30 março 2016

Entrevista sobre a crise política brasileira

No dia 28 de março de 2016, participei do programa Curitiba & Você, da TV Transamérica. Foi uma entrevista de cerca de 15 minutos, muito tranqüila e agradável, com a jornalista Eliz Porfílio, sobre minha interpretação política e sociológica das sérias crises que o Brasil enfrenta atualmente.

O vídeo está disponível por meio destes vínculos:

- TV Transaméricahttp://transamerica.tv.br/variedade/curitiba-e-voce-crise-politica-brasileira/

- Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=-mpB4rYy0xQ.

11 março 2016

Sociologização do indivíduo ou reducionismo da sociedade?

 

Nas Ciências Sociais – e, possivelmente, também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1]. O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações, idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos; assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.

Essas concepções, conforme as entendo, são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações. Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações, elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos teóricos”.

Tais situações apresentam-se com clareza quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas, sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões. Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual interpretação dos resultados.

Ora, é necessário termos clareza de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características e traços – consiste em um excesso de empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”) com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”): por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais, intelectuais e práticos.

Por outro lado, a dificuldade em realizar a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas “indivíduos”, mas coletividades em ação – essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no fundo ele consiste no principal) “obstáculos epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição da Sociologia[3].

Assim, temos que ter clareza de que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos ao longo do tempo[4].

Em suma: o erro que origina a dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].

O caráter de “obstáculo epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7], evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em meados do século XIX:

[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que perante o antigo [a divindade cristã]. [...]

A citação seguinte é ainda mais clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no original): “Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.

Uma última observação para concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos, de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências teóricas e metodológicas que isso acarreta.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. 1996. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto.

BECKER, Howard S. 2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar.

BORGES, Camila D. & SANTOS, Manoel A. 2005. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.

BOTELHO, André. 2013. Essencial Sociologia. São Paulo: Companhia das Letras.

CASTRO, Celso. 2014. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar.

COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

FREITAS, Renan S. 2003. Sociologia do Conhecimento. Pragmatismo e pensamento evolutivo. Bauru: USC.

GONDIM, Sônia M. G. 2003. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161.

KING, Gary; KEOHANE, Robert O. & VERBA, Sidney. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. New Jersey: Princeton University.

Lacerda, Gustavo B. 2022. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. In: _____. Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.

SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.

SILVA, Tomaz T. 1990. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.

WRIGHT MILLS, Charles. 1972. A imaginação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.



[1] Esta postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024 ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação substancial.

[2] Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016, considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos (2005)).

[3] A idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é perfeitamente aplicável à Sociologia.

[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico, no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência). Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito, com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista, cf. Lacerda (2022).

Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma sugestão de H. Becker (2007).

[5] Tomaz Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.

[6] A chamada “Sociologia weberiana” padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor: na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã (romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)! Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna” (!) Sociologia.

Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão “imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação individual da situação de cada indivíduo na sociedade (Wright Mills, 1972).

Por fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras (Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas, propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se percebe, válidas para todas as Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social exaltada nas coletâneas acima indicadas.

[7] O caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal. Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um aspecto teórico. No caso que nos interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e acima de tudo, descreve a realidade – no caso, a realidade própria ao ser humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes conseqüências morais e políticas.

[8] Um esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso do Soneto de fidelidade, a expressão “posto que” tem um sentido adversativo e significa “embora”, ao contrário do entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.

[9] Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um “obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria, o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p. 192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo, sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais, primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras, vincula-se precisamente às viagens como procedimento metodológico.

23 fevereiro 2016

Gazeta do Povo: "Tributação contra a imoralidade"

Artigo de minha autoria publicado em 23.2.2016 na Gazeta do Povo. O original pode ser lido aqui.

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Tributação contra a imoralidade

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Texto publicado na edição impressa de 23 de fevereiro de 2016

Consideremos duas situações históricas. A primeira: quando da Proclamação da República no Brasil, em 1889, os positivistas tinham uma preocupação particular: garantir que o governo e o Estado não interferissem no chamado “poder espiritual” (as diversas religiões e igrejas) e nas liberdades de pensamento e expressão. O fundamento da ação do Estado é o uso da violência, mesmo que essa violência atue sob o amparo da lei; assim, o Estado pode interferir na liberdade de pensamento de diferentes maneiras, das quais duas mais óbvias são a censura e a imposição de currículos escolares específicos. Isso não é novidade e mesmo neste início do século 21 vemos como tais possibilidades são bastante concretas.
Mas outra forma de o Estado interferir na liberdade religiosa, menos evidente, é via tributação. Para pagar os impostos é necessário ter recursos; como o “poder espiritual” não gera riquezas, os impostos podem ser uma forma extremamente eficaz e simples de impedir que organizações da sociedade civil manifestem suas perspectivas. Foi levando em consideração essa possibilidade, também não desprezível, que os positivistas foram favoráveis à isenção tributária das igrejas, em uma regra que se manteve desde então.
A justificativa político-moral da isenção tributária perde intensidade face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira




A outra situação é a da enorme e crescente riqueza material da Igreja Católica no fim da Idade Média. Recebendo donativos de seus fiéis, bem como tendo o apoio oficial dos governantes, os clérigos acumulavam cada vez mais bens, na forma de dinheiro ou de terras. Com isso, o clero tornava-se cada vez mais venal, preocupado mais com suas posses que com o bem-estar material e moral dos fiéis (que, por sua vez, eram em sua maioria pobres ou miseráveis). Contra tal estado de coisas levantou-se Francisco de Assis, que não por acaso defendeu a necessária pobreza do clero e fundou uma ordem religiosa mendicante. Como tal situação não se tenha modificado, a reação a ela foi um dos motivos para que, alguns séculos mais tarde, a Igreja Católica tenha sofrido um abalo mais sério, do qual jamais se recuperou e que foi o início da derrocada do monoteísmo no Ocidente: trata-se, é claro, do protestantismo, com as teses de Lutero.
Essas duas situações compõem a moldura histórica para o debate teórico-político que se apresenta atualmente no Brasil, em que se propõe a tributação de igrejas. Por que essa proposta? No Brasil, há uma situação consolidada há tempos e de que as igrejas – Católica e protestantes – se aproveitam, buscando, aliás, aumentar cada vez mais suas prerrogativas, com frequência sem entender que essa isenção é um gigantesco privilégio e sem se preocupar em fazer jus a ele. Vê-se proliferarem igrejas com templos cada vez maiores e ostentatórios, pregando o enriquecimento a qualquer custo e sendo proprietárias de enormes conglomerados comerciais, industriais, de serviços e financeiros; da mesma forma, sob as alegações mais estapafúrdias, auferem diariamente pequenas fortunas, cujos destinos, devido à isenção tributária, não podem ser controlados pelo governo (ou seja, com facilidade são canais para lavagem de dinheiro e evasão de divisas). Em outras palavras, a justificativa político-moral – e é disso que se trata aqui: de um problema político com um intenso fundamento moral – da isenção tributária perde intensidade, ou relevância, face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira.
É claro que as liberdades de pensamento e de expressão têm de ser preservadas, mas a imoralidade atual – que se agrava diante da crise financeira por que passa o país, que tende a piorar nos próximos anos – também tem de ser combatida com seriedade. Assim, um meio-termo é necessário, com várias medidas: fiscalização pública dos “rendimentos” eclesiásticos; tributação progressiva, com isenção para pequenas igrejas e índices crescentes para “rendas” maiores; proibição sumária de igrejas (e sacerdotes!) possuírem empresas de qualquer tipo. Por fim, proibição completa de que sacerdotes possam disputar cargos políticos.
Essas poucas medidas podem corrigir (ou evitar) alguns problemas seculares que o Brasil enfrenta. Irônico ou não, é necessário moralizar muitas (mas não todas) as instituições que, justamente, deveriam zelar pela moralidade pública e privada.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

08 fevereiro 2016

Participação no livro "Unila - consulta internacional"

Desde há alguns anos existe a Universidade da Integração Latino-Americana, a Unila, com sede em Foz do Iguaçu e com corpos discente e docente dos países do Cone Sul.

Pois bem: em 2008 o então Reitor Pro-Tempore da Unila, Prof. Hélgio Trindade, remeteu a vários pesquisadores de diversas partes do mundo uma consulta sobre qual deveria, ou poderia, ser o perfil da futura universidade.

Tive a felicidade de integrar o rol de pesquisadores consultados; minhas respostas, juntamente com as demais, foram compendiadas em um volume único, intitulado justamente "Unila – Consulta Internacional – Contribuições à concepção, organização e proposta político-pedagógica da Unila".

Esse volume está disponível aqui. Entre as páginas 148 e 157 encontram-se as minhas considerações (páginas 75 a 79 do arquivo PDF).

Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Vários anos atrás - em 2005, para ser mais preciso -, após ter estudado as relações ocorridas entre Brasil e Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX e, portanto, após ter estudado a atuação internacional dos EUA, decidi redigir um pequeno texto sobre as percepções havidas sobre esse país.

Minhas reflexões foram publicadas na extinta revista eletrônica Autor (São Paulo, v. 5, n. 50, 2005). Como foi escrito há mais de dez anos, é natural que uma coisa ou outra fosse alterada, caso escrito hoje (fevereiro de 2016), tanto em termos de estilo quanto de conteúdo. 

Ainda assim, ele mantém-se atual em sua maior parte, se não em sua totalidade; dessa forma, creio que vale a pena publicar novamente estes meus comentários, que trago a público neste blogue sem alterações (exceto no que se refere ao meu currículo acadêmico, presente na nota n. 1, abaixo).

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Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

I. INTRODUÇÃO

Falar sobre os Estados Unidos atualmente é despertar paixões. Na verdade, desde há um bom tempo – talvez desde finais do século XIX, no caso do Brasil – esse tema é apaixonante e o debate, na medida em que há algum, é apaixonado. Há assuntos que provocam vivas reações de maneira “unívoca”: as pesquisas com células-tronco, nos dias atuais, seriam um exemplo disso, pois a clivagem entre favoráveis e contrários baseia-se em questões de pesquisa médica (favoráveis) ou em um certo respeito à vida (contrários); além disso, as discussões não são passíveis de outras posições que não as favoráveis e as contrárias.

Relativamente aos Estados Unidos, a situação é diversa, pois as clivagens são inúmeras, assim como as posições e mesmo os graus em que cada posição é possível. Alguém pode radicalmente ser favorável a eles porque os considera a terra da liberdade ou o bastião do anticomunismo ou a terra do individualismo ou mesmo porque o idealismo (e as versões religiosas originárias desse traço de comportamento, o moralismo[2] e o messianismo) sempre teve grande importância em sua vida, interna ou externa. Quem é contrário a esse país pode sê-lo pelos mesmos motivos porque alguém lhe é favorável, isto é, porque lá há a prevalência do material no lugar do espiritual, porque lá se é individualista em detrimento do coletivismo ou de um “socialismo” ou porque lá a religião assume importância exagerada na vida social e política. É claro que há quem os condene por serem a única superpotência mundial, adotando as condutas adequadas à manutenção de tal condição, ou por adotarem um comportamento mais prepotente, desconsiderando fóruns multilaterais em função da certeza própria aos iluminados. Por fim, há a possibilidade de fórmulas intermediárias, em termos substantivos (“isto é bom, aquilo é ruim”) e em termos metodológicos (“prefiro registrar os fatos”). Os métodos analíticos também variam: há quem prefira uma abordagem estruturalista, outros preferem o materialismo, outros são mais simpáticos a um certo “conjunturalismo” e assim por diante.

O que comentei é o óbvio, mais ou menos sabido por todos. Todavia, em diversas ocasiões é necessário dizer-se o óbvio para poder-se ir adiante – e o “ir adiante” no presente caso significa apresentar algumas questões relacionadas aos Estados Unidos com um mínimo de independência, sem constrangimentos político-“ideológicos”. Ou melhor: não tanto ao país em si como em relação à percepção que dele vários têm.

Os Estados Unidos despertam paixões. As paixões, em si, não nos interessam nem são propriamente problemáticas: todos sabemos como a política (e a própria vida) é feita de paixões, algumas maiores, outras menores. O que é problemático no presente caso é que as paixões relativas aos Estados Unidos, muitas justificadas, outras nem tanto, freqüentemente atrapalham análises minimamente cuidadosas de sua posição no mundo, seja a favor, seja contra. Na verdade, indo diretamente ao ponto, o fato é que a quantidade de bobagens que se repete a respeito dos Estados Unidos é enorme e, na maioria das vezes, ao invés de buscar-se um conhecimento positivo a respeito da realidade desse país, repete-se esse pseudoconhecimento, considerado correto porque legitimado pelos preconceitos políticos correntes, de direita ou, mais facilmente, de esquerda.

II. DOIS AUTORES FALAM DOS EUA: ARON E HOBSBAWM

Uma comparação entre abordagens pode ilustrar com clareza meu ponto. Por motivos específicos li recentemente dois livros de história do século XX, um escrito no já distante ano de 1973, de Raymond Aron (1975): A república imperial – os Estados Unidos no pós-guerra (1945-1970); o outro de Eric Hobsbawm (1999), escrito em 1993: A Era dos Extremos – o breve século XX (1914-1991). A posição de Aron a respeito era muito clara ao notar que a potência tem um projeto de poder e adota os meios considerados em cada momento adequados à consecução de seus objetivos – e também sem deixar de notar que, no contexto da Guerra Fria[3], tendo que escolher entre o comunismo e as democracias liberais, a opção era clara: a aceitação da liderança norte-americana era a única opção crível –, considerando, de qualquer forma, que a história humana, em que pesem as mudanças por que passa cada sociedade, é muito a disputa entre os homens por poder, honra e glória (como diriam Maquiavel e Hobbes). 

Aron era um francês que não escondia sua viva antipatia pelo comunismo e pelo perigo que a União Soviética representava para a Europa e que, ao mesmo tempo, percebia nos Estados Unidos inúmeros valores respeitáveis e outros tantos condenáveis ou desprezíveis; em outras palavras, reconhecendo a natureza humana e a natureza das relações internacionais, fazia sua escolha, sem deixar de indicar as condutas francamente condenáveis da parte dos Estados Unidos – mas também sem fazer a apologia desses mesmos comportamentos. 

A questão aqui, portanto, é notar que Aron apresentava a atuação norte-americana no mundo, tendo claro que vários de seus comportamentos eram – como são – condenáveis, ao mesmo tempo em que outros tantos não o eram (como não o são); além disso, entre duas potências que adota(va)m comportamentos semelhantes – devido ao simples fato de serem potências –, o autor preferia aquela que defendia valores mais próximos aos seus próprios, sem ingenuidades. A questão, assim, era: sem ingenuidades em relação aos norte-americanos nem em relação à (então existente) União Soviética, qual das duas potências é a preferível, qual é a que perfilha valores mais próximos aos nossos? A resposta a essa pergunta por certo que influenciou o livro, mas parece-me que o tipo de raciocínio dessa pergunta era o que constituía o fundamento metodológico do livro e, portanto, a postura intelectual do autor.

Hobsbawm, ao contrário, põe-se em uma posição claramente contrária aos Estados Unidos; lendo, por exemplo, o capítulo 8 de seu livro (“Guerra Fria”), claramente o autor considera os Estados Unidos os causadores da Guerra Fria e os beligerantes que insistiam em opor-se à União Soviética mesmo quando não eram provocados (e jamais teriam sido provocados!) por uma União Soviética que, acima de tudo, era pacífica e desejava a paz e a calma para construção de seu “socialismo em um só país”[4].

O contraste entre ambos os autores não poderia ser maior. Aceitando a sinceridade dos formuladores da política externa dos Estados Unidos, percebe em suas ações hesitações e dúvidas, contradições e tensões – e, também, hipocrisia – Aron reconhecia a diversidade de sistemas sociais e políticos, a diversidade de interesses e histórias mas afirmava, subjacente à exposição, a importância de um defensor da Europa e dos valores europeus (comungados, em maior ou menor proporção, pelos Estados Unidos). Poder-se-ia dizer que ele defendia os Estados Unidos porque era favorável ao capitalismo, mas tal afirmação não faria sentido para um intelectual do tipo de Aron, que não tinha uma posição simples (ou simplista) a respeito de tais temas. Hobsbawm, ao contrário, é muito claro em seus juízos sobre os Estados Unidos e a União Soviética mas não evidencia suas preferências filosóficas primeiras: rejeição do capitalismo (e do Estado que o representa, defende e fomenta), simpatia pela União Soviética (que o fez suavizar notável e espantosamente o autoritarismo soviético posterior a Stálin) e adesão ao marxismo, isto é, ao materialismo histórico, à luta de classes e aos interesses inconciliáveis que influenciam (quando não deformam) o conhecimento conforme a classe social de quem fala.

Nada disso é novidade para nenhum leitor mas, como diria Nelson Rodrigues, esse é o óbvio ululante: ninguém o vê – ou ninguém se “lembra” de vê-lo. À parte as condições do mercado editorial brasileiro, as referências editoriais de ambos os livros servem como um índice precioso desse “esquecimento ululante”: enquanto o livro de Aron – que é extremamente informativo, muito mais que opinativo – teve apenas uma edição em 1975, o livro de Hobsbawm já está pelo menos na décima edição, menos de dez anos após seus lançamento no Brasil. Não é à toa que o discurso sobre os Estados Unidos pode ser tão enviesado...

III. PROBLEMAS DE (MÁ) PERCEPÇÃO E DE VALORES

Abstraindo o debate, parece-me que as dificuldades para falar de (ou, antes, para pensar) os EUA residem em três ou quatro pontos principais. Em primeiro lugar, sua atuação não é unívoca. Eles têm um projeto nacional, que é mais ou menos seguido; após a II Guerra Mundial, podendo escolher entre manterem-se dominantes no mundo ou recolherem-se em seu isolacionismo prévio, preferiram a atuação global, em uma posição em que se mantêm até os dias atuais e cada vez mais, adotando as medidas que, certas ou erradas, são conforme o projeto que fazem para si e para o mundo. Em segundo lugar, sua atuação é diferente conforme a área geográfica a que se refere: por exemplo, o isolacionismo por eles praticado após a I Guerra Mundial referia-se à Europa, mas de maneira alguma à América Latina, onde, desde o início do século XX até princípios dos anos 1930, um grande ciclo de intervencionismo militar e econômico teve lugar.

Em terceiro lugar, o juízo que deles fazemos é marcado pela política atual, isto é, mesmo não sendo possível julgar a política desenvolvida por um país sem se recuar no tempo para considerar também os movimentos anteriores, julga-se o antes pelo atual – e como o atual nunca é bom, tudo sempre foi e é ruim. O erro de anacronismo fica patente aí, embora não se faça questão, de modo geral, de corrigi-lo. Last but not the least, as preferências políticas – ou, se se preferir, as preferências “ideológicas” – de quem fala têm que ser levadas em conta: notadamente a esquerda, embora também a direita em algumas situações[5], é contrária aos Estados Unidos pelo duplo motivo de ser um país capitalista – talvez o país capitalista por excelência, de onde Max Weber tirou elementos empíricos para sua famosa obra sobre o “espírito” do capitalismo – e de ter enfrentado (com sucesso) a União Soviética (o grande bastião do comunismo, afinal de contas) durante a Guerra Fria. Freqüentemente os juízos a respeito dos Estados Unidos misturam elementos desses quatro fatores, que separei por motivos de ordenamento lógico; se se prestar atenção, os quatro motivos foram agrupados em dois grupos de dois: o primeiro grupo refere-se a questões de fato, a problemas históricos e sociológicos; o segundo grupo vincula-se a questões intelectuais, no sentido de que se referem ao mundo das idéias, sejam elas metodológicas, sejam de preferências pessoais.

III.1. Potências boas?

Façamos uma revisão de cada um desses motivos. Em relação ao primeiro: uma grande potência pode não lançar mão dos instrumentos necessários para manter-se como uma grande potência? Aliás, existem “boas” grandes potências? Subjaz aqui a pretensão de que, fôra outro o país dominante, suas ações seriam diversas das adotadas pela potência atualmente dominante. Mas será isso fato ou será mero wishful thinking? À parte o problema metodológico de que não se pode pesquisar o que não aconteceu – embora seja um recurso comum ao tratar-se de problemas políticos que estão na ordem do dia –, o fato é que, historicamente, as grandes potências, se desejam manter-se como grandes ou, pelo menos, como potências, adotam os comportamentos que julgam necessários independentemente de considerações “éticas” ou morais. Em termos acadêmicos isso nos leva à discussão clássica de se é possível existir, de alguma forma, uma ordem internacional mais justa ou menos predatória, em que as dignidades nacionais não tenham que sucumbir aos desígnios de países mais fortes. Pode-se lamentar, sem dúvida alguma, esse estado de coisas, mas pelo menos desde a Guerra do Peloponeso até o momento, o discurso dos atenienses aos mélios, nesse sentido, permanece mais ou menos verdadeiro.

Essas observações levam-nos a algumas outras. A agenda internacional implementada pelos Estados Unidos desde o final da II Guerra Mundial – desejos de dominação à parte – é “boa” ou “ruim”? A contenção do comunismo e o combate à União Soviética; a instituição de uma ordem econômica tendencialmente liberal, em que é (ou será) possível uma integração das várias economias nacionais em um único sistema mundial; a criação de uma organização que congrega todos, ou quase todos, os países do mundo, capaz de coordenar ações globais de interesse da humanidade: isso não é pouco, não é desprezível e decididamente não é ruim. “Um outro mundo é possível”: pois bem, qual? O comunista (ou o socialista, tanto faz)? Projetos de ordenamento mundial têm que ser levados a cabo por grandes potências e, bem ou mal, creio que o atual projeto[6] é melhor que os seus pretensos rivais.

Ora, os Estados Unidos não são santos nem são ingênuos. Embora o idealismo, não raras vezes eivado de elementos teológicos, seja uma característica de sua política externa, a questão que se apresenta é a seguinte: qual outro país poderia sucedê-lo para o ordenamento mundial? Em minhas preferências pessoais por países, sou mais pela França que pelos Estados Unidos, mas a verdade é que, infelizmente, a corrida colonial que os europeus levaram a cabo no século XIX foi um projeto basicamente francês, secundado por ingleses, belgas, holandeses, alemães e italianos. Talvez a Rússia pudesse ser um bom país para conduzir o ordenamento mundial? Isso está extremamente longe de ser verdade, ao menos para as tradições de racionalismo e liberdade que o Ocidente constituiu ao longo dos séculos. O mesmo aplica-se à China.

Alternativamente, cabe com franqueza a pergunta: caso nós, brasileiros, estivéssemos no lugar dos estadunidenses, será que agiríamos de maneira diferente? Duvido muito, especialmente porque o Brasil gosta de pensar que é uma “grande potência” (“país do futuro”, “de dimensões continentais” etc.) e, é claro, o samba e o carnaval não são propriamente instrumentos de convencimento político. Em suma: ao acusarmos os Estados Unidos de perceberem o mundo de sua própria forma, de serem uma grande potência e de usarem os instrumentos necessários para tanto, somos indulgentes com nós mesmos, como se, caso estivéssemos no lugar deles, agíssemos de maneira diversa, com maior “generosidade”, “magnanimidade” ou qualidades semelhantes.

Se afirmarem, de qualquer forma, que se deseja uma ordem multipolar, em que não haja a tirania de um país sobre os demais, isso será bem mais aceitável; na verdade, isso me parece desejável. Por outro lado, que não se tenha ilusões: a política internacional é oligárquica – são poucos os que têm efetivamente poder – e, acima de tudo, a arquitetura mundial baseada no projeto e nas instituições que os Estados Unidos constituíram após a II Guerra Mundial ainda é a melhor solução.

III.2. Atuação diversa conforme a região

O segundo motivo de rejeição aos norte-americanos não é sofístico ou resultado de miopia política e sociológica, como o primeiro. Conforme a área geográfica do mundo, o comportamento norte-americano varia bastante, indo da preocupação generosa (interessada, se se desejar) à má vontade ou, simplesmente, à completa ignorância. Podemos facilmente pensar na África, tantas vezes deixada de lado nas questões mundiais, mas os exemplos da Europa e da América Latina podem ilustrar melhor o argumento. Enquanto norte-americanos e europeus mantiveram uma relação de grande proximidade após a II Guerra Mundial, com o guarda-chuva nuclear e econômico estadunidense protegendo a constituição da comunidade econômica européia, a América Latina ficou largada à própria sorte, sem estímulos econômicos para o crescimento, apesar da propalada “amizade” entre o subcontinente e seu vizinho ao Norte. Aliás, mesmo o isolacionismo norte-americano prévio à II Guerra Mundial era apenas em relação à Europa, tendo sofrido a América Latina cerca de 35 anos de intervencionismo e invasões militares, entre 1898 e 1934, com o objetivo de manter os “valores da civilização” e a segurança dos investimentos norte-americanos na região[7].

Como latino-americano não posso deixar de reconhecer: a ação dos Estados Unidos em inúmeros momentos foi extremamente predatória sobre nossa região, justificando uma reserva em relação ao país do Norte que já vem desde Bolívar. Creio que não há necessidade de estender-me sobre o assunto; os exemplos poderiam multiplicar-se enormemente, juntamente com a indignação; quando os nacionalistas latino-americanos denunciam esse comportamento norte-americano, estão corretíssimos[8]. Apenas é necessário perceber que, embora o nacionalismo freqüentemente possa vir acompanhado pelo marxismo, uma e outra coisa são diferentes e sua mistura (ou, mais adequadamente, confusão), embora possível no discurso político do dia-a-dia, não o é na prática científica.

De qualquer maneira, é importante notar que o padrão de intervencionismo não foi constante e que sofreu alterações importantes ao longo da história: ao longo do século XIX não houve intervenções (especialmente na América do Sul), a Política da Boa Vizinhança, de Franklin D. Roosevelt, foi uma reversão nas invasões e, por fim, a Aliança para o Progresso foi uma tentativa de conquistar a boa vontade latino-americana em um período em que o desenvolvimentismo era a ordem do dia aqui[9].

III.3. Anacronismo na análise

As duas objeções examinadas acima referem-se a questões de fato: como é que as grandes potências atuam no mundo? Mais particularmente, como é que os Estados Unidos comportaram-se em relação à América Latina? Sem dúvida que as interpretações possíveis variam muito, mas qualquer discussão sobre o assunto, nesses casos, tem que se referir a questões de fato e não a formulações teóricas mais ou menos gerais e mais ou menos separadas da realidade. Os outros dois motivos referem-se a questões ou de ordem metodológica (como encarar a realidade?) ou de ordem “ideológica” (qual o sistema social que se prefere?). Vejamos agora o problema metodológico.

É um erro comum de percepção, embora básico e até grosseiro, julgar o passado com os critérios de hoje. É claro que não me refiro a orientar a pesquisa histórica pelas preocupações atuais; penso, mais precisamente, no erro de desconsiderar os fatos anteriores e suas características pela aplicação mecânica dos nossos critérios ao passado; é estar imbuído de um espírito de absoluto e de negar a necessária relatividade para a compreensão do mundo (natural e humano).

Em relação às disputas políticas, passadas para a academia no assunto que nos interessa, esse erro consiste em atribuir ao passado as preocupações do presente, pura e simplesmente julgando o que se fez antes pelo que se faz atualmente (ou que se pensa fazer atualmente). É claro que, geralmente, o que acontece é que se põe na “lata do lixo da história” aquilo de que não se gosta. Assim, no caso que nos interessa, porque atualmente George W. Bush é o Presidente dos Estados Unidos e porque ele é reconhecidamente belicista e simpático a causas no mínimo “discutíveis”, então nada na política externa dos Estados Unidos presta ou prestou e eles sempre foram detestáveis e desprezíveis. Embora em termos metodológicos esse tipo de afirmação apresente problemas complicadíssimos, o fato é que, em termos políticos mais diretos, essa frase é simplesmente um casuísmo enorme.

III.4. Disputas político-ideológicas

A última fonte de percepções erradas sobre os Estados Unidos reside nas posições políticas de quem fala. Coloquei-a em último lugar não porque a julgo desimportante, mas porque, parece-me, ela é a principal, a fonte de todas as demais, na medida em que justifica ou acoberta todos os outros erros. Bem percebidas as coisas, ao longo de minha argumentação prévia apresentei vários elementos que sugeriam essas disputas; assim, aqui apenas explicitarei e consolidarei esses argumentos.

A posição dos Estados Unidos no mundo, desde o término da II Guerra Mundial e a partir da Guerra Fria, em 1947, foi de defensor do capitalismo. Pessoalmente não levo muito a sério o conceito de “capitalismo” – pois ele cumpre uma função teórica muito específica e muito clara no pensamento marxista, condenando por definição e à partida a sociedade contemporânea –, mas é assim que geralmente se percebe sua atuação no mundo e é por esse metro que se mede seu comportamento[10]. Ora, esse simples motivo condena-os inapelavelmente ao mais profundo abismo infernal, na medida em que, como o capitalismo é ruim, seus defensores devem ser ainda piores. Considerações a respeito das instituições multilaterais (políticas e econômicas), que os EUA criaram a partir de 1945; da ampla liberdade de pensamento e de expressão; da vitalidade de sua economia; de sua estabilidade política; da subordinação da política à moral – nada disso é percebido. Ao mesmo tempo, uma admiração velada pelo comunismo sempre está presente, embora não se escreva nem uma linha a respeito de como o socialismo dito “real” funcionou ou funciona (nos casos chinês, cubano e norte-coreano): nada da enorme literatura – filosófica, científica e jornalística – a respeito do que era (e é) o comunismo aparece nesses debates, apenas a mesma cantilena condenando o capitalismo... é claro que esses autores que condenam o capitalismo vivem em sociedades que se beneficiaram e beneficiam-se enormemente do fato de serem capitalistas.

Importa insistir: a partir da oposição entre o capitalismo (sempre claramente condenado) e o comunismo (ou socialismo ou “um outro mundo possível”, sempre admirado de maneira subjacente), tudo é possível, pois tudo é válido na luta do bem contra o mal, na luta pela redenção humana. Há claramente uma confusão entre os critérios políticos e os intelectuais, em que os últimos subordinam-se, de maneira vil, aos primeiros: a inteligência torna-se um simples instrumento da ação prática, não se concedendo papel algum à investigação concreta da realidade que possa, de alguma forma, fugir dos esquemas pré-determinados de pensamento. Em outras palavras, a razão é submetida pela fé: não é à toa que o marxismo e o comunismo são freqüentemente comparados a uma nova teologia[11].

Reforço aqui a observação apresentada na seção II: a literatura “crítica” aos Estados Unidos, procedente da esquerda (isto é, marxista), é muitíssimo maior que a “crítica” não-marxista. Tem-se a ilusão, dessa forma, que ser contrário aos Estados Unidos é ser de esquerda ou, inversamente, que reconhecer alguns méritos nos EUA é o mesmo que justificar suas atitudes e o capitalismo.

Na verdade, há apenas uma atualização de discursos longamente repetidos: assim como no século XIX e início do século XX dizia-se que era a Inglaterra que não prestava porque era o país bastião do capitalismo – independentemente dos méritos de sua sociedade –, agora o discurso refere-se aos EUA. Lembrar que, por exemplo, os Estados Unidos e a Inglaterra foram países “bons” entre 1942 e 1946 porque eram aliados da União Soviética na “luta antifascista” também não é permitido[12] – pois, afinal, “desde sempre” e por definição os países capitalistas não prestam.

Embora se possa afirmar que a Guerra Fria já acabou e que, portanto, não fazem mais sentido as referências à União Soviética, o fato é que o discurso anti-americano e a perspectiva adotada de modo geral pela esquerda são caracteristicamente da Guerra Fria, com todos os subterfúgios e técnicas adotados no período e, a bem da verdade, desde muito antes. Para comprovar-se essa afirmação, basta ler os textos de autores do século XIX, do início do século XX, da I Guerra Mundial, do período entre as guerras, da II Guerra Mundial, da Guerra Fria e os mais recentes: são todos variações sobre o mesmo tema; os mesmíssimos argumentos, com diferenças táticas de nomes e expressões. A unidade de pensamento e de discurso, aliás, no que se refere à condenação ao capitalismo e, por extensão, aos Estados Unidos, choca quem ouve falar do tal do tão decantado “discurso único” neoliberal, tão acremente condenado pela esquerda.

IV. FINAL DO TEXTO MAS NÃO DA DISCUSSÃO

Retomo no final do artigo a observação inicial: falar sobre os Estados Unidos é provocar paixões – paixões ainda maiores se for para “defender” esse país. Dessa forma, é um terreno espinhoso, que, apesar de sua importância, exige muito cuidado. A quantidade de notas de rodapé deste pequeno artigo – cuja extensão ultrapassou em muito o que planejara inicialmente – indicam os cuidados de que me cerquei ao escrevê-lo. Claro está de que não se trataram especialmente de cuidados metodológicos, mas de cuidados políticos: como argumentei ao longo do texto, falar dos Estados Unidos parece fácil, pois “todos” falam, sem maiores preocupações com o rigor da fala e permitindo-se os maiores erros do ponto de vista intelectual. O esporte nacional no Brasil é o futebol: a “argumentação” relativa aos EUA aproxima-se, talvez não por acaso, às brigas do torcida, tais as tolices que se repete.

É claro que o debate não acabou – mesmo porque, em se tratando de “debate”, isto é, de troca racional e pacífica de idéias, em que cada parte aceita, sem segundas intenções e sem hipocrisia, a real possibilidade de mudar de opinião no decorrer da argumentação; em se tratando de “debate”, parece que ele mal começou. Indiscutivelmente minha argumentação será mal compreendida ou simplesmente distorcida, aparecendo este texto como “pró-americano”: na verdade, se for para tachar-me de alguma coisa, prefiro pensar que sou “pró-pensamento correto” e “pró-sociedade aberta e democrática”[13]. Como comentei antes, tantas são as tolices que se fala a respeito dos Estados Unidos que é demasiado difícil argumentar racionalmente a respeito deles; ora, dada a influência que esse país exerce no mundo – não apenas em termos econômicos e militares, como também culturais –, não compreender os Estados Unidos é também não compreender a maneira como o mundo organiza-se – com todos os seus prós e contras.

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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (gustavobiscaia@yahoo.com.br) é "pós-doutor" e Doutor em Sociologia Política (UFSC), Mestre em Sociologia (UFPR) e sociólogo da UFPR. Sua dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2004, intitula-se Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento: a Operação Panamericana e a Aliança para o Progresso.

[2] O termo “moralismo” é um termo completamente ambíguo e notavelmente impreciso. No presente caso, adoto-o considerando de maneira proposital essa ambigüidade, dando a entender tanto a preocupação com a moralidade da existência humana quanto um comportamento mais hipócrita, em que os valores morais são instrumentalizados para algum fim, com ou sem adesão a esses valores.

[3] Como indicamos, o livro de Aron foi escrito em 1973, em plena Guerra Fria e, curiosamente, no mesmo ano em que os Estados Unidos abriram mão de sua liderança no sistema financeiro internacional estabelecida formalmente pelos acordos de Bretton Woods.

[4] Aliás, uma das mais importantes causas de os Estados Unidos terem iniciado a Guerra Fria teria sido, em parte considerável, o sistema político desse país, em que um político tem que fazer grandes e inflados discursos e promessas para convencer seus eleitores a votarem nele... procedimentos eleitorais à parte, a própria accountability teria sido a responsável pela Guerra Fria, em contraposição à União Soviética – país então destituído desse conceito, assim como a atual (e a antiga) Rússia.

[5] Dos dois lados do espectro ideológico, a esquerda é que de maneira mais marcada é anti-americana: prova disso é a existência do Fórum Social Mundial, que já passou por sua quinta versão, reúne dezenas de milhares de pessoas cada vez que ocorre, multiplica-se em inúmeros “fóruns” regionais e temáticos e tem como uma de suas “propostas” básicas o fim do poder (ou da hegemonia, ou do imperialismo, ou...) dos Estados Unidos.

Por outro lado, algumas acusações dos esquerdistas são extremamente procedentes, como a que se refere à pretensão dos estadunidenses a reduzirem a eles mesmos o título de “americanos”, como se o “resto” da América não fosse, também, americano. Alguns direitistas brasileiros, por exemplo, defendem o suposto direito dos estadunidenses em incorrerem nessa confusão, o que é completamente despropositado.

[6] Atenção para a expressão que utilizo: “projeto”. Não advogo, de maneira alguma, que o atual ordenamento do mundo seja “justo” ou que a conduta atual dos Estados Unidos, com George W. Bush à frente, seja a melhor possível. O que advogo, sim, é que o projeto implementado historicamente pelos Estados Unidos a partir da II Guerra Mundial em termos mundiais é bom e correto e é, em última análise, o caminho que se deve seguir, apenas se aperfeiçoando. Não confundir, portanto, o ideal com o real.

[7] Na verdade, a distinção entre as várias regiões manteve-se ainda nesse período. Embora considerando globalmente a América Latina uma região semibárbara ou bárbara, o comportamento efetivo dos Estados Unidos no período que citamos variou: enquanto a América Central padeceu com as freqüentes invasões pelos marines ou com a tirania do dólar, a América do Sul permaneceu mais ou menos incólume (à exceção da Colômbia, que sofreu com o separatismo panamenho insuflado pelos estadunidenses, no início do século XX) (CONNELL-SMITH, 1966; ARON, 1974; HOROWITZ, 1975).

[8] Nesse sentido, por exemplo, os livros de Luís Alberto Moniz Bandeira (1998; 2001) – que, de resto, como comunista, é anti-americano – são excelentes fontes de informação sobre a ação dos Estados Unidos no Brasil e não deixam dúvidas a respeito de seu sentido.

[9] Insisto em um ponto: geralmente os quatro tipos de objeção aos Estados Unidos vêm misturados e confundidos. Em que pesem os interesses econômicos estadunidenses, o fato é que as suas condutas em relação à América Latina dependem muito mais da vontade política do grupo no poder (particularmente do Presidente da República) que de questões econômicas estruturais. Enfatizo: a vontade política de um governante ou de outro, em cada conjuntura, é muito mais importante para o comportamento global dos Estados Unidos em relação à América Latina que as “determinações do capital” (por exemplo). Em política internacional as variáveis propriamente políticas são bastante arredias à redução às variáveis econômicas.

[10] Minha argumentação, como se percebe, refere-se à esquerda, pois no Brasil há apenas uma pequena direita intelectualmente ativa e que, de modo geral, é pró-norte-americana. Em outros países, como a França, existe uma direita, que tem uma atuação intelectual mais marcada e que, em seus setores mais radicais, também é anti-americana – em termos quase similares aos da esquerda (cf. REVEL, 2003).

[11] É claro que há intelectuais e intelectuais, há políticos e políticos. A questão é: quantos intelectuais de esquerda têm os cuidados metodológicos a que me refiro e a honestidade intelectual que estou cobrando? Até onde sei, se há alguns, são muito poucos. A mesma coisa em relação aos políticos práticos de esquerda – isto é, até que alcancem o poder, quando as posições tornam-se mais variadas e matizadas.

[12] Detalhes mais sórdidos da história política mundial no período anterior à II Guerra Mundial também não são normalmente mencionados, como o apoio decisivo que os comunistas alemães deram, no final da República de Weimar, a Hitler ou mesmo o acordo de não-agressão mútua entre Hitler e Stálin, de 1939.

[13] Novamente, uma digressão necessária: em que pese o fato de a soberania e a “autodeterminação dos povos” serem conceitos metafísicos, não é aceitável a intromissão de um país nos assuntos internos de outros, sem a permissão do país que sofreu a intromissão. A discussão não é simples ou fácil, mas nem o colonialismo, nem o intervencionismo, nem as “guerras preventivas” da doutrina Bush são aceitáveis.