todas as ciências abstratas anteriores[v], que se caracteriza pela identidade entre sujeito e objeto e pelo menor grau de abstração em seus estudos, que realiza naturalmente a transição entre o conhecimento abstrato (científico) e a atividade prática (das artes práticas) e que, assim, que estabelece os parâmetros de conduta coletiva e individual. Todos esses atributos da Moral – que de maneira muito, muito imperfeita poderíamos chamar de “Psicologia” e de “Pedagogia” – baseiam-se na própria natureza humana, isto é, na constituição cerebral do ser humano. O homem é um ser que age buscando a satisfação de seus instintos, sendo que a inteligência atua aí para esclarecer o mundo, o próprio homem e os meios possíveis para tal satisfação. Ocorre que a respeito dos “instintos” não se deve ter uma concepção rasa, como as que identificam os instintos com a fome e os impulsos sexuais; isto é, sem dúvida que a fome e o impulso sexual integram o quadro de instintos, mas não são os únicos nem os principais. O que importa notar é que, além do egoísmo – que Augusto Comte identificou como composto pelos instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade –, o ser humano possui o altruísmo – composto pelo apego, pela veneração e pela bondade. Não há dúvida de que o egoísmo é mais forte que o altruísmo; entretanto, essa maior força não equivale à inexistência do altruísmo – como, aliás, os “realistas” e os cínicos costumam afirmar – nem equivale a que o egoísmo seja sempre dominante com a mesma intensidade.

O que importa notar é que o ser humano – da mesma forma que os animais superiores, como o cachorro, o cavalo, a vaca e até o gato – é naturalmente altruísta e que desde sempre esse altruísmo atua. Mais do que isso: à medida que o ser humano desenvolveu-se historicamente, o altruísmo tornou-se mais ativo e, portanto, mais forte. Se nos proverbiais tempos pré-históricos o ser humano mantinha-se em pequenos grupos familiares para comer, reproduzir-se e proteger-se, à medida que as associações sociais aumentaram os traços de nossa natureza que submetem e disciplinam o egoísmo tornaram-se cada vez mais intensos: a própria noção de “disciplina” exige a subordinação do indivíduo a uma ordem externa (objetiva e subjetiva), da mesma forma que todo aperfeiçoamento requer que um indivíduo ou um grupo reconheça suas próprias limitações e suas próprias imperfeições e, assim, submeta-se a outrem. A noção de “Humanidade” desenvolveu-se gradativamente, superando as limitações familiares e pátrias; com isso, a veneração cedeu lugar primeiro para o apego e estes dois, por sua vez, abriram espaço para a bondade universal.

A ciência da Moral de Augusto Comte apresenta inúmeras outras características; mas, além do caráter inato do altruísmo e do seu desenvolvimento histórico, uma das mais importantes descobertas do fundador da Religião da Humanidade foi que é apenas o altruísmo que é capaz de disciplinar moralmente um indivíduo, ao oferecer um princípio interno capaz de orientar os vários instintos. O egoísmo, em contraposição, caso deseje tornar-se o guia geral, fica sempre em uma constante disputa entre os seus vários instintos, sem que nenhum consiga obter a ascendência sobre os demais: em outras palavras, a harmonia mental e a conduta regrada surgem apenas quando o altruísmo disciplina e orienta o egoísmo.

Considerando essa relação entre egoísmo e altruísmo, Augusto Comte definiu-a como sendo própria aos sentimentos (evidenciando, assim, as maiores importância e dignidade do altruísmo em relação ao egoísmo). Os sentimentos são a base, são a origem das ações humanas; ao mesmo tempo, os sentimentos são os objetivos de nossas ações; em outras palavras, agimos movidos pelos sentimentos com vistas à satisfação dos sentimentos. A inteligência, como indicamos antes, ocupa um papel secundário, ainda que da maior importância, nessa economia moral: é a inteligência que explica o mundo e o homem e, portanto, permite que a realidade faça sentido; além disso, a inteligência esclarece quais são os meios possíveis (eventualmente os mais adequados) à consecução dos nossos objetivos[vi]. Essa dinâmica foi sintetizada por Augusto Comte da seguinte maneira: “agir por afeição e pensar para agir”.

É claro que, embora a inteligência tenha um papel instrumental na economia humana, ela não é inerte, ou seja, ela é ativa e funciona com relativa autonomia. Isso resulta em dois problemas sucessivos para a inteligência: por um lado, ela pode buscar soluções para problemas propostos pelo altruísmo ou pelo egoísmo; como vimos, é necessário que ela sirva o altruísmo; por outro lado, a inteligência atua e obtém resultados, que podem ser utilizados pelo altruísmo ou pelo egoísmo[vii]. Dito de outra maneira: não apenas os fins que buscamos têm sempre que ser altruístas, como as possíveis soluções para esses objetivos têm sempre que ser altruístas[viii]. Com isso fica evidente que o altruísmo tem que ser continuamente afirmado e estimulado, a fim de poder sempre orientar e disciplinar a inteligência; os meios para esse estímulo do altruísmo Augusto Comte compendiou na parte do culto da Religião da Humanidade (mas de que não trataremos aqui)[ix].

Política brasileira: falta de altruísmo nos objetivos e nas soluções

 

As considerações que fizemos até agora serviram para evidenciar que qualquer descrição realista da política tem que incorporar, necessariamente, os aspectos morais dessa atividade, seja porque a legitimação do sistema político envolve aspectos morais, seja porque qualquer ação humana é moralmente orientada e justificada. Assim, por um lado abandonamos as críticas que afirmam que as considerações morais são mero “moralismo” e, por outro lado, evidenciamos que a análise científica da política exige uma extensa análise científica da própria moral (que, por sua vez, tem que ser moralmente orientada). Tudo isso se fundamenta no Positivismo, ou melhor, na Religião da Humanidade.

Podemos abordar o tema que nos interessa, que é o fato de que a presente crise política brasileira é também, ou melhor, é antes de mais nada uma crise moral.

No cotidiano da política as concepções normativas dos vários grupos sociais entram em choque entre si, da mesma forma que seus interesses econômicos, políticos, culturais etc.; com freqüência valores e interesses sobrepõem-se, resultando daí muito da riqueza da atividade política. Vale também notar que a política envolve disputas e negociações para que políticas públicas sejam implementadas e a tomada de decisões e a implementação das políticas públicas envolvem beneficiar alguns grupos e algumas práticas em detrimento de outros, escolhendo-se alguns caminhos de preferência a outros; assim, embora as negociações ocorram o tempo todo, elas visam a converter-se, em algum momento, em decisões concretas.

Os grupos que se confrontam nas arenas políticas têm que concordar com alguns princípios elementares – pelo menos têm que aceitar que as instituições existentes são minimamente aceitáveis e capazes de processar as demandas sociopolíticas. Por certo que em alguns momentos as instituições são vistas como incapazes de processarem as demandas sociais ou, além disso, são de fato incapazes de tal processamento; nesses momentos, por diversos meios – alguns pacíficos, outros nem tanto – as instituições mudam, regimes políticos alteram-se e assim por diante. Em todo caso, o que queremos indicar é que no dia-a-dia da política mesmo grupos que se opõem de maneira frontal têm que concordar com as regras do jogo; além disso, é sabido que discordâncias morais e intelectuais profundas não são nem nunca foram impeditivas de acordos práticos a respeito de determinadas questões – o que é uma outra forma de dizer que as conversas e as negociações ocorrem continuamente e que, se não o respeito mútuo, pelo menos a tolerância e o convívio civilizado são bases da atividade política.

No Brasil deixaram de existir esses diversos acordos tácitos e explícitos que permitem a convivência de grupos opostos. A crítica moral ao sistema político brasileiro sempre houve, tanto da parte da “direita” – como na famosa União Democrática Nacional (UDN, 1946-1967), cuja reiterada crítica moral tornou o “udenismo” sinônimo de “moralismo” – quanto da parte da “esquerda” – fosse durante o regime militar (1964-1985), realizado pelas oposições, fosse da parte do Partido dos Trabalhadores, que sistematicamente rejeitou em nome de princípios morais todas as grandes mudanças políticas brasileiras entre 1982 (quando foi fundado o partido) e 2002 (quando afinal foi eleito para a Presidência da República). Ocorre que, devido a fatores sociais profundos, na década de 2010 o descontentamento social com a política no Brasil tornou-se mais profundo e mais radical e ultrapassando em muito a mera perda de legitimidade do sistema político (como se tal perda fosse pouca coisa!). Não faz sentido historiar os acontecimentos que resultaram em tal quadro; o ano de 2013 geralmente é indicado como deflagrador de amplas insatisfações populares, mas é claro que as “jornadas de junho” tiveram causas que as antecederam e acontecimentos posteriores e concomitantes aumentaram ainda mais a radicalização.

A perda da legitimidade do sistema político é um problema de perda de confiança; é uma questão moral, mas bem vistas as coisas a “moral” implicada nele é bastante rasteira, na medida em que os sentimentos e as ideias não estão em jogo: os sentimentos e as idéias de fundo permanecem, o que se perde é a crença de que o sistema pode, de alguma forma, corresponder aos sentimentos e às idéias, bem como os satisfazer.

O problema vivido atualmente no Brasil consiste no aprofundamento radical dessa crise de legitimidade; os sentimentos e as idéias de fundo anteriores perderam-se ou corromperam-se, sendo cada vez mais substituídas por outras coisas muito ruins e muito piores: em vez de termos amor, temos ódio; em vez de termos altruísmo, temos egoísmo; em vez de termos bondade, temos mesquinhez. As interpretações racionais e racionalizadoras seguem de maneira quase automática tais sentimentos duros, agressivos e destrutivos.

Essa alteração profunda não ocorreu no vazio; ela foi realizada de maneira intencional por vários grupos e indivíduos que a desejam conscientemente. Na verdade, ela corresponde à infeliz reunião de políticos anti-intelectualistas mas extremamente violentos e promotores da violência como política de Estado com intelectuais que, em nome de interpretações bastante específicas do catolicismo, promovem o culto ao ódio, à intolerância e ao desrespeito. Injunções político-partidárias muito específicas criaram o ambiente específico para que frutificasse politicamente a união de violentos políticos anti-intelectuais com intelectuais imorais. Como se sabe, apoiam essa coligação empresários e capitalistas que buscam meios de sistematicamente se furtarem às suas responsabilidades sociais, da mesma forma que líderes religiosos que buscam apenas explorar a pobreza, a ignorância e a boa-fé popular.

Em tal quadro os sentimentos estão profundamente alterados e, como dissemos, chegam a estar pervertidos: por um lado há o culto à mesquinhez individual e coletiva, disfarçado sob um manto que conspurca a idéia de “bem comum”; mas, por outro lado, o que permite essa conspurcação é que o altruísmo, a bondade, a generosidade – em uma palavra, o amor – foram substituídos não pela mesquinhez e pelo egoísmo, mas pelo ódio. De fato, o intelectual imoral que exerce a tarefa de legitimar a aberração política que atualmente ocorre no Brasil já disse diversas vezes que o ódio é um sentimento tanto quanto o amor e que, portanto, ele é tão legítimo quanto o amor para motivar as ações humanas. Daí se segue naturalmente o culto à morte, a dicotomização da política, o desrespeito e a intolerância a todos aqueles de quem discordam. A paranóia é mais um traço dessa política degenerada; não há dúvida de que ela é um traço específico de vários importantes líderes dessa onda política, mas é bastante claro que ela também se constitui em uma característica própria ao movimento como um todo: afinal, a política, ou melhor, a República e a cidadania pressupõem uma confiança generalizada, mesmo que abstrata, e essa mesma confiança generalizada é negada sistematicamente pelos cultores do ódio e da violência.

Se o ódio é o sentimento de base e a violência a prática política justificada, do ponto de vista intelectual essa política nutre-se das teorias da conspiração. É fácil ver como as teorias da conspiração vinculam-se ao ódio e à violência: elas também se baseiam na desconfiança sistemática, na falta de respeito pelos outros, na exclusão dos “inimigos” e na autoexclusão dos “eleitos”. A inteligência, aí, não cumpre o papel de esclarecer, mas apenas o de justificar – sempre a posteriori – as idéias derivadas do sentimento de ódio e da prática da violência sistemática.

Em termos coletivos, esses vários traços convergem para uma postura destrutiva e destruidora, que abomina o diálogo e a tolerância; também constitui um grupo que se torna cada vez mais coeso, ao isolar-se progressivamente do resto da sociedade – a quem, aliás, trata na base da pancada (ou do tiro) – e ao realizar um culto à personalidade. A paranóia, as teorias da conspiração e o autoisolamento produzem outro resultado mental: a lavagem cerebral.

O conjunto disso tudo traduz-se na constituição de grupos fanáticos, autoritários, violentos, agressivos, intolerantes – e lamentavelmente extremamente ativos. A experiência histórica já deu nome para esse tipo de movimento: fascismo. O repertório das atividades práticas fascistas também já é conhecido e é constituído não apenas pelo que vimos indicando até o momento, mas também de outras táticas reiteradas, como o emprego sistemático da desinformação, o uso proposital e perversamente ambígüo das palavras e a atribuição aos seus adversários (sempre entendidos como “inimigos” a serem abatidos) de práticas e maus sentimentos que, todavia, correspondem às práticas e sentimentos dos próprios fascistas. Esse conjunto evidencia, afetivamente, que subjazem a ele não apenas os sentimentos egoísticos, mas principalmente o desejo de destruir tudo aquilo de que os fascistas discordam ou que lhes desagradam: é a consagração do ódio e do medo. Do ponto de vista intelectual, as táticas adotadas pelo fascismo visam a causar confusão sistemática entre a população e, mais do que isso, a corromper a confiança básica para qualquer sociedade, seja entre cidadãos e governo, seja dos cidadãos entre si: é a consagração da desconfiança. A noção de uma realidade objetiva, externa às vontades individuais e coletivas, é combatida de maneira direta e indireta, seja por meio da sua negação clara, seja por meio da confusão e da desconfiança. Assim, o Estado torna-se uma instituição basicamente repressiva e as únicas coisas de que se pode ter certeza (além do medo e do ódio) são as decisões tomadas em cada momento pelo líder.

O Brasil vive esse triste quadro há cerca de dois anos; os grupos sociais que se baseiam e que apóiam tais concepções organizam-se há muito tempo – começaram justamente nos meios de comunicação, empregando a violência retórica a título de    “verdade” – e obtiveram um inaudito sucesso político nas eleições presidenciais de 2018, em parte devido ao fracasso retumbante da esquerda, em parte devido à inépcia política e moral da centro-direita, em parte devido à exitosa manipulação das idéias e dos valores da população brasileira. Em meados de 2020, quando escrevo estas páginas, o estado de coisas descrito acima aprofunda-se mais e mais, com grupos de fanáticos manifestando-se cada vez mais, manipulando as instituições públicas, realizando lavagem cerebral em seus membros e seus simpatizantes – e, talvez o mais importante, ocupando espaços públicos (como na constituição de “acampamentos de resistência” na Esplanada dos Ministérios em Brasília)[x].

Pode-se com legitimidade obtemperar que grupos fascistas constituem a exceção e não a regra do ambiente sociopolítico brasileiro e que, assim, não faria muito sentido afirmar a sua importância política. De fato, esses grupos são realmente minoritários; entretanto, há pelo menos dois fortes motivos para que não se os considere desimportantes. Em primeiro lugar, indicamos antes que esses grupos são extremamente ativos e mobilizados; em vez de diminuírem em tamanho e em quantidade, o movimento que se vê é o de eles aumentarem em quantidade de membros, em quantidade de grupos e em organização interna (sem contar a lavagem cerebral, que ocorre continuamente). Associado a isso está o fato de que, embora tenham um violento discurso antissistêmico, tais grupos obtiveram o poder em 2018 e o atual Presidente da República não disfarça sua vivíssima simpatia para com eles. À medida que o tempo passa, a instabilidade do atual governo federal aumenta, o que aos olhos dos ativistas parece justificar suas atividades e, portanto, torna-os mais aguerridos: não se pode desprezar, nunca, a importância política que grupos minoritários e marginais, mas extremamente aguerridos, podem ter.

Em segundo lugar, embora os grupos paramilitares sejam minoritários em relação à totalidade da população brasileira e sejam evidentemente radicais, ou ultrarradicais, em seus posicionamentos sociopolíticos, o fato é que eles legitimam a sensibilidade, o discurso e a prática da violência, do ódio e da intolerância, abrindo espaço para que grupos menos extremos que eles, mas defensores de comportamentos assemelhados, organizem-se, manifestem-se e obtenham poder. Na verdade, o caráter exemplar dos extremistas para os não-extremistas não é uma simples possibilidade, mas uma realidade efetiva, como se pode constatar no comportamento reacionário de inúmeros grandes empresários brasileiros que apóiam tais grupos e combatem com palavras, dinheiro e humilhações de seus empregados a dignidade indígena, a qualidade de vida dos trabalhadores, a proteção ao meio ambiente, as liberdades de consciência, expressão e organização (com a evidente exceção das suas próprias “consciências”, expressão e organizações) – e, durante a presente pandemia de covid-19, o trabalho quase compulsório de todos os que não são doentes e/ou idosos, em franca oposição às recomendações de todas as organizações médicas do mundo inteiro[xi]. Em outras palavras, a mera existência de tais grupos extremistas abre espaço para que seus valores e suas idéias ganhem espaço na sociedade, passando a estar disponíveis no repertório sociopolítico nacional; nesse sentido, mesmo pessoas que poderíamos em outros contextos julgar sensatas, razoáveis, dotadas de boa vontade, podem deixar-se seduzir pelo fascismo, mesmo e principalmente quando suas idéias e valores não são apresentadas com clareza como sendo fascistas.

A necessidade de ligas religiosas e políticas

 

Como dizia Augusto Comte, a natureza do problema indica a natureza da sua solução. O problema vivido atualmente no Brasil é político e moral; assim, são necessárias medidas políticas e morais. Essas medidas devem ser tanto diretivas (educativas) quanto repressivas (jurídico-policiais) e devem ser aplicadas com urgência cada vez maior.

As medidas políticas são as mais diretas e as mais fáceis de serem implementadas; o ordenamento político brasileiro orienta-se claramente em prol das liberdades, do respeito à vida, da tolerância etc.: as autoridades, portanto, devem fazer cumprir as leis e coibir o máximo possível, mas sempre dentro dos limites da lei, todos os comportamentos violentos e de ódio.

Todavia, a repressão é o ambiente em que os fascistas sentem-se mais à vontade; a planta do fascismo só é exterminada quando o conjunto da população afirma com todas as letras, de maneira clara, que o fascismo é inaceitável; aliás, quando o conjunto da população recusa a árvore e também impede que as sementes do fascismo surjam e brotem. Esse trabalho, não há dúvida, é muito mais difícil e de longo prazo – o que não quer dizer, todavia, que ele não possa render frutos de imediato.

A ação pedagógica depende de ligas religiosas e políticas. Os conservadores, que tradicionalmente afirmam a importância dos valores morais, devem reafirmar essa importância, mas ao mesmo tempo devem deixar de lado suas repugnâncias pelo que consideram os exageros do progresso e devem assumir que no Brasil as liberdades, o respeito mútuo, a tolerância são efetivamente tradicionais e, portanto, devem ser valorizadas e respeitadas. As diversas religiões existentes no Brasil – fetíchicas, politeístas, monoteístas, metafísicas e positiva – devem igualmente afirmar, isoladas ou em grupos, que só o amor constrói, que o altruísmo deve prevalecer sobre o egoísmo, que o ódio não pode nunca ser considerado o pilar de nenhuma política nem de nenhuma organização social. Em várias ocasiões as religiões teológicas defenderam valores contrários a esses, em particular algumas religiões monoteístas; entretanto, ao menos nominalmente todas – fetichistas, teológicas, metafísicas, positiva – defendem atualmente o amor, o altruísmo, a tolerância: que o afirmem mais e mais vezes, que repudiem o ódio, o egoísmo, a intolerância[xii].

Em termos políticos, é necessário que os vários partidos e grupos sociais unam-se em favor das liberdades e contra o fascismo. Essa união não precisa ser explícita: basta que tacitamente os grupos deixem de ferir-se uns aos outros e passem a envidar esforços sinérgicos, ou seja, na mesma direção, com o mesmo objetivo. Da mesma forma, os líderes políticos devem agir no sentido de preservar e fortalecer as instituições republicanas, além de adotarem os remédios republicanos para nossos correntes males políticos. Isso equivale em particular a duas séries de medidas: por um lado, os líderes políticos devem deixar de fazer mesquinhos cálculos político-eleitorais e devem passar a mirar no afastamento constitucional do atual Presidente da República, cujo comportamento já se revelou mais do que pródigo em crimes comuns, crimes de responsabilidade, quebras do decoro etc. Por outro lado, os líderes devem abandonar qualquer esperança de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo: tal substituição não resolveria nenhum problema, geraria um desgaste sociopolítico inaceitável para o país atualmente, oneraria o país com uma estrutura inútil (a Presidência de enfeite) e substituiria o governo do fascista pelo governo dos mancomunados.

A chamada sociedade civil pode e deve apoiar os esforços tanto da liga religiosa quanto da liga política. Os chamados “intelectuais”, por fim, têm que se pôr ao lado da sociedade civil e da liga religiosa, de modo a atuar como formadores de opinião; assim, devem abandonar os sempre existentes desejos de assumirem o poder (no lugar dos grupos políticos que a cada momento governam, geralmente na forma de oportunistas propostas parlamentaristas). No quadro atual, os intelectuais não podem furtar-se à obrigação de manifestarem-se publicamente ; atuando como formadores de opinião, os intelectuais devem indicar as possibilidades de ação para os políticos e os efeitos sociais e políticos do fascismo; mas, como formadores de opinião, devem apenas secundar os esforços da liga religiosa, cujo papel é o de reverter a putrefação moral que se estende pelo país.

A substituição do atual governo, fascista, por um outro que não o seja não encerra nossos problemas; ela é uma etapa necessária mas insuficiente. O trabalho pedagógico, da cultura do amor e do respeito, deve ser mais uma vez retomada no país; em particular, ela deve refletir-se politicamente no abandono radical de qualquer discurso e de qualquer prática que oponha brasileiros contra brasileiros, ou “nós” contra “eles”: essa é a verdadeira e profunda origem dos males que nos afligem.






[i] Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo.

[ii] Este documento deveria ser um pequeno artigo episódico para eventual publicação em jornal diário; entretanto, a natureza do problema e a necessidade de explicar com um mínimo de detalhe a interpretação positiva de nossas dificuldades levou-me a ampliar cada vez mais a redação. Como ficará claro ao longo das páginas seguintes, esta é uma contribuição positivista para os profundos problemas que afligem atualmente o Brasil; embora sejamos suspeitos para falar, até o momento é a única interpretação que considera com a profundidade necessária os vários aspectos essenciais desses problemas.

[iii] Os romanos, que como a respeito de tantos outros aspectos são um dos nossos melhores antepassados políticos, designavam os postulantes aos cargos eletivos como “candidatos”, ou seja, como indivíduos “cândidos”, que trajavam togas talares da cor branca exatamente para indicarem sua pureza moral.

[iv] Vale notar que muitos dos “realistas” com frequência são acadêmicos que – o mais das vezes de maneira secreta – gostariam eles m esmos de exercer o poder.

[v] A Moral foi justamente denominada de “ciência sagrada” por Augusto Comte; ela está no ápice da série enciclopédica, que organiza por generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente as ciências abstratas mais gerais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. A Moral é a ciência mais complexa e a mais nobre; por isso mesmo foi a última a constituir-se, pois exigia que o entendimento do mundo e do ser humano ocorresse antes. O conhecimento teórico, abstrato, da Moral conduz imediatamente à atividade prática, concreta, que lhe é própria e que consiste na orientação de cada indivíduo em sua vida, considerando o caráter social do ser humano.

[vi] A partir disso se evidencia que a descrição da realidade do mundo não se opõe, nem pode opor-se, à idealização desse mesmo mundo. Da mesma forma, isso também evidencia que a busca do conhecimento real tem que se aliar, ou melhor, tem que se submeter à busca do conhecimento útil.

[vii] Augusto Comte considerava pelo menos mais um problema relativo à inteligência, que é a sua busca incessante de ela mesma querer ser o princípio regulador e coordenador da economia moral em vez de submeter-se aos sentimentos (altruístas). Essa questão, importante por si só, refere-se mais à autonomia da inteligência e tem uma aplicação mais direta entre os “intelectuais”; como a presente reflexão tem um caráter político, esse problema não nos interessa tanto agora.

[viii] O conjunto das observações precedentes também esclarece porque os analistas políticos “realistas” estão errados ao considerarem que a política é apenas a disputa de poder e ao desprezarem o papel da idealização e dos valores morais na vida política. Além de fazerem uma descrição extremamente pobre da atividade política (apesar de dizerem-se “realistas”), eles ou deixam de lado ou ignoram aspectos centrais da natureza humana que têm impacto direto na realidade política, como a busca do bem comum, a própria necessidade de idealizar a realidade para desenvolver atividades, o devotamento pessoal a causas que ultrapassam as motivações egoísticas.

[ix] Vale notar, de qualquer maneira, que a Religião da Humanidade sistematiza as concepções acima e, mais do que tudo, sistematiza o culto, de maneira a estimular cotidianamente o altruísmo, com vistas à regulação da inteligência e da atividade prática.

[x] Em maio de 2020, por exemplo, um grupo denominado de “300 de Brasília” fez um acampamento na Esplanada. Esse grupo – que, apesar do nome, não se constitui por 300 mas por cerca de 50 pessoas – é ao mesmo tempo militantemente “cristão”, agressivo em seu linguajar, defensor da extinção de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, defensor do fim da “imprensa tradicional”, defensor de intervenção militar na política e do Ato Institucional n. 5 (de 13.12.1968, o mais violento de todos os AIs), defensor do uso de armas para “proteção”, defensor de uma “ucrainização do Brasil” (ou seja, da ocorrência de uma guerra civil no país, de maneira semelhante ao que ocorre na Ucrânia, após a invasão russa e a tomada violenta da Criméia em 2015). E tudo isso ao mesmo tempo em que dizem que são “não-violentos” e “a favor da vida”. O grau de confusão moral, intelectual e política é evidenciado pelo uso simultâneo de camisetas e de bandeiras enaltecendo a monarquia brasileira e a bandeira nacional republicana!

Aliás, no que se refere à bandeira nacional, esses grupos repetem sem cessar o “Ordem e Progresso”, entendendo por “ordem” um autoritarismo militar, ao mesmo tempo em que desprezam o “Positivismo” e ignoram profundamente que, para Comte e o Positivismo, a “ordem” inclui as liberdades civis e o repúdio à violência.

Por fim, a referência à Ucrânia é reveladora: se há lá uma guerra civil, isso se deve a que grupos pró-russos defendem ou a anexação total do país à Rússia ou a independência de partes do território ucraniano (seguidas, evidentemente, pela anexação “voluntária” à Rússia). A Rússia, nesse caso, não é uma expectadora inocente: baseada em um fascismo místico, pelo menos desde o início do século XXI ela defende a anexação da Ucrânia ao seu território e o combate sistemático ao Ocidente (daí, aliás, o apoio russo à eleição de Donald Trump nos EUA e à saída da Inglaterra da União Européia).

[xi] Reveladora da intensidade da degradação moral desses empresários é a afirmação de que na pandemia não haveria problemas em que morressem umas cinco ou sete mil pessoas, de modo geral idosas; o importante seria que a economia continuasse a funcionar (e, portanto, que todos infectassem-se com o coronavírus-2, até o momento sem vacina disponível contra ele). Em meados de maio, enquanto escrevemos, a taxa de mortes já ultrapassou a marca dos 14 mil mortos – mas é claro que tais empresários não mudaram de opinião: desde que a economia continue funcionando, as mortes podem continuar ocorrendo.

[xii] Como estamos indicando, o Positivismo prega exatamente o contrário do que tais grupos ultraconservadores atribuem-lhe; mas, ainda assim, pessoas de boa vontade, movidas por boas intenções, repetem erros sistemáticos na ânsia de serem “críticos” e de evidenciarem alguma cultura histórica – exemplo disso foi a desastrada e profundamente injusta observação feita pelo rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo de 9 de maio de 2020, em que atribui ao “Positivismo científico” a motivação e a justificativa para atrocidades sociais variadas (aliás, note-se: atrocidades apenas sugeridas, mas não nomeadas). Logo um rabino, sacerdote de uma religião que tanto preza o conhecimento e que, como poucos povos e culturas, sofreu os efeitos da perseguição e da desinformação!

27 abril 2020

Negação da realidade via mistificação parlamentarista


“Se estivéssemos no parlamentarismo, Bolsonaro já teria caído”. Essa frase impressiona, mas é mera mistificação parlamentarista e, sendo mistificação, não nos ajuda em nada.

Hitler foi primeiro-ministro alemão no parlamentarismo durante 12 anos. Sua insanidade era visível para quem quisesse ver e teve um custo altíssimo, não apenas para suas vítimas mas também para o povo alemão de modo geral. Como se sabe, Hitler não “caiu” – e muito menos por virtude do parlamentarismo –; ele matou-se quando percebeu que não tinha mais futuro nenhum.

A Itália, como se sabe, tem primeiros-ministros com mandatos menores que um ano, desde 1945!

A Inglaterra parlamentarista, após aprovar em referendo a tolice nativista e xenófoba do Brexit, teve que fazer três ou quatro eleições gerais em dois anos para que o grupo no poder e favorável ao Brexit conseguisse elaborar internamente uma proposta aceitável por esse mesmo grupo no poder e favorável ao Brexit. Em outras palavras, o parlamentarismo criou e alimentou uma crise burra que durou mais de dois anos e, agora, esse mesmo parlamentarismo corre atrás da reversão prática do Brexit.

Israel – um país parlamentarista – vive uma crise de governabilidade semelhante à da Inglaterra parlamentarista.

Assim, surgem as perguntas: onde estão as apregoadas virtudes de responsabilidade e estabilidade, misticamente atribuídas ao parlamentarismo? A resposta é clara: o parlamentarismo não é nem estável nem responsável.

Em suma: o problema não é o presidencialismo, é o Presidente (e também o descrédito geral da política, em grande parte causada pelos mesmos políticos que sempre defenderam o parlamentarismo, como Aécio Neves, ou que sempre se esconderam atrás do parlamento, como o atual Presidente).

Dito isso, é importante notar que insistir na tolice do parlamentarismo – que, aliás, para ser implantado, teria que ser via (mais um) golpe – é fazer um desserviço para o país, atrapalhar os debates nacionais e, por tudo isso, ajudar o fascismo nacional.

Ao contrário do que dizem os defensores-mistificadores do parlamentarismo (e, em menor proporção, da monarquia), o presidencialismo é o verdadeiro regime de responsabilidade e responsabilização política. Basta minimamente não ser um fanático para perceber-se com clareza que Jair Bolsonaro é um incompetente e um irresponsável; não por acaso, ele é um produto acabado do parlamento e do parlamentarismo, onde sempre pode esconder-se e esconder sua podridão moral e sua insignificância política atrás de 512 outros deputados.

25 janeiro 2020

Monitor Mercantil: Normalização da violência política

O artigo abaixo foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil, em 24.1.2020. A versão original pode ser lida aqui.

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A normalização da violência política no Brasil


Por Gustavo Biscaia de Lacerda.

Opinião / 22:46 - 24 de jan de 2020
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Ao longo dos últimos dois anos, publiquei artigos em que convidava os conservadores brasileiros a refletirem sobre suas escolhas políticas. Em um primeiro momento, observei que esses conservadores estavam à deriva, pois em 2018 manifestavam majoritário apoio a um candidato a presidente da República que seria qualquer coisa menos “conservador”, isto é, respeitador das tradições, das instituições públicas e, acima de tudo, das liberdades políticas; aliás, esse candidato foi eleito, e sua plataforma baseia-se na destruição sistemática, de acordo com suas próprias palavras.
Em seguida, em face dessa sistemática destruição das instituições e das liberdades públicas, observei que os conservadores brasileiros estavam destinando a si mesmos e ao país ao desastre. Mais recentemente, questionei esses conservadores a respeito de quais seriam os valores e as tradições que eles defendem e valorizam: as liberdades públicas, o respeito efetivo à diversidade de opinião, o pacifismo, o multilateralismo e o Estado de bem-estar social são, de fato, tradições e tradicionais no Brasil; desprezá-los é contra o bom-senso, a moral e, no caso, a nossa tradição sociopolítica.
É necessário dar um passo além e observar que os prognósticos negativos feitos anteriormente estão confirmando-se a passos largos, o que pessoalmente me assusta muito, mas que deveria ser motivo da mais profunda apreensão da parte de qualquer cidadão brasileiro minimamente preocupado com o país.
Aumento da violência no país deve
ser debitado na conta pessoal do presidente
Antes de mais nada, é necessário notarmos que o que legitimou e, assim, elegeu o candidato vencedor nas eleições de 2018, foi o “antipetismo”, ou seja, a rejeição confusa, ainda que não necessariamente incorreta, de corrupção, apadrinhamentos políticos, ideologização das políticas públicas, má gestão da economia.
Ora, com estrondoso sucesso, o candidato eleito conseguiu impor ao país – e os brasileiros alegremente compraram sua tese – que no Brasil existe uma dicotomia político-ideológica: ou é-se “petista” (de “esquerda”) – e, portanto, e supostamente, corrupto, ineficiente, ideológico etc. – ou é-se “antipetista” – e, portanto, é-se a favor do capitão expulso da Academia Militar Jair M. Bolsonaro.
Enfatizemos: o maniqueísmo antipetista venceu as eleições e, infelizmente, continua vigente. O problema aí não é exatamente o “antipetismo”, mas o seu caráter maniqueísta, que se revela radical, extremista e, no final das contas, cego, surdo e profundamente burro.
Sim, burro: afinal de contas, para evitar-se a eleição do PT em 2018 bastava não votar no PT – e, para isso, havia uma pletora de candidatos infinitamente superiores ao candidato eleito (que é da mais extrema-direita possível), tanto de centro-esquerda quanto de centro e de centro-direita: Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias... mesmo para os favoráveis ao ultraliberalismo inimigo do Welfare State de Paulo Guedes havia João Amoedo. Assim, a eleição do capitão expulso da academia militar não era uma necessidade política; mas, por outro lado, sua vitória tem acarretado os mais variados danos ao país.
Em termos institucionais, alguns são mais conhecidos, outros menos. Um crescimento econômico pífio, uma inflação acima das metas (aliás, em parte causada pelas trapalhadas do governo no comércio internacional); rejeição das estatísticas oficiais; desprezo por órgãos públicos; desprezo sistemático pelos servidores públicos; indicações ou impedimentos ideológicos em nomeações para cargos públicos; incompetência administrativa; reversão ou destruição de políticas públicas duramente constituídas ao longo de décadas... em termos institucionais, a lista não para.
Isso sem falar do assumido impulso para a censura dos meios de comunicação e da extrema e reiterada vulgaridade no trato com aqueles que o desagradam. Mais uma vez: em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro aceitam tudo isso, mesmo os eleitores “conservadores”.
Mas talvez seja no âmbito das relações sociais que a figura de Bolsonaro, seus apoiadores, seus “ideólogos” produzam os efeitos mais nefastos – nomeadamente, na legitimação da violência, em particular da violência política.
Ao contrário do que a dona da Companhia das Letras, a sra. Lília Schwarcz, afirma, o brasileiro não é nem sempre foi autoritário (e, portanto, violento); ainda que tenhamos grupos sociais mais propensos ao autoritarismo e à violência, esses não são traços específicos do brasileiro, na medida em que também temos, para nossa grande felicidade, inúmeros grupos sociais e correntes culturais pacíficas, tolerantes, respeitadoras etc. Nesse sentido, o aumento da violência no país deve ser debitado na conta pessoal do presente presidente da República. A esse respeito, quero contar um episódio que ocorreu comigo.
Em um sábado de janeiro de 2020 eu almoçava com minha mãe, uma frágil senhora de 75 anos, em um restaurante de um bairro de classe média/classe média alta de Curitiba; minha mãe tem problemas de audição e tenho que falar alto para ela ouvir. Como deve ser evidente, estou profundamente insatisfeito e irritado com o atual governo do Brasil; por isso, comento com ela os problemas indicados acima, lembrando que, em Curitiba, as classes média e alta votaram maciçamente em Bolsonaro (em nome do “antipetismo”) e que, portanto, elas são responsáveis por isso tudo.
À minha frente, atrás de minha mãe, sentava-se um homem de meia-idade com dois idosos, presumivelmente seus pais; ele demonstrava ouvir minha peroração. Quando ele saía, resolveu falar comigo: bateu-me no ombro, segurou-me e começou a falar; eu disse que não lhe dava autorização para segurar-me e que, portanto, não tinha interesse em falar com ele.
A reação? “Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”. “Sozinho na rua”, ou seja, sem testemunhas (incluindo minha mãe) nem câmeras; “seria diferente”, ou seja, ele faria o possível para brigar comigo e, de preferência, para espancar-me. Como procurei gravá-lo com meu celular, ele deu-me tapas e jogou o meu telefone no chão; como se não bastasse, em apoio à violência gratuita do filho, o seu pai, ignorando o contexto da situação, xingou-me de “vagabundo filho da puta”. Minha mãe assistia a tudo muda e assustada. É claro que do restaurante fui à delegacia de polícia prestar queixa.
Desde o fim do regime militar até a eleição de Bolsonaro, esse tipo de violência política era cada vez mais excepcional no Brasil; todavia, a partir de meados de 2018, o país assiste cada vez mais a casos assim, com ameaças pessoais a cidadãos que têm a ousadia de criticar o presidente da República – aliás, de maneira torpe, muitas ameaças são estendidas a seus familiares –, sem falar nas variadas violências que grupos sociais detestados pelo presidente têm sofrido (mesmo quando são apoiadores dele).
Ah, mas Bolsonaro não é o responsável direto por isso!”. Talvez: na violência que eu sofri, não foi o presidente o seu autor, mas é inegável que o seu exemplo é poderoso e, acima de tudo, legitimador.
Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”... se eu estivesse sozinho na rua, minhas liberdades de pensamento e expressão resultariam em espancamento. Em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro legitimaram esse tipo de comportamento (isso quando não o praticam), normalizando a violência política. O Brasil caminha célere para o desastre.
Gustavo Biscaia de Lacerda
Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
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09 agosto 2019

Comentários sobre "O Brasil inevitável", de Mércio P. Gomes

Há duas semanas comprei este livro e há pouco terminei de ler vários capítulos, do grande antropólogo Mércio Pereira Gomes.
Mércio Pereira Gomes
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9rcio_Pereira_Gomes#/media/Ficheiro:MercioPereiraGomes.jpg
O Brasil inevitável é um livro realmente interessante e instigante, que merece ser lido e refletido.
Capa do livro
Fonte: https://obrasilinevitavel.home.blog/2019/03/16/lancado-o-livro-o-brasil-inevitavel-etica-mesticagem-e-borogodo/

O livro trata de política, história, antropologia, filosofia de maneira inteligente e original. Como o autor é antropólogo, suas vistas sobre o Brasil, isto é, sobre a formação e composição étnica e, principalmente, cultural do país iluminam as discussões políticas.
De qualquer maneira, quero comentar aqui dois aspectos mais gerais que me chamaram a atenção.
Por um lado, o autor segue uma tradição que remonta pelo menos a Darcy Ribeiro e que até os anos 1960 era muito forte: concepções de "projeto nacional", de considerar o Brasil como um único país (composto por vários grupos, claro está, mas, ainda assim, um só país) e que deve ter uma visão de longo prazo para orientar as ações presentes. Esse tipo de perspectiva foi deixado de lado a partir dos anos 1970 tanto pelos marxistas (interessados em explorar os conflitos de classe) quanto pelos pós-modernos (preocupados com as políticas identitárias e/ou com as concepções irracionalistas segundo as quais todo poder é podre e todo projeto político é irracional e visa apenas à dominação e à exploração). A falta de um "projeto de nação" é um dos motivos mais amplos que explicam porque o Brasil encontra-se no poço sem fundo em que está.
Por outro lado, aliás também remontando a uma concepção que passa por Darcy Ribeiro, o autor tem uma visão positiva, otimista do brasileiro. Não se trata de negar seus problemas, nem das dificuldades que enfrentamos, nem dos aspectos negativos de nossa história: nada disso. O autor reconhece com grande clareza todos esses problemas. Mas, em vez de limitar-se a isso, ele observa que há inúmeros aspectos positivos no Brasil e nos brasileiros - aspectos que justificam a possibilidade de o país "dar certo" (e, portanto, que dão sentido à concepção de um "projeto de país"). A história brasileira não é uma sucessão de crimes, de opressões, de dominações, de brutalidade e - em uma narrativa que tem sido larga e alegremente repetida - de autoritarismo inato; muito do que se afirma como negativo na história e na realidade brasileira tem que ser percebido, com urgência, de maneira diversa.
Todavia, sou obrigado a fazer um reparo ao livro, a apresentar um grave "porém". O autor elogia reiteradamente o grande Marechal Rondon - aliás, com toda a justiça. Ora, como se sabe, Rondon era positivista: é precisamente ao tratar do Positivismo que Mércio Gomes erra - e erra reiteradamente, infelizmente se limitando a repetir o senso comum de manuais. Nesse caso, não há escapatória; é necessário ignorar tudo o que Mércio Gomes fala sobre o Positivismo e buscar outras fontes.

Marechal Rondon em 1930
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A2ndido_Rondon#/media/Ficheiro:Marechal_Rondon.jpg
(Sacrificando um pouco a humildade, e considerando a multiplicidade de âmbitos em que se move Mércio Gomes - teoria social, antropologia brasileira, história das idéias etc. -, uma indicação útil a respeito do Positivismo é o meu livro Comtianas brasileiras.)